O leitor deve estar lembrado que no começo desta encantada e encantadora história de encantamentos, assistimos ao casamento de nossa heroína, a filha do mar, com um navegante de além-mar, gentil e guapo mancebo, que aportara àquelas praias em um navio mercante, e que diziam também possuir boa fortuna.
Como esse moço dela se enamorou, e não hesitou em tomar por esposa uma pobre barqueira sem outros dotes mais que a incomparável formosura e sedutoras graças de que a ornara a natureza, e como por seu lado a intratável donzela depôs o seu condão de fada e desceu de seu aéreo e misterioso trono para desposar um simples mortal, são contos largos, que por agora não vêm ao caso relatar. O certo é que viram-se, amaram-se e casaram-se, negócio este que se planejou e efetuou dentro de poucos dias.
O leitor por certo deve ficar maravilhado, com muita razão, ao ver essa altiva e inflexível beldade, que até ali tinha resistido com orgulhoso desdém e glacial indiferença às mais pertinazes e provocadoras seduções, render-se assim tão fácil e prontamente a um forasteiro desconhecido, e aceitar-lhe a mão com tanto desembaraço e açodamento.
É esse também um dos singularíssimos fenômenos desta estupenda história, de que por enquanto não podemos dar razão, e que o leitor a seu tempo verá explicado se quiser ter a paciência de ler os maravilhosos e inauditos sucessos que se vão seguir.
Com a nova desse casamento, que se derramou logo por toda a aldeia e seus arredores como um acontecimento surpreendente e da mais súbita importância, as mães que tinham filhos crescidos, e mesmo as esposas e as irmãs, exultaram de contentamento. A filha do mar ia, enfim, tomar um destino, e talvez abandonar para sempre aquelas paragens, que com sua fatal presença tornara um lutuoso teatro de lamentáveis calamidades. Eis a razão da imensa concorrência, que acudiu à igreja, dos repiques de sino, foguetes, e mais sinais de alegria, com que o povo espontaneamente festejou esse propício acontecimento.
Entretanto, a gentil donzela não tinha mau coração; ao contrário era afável, benfazeja e carinhosa para com todos que não lhe declarassem amor. Se bem que pouca convivência entretivesse com os demais moradores do lugar, não deveria incorrer no desagrado senão de alguma invejosa rival, a quem sem querer tivesse transviado o amante, ou de algum cego adorador que ainda não se tivesse matado ou morrido por amor dela. Seu único, seu grande defeito era esse condão da maravilhosa beleza, esse mágico e fascinador poder do olhar e do gesto, com que sem ela o querer e mesmo sem o saber, derramava em torno de si a inquietação, a angústia, o luto.
Mas assim não o pensava o povo, que a tinha em conta não de criatura humana, mas de espírito satânico encarnado em corpo de fada, entidade malfazeja, produto talvez de monstruosa união de algum homem com a sereia, e atirada sobre aquela terra pela cólera divina para castigo talvez de algum grande pecado daquele povo. Portanto não auguravam bem daquele casamento, e já de antemão lastimavam a sorte do mal-aventurado forasteiro.
Uma vez, porém, que por intermédio dele iam se ver livres da ominosa presença dessa mulher, não deixavam de folgar e de felicitar-se por tão auspicioso acontecimento.
Como também já sabemos, três vultos embuçados e de sinistra catadura assistiram à cerimônia do casamento murmurando frases de ódio e vingança, e formaram parte do séquito até as proximidades da simples, mas asseada, cabana, a que se recolheu sozinho o gentil e afortunado casal.
No meio do tumulto do povo embebido, como estava exclusivamente na contemplação do noivado, e como já caíam as sombras do crepúsculo, ninguém atentou neles e nem se lembrou de indagar quem eram. Se não fosse isso, facilmente teriam reconhecido nessas nobres e enérgicas fisionomias, e no esbelto e altaneiro porte que lhes eram tão conhecidos os três irmãos, de quem tão longamente nos temos ocupado nesta história.
Eram já decorridos cerca de seis meses depois que Ricardo, o mais moço dos três irmãos, ferido no coração pelo mesmo golpe que infortunava os outros dois, desaparecera daqueles lugares. Ninguém mais soubera notícia dos três irmãos; todos os supunham mortos, ou pelo menos para sempre exilados das praias, onde a funesta beleza de Regina, como a tantos outros, lhes havia para sempre amargurado a existência.
Na mesma noite do casamento — seriam dez horas —, a lua passeava pelo céu sem nuvens, e o mar refletia-lhe a imagem no regaço bonançoso; as ondas boleando-se mansamente ao longo das praias vinham morrer com brandos frêmitos junto à cabana, que ocultava em seu seio as misteriosas e inefáveis venturas de uma noite nupcial.
Súbito um grito agudo, sinistro, lamentoso troou pela extensão das praias ermas.
O vulto pálido de uma formosa mulher assomou à porta da cabana. Estava vestida de branco e trazia na fronte uma grinalda de flores de laranjeira. Tremiam-lhe os lábios descorados, e nos olhos chamejava-lhe luz torva e ameaçadora.
— Assassinos! — bradou a donzela com voz rouca e sinistra, levantando a destra para o céu. — Mataram meu marido no momento em que ia desatar-me da fronte esta grinalda…! Pois bem…! Aqui a conservarei para sempre…! Malditos…! Malditos para sempre! Juro pelo sangue e pela alma desse infeliz, vós todos três haveis de ter a mesma sorte…! Juro, juro, três vezes juro!
