Alvaro era um desses entes privilegiados, sobre quem a natureza e a fortuna parece terem querido despejar á porfia todo o cofre de seos favores. Filho unico de uma distincta e opulenta familia, na idade de vinte e cinco annos, era orphão de pae e mãe, e senhor de uma fortuna de cerca de dous mil contos.
Era de estatura regular, esbelto, bem feito e bello, mais pela nobre e sympathica expressão da physionomia, do que pelos traços physicos, que entretanto não erão irregulares. Posto que não tivesse o espirito muito cultivado, era dotado de entendimento lucido e robusto, proprio a elevar-se á esphera das mais transcendentes concepções. Tendo concluido os preparatorios, como era philosopho, que pesava gravemente as cousas, ponderando que a fortuna de que pelo acaso do nascimento era senhor, por outro acaso lhe podia ser tirada, quiz para ter uma profissão qualquer, dedicar-se ao estudo do Direito. No primeiro anno, em quanto pairava pelas altas regiões da filosofia do direito, ainda achou algum prazer nos estudos académicos; mas quando teve de embrenhar-se no intrincado labyrintho dessa arida e enfadonha casuistica do direito positivo, seo espirito eminentemente synthetico recuou enfastiado, e não teve animo de proseguir na senda encetada. Alma original, cheia de grandes e generosas aspirações, aprazia-se mais na indagação das altas questões politicas e sociaes, em sonhar brilhantes utopias, do que em estudar e interpretar leis e instituições, que pela maior parte, em sua opinião só tinhão por base erros e preconceitos os mais absurdos.
Tinha odio a todos os privilegios e distincções sociaes, e é escusado dizer que era liberal, republicano e quasi socialista.
Com taes idéas Alvaro não podia deixar de ser abolicionista exaltado, e não o era só em palavras. Consistindo em escravos uma não pequena porção da herança de seos paes, tratou logo de emancipal-os todos. Como porém Alvaro tinha um espirito nimiamente philantropico, conhecendo quanto é perigoso passar bruscamente do estado de absoluta submissão para o gozo da plena liberdade, organizou para os seos libertos em uma de suas fazendas uma especie de colonia, cuja direcção confiou a um probo e zeloso administrador. Desta medida podião resultar grandes vantagens para os libertos, para a sociedade, e para o proprio Alvaro. A fazenda lhes era dada para cultivar, a titulo de arrendamento, e elles sujeitando-se a uma especie de disciplina commum, não só preservavão-se de entregar-se á ociosidade, ao vicio e ao crime, tinhão segura a subsistencia e podião adquirir algum peculio, como tambem poderião indemnizar a Alvaro do sacrificio, que fizéra com a sua emancipação. Original e excentrico como um rico lord inglez, professava em seos costumes a pureza e severidade de um quaker. Todavia, como homem de imaginação viva e coração impressionavel, não deixava de amar os prazeres, o luxo, a elegancia, e sobre tudo as mulheres, mas com certo platonismo delicado, certa pureza ideal, proprios das almas elevadas e dos corações bem formados. Entretanto Alvaro ainda não havia encontrado até ali a mulher, que lhe devia tocar o coração, a encarnação do typo ideal, que lhe sorria nos sonhos vagos de sua poetica imaginação. Com tão excelentes e brilhantes predicados, Alvaro por certo devia ser objeto de grande preoccupação no mundo elegante, e talvez o almejo secreto, que fazia palpitar o coração de mais de uma illustre e formosa donzella. Elle porém, igualmente cortez e amavel para com todas, por nenhuma dellas ainda havia dado o minimo signal de predilecção.
Pode-se fazer idéa do desencanto, do assombro, da terrivel decepção que reinou nos circulos das bellas pernambucanas ao verem o vivo interesse e solicitude, de que Alvaro rodeava uma obscura e pobre moça; a defferencia com que a tratava, e os enthusiasticos elogios, que sem rebuço lhe prodigalisava. Juno e Pallas não ficárão tão despeitadas, quando o formoso Paris conferio a Venus o premio da formosura. Já antes daquelle saráo, Alvaro em alguns circulos de senhoras havia fallado de Elvira em termos tão lisonjeiros e mesmo com certa eloquencia apaixonada, que a todas sorprehendeo e inquietou. As moças ardião por ver aquelle prototypo de belleza, e já de antemão chovião sobre a desconhecida e o seo campeão mil chascos e malignos apodos. Quando porém a virão, apezar dos contrafeitos e desdenhosos sorrisos, que apenas lhes roçavão a flor dos labios, sentirão uma desagradavel impressão pungir-lhes no intimo do coração. Peço perdão ás bellas, de minha rude franqueza; a vaidade é com bem raras excepções, companheira inseparavel da belleza; e onde se acha a vaidade, a inveja, que sempre a acompanha mais ou menos de perto, não se faz esperar por muito tempo. A belleza da desconhecida era incontestavel; sua modestia e timidez em nada prejudicavão a singela e nativa elegancia de que era dotada; o traje simples e mesmo pobre em relação ao luxo sumptuoso, que a rodeava, assentava-lhe maravilhosamente, e realçavão-lhe ainda mais os encantos naturaes. O effeito deslumbrante, que Elvira produzio logo ao primeiro aspecto, e o empenho com que Alvaro procurava fazer sobresahir os seductores attractivos de Elvira, como de proposito para eclipsar as outras bellezas do salão, erão de sobejo para irritar-lhes a vaidade e o amor proprio. Uma e outro devião ser naquella noite o alvo de mil olhares desdenhosos, de mil sorrisos zombeteiros, e acerados epigrammas.
