O leitor provavelmente não terá ficado menos attonito, do que ficou Alvaro, com o imprevisto apparecimento de Leoncio no Recife, e indo bater certo na casa em que se achava refugiada a sua escrava.
E’ preciso portanto explicar-lhe como isso aconteceo, para que não pense que foi por algum milagre.
Leoncio depois de ter escripto e entregado no correio as duas cartas que conhecemos, uma dirigida a Alvaro, outra a Martinho, nem por isso ficou mais tranquillo. Devorava-lhe a alma uma inquietação mortal, um ciume desesperador. A noticia de que Isaura se achava em poder de um bello e rico mancebo, que a amava loucamente, era para elle um supplicio insupportavel, um cancro, que lhe corroía as entranhas, e o fazia estrebuchar em ancias de desespero, avivando-lhe cada vez mais a paixão furiosa que concebera por sua escrava. Achava-se elle na côrte, para onde, logo que teve noticias de Isaura, se dirigia immediatamente, a fim de se achar em um centro, donde pudesse tomar medidas promptas e energicas para a captura da mesma. Tendo escripto e entregue as cartas na vespera da partida do vapor pela manhã, levou o resto do dia a cismar. A terrivel anciedade em que se achava, não lhe permittia esperar a resposta e o resultado daquellas cartas, sendo muito mais morosas e espaçadas do que hoje as viagens dos paquetes naquella época, em que apenas se havia inaugurado a navegação a vapor pelas costas do Brazil. Demais ocorria-lhe frequentemente ao espirito o anexim popular — quem quer vae, quem não quer manda. — Não podia fiar-se na diligencia e boa vontade de pessoas desconhecidas, que talvez não pudessem luctar vantajosamente contra a influencia de Alvaro, o qual, segundo lho pintavão, era um potentado em sua terra. O ciume e a vingança não gostão de confiar a olhos e mãos alheias a execução de seos designios.
— E’ indispensavel que eu mesmo vá, — pensou Leoncio, e firme nesta resolução foi ter com o ministro da justiça, com quem cultivava relações de amizade, e pedio-lhe uma carta de recommendação, — o que equivale a uma ordem, — ao chefe de policia de Pernambuco, para que o auxiliasse afficazmente para o descobrimento e captura de uma escrava. Já de antemão Leoncio tambem se havia munido de uma precatoria e mandado de prisão contra Miguel, a quem havia feito processar e pronunciar como ladrão e acoutador de sua escrava. O sanhudo bachá de nada se esquecia para tornar completa a sua vingança.
No outro dia Leoncio seguia para o norte no mesmo vapor que conduzia suas cartas.
Estas porém chegárão ao seo destino algumas horas antes que o seo autor desembarcasse no Recife.
Leoncio apenas pôz pé em terra, dirigio-se ao chefe de policia, e entregando-lhe a carta do ministro inteirou-o de sua pretensão.
— Tenho a informar-lhe, senhor Leoncio, — respondeo-lhe o chefe, — que haverá talvez pouco mais de duas horas que daqui sahio uma pessoa autorisada por Vª. Sª. para o mesmo fim de apprehender essa escrava, e ainda ha pouco aqui chegou de volta declarando que tinha-se enganado, e que acabava de reconhecer que a pessoa, de quem desconfiava, não é e nem pode ser a escrava que fugio a Vª. Sª.
— Um certo Martinho, não, senhor doutor?..
— Justamente.
— Deveras!... que me diz, senhor doutor?..
— A verdade; ainda ahi estão á porta o official de justiça e os guardas, que o acompanhárão.
— De maneira, que terei perdido o meo tempo e a minha viagem!.... oh! não, não; isto não é possivel. Creia-me, Sr. doutor, aqui ha patranha... o tal senhor Alvaro dizem que é muito rico...
— E o tal Martinho um valdevinos capaz de todas as infamias. Tudo pode ser; mas a Vª. Sª. como interessado, compete averiguar essas cousas.
— E é o que venho disposto a fazer. Irei lá eu mesmo verificar o negocio por meos proprios olhos, e já, se fôr possivel.
— Quando quizer. Ahi estão o official de justiça e os guardas, que ainda agora de lá vierão, e ninguem melhor do que elles pode guiar a Vª. Sª. e effectuar a captura, caso reconheça ser a sua propria escrava.
— Tambem me é preciso que Vª. Sª. ponha o — cumpra-se — nesta precatoria — disse Leoncio apresentando a precatoria contra Miguel — é necessario punir o patife, que teve a audacia de desencaminhar e roubar-me a escrava.
O chefe satisfez sem hesitar ao pedido de Leoncio, que acompanhado da pequena escolta, que fez subir ao seo carro, no mesmo momento se dirigio a casa de Isaura, onde o deixámos em face de Alvaro.
