Ah! ninguém poderia contestar que a história se repita. Mas é precisamente por isso que não podem falar em nome da história os que dela vão sacar os episódios talhados para entreter o nosso descuido, omitindo os dignos de ocupar a nossa previdência. Sim: não se pode esquecer que a história se repete. Mas justamente por isso é que não têm o direito de ser, por parte dela, os conselheiros de seus conterrâneos aqueles que a acomodam à tranqüilidade dos vícios nacionais, comparando, para os embalar na sua negligência, uma época, em que a expansão anglo-americana era pouco mais que uma suspeita e um receio com outra em que o anexionismo se afirma e estende com um programa e uma realidade.

Não houve, no jornalismo desta capital, folha, que menores proporções desse ao incidente boliviano. Não nos ocupamos, até hoje, com a questão do Acre: tão longe temos estado sempre de querer agitar conflitos internacionais, ou criar embaraços ao governo na solução das pendências desse caráter em debate no ministério do exterior. E agora, quando surdiu o caso Paravicini-Page Bryan, ninguém foi mais parco, mais reservado, mais discreto no assunto do que nós.

Não fomos nós quem trouxe à alta publicidade o descobrimento do “tal acordo”, para nos servirmos da tal frase, agora consagrada. A surpresa, com que acordou esturvinhada a cidade na manhã de 5 do corrente, partiu da anciã, cujas cãs já transpuseram o terceiro quarto de século. Então fizemos o que nos impunha o nosso ministério de verificar e transmitir aos nossos leitores ao menos os fatos, cuja notoriedade já não permitir segredo. Tais quais as recebemos do nosso correspondente em Belém, estampamos, no dia imediato, ao mesmo tempo que o contemporâneo, a quem cabiam as alvíssaras do caso, as cláusulas do convênio denunciado pela imprensa paraense.

Os termos, em que comentamos essa transcrição, foram apenas estes: “O fato é da maior gravidade, e para ele chamamos a atenção do governo.” Não se podia estar mais rigorosamente no estilo grande órgão. E isso mesmo era no segundo plano do jornal, em um simples tópico. No editorial da mesma data, nem uma palavra sobre o fato. No de ontem igualmente, nem uma alusão. Entre esses dois dias mediou o de 7. Só nesse nos referimos à espécie, mas nesta linguagem:

“Já este artigo, porém, não pode findar, onde ia findando. Acabam de chegar-nos às mãos as folhas da manhã com os telegramas do Pará e, nesses, o anúncio do conchavo entre a Bolívia e os Estados Unidos.

“Não se podem aceitar fatos desta ordem, antes de inteiramente verificados. Mas há rebates falsos, que são verdadeiros prenúncios do futuro, e a prudência das nações, como a dos indiví­duos, não os deve desprezar.”

Nem um momento, pois, demos por verdadeira a atordoadora notícia; antes declaramos positivamente que era inadmissível antes de verificação, que a confirmasse; e apenas a registramos como um rebate falso, de que convinha tomar nota em precaução do futuro. Entretanto, as circunstâncias eram do pior aspecto; visto que todas as versões do desmentido oposto pelo ministro americano, a começar pelo texto do seu telegrama de 4, publicado na manhã de 5, negavam tão-somente a sua parte pessoal na transação, parecendo por esse modo confirmar indiretamente a existência desta. Nem assim, porém, saímos da expectativa, que nos impuséramos, trazendo à publicidade esse plausível comentário da desconfiança geral. A que vêm, pois, certa casta de insinuações e indiretas?

Considera-se agora “lastimável que fato tão grave fosse impensadamente dado à publicidade, quando os interesses da própria defesa nacional e a eficácia da ação do governo dependem da mais absoluta reserva e de evitar agitações, que negócios de tamanha importância e melindre não comportam”. Escrever isto em presença da extrema discrição, da cuidadosa reserva, da atitude calma e expectante, observada, neste negócio, pela imprensa fluminense, é realmente ditar conselhos para a China. Qual será, hoje, no mundo, o país livre, onde as questões internacionais, ainda na sua fase crítica, escapem às investigações do jornalismo e da tribuna? Imaginemos a mais pacata das nações, a mais fleumática das raças. Concebe-se que ela tolerasse o sigilo à menor hipótese de um conchavo, para absorção de uma parte do seu território, entre um estado vizinho e uma potência conquistadora?

