Deixemos por um momento suspensa a scena do capitulo antecedente, e interrompido o dialogo entre os dous mancebos. Elles ahi ficão em face um do outro, como o leão altivo e magnanimo tendo subjugado o tigre daninho e traiçoeiro, que rosna em vão debaixo das possantes garras de seo antagonista. E’-nos preciso explicar, por que serie de circumstancias Alvaro veio apparecer em casa do senhor de Isaura, a ponto de vir burlar os seos planos atrozes, mesmo no momento em que ião ter final execução.
Depois que Isaura lhe fôra arrebatada, Alvaro cahio na mais acerba prostração de animo.
Ferido em seo orgulho, esbulhado do objecto de seo amor, escarnecido e vilipendiado pela arrogancia de um insolente escravocrata, entregou-se ao mais sombrio desespero. Mal soube o seo revez, o Dr. Geraldo correo em soccorro daquella nobre alma tão cruelmente golpeada pelo destino. Graças aos cuidados e conselhos daquelle tão sollicito quão intelligente amigo, a dôr de Alvaro foi-se tornando mais calma e resignada. Por suas exhortações Alvaro chegou mesmo a convencer-se, que o melhor partido que lhe ficava a tomar nas difficeis conjuncturas em que se achava, era procurar esquecer-se de Isaura.
— Todo o esforço que fizeres, — dizia-lhe o amigo, — em favor da liberdade de Isaura, será rematada loucura, que não terá outro resultado senão envolver-te em novas difficuldades, cobrindo-te de ridiculo e de humilhação. Já passaste por duas decepções bem crueis, a do baile, e esta ultima ainda mais triste e humilhante. Quasi te fizeste reo de policia, querendo disputar uma escrava a seo legitimo senhor. Pois bem; as seguintes serão ainda piores, eu te asseguro, e te farão ir rolando de abysmo em abysmo até á tua completa perdição.
Attendendo a estas e mil outras considerações de Geraldo, Alvaro procurou firmar o espirito e a vontade no proposito de renunciar ao seo amor, e a todas as suas pretensões philantropicas sobre Isaura. Foi debalde. Depois de um mez de lucta comsigo mesmo, de sempre frustradas velleidades de revolta contra os impulsos do coração, Alvaro sentio-se fraco, e comprehendeo que semelhante tentativa era uma lucta insensata contra a força omnipotente do destino. Embalde procurou, já nas graves occupações do espirito, já nas distracções frivolas da sociedade, um meio de apagar da lembrança a imagem da gentil captiva. Ella lhe estava sempre presente em todos os sonhos d’alma, ora resplendente de belleza e graça, donosa e seductora como na noite do baile, ora palida e abatida, vergada ao peso de seo infortunio, com os pulsos algemados, cravando nelle os olhos supplicantes como que a dizer-lhe:
— Vem, não me abandones; só tu podes quebrar estes ferros, que me opprimem.
O espirito de Alvaro firmou-se por fim na intima e inabalavel convicção de que o céo, pondo em contacto o seo destino com o daquella encantadora e infeliz escrava, tivéra um designio providencial, e o escolhera para instrumento da nobre e generosa missão de arrebatal-a á escravidão, e dar-lhe na sociedade o elevado lugar que por sua belleza, virtudes e talentos, lhe competia.
Resolveo-se portanto, fosse qual fosse o resultado, a proseguir nessa generosa tentativa, com a cegueira do fanatismo, senão com o arrastamento de uma inspiração providencial.
Alvaro partio para o Rio de Janeiro. Já[1] ao acaso, sem plano nenhum formado, sem bem saber o que devia fazer para chegar aos seos fins; mas tinha como uma intuição vaga de que o céo lhe depararia occasião e meios de levar a cabo a sua empreza. O que queria em primeiro lugar era collocar-se nas visinhanças de Leoncio, a fim de poder colher informações e investigar se por ventura algum recurso haveria, para obrigar o senhor de Isaura a manumittil-a.
Desembarcou na côrte com o fim de dirigir-se brevemente para Campos. Antes porém de partir para seo destino, procurou colher entre as pessoas do commercio algumas informações a respeito de Leoncio.
— Oh! conheço muito esse sujeito, — disse logo o primeiro negociante, a quem Alvaro se dirigio. — Esse moço está fallido, e em completa ruina. Se Vª. Sª. tambem é credor delle, pode pôr as suas barbas de molho, por que as dos visinhos estão a arder. Essa casa bem liquida, mal dará para um rateio, em que toque cincoenta por cento a cada credor.