Alvaro nem dava fé da mal disfarçada hostilidade, com que elle e a sua protegida, — podemos dar-lhe esse nome, — erão acolhidos naquella reunião; mas a timida e modesta Elvira, que em parte alguma encontrava lhaneza e cordialidade, achava-se mal naquella atmosphera de fingida amabilidade e cortezania, e em cada olhar via um escarneo desdenhoso, em cada sorriso um sarcasmo.
Já sabemos quem era Alvaro; agora travemos conhecimento com o seo amigo, o Dr. Geraldo.
Era um homem de trinta annos, bacharel em direito, e advogado altamente conceituado no foro do Recife. Entre as relações de Alvaro era a que cultivava com mais affecto e intimidade; uma intelligencia de bom quilate, firme e esclarecida, um caracter sincero, franco e cheio de nobreza, davam-lhe direito a essa predilecção da parte de Alvaro. Seo espirito pratico e positivo, como deve ser o de um consummado jurisconsulto, prestando o maior respeito ás instituições e mesmo a todos os preconceitos e caprichos da sociedade, estava em completo antagonismo com as idéas excentricas e reformistas de seo amigo; mas esse antagonismo longe de perturbar ou arrefecer a reciproca estima e affeição, que entre eles reinava, servia antes para alimental-as e fortalecel-as, quebrando a monotonia, que deve reinar nas relações de duas almas sempre accordes e unisonas em tudo. Estas taes por fim de contas, vendo que o que uma pensa, a outra tambem pensa, o que uma quer, a outra igualmente quer, e que nada tem a se communicarem, enjoadas de tanto se dizerem — amen, — ver-se-hão forçadas a recolherem-se ao silencio e a dormitarem uma em face da outra; placida, commoda e somnolenta amisade!... De mais, a contrariedade de tendencias e opiniões são sempre de grande utilidade entre amigos, modificando-se e temperando-se umas pelas outras. E’ assim, que muitas vezes o positivismo e o senso pratico do Dr. Geraldo servião de correctivo ás utopias e exaltações de Alvaro, e vice-versa.
Da boca do proprio Alvaro já ouvimos por que acaso veio elle a conhecer D. Elvira, e como conseguio leval-a ao saráo, a que ainda continuamos a assistir.
— Meo pae, — dizia uma jovem senhora a um homem respeitavel, em cujo braço se arrimava, entrando na ante-sala, onde ainda nos conservamos de observação. — Meo pae, fiquemos por aqui um pouco nesta sala, em quanto está deserta. Ah! meo Deos! — continuou ella com voz abafada, depois de se terem sentado junto um do outro; — que vim eu aqui fazer, eu pobre escrava, no meio dos saráos dos ricos e dos fidalgos!... este luxo, estas luzes, estas homenagens, que me rodeião, me perturbão os sentidos e causão-me vertigem. E’ um crime que cometo, envolvendo-me no meio de tão luzida sociedade; é uma traição, meo pae; eu o conheço, e sinto remorsos... Se estas nobres senhoras adivinhassem, que ao lado dellas diverte-se e dança uma miseravel escrava fugida a seos senhores!... Escrava! — exclamou levantando-se — escrava!... affigura-se-me que todos estão lendo, gravada em letras negras em minha fronte, esta sinistra palavra!... fujamos daqui, meu pai, fujamos! esta sociedade parece estar escarnecendo de mim; este ar me suffoca... fujamos.
Fallando assim a moça pálida e offegante, lançava a cada phrase olhares inquietos em roda de si, e empuchava o braço de seo pae, repetindo sempre com anciosa soffreguidão: — Vamo-nos, meo pae; fujamos daqui.
— Socega teo coração, minha filha, respondia o velho procurando acalmal-a. — Aqui ninguem absolutamente pode suspeitar quem tu és.