Outrora não se levava a mal que o povo brasileiro despertasse estuante e revolto ante qualquer risco de atentado por uma nação poderosa contra os nossos direitos. Louvavam-se esses estímulos. E era na época, em que o nosso ministro de Estrangeiros, Magalhães Taques, batia o pé ao governo americano na questão das nossas relações com os corsários sulistas, obrigando o secretário do governo da Casa Branca, o Sr. Seward, a capitular perante “a habilíssima nota” da chancelaria brasileira, na época em que nos litígios entre os Estados Unidos e a Grã-Bretanha, entre os Estados Unidos e a França, no tribunal de Washington e no tribunal de Genebra, o Brasil funcionava como árbitro entre as altas partes litigantes. Hoje que aqueles estímulos arrefeceram, se não expiraram, entre nós, e entre as potências morreu de todo a nossa antiga consideração, ainda acham pouco os estadistas republicanos a calmaria podre em que governam.

Parece-lhes incompatível a voz da opinião, digna e prudentemente enunciada pelos órgãos não-oficiais, “com a ação do governo na investigação desapaixonada dos fatos”. Entretanto, não há muito que esse governo, no caso da Wilmington, mandava encobrir ao país a verdade, anunciando que o comandante daquele navio recebera prévia licença, para subir o Amazonas, quando mais tarde se provou que tal confiança não lhe merecêramos, e, até hoje, nos deixa sem saber que sinais de vida lhe pareceu conveniente dar de si, para salvar ao menos a aparência da nossa sensibilidade, a propósito da carta humilhante, verdadeiro folhetim de troça franca, dirigida pelo capitão de um vaso de guerra estrangeiro às autoridades nacionais. A despeito de tais antecedências, devemos “confiar que tal governo se portará conforme os ditames do patriotismo, qualquer que seja a emergência dos fatos”. Devemos confiá-lo, ao ponto de não murmurar sequer uma apreensão, de não exigir um esclarecimento, de não articular uma dúvida, e fazer cauda silenciosa à Secretaria de Estrangeiros, como bons chins americanos, aguardando as energias de uma administração, que professa às escâncaras o abandono da defesa nacional, e enxota os ministros militares menos submissos à abdicação dos deveres do seu posto.

Não fomos nós quem, ante o relatório do Ministério da Marinha, exclamou, na eloqüência dos movimentos instintivos d’alma: “Tomem nota os Estados Unidos, a Alemanha, a República Argentina.” Se as circunstâncias posteriores mudaram o sentido a esse grito, imprimindo-lhe a feição de uma censura ao nobre ministro da Marinha, por ter confessado oficialmente ao mundo a extrema inanidade da nossa defesa naval, basta para coroa da nossa desgraça a penitência do secretário de Estado. Não culpem de inconfidência perante o mundo o ilustre ministro. O mundo conhece o nosso estado ínfimo de abandono militar: não precisava que os ministros brasileiros lho descobrissem. As administrações estrangeiras, que têm interesses no Brasil, sabem-lhe melhor o estado que a nossa. Quem necessitava dessa revelação, autenticada, para ser indubitável, com o selo oficial, era o país. Ele está hoje inteirado. Acordou em sobressalto, provavelmente para adormecer outra vez, e despertar amanhã, por outra forma, quando seja tarde, para pôr os ferrolhos à porta. Mas, enfim, deve estar inteirado.

Não nos desviarão, pois, do caminho, que seguíamos, as contestações do ministro da Bolívia e do ministro dos Estados Unidos ao escândalo de Puerto Alonso. Não nos arrependemos de ter chamado a atenção nacional para um perigo, em que a América do Norte entra apenas como um dos fatores, para um perigo ao mesmo tempo americano e europeu, que envolve o nosso futuro, e que já sob o outro regímen começava a inspirar sérios sobressaltos aos nossos mais eminentes estadistas. Dele confidenciava uma vez, o Barão de Cotegipe a um dos seus mais íntimos amigos, cujo testemunho há pouco ouvimos, que era a maior inquietação do seu espírito, ao considerar no aspecto da colonização alemã entre nós. A peripécia, Bryan-Paravicini foi, no meio dessas cogitações, apenas uma circunstância intercorrente, momentânea, como o estalido de uma viga no travejamento de um prédio malseguro. Passou sem conseqüências. Mas as condições do edifício ficam o que eram.

Com o esforço deste chamamento à alma do povo brasileiro, com este brado aos nossos estadistas, com esta propaganda refletida, investigativa, constantemente apoiada na história, não roubaríamos tempo ao público e a nós mesmos, se a história se não repetisse; porque, se a história não se reproduzisse, não valeria nada, enquanto escola do porvir.

