Uma velha de olhar mudo e frio,
De olhos sem cor, de lábios glaciais,
Tomou-me nos seus braços sepulerais.
Tomou-me sobre o seio ermo e vazio.
E beijou-me em silêncio, longamente,
Longamente me uniu à face fria...
Oh! como a minha alma se estorcia
Sob os seus beijos, dolorosamente!
Onde os lábios pousou, a carne logo
Mirrou-se e encaneceu-se-me o cabelo,
Meus ossos confrangeram-se. O gelo
Do seu bafo secava mais que o fogo.
Com seu olhar sem cor, que me fitava,
A Fada negra me qualhou o sangue.
Dentro em meu coração inerte e exangue
Um silêncio de morte se engolfava.
E volvendo em redor olhos absortos,
O mundo pareceu-me uma visão,
Um grande mar de nevoa, de ilusão,
E a luz do sol como um luar de mortos...
Como o espectro d'um mundo já defunto,
Um farrapo de mundo, nevoento,
Ruina aerea que sacode o vento,
Sem cor, sem consistencia, sem conjunto...
E quanto adora quem adora o mundo,
Brilho e ventura, esperar, sorrir,
Eu vi tudo oscilar, pender, cair,
Inerte e já da cor d'um moribundo.
Dentro em meu coração, n'esse momento,
Fez-se um buraco enorme — e n'esse abismo
Senti ruir não sei que cataclismo,
Como um universal desabamento...
Razão! velha de olhar agudo e cru
E de halito mortal mais do que a peste!
Pelo beijo de gelo que me deste,
Fada negra, bemdita sejas tu!
Bendita sejas tu pela agonia
E o luto funeral d'aquela hora
Em que eu vi baquear quanto se adora,
Vi de que noite é feita a luz do dia!
Pelo pranto e as torturas benfazejas
Do desengano... pela paz austera
D'um morto coração, que nada espera,
Nem deseja tambem... bendita sejas!
1860 — 1862