Esta revelação foi para Alvaro como um relampago que se abre aos olhos do viandante extraviado em noite tormentosa, mostrando-lhe de repente e bem ao perto o albergue hospitaleiro que demanda.
— E Vª. Sª. por ventura é tambem credor desse fazendeiro? — perguntou Alvaro.
— Infelizmente, e um dos principaes...
— E a quanto montará a fortuna do tal Leoncio?
— A menos de nada presentemente, pois como já lhe disse, o seo passivo excede talvez em mais do dobro a todos os seus bens.
— Mas esse passivo mesmo, em que somma é calculado pouco mais ou menos?
— Calcula-se approximadamente em quatrocentos e tantos a quinhentos contos, em quanto que a fazenda de Campos, com escravos e todos os mais accessorios, não excederá talvez a duzentos. Já temos tido com esse fazendeiro todas as attenções possiveis, e lhe temos dado mais moratorias do que a lei concede; não somos obrigados a mais, e agora estamos resolvidos a cahir-lhe em cima com a execução.
— E quaes são os outros credores? Vª. Sª. quererá indicar-m’os.
— E por que não? — respondeo o negociante, e passou a indicar a Alvaro os nomes e moradas dos demais credores.
De feito a casa de Leoncio já desde os ultimos annos da vida de seo pae, ia em continuo regresso e desmantelamento. O velho commendador, entregando-se no ultimo quartel da vida a excessos e devassidões, que nem na mocidade são desculpaveis, vivendo quasi sempre na côrte, e deixando quasi em completo abandono a administração da fazenda, havia já esbanjado não pequena porção de sua fortuna. Por effeito da má administração não só as safras começárão a escassear consideravelmente, como tambem o numero de escravos foi-se reduzindo, pela morte e pelas frequentes fugas, sem que tanto o commendador como seo filho deixassem de substituil-os por outros novos, que ião comprando a prazo, tornando cada vez mais pesado o onus das dividas.
Depois da morte do commendador, as cousas forão de mal a peor. Leoncio, com a educação e a indole que lhe conhecemos, era o homem menos proprio possivel para dirigir e explorar um grande estabelecimento agricola.
Seos desvarios e extravagancias, e por ultimo sua nefasta e insensata paixão por Isaura, fizerão-no perder de todo a cabeça, arrojando-o em um plano inclinado de despezas ruinosas, sem calculo nem previsão alguma. Com os enormes dispendios que teve de fazer em consequencia da fuga de Isaura, mandando procural-a por todos os cantos do imperio, acabou de cavar o abysmo de sua ruina. Em pouco tempo o joven fazendeiro estava de todo insolvavel, sem um real em caixa, e com uma multidão de letras protestadas na carteira de seos credores. Quando estes acordárão, e se lembrárão de lhe abrir fallencia e executar os seos bens, comprehendêrão que mal poderião embolsar-se da metade do que lhes era devido, e portanto tratárão com sofreguidão de promover os meios executivos, antes que o mal fosse a mais.
Depois de conferenciar com os credores de Leoncio, propoz-lhes a compra de todos os seos creditos pela metade do seo valor. Para evitar qualquer odiosidade, que semelhante procedimento pudesse acarretar sobre sua pessoa, declarou-lhes que nenhuma intenção tinha de vexar nem opprimir o infeliz fazendeiro, que pelo contrario era seo intuito protegel-o e livral-o do vexame de uma rigorosa execução judicial, e deixal-o ao abrigo da miseria. E realmente, a despeito da aversão e desprezo que Leoncio lhe merecia, Alvaro não pretendia levar ao ultimo extremo os meios de vingança, que por um acaso as circumstancias tinhão posto em suas mãos. Era elle dez vezes mais rico do que o seo adversario, e de muito bom grado, se não houvesse outro recurso, por um contracto amigavel daria uma somma igual a toda a fortuna deste, pela liberdade de Isaura.
Agora, que o destino vinha pôr em suas mãos toda a fortuna desse adversario caprichoso, arrogante e desalmado, Alvaro, sempre generoso, nem por isso desejava vel-o reduzido á miseria.
Os credores não hesitárão um momento em acceitar a proposta. Com razão preferirão saldar suas contas por um modo facil e expedito, em dinheiro de contado, recebendo a metade, do que sujeitando-se ás despezas, delongas e difficuldades de uma execução em escravos e bens de raiz, quando nenhuma probabilidade havia, de que no rateio pudessem obter mais de metade.