Como poderão desconfiar, que és uma escrava, se de todas essas lindas e nobres senhoras nem pela formosura, nem pela graça e prendas do espirito, nenhuma pode levar-te a palma?
— Tanto peor, meo pae; sou alvo de todas as attenções, e esses olhares curiosos, que de todos os cantos se dirigem sobre mim, fazem-me a cada instante estremecer; desejaria até, que a terra se abrisse debaixo de meos pés, e me sumisse em seo seio.
— Deixa-te dessas idéas; esse teo medo e acanhamento é que poderião nos pôr a perder, se acaso houvesse o mais leve motivo de receio. Ostenta com desembaraço todos os seos encantos e habilidades, dança, canta, conversa, mostra-te alegre e satisfeita, que longe de te supporem uma escrava, são capazes de pensar que és uma princeza. Toma animo, minha filha, ao menos por hoje; esta tambem, assim como é a primeira, será a derradeira vez que passaremos por este constrangimento; não nos é possivel ficar por mais tempo nesta terra, onde começamos a despertar suspeitas.
— E’ verdade, meo pae!.. que fatalidade!.. — respondeo a moça com uma triste oscillação de cabeça. — Assim pois estamos condenados a vagar de paiz em paiz, sequestrados da sociedade, vivendo no mysterio, e estremecendo a todo instante, como se o céo nos tivesse marcado com um ferrete de maldição!... ah! esta partida ha-de-me doer bem no coração!... não sei que encanto me prende a este lugar. Entretanto terei de dizer adeos eterno a... esta terra, onde gozei alguns dias de prazer e tranquillidade! Ah! meo Deos!... quem sabe, se não teria sido melhor morrer entre os tormentos da escravidão!...
Neste momento entrava Alvaro na ante-sala percorrendo-a com os olhos, como quem procurava alguem.
— Onde se sumirião? — vinha elle murmurando; — terião tido a triste lembrança de se irem embóra?... oh! não; felizmente ei-los ali! — exclamou alegremente, dando com os olhos nos dous personagens, que acabamos de ouvir conversar. — D. Elvira, Vª. Exª. é modesta de mais; vem esconder-se neste recanto, quando devia estar brilhando no salão, onde todos suspirão pela sua presença. Deixe isso para as timidas e fanadas violetas; á rosa compete alardear em plena luz todos os seos encantos.
— Desculpe-me, — murmurou Isaura — uma pobre moça creada como eu na solidão da roça, e que não está acostumada a tão esplendidas reuniões, sente-se abafada e constrangida...
— Oh! não;... ha-de acostumar-se, eu espero. As luzes, o esplendor, as harmonias, os perfumes, constituem a atmosphera em que deve brilhar a belleza, que Deos creou para ser vista e admirada. Vim buscal-a a pedido de alguns cavalheiros, que já são admiradores de Vª. Exª. Para interromper a monotonia das valsas e quadrilhas, costumão aqui as senhoras encantar-nos os ouvidos com alguma canção, aria, modinha, ou seja o que fôr. Algumas pessoas, a quem eu disse, — perdoe-me a indiscrição, filha do enthusiasmo, — que Vª. Exª. possue a mais linda voz, e canta com maestria, mostrão o mais vivo desejo de ouvil-a.
— Eu, senhor Alvaro!.. eu cantar diante de uma tão luzida reunião!.. por favor queira dispensar-me dessa nova prova. E’ em seo proprio interesse, que lhe digo; canto mal, sou muito acanhada, e estou certa que irei solemnemente desmentil-o. Poupe-nos a nós ambos essa vergonha.
— São desculpas, que não posso acceitar, por que já a ouvi cantar, e creia-me, D. Elvira, se eu não tivesse a certeza, de que a senhora canta admiravelmente, não seria capaz de expôl-a a um fiasco. Quem canta como Vª. Exª. não deve acanhar-se, e eu por minha parte peço-lhe encarecidamente, que não cante outra cousa, senão aquella maviosa canção da escrava, que outro dia a sorprehendi cantando, e affianço a Vª. Exª, que arrebatará os ouvintes.
— Por que razão não pode ser outra? essa desperta-me recordações tão tristes...
— E é talvez por isso mesmo, que é tão linda nos labios de Vª. Exª.
— Ai! triste de mim! — suspirou dentro da alma D. Elvira: — aquelles mesmos que mais me amão, tornão-se, sem o saber, os meos algozes!...
Elvira bem quisera escusar-se a todo transe; cantar naquella ocasião era para ella o mais penoso dos sacrificios. Mas não lhe era mais possivel reluctar, e lembrando-se do judicioso conselho de seo pae, não quis mais ver-se rogada, e acceitando o braço que Alvaro lhe offerecia, foi por elle conduzida ao piano, onde sentou-se com a graça e elegancia, de quem se acha completamente familiarizada com o instrumento.