E esse grito de angústia e essas frases sinistras ninguém as ouviu senão o céu e o oceano, que guardaram consigo o segredo da tremenda jura.
Alguns minutos depois um leve barquinho sulcava tranquilamente as ondas do mar sereno e silencioso, banhado pelos esplendores de um magnífico luar. Dentro via-se uma única pessoa. Era uma esbelta e gentil donzela vestida de branco, e tendo na cabeça uma grinalda de flores de laranjeira! Dirigia o batel com admirável destreza e segurança, e demandava o rumo da ilha maldita. Um ou outro, que na aldeia acaso ainda velava contemplando o céu e a lua a resvalar seus plácidos fulgores pela imensa superfície dos mares, ao avistar aquela velinha solitária sulcando os mares a tais desoras, fechou bruscamente a janela, e recolheu-se benzendo-se e murmurando:
— Cruzes! Credo…! Lá vai a bruxa dos mares para sua ilha amaldiçoada…! Pobre marido, em que mãos caíste…!
O barquinho, que rapidamente se fazia ao largo, em breve tempo sumiu-se ao longe no horizonte entre o marulho dos escarcéus, que fervem de contínuo, rebentando nas penedias que circundam a ilha.
A misteriosa barqueira, porém, que parecia familiarizada com todos os perigos daquelas temerosas paragens, continuava imperturbável e calma sua derrota através das ondas revoltas e, bordejando a certa distância os rochedos, passou algum tanto além da ilha. Depois virando de bordo, dirigiu de novo para ela a proa de seu batel procurando pelo lado oriental a única e quase imperceptível abertura que dava ingresso à misteriosa mansão da fada dos mares. Ali os rochedos se fendiam a prumo, como duas pilastras titânicas servindo de vestíbulo àquele alcácer encantado defendido pelo furor das ondas e pela rigidez de penedos inacessíveis, e davam entrada por um canal oblíquo e estreitíssimo às águas do oceano, que iam expandir-se no interior da ilha em uma linda, espaçosa e mansa baía, inteiramente abrigada dos ventos, das ressacas e até das vistas do exterior.
Logo que se achou fronteando a face oriental da ilha, as ondas como que tomaram complacentes sobre os ombros o batel da donzela, que, suavemente e sem esforço, como se fosse levado por uma torrente, ganhou a penedia e entranhou-se no canal. Se alguém naquele momento estivesse em distância observando a pequena piroga, não vendo e nem podendo compreender por onde e por que modo havia desaparecido, juraria que se havia sumido por encantamento.
Apenas se achou na enseada interior, a donzela atracou a uma das margens, largou o remo e, debruçando-se sobre o fundo do barco, ergueu nos braços um volumoso fardo: era um cadáver. Não sem alguma dificuldade, mas com um vigor e agilidade para admirar em tão delicada criatura, saltou em terra, tendo sempre nos braços o sinistro fardo.
Sobre a praia arenosa erguia-se um grupo de rochedos esparsos; negros e aprumados como restos de uma arcada gigantesca desmoronada pelo tempo. Pelo vão de dois desses penedos, que se inclinavam um sobre outro como pilastras de uma abóbada quebrada, entranhou-se Regina conduzindo sempre nos braços o cadáver, como uma mãe carregaria o filho adormecido. Chegando à base solapada de um desses monólitos que pendia formando ampla cavidade sobre um chão de alva e finíssima areia, parou, depôs no solo o cadáver, e tirando do seio um punhal com ele começou a cavar a areia.
Cavou pacientemente e por largo tempo sem murmurar uma palavra, sem exalar um suspiro, até que conseguiu abrir uma cova assaz profunda, depôs nela o cadáver, e o cobriu com a areia removida.
— São três…! Bem os conheço! — murmurou ela enfim, arrancando um suspiro, antes bramido de leoa enfurecida. — Juro pelo sangue desse infeliz que ali repousa…! Juro por estas ondas amigas que me serviram de berço…! Juro por este punhal ensanguentado, com que lhe vararam o coração, e que nele deixaram ficar para ser seu vingador…! Sim, punhal vingador, não sairás de meu seio, enquanto aqui mesmo sobre esta sepultura não te embeberes nos pérfidos corações dos três assassinos! Como esse mísero que aqui jaz, eles também um dia serão precipitados do cume do mais delicioso sonho de amor no abismo dos eternos sofrimentos. Juro, juro, juro três vezes…!
Proferido esse tremendo juramento, Regina, com mão frenética e convulsa, agitou o punhal sobre a cabeça e, pálida e fremente como uma eumênide, entranhou-se a passos precipitados pelas penedias esparsas, e desapareceu no interior da ilha.
No dia seguinte ao do casamento, em vão se procurou Regina e seu esposo. A cabana com as portas e janelas abertas estava completamente deserta. O batel da donzela também desaparecera da praia. O que foi feito dos dois desposados da véspera…?
Confirmou-se de uma vez a crença em que todos estavam de que Regina era uma sereia maligna, uma fada bafejada de espírito diabólico, que depois de ter feito todo o mal que pudera, se apoderara enfim daquele último e desventurado amante, e o levara consigo para os abismos do mar, ou para os rochedos da ilha sinistra, sua habitação favorita, da qual faziam mil votos ao céu para que nunca mais saísse.