Meu pensamento escrevendo em 1858 a comédia que tem por título — As asas de um anjo—, foi esboçar a vida da Madalena moderna, a Madalena do ouro, filha da sociedade atual.
Devia percorrer essa existência tumultuária, desde o dia em que o anjo perdendo as asas cai no pó até o momento em que, depois de haver rojado, como a larva pelo chão, se transforma enfim e eleva à celeste mansão da virtude.
Havia aí duas ideias bem distintas, dous dramas, o erro e a expiação. Não seria possível incluí-las em uma só comédia; as ações eram diversas, pelo tempo, pela cena, pela revolução profunda no caráter de alguns personagens.
O drama não é como por aí o fazem às vezes, uma série de quadros ou painéis brilhantes, poeticamente dialogados, mas uma página da vida humana que a lógica inflexível das paixões não permite truncar.
Concluiu-se por isso a primeira comédia com o arrependimento, deixando no epílogo dela o prólogo e argumento da segunda. Assim viriam ambas a formar a duologia da pecadora na sociedade atual.
A Madalena do evangelho foi presa da paixão veemente; por isso no dia do arrependimento, quando abraçou com fé robusta os pés do Redentor, tudo lhe foi perdoado porque ela tinha muito amado.
A Madalena do mundo é uma vítima do ouro, abjura do amor e relapsa na cupidez; embora contrita e arrependida só remirá sua culpa quando tiver amado muito e portanto muito sofrido.
A primeira época da vida de Carolina, As Asas de um anjo, foi censurada por espíritos bem reputados em literatura. O casamento final para alguns é um monstro da imaginação do autor que fantasiou à seu bel-prazer um amor puro pela mulher só capaz de excitar o desejo sensual; outros consideraram esse casamento como uma recompensa ao arrependimento e portanto um perdão do erro.
A Expiação é a resposta a estas censuras: aí está o desenvolvimento da ideia incubada no epílogo das Asas de um Anjo.
O amor de Luís que acompanha Carolina durante seu eclipse e tenta regenerá-la pelo casamento é sem dúvida um monstro; mas não do espírito do autor; é um monstro do coração humano; é a paixão indomável das organizações fortes, crescendo com as lutas e sacrifícios, e de repente extinguindo-se, mal entram no domínio da vida real. Há n'alma, como na atmosfera, uma eletricidade que só brilha e fulmina quando rudemente agitada. Nas almas da têmpera de Luís as descargas elétricas devem de ser violentas.
Quanto à outra censura, não foi decerto para recompensar Carolina que desde o prólogo se revela o amor romanesco de Luís, amor que percorre toda a gama de paixão desde a veneração até o desprezo, desde a indignação até o heroísmo de um matrimônio, reputado vergonhoso. Não; esse casamento é a última e cruel punição do anjo decaído; é mais que a punição é a expiação do passado.
O pensamento não podia ser mais claro.
Enquanto o marido for um irmão apenas, como ele o disse, o que será essa união? Para Carolina o tantalismo de um amor partilhado e não satisfeito! Para Luís a luta de um homem só contra a sociedade inteira. Para ambos o desprezo e sarcasmo do mundo, que tolera, disfarça algumas vezes, mas não esquece.
Se mais tarde, o que é provável, o amor puro e regenerador de Luís descer a realidade do amor conjugal, Carolina achará no toro, em vez dos castos prazeres, um suplício de vergonha e abjeção. Pungida pelas recordações amargas ela se revolverá no leito de Procusto durante as longas noites de insônia, dilacerando sua alma nos espinhos da tribulação. Depois de se haver torturado assim em holocausto à paixão do marido, a vítima expiatória da sensualidade se erguerá para beber o fel do desprezo que transuda do homem torpemente saciado.
Súbito, o amor ardente do marido, se apaga como chama fugace; mas o coração vigoroso e jovem tem sede de vida. Luís ama outra mulher: a vergonha e o remorso de sua perfídia o irrita, porque ele é honesto; a paixão o esvaíra. Quem sabe? Talvez em um momento de delírio, insulte sua mulher.
E a filha!...
Se um dia a casta e inocente menina ler no sorriso de escárnio a vergonha de seu nascimento; se uma voz lhe murmurar ao ouvido que é sua própria mãe quem lhe corta em flor as mais belas esperanças e a rejeita da sociedade honesta; a filha não terá um momento de delírio, uma revolta do coração puro, um grito de indignação para acusar aquela à quem deve a vida e também o infortúnio!
Eis esboçado o pensamento da Expiação. Eu a entrego à cena, da qual foi violentamente arrancada sua irmã.
Será ela mais uma vítima ao minotauro? Mais um livro sacrificado em holocausto à indiferença pública, que tantos outros tem devorado?
Habent sua fata libelli.
Este terá o seu!
Rio de Janeiro, 15 de outubro de 1865.
J. de Alencar