A situação deste não era só critica; era desesperada. O seo antagonista ali estava armado de seo incontestavel direito para humilhal-o, esmagal-o, e o que mais é, despedaçar-lhe a alma, roubando-lhe a amante adorada, o idolo de seo coração, que ia-lhe ser arrancada dos braços para ser prostituida ao amor brutal de um senhor devasso, senão sacrificada ao seo furor. Não tinha remedio senão curvar-se sem murmurar, ao golpe do destino, e ver de braços cruzados mettida em ferros, e entregue ao azorrague do algôz a nobre e angelica creatura, que unica entre tantas bellezas, lhe fizera palpitar o coração em emoções do mais extremoso e puro amor.
Deploravel contingencia, a que somos arrastados em consequencia de uma instituição absurda e deshumana!
O devasso, o libertino, o algôz, apresenta-se altivo e arrogante, tendo a seo favor a lei e a autoridade, o direito e a força, lança a garra sobre a presa, que é objecto de sua cobiça ou de seo odio, e pode fruil-a ou esmagal-a a seo talante, emquanto o homem de nobre coração, de impulsos generosos, inerme perante a lei, ahi fica supplantado, tolhido, manietado sem poder estender o braço em soccorro da innocente e nobre victima, que deseja proteger. Assim, por uma estranha aberração, vemos a lei armando o vicio, e decepando os braços á virtude.
Estava pois Alvaro em presença de Leoncio como o condenado em presença do algôz. A mão da fatalidade o socalcava com todo o seo peso esmagador, sem lhe deixar livre o minimo movimento.
Vinha Leoncio ardendo em furias de raiva e de ciume, e prevalecendo-se de sua vantajosa posição, aproveitou a occasião para vingar-se de seo rival, não com a nobreza de cavalheiro, mas procurando humilhal-o á força de improperios.
— Sei que ha muito tempo, — disse Leoncio, continuando o dialogo que deixámos interrompido no capitulo antecedente, — Vª. Sª. retem essa escrava em seo poder contra toda a justiça, illudindo as autoridades com falsas allegações, que nunca poderá provar. Porém agora venho eu mesmo reclamal-a e burlar os seos planos, e artificios.
— Artificios não, senhor. Protegi e protejo francamente uma escrava contra as violencias de um senhor, que quer tornar-se seo algôz; eis ahi tudo.
— Ah!... agora é que sei que qualquer ahi pode subtrahir um escravo ao dominio de seo senhor a pretexto de protegel-o, e que cada qual tem o direito de velar sobre o modo por que são tratados os escravos alheios.
— Vª. Sª. está de disposição a escarnecer, e eu declaro-lhe que nenhuma vontade tenho de escarnecer, nem de ser escarnecido. Confesso-lhe que desejo muito a liberdade dessa escrava, tanto quanto desejo a minha felicidade, e estou disposto a fazer todos os sacrificios possiveis para conseguil-a. Já lhe offereci dinheiro, e ainda offereço. Dou-lhe o que pedir... dou-lhe uma fortuna por essa escrava. Abra preço...
— Não ha dinheiro que a pague; nem todo o ouro do mundo, porque não quero vendel-a.
— Mas isso é um capricho barbaro, uma perversidade...
— Seja capricho da qualidade que Vª. Sª. quizer; por ventura não posso ter eu os meos caprichos, comtanto que não offenda direitos de ninguem?.. por ventura Vª. Sª. não tem tambem o seo capricho de querel-a para si?... mas o seo capricho offende os meos direitos, e eis ahi o que não posso tolerar.
— Mas o meo capricho é nobre e bemfazejo, e o seo é uma tyrannia, para não dizer uma vilania. Vª. Sª. mancha a sua vida com uma nodoa indelevel conservando na escravidão essa mulher; cospe o desrespeito e a injuria sobre o tumulo de sua santa mãe, que creou com tanta delicadeza, educou com tanto esmero essa escrava, para tornal-a digna da liberdade que pretendia dar-lhe, e não para satisfazer aos caprichos de Vª. Sª. Ella por certo lá do céo, onde está, o amaldiçoará, e o mundo inteiro a acompanhará na maldição ao homem, que retem no mais infamante captiveiro uma creatura cheia de virtudes, prendas e belleza...
— Basta senhor!... agora fico tambem sabendo, que uma escrava, só pelo facto de ser bonita e prendada, tem direitos á liberdade. Fique tambem Vª. Sª. sabendo, que se minha mãe não creou essa rapariga para satisfazer aos meos caprichos, muito menos para satisfazer aos de Vª. Sª., a quem nunca conheceo nesta vida. Senhor Alvaro, se deseja ter alguma linda escrava para sua amasia, procure outra, compre-a, que a respeito desta, pode perder toda a esperança.