Mas que história é essa, de cuja reiteração nos advertem? A dos nossos temores não-verificados, há mais de cinqüenta anos, quando entre o Peru, a Bolívia, o Brasil e os Estados Unidos se discutia a liberdade da navegação do Amazonas. Percorreu, naqueles dias, o nosso mundo político, se não um pânico, intenso calafrio. A causa desse terror estava em dominar então a América do Sul “a idéia de que os Estados Unidos mantinham secretos intuitos de anexação”, impressionados, como se achavam, “os hispano-americanos com as expedições de flibusteiros a Cuba, à América Central e o bombardeamento de Greytown”.

Vejam agora com que dialética adorável estabelece a paridade entre as duas épocas. “A situação atual é mutatis mutandis a mesma: a intervenção dos Estados Unidos em Cuba e a anexação voluntária do arquipélago de Havaí determinam a ressurreição da velha idéia, que condensa a suspeita do momento”.

Em verdade nunca vimos símile mais absolutamente justo. Para esta subtilíssima operação apenas teve a habilidade do trabalho comparativo que reduzir a produto livre da vontade dos havaianos a anexação daquelas ilhas, determinado por um longo processo de conspirações, revoluções e pressões americanas, a cuja iniqüidade, ainda em 1895, resistia Cleveland, anulando, com o aplauso do Senado, o convênio anexionista já submetido aos seus votos, assim como que averbar de simples intervenção o senhorio atual de Cuba pelos americanos.

Destarte descoroam, com admirável sem-cerimônia, o ane­xionismo confesso do seu duplo triunfo.

Uma resolução conjunta das duas Câmaras, adotada na dos representantes quase unanimemente, formulava, em abril do ano passado, entre outras estas duas declarações: “Fica resolvido: 1º Que a população da ilha de Cuba é e deve permanecer, de pleno direito, livre e independente. 4º Pela presente repudiam os Estados Unidos todo o propósito de exercer qualquer soberania, jurisdição, ou superintendência na dita ilha, salvo para lhe granjear a paz e afirmar o intuito, em que se acham, de confiar então o governo da ilha ao seu povo.” Sob os auspícios desta promessa de liberdade e independência entrou Cuba subjugada no acervo da soberania americana.

Não pode haver realmente fato mais animador para os países latino-americanos. Em presença dele dois sábios internacionalistas, os Srs. Pillet e Frauchille, diretores da Revista Geral de Direito Internacional Privado, escreviam, reivindicando os princípios tutelares da consciência jurídica entre as nações, um protesto memorável, onde se lêem estas palavras:

“A verdade é que a América agride a Espanha, a fim de senhorear Cuba. Quer conquistar o que em vão e repetidas vezes tentou outrora comprar. A verdade é que, não fazendo caso um instante desse princípio primordial de justiça, que impõe dar a cada qual o seu, não pensando um minuto nos morticínios e devastações, que se preparam, os Estados Unidos começam uma guerra de mera ambição, se não se inspiram em motivos ainda mais odio­sos. Assistimos à derradeira evolução da doutrina de Monroe: ela era de prever. Até aqui o governo da União consentiu em não se ingerir nas relações da Europa com as suas colônias americanas, contanto que os interesses dos estados americanos se reservassem à decisão dos Estados Unidos. Mas confiado em sua força, exigem eles mais agora; e dentro em breve será uma verdade sem exceção o mote da América aos americanos, ou antes a América aos Estados Unidos. Não se iludam, com efeito. Hoje reclamam Cuba. Reclamarão amanhã o resto das Antilhas. Depois, o que ainda não possuem no continente. Cada dia datará um passo adiante. Nem faltarão às guerras vindoiras pretextos tão sólidos, quanto os que deram azo à atual. À América do Sul há de chegar a sua vez.”

Ora bem. Se a história se repete, qual é a que se vai repetir agora? A de cinqüenta anos atrás, ou a do ano passado? A do recuo nas expedições de flibusteiros? ou a da tenacidade, pela intervenção armada, até à apropriação subseqüente. Há meio século cessou o nosso medo, vendo que os Estados Unidos não se apoderavam de Cuba. Hoje, que a absorvem, teremos igual motivo, para nos tranqüilizar? Então repudiavam de todo os norte-americanos o sentimento de conquista. Agora são confessadamente conquistadores. Qual tem de ser a história, que se repetirá? A velha? Ou a recente?

Mas, pensando bem, estamos quase a dar as mãos à palmatória. Na pior hipótese, afinal de contas, que mal poderia vir da história repetida às repúblicas latinas neste continente? Quando muito, uma voluntária mudança de nacionalidade, como em Honolulu, ou uma simples intervenção, para nos sanear, como em Havana. Ora deixemo-nos de nicas. Vamos a isso: a história que se repita!