— Já te disse que a ideia do amor me inspirava medo e repugnância. Talvez fosse isso um efeito dessa tremenda maldição com que minha mãe me ameaçara, e essas derradeiras palavras que eu não compreendi. Ah! Quem sabe se fulminavam mais forte maldição sobre mim, se o amor… oh, meu Deus…! Desviemos semelhante ideia, que me esmaga e apavora o coração… Mas desgraçadamente parece que nasci com o terrível fadário de inspirar o mais cego e desatinado amor a quantos mancebos em mim porem os olhos. Dir-se-ia que eu tinha nos olhos as chamas do inferno para atormentar na vida meus desgraçados adoradores até arrojá-los no túmulo! Todos eles foram vítimas dessa paixão insensata e inextinguível que eu sem querer lhes ateava no coração, e a que não podia corresponder: uns procuravam a morte no punhal ou no veneno; outros atiravam-se aos abismos do oceano, ou despedaçavam despenhando-se dos rochedos; outros menos violentos consumidos de melancolia definhavam, definhavam até morrer; outros enlouqueceram, e talvez ainda por aqui vivam objeto de escárnio ou comiseração dos homens.
“Oh, Deus de misericórdia! Será tão hediondo e enorme o crime de amar-me para merecerem meus amantes tão cruel castigo! Oh! Por que não recaiu ele antes sobre mim esmagando de uma vez esta existência fatal a mim e a todos que me cercam…!”
Regina calou-se; os soluços embargavam-lhe a voz e, escondendo o rosto entre as mãos, parecia chorar.
Ricardo, que a escutava comovido, afastou-lhe brandamente as mãos dos olhos. As lágrimas, que aos pares lhe rolavam cristalinas ao longo das mimosas faces enrubescidas pela mágoa e pelo pejo, duplicavam os encantos e davam realce divino à ideal formosura de Regina. Ricardo sentiu-se com o coração opresso de assombro, de ternura e de emoção.
— Não chores — disse beijando-lhe as lágrimas —, bem sei que essas lágrimas são puras e santas, e ornam-te admiravelmente o rosto angélico. Mas não quero que chores, porque és inocente. São felizes os