— Senhor Leoncio, Vª. Sª. de certo esquece-se do lugar onde está, e da pessoa com quem falla, e julga que se acha em sua fazenda fallando aos seos feitores ou a seos escravos. Advirto-lhe, para que mude de linguagem.
— Basta, senhor; deixemo-nos de vãs disputas, e nem eu vim aqui para ser catechisado por Vª. Sª. O que quero é a entrega da escrava e nada mais. Não me obrigue a usar do meo direito levando-a á força.
Alvaro desvairado por tão grosseiras e ferinas provocações, perdeo de todo a prudencia e sangue frio.
Entendeo que para sahir-se bem na terrivel conjunctura em que se achava, só havia um caminho, — matar o seo antagonista ou morrer-lhe ás mãos, — e cedendo a essas suggestões da cólera e do desespero, saltou da cadeira em que estava, agarrou Leoncio pela góla e sacudindo-o com força:
— Algôz! — bradou espumando de raiva, — ahi tens a tua escrava! Mas antes de leval-a, has-de responder pelos insultos que me tens dirigido, ouviste?... ou acaso pensas que eu tambem sou teo escravo?...
— Está louco, homem! — disse Leoncio amedrontado. — As leis do nosso paiz não permittem o duello.
— Que me importão as leis!... para o homem de brio a honra é superior ás leis, e se não és um covarde, como penso....
— Soccorro, que querem assassinar-me, — bradou Leoncio desembaraçando-se das mãos de Alvaro, e correndo para a porta.
— Infame! — rugio Alvaro, cruzando os braços e rangendo os dentes n’um sorrir de cólera e desdem...
No mesmo momento, attrahidos pelo barulho, entravam sa sala de um lado Isaura e Miguel, do outro o official de justiça e os guardas.
Isaura estava com o ouvido aguçado, e do interior da casa ouvira e comprehendera tudo.
Vio que tudo estava perdido, e correo a atalhar o desatino, que por amor della Alvaro ia commetter.
— Aqui estou, senhor! — forão as unicas palavras que pronunciou apresentando-se de braços cruzados diante de seo senhor.
— Eil-os ahi; são estes! — exclamou Leoncio indicando aos guardas Isaura e Miguel. Prendão-os!.. prendão-os!....
— Vae-te, Isaura, vae-te. — murmurou Alvaro com voz trémula e sumida, achegando-se da captiva. — Não desanimes; eu não te abandonarei. Confia em Deos e em meo amor.
. . . . . . . . . . . . . . . . .
Uma hora depois Alvaro recebia em casa a visita de Martinho. Vinha este mui ancho e lampeiro dar conta de sua commissão, e sofrego por embolsar a somma convencionada.
— Dez contos!.. oh! — vinha elle pensando. — E’ uma fortuna! agora sim, posso eu viver independente!... Adeos, surrados bancos de Academia!. adeos, livros sebosos, que tanto tempo andei folheando á toa!... vou atirar-vos pela janella a fóra; não preciso mais de vós; meo futuro está feito. Em breve serei capitalista, banqueiro, commendador, barão, e verão para quanto presto!...
E á força de multiplicar calculos de usura e agiotagem, já Martinho havia centuplicado aquella somma em sua imaginação.
— Meo caro senhor Alvaro, — veio logo dizendo sem mais preambulos, — está tudo arranjado á medida de nossos desejos. Pode Vª. Sª. viver tranquillo em companhia da gentil fugitiva, que daqui em diante ninguem mais o importunará. De feito o procedimento de Vª. Sª. nesta questão tem sido muito bello e digno de elogios; é proprio de um coração grande e generoso como o de Vª. Sª. Não se dá maior desaforo! no captiveiro uma menina tão mimosa e tão prendada!... Agora aqui está a carta, que escrevo ao lorpa do sultãosinho. Prego-lhe meia duzia de carapetões, que o hão-de desorientar completamente.
Assim fallando Martinho desdobrou a carta, e já começava a lel-a, quando Alvaro impacientado o interrompeo.
— Basta, senhor Martinho, — disse-lhe com máo humor; — o negocio está arranjado; não preciso mais de seos serviços.
— Arranjado!.. como?...
— A escrava está em poder de seo senhor.
— De Leoncio!.. impossivel!
— Entretanto, é a pura verdade; se quizer saber mais vá á policia, e indague.
— E os meos dez contos?...
— Creio que não lh’os devo mais.
Martinho soltou um urro de desespero, e sahio da casa de Alvaro com tal precipitação, que parecia ir rolando pelas escadas abaixo.
Descrever o misero estado, em que ficou aquella pobre alma, é empreza em que não me metto; os leitores que fação idéa.
O cão faminto illudido pela sombra, largou a carne que tinha entre os dentes, e ficou sem uma nem outra.