Uma multidão de cabeças curiosas, e de corações palpitando na mais anciosa expectação, se apinhárão em volta do piano; os cavalheiros estavão anciosos por saberem, se a voz daquella mulher correspondia á sua extraordinaria belleza; se a fada seria tambem uma sereia; as moças esperavão, que ao menos naquelle terreno, terião o prazer de ver derrotada a sua formidavel émula, e já contavão comparal-a com o pavão da fabula, queixando-se a Juno, que o tendo formado a mais bella das aves, não lhe déra outra voz mais que um guincho aspero e desagradavel.
A conjunctura era delicada e solemne; a moça achava-se na difficil situação de uma prima dona, que precedida de uma grande reputação, faz a sua estréa perante um publico exigente e illustrado. Em torno della fazia-se profundo silencio; as respirações estavão como que suspensas, ao passo que parecia ouvir-se o palpitar de todos os corações no offego da expectação. Alvaro, apezar de conhecer já a excellencia da voz de Elvira e sua maestria no canto, não deixava de mostrar-se inquieto e commovido. Elvira por sua parte pouco se importaria de cantar bem ou mal; desejaria até passar pela moça a mais feia, a mais desengraçada e a mais tola daquella reunião, com tanto que a deixassem a um canto esquecida e socegada. Dir-se-hia, que estava debaixo do imperio de algum terrivel presentimento. Mas Elvira amava a Alvaro, e grata ao delicado empenho, com que este, cheio de solicitude e enthusiasmo, se esforçava por apresental-a como um prototypo de belleza e de talento aos olhos daquella brilhante sociedade, para satisfazel-o, e não desmentir a lisonjeira opinião, que propalára a respeito della, desejava cantar o melhor que lhe fosse possivel. Era ao triumpho de Alvaro, que aspirava mais do que ao seo proprio.
Uma vez sentada ao piano, logo que seos dedos mimosos e flexiveis, pousando sobre o teclado, preludiárão alguns singelos accordes, a moça sentio-se outra, revelando aos circumstantes maravilhados um novo e original aspecto de sua formosura. A physionomia, cuja expressão habitual era toda modestia, ingenuidade e candura, animou-se de luz insolita; o busto admiravelmente cinzelado, ergueo-se altaneiro e magestoso; os olhos estaticos alçavão-se cheios de esplendor e serenidade; os seios, que até ali apenas arfavão como as ondas de um lago em tranquilla noite de luar, começárão de offegar, turgidos e agitados, como oceano encapellado; seo collo distendeo-se alvo e esbelto como o do cysne, que se aprésta a desprender os divinais gorgeios. Era o sopro da inspiração artistica, que roçando-lhe pela fronte, a transformava em sacerdotiza do bello, em interprete inspirada das harmonias do céo. Ali sentia-se ella rainha sobre seo throno ideal; ali era Caliope sentada sobre a tripode sagrada, avassalando o mundo ao som de enlevadoras e ineffaveis harmonias. Das proprias inquietações e angustias da alma soube ella tirar alento e inspiração para vencer as difficuldades da ardua situação, em que se achava empenhada. Banhou os labios com as lagrimas do coração, e a voz lhe rompeo do peito com tão original e arrebatadora vibração, em modulações tão puras e suaves, tão repassadas de sublime melancolia, que mais de uma lagrima vio-se rolar pelas faces dos frequentadores daquelle templo dos prazeres, dos risos, e da frivolidade!
Elvira acabava de alcançar um triumpho collossal. Mal terminára o canto, o salão restrugio entre os mais estrondosos applausos, e parecia que vinha desabando ao ruido atordoardor das palmas e dos vivas!
— A fada de Alvaro é tambem uma sereia; — dizia o Dr. Geraldo a um dos cavalheiros, em cuja companhia já o vimos. — Resume tudo em si!.. que timbre de voz tão puro e tão suave! julguei-me arrebatado ao septimo céo, ouvindo as harmonias dos chóros angelicos.
— E’ uma consummada artista... no theatro faria esquecer a Malibran, e conquistaria reputação européa. Alvaro tem razão; uma creatura assim não pode ser uma mulher ordinaria, e muito menos uma aventureira... A musica dando o signal para a quadrilha, interrompe a conversação ou não nol-a deixa ouvir.
— D. Elvira, — diz Alvaro dirigindo-se á sua protegida, que já se achava sentada ao pé de seo pae, — lembre-se, que me fez a honra de conceder-me esta quadrilha.
Elvira esforçou-se por sorrir e combater o terrivel abatimento, que ao deixar o piano de novo se apoderára de seo espirito.
Tomou o braço de Alvaro, e ambos forão occupar o seo lugar na quadrilha.