Senhor de todos os titulos de divida de Leoncio, isto é, de toda a sua fortuna, Alvaro partio para Campos a fim de promover por sua conta a execução dos bens do mesmo, e munido de todos os papeis e documentos, acompanhado de um escrivão e dous officiaes de justiça, apresentou-se em pessoa em casa de Leoncio para intimar-lhe em pessoa a sentença de sua perdição.
— Oh! maldição! — exclamára Leoncio, arrancando os cabellos em desespero, depois que ouvira dos labios de Alvaro aquelle arrésto esmagador. Atordoado e quasi louco com a violencia do golpe, ia sahir correndo pela porta a fora.
— Espere ainda, senhor, — disse Alvaro detendo-o pelo braço. — Agora quanto á escrava de que ha pouco se fallava, o que pretendia fazer della?
— Libertal-a, já lhe disse, — respondeo Leoncio com rudeza.
— E mais alguma cousa; creio que tambem me disse que ia casal-a: e, desculpe-me a pergunta, haveria para isso consentimento da parte della?
— Oh! não! não!.. eu era arrastada, senhor! — exclamou Isaura resolutamente.
— E’ verdade, senhor Alvaro, atalhou Miguel, ella ia casar-se por assim dizer forçada. O senhor Leoncio, como condição da liberdade della obrigava-a a casar-se com aquelle pobre homem que Vª. Sª. ali vê.
— Com aquelle homem?! — exclamou Alvaro cheio de pasmo e indignação, olhando para o homunculo que Miguel lhe indicava com o dedo.
— Sim, senhor, — continuou Miguel, — e se ella não se sujeitasse a esse casamento, teria de passar o resto da vida presa em um quarto escuro, incommunicavel, com o pé enfiado em uma grossa corrente, como tem vivido desde que veio do Recife até o dia de hoje...
— Verdugo! — bradou Alvaro, não podendo mais sopear sua indignação. — A mão da justiça divina pesa enfim sobre ti para punir tuas monstruosas atrocidades!
— O’ que vergonha!.. que opprobrio, meo Deos! — exclamou Malvina, debruçando-se a uma mesa, e escondendo o rosto entre as mãos.
— Pobre Isaura! — disse Leoncio[2] com voz commovida, estendendo os braços á captiva. — Chega-te a mim... Eu protestei no fundo de minha alma e por minha honra desaffrontar-te do jugo opressor e aviltante, que te esmagava, por que via em ti a pureza de um anjo, e a nobre e altiva resignação da martyr. Foi uma missão santa, que julgo ter recebido do céo, e que hoje vejo coroada do mais feliz e completo resultado. Deos em fim, por minhas mãos vinga a innocencia e a virtude opprimida, e esmaga o algôz.
— Deixe-se de blasonar, senhor! — gritou Leoncio agitando-se em gesticulações de furor; — isto não passa de uma infamia, uma traição, e ladroeira....
— Isaura! — continuou Alvaro com voz sempre firme e grave; — se esse algôz ainda ha pouco tinha em suas mãos a tua liberdade e a tua vida, e não t’ as cedia senão com a condição de desposares um ente disforme e desprezivel, agora tens nas tuas a sua propriedade; sim, que as tenho nas minhas, e as passo para as tuas. Isaura, tu és hoje a senhora, e elle o escravo; se não quizer mendigar o pão, ha-de recorrer á nossa generosidade.
— Senhor! — exclamou Isaura correndo a lançar-se aos pés de Alvaro; — oh! quanto sois bom e generoso para com esta infeliz escrava!... mas em nome dessa mesma generosidade, de joelhos eu vos peço, perdão! perdão para elles...
— Levanta-te, mulher generosa e sublime! — disse Alvaro estendo-lhe as mãos para levantar-se. — Levanta-te, Isaura; não é a meos pés, mas sim em meos braços, aqui bem perto do meo coração, que te deves lançar, pois a despeito de todos os preconceitos do mundo, eu me julgo o mais feliz dos mortaes em poder offerecer-te a mão de esposo!...
— Senhor, — bradou Leoncio com os labios espumantes e os olhos desvairados, — ahi tendes tudo quanto possuo; pode saciar sua vingança, mas eu lhe juro, nunca ha-de ter o prazer de ver-me implorar a sua generosidade.
E dizendo isto entrou arrebatadamente em uma alcova contigua á sala.
— Leoncio! Leoncio!.. onde vaes! exclamou Malvina precipitando-se para elle; mal porém havia ella chegado á porta, ouvio-se a explosão atroadora de um tiro.
— Ai!.. — gritou Malvina, e cahio redondamente em terra.
Leoncio tinha-se rebentado o craneo com um tiro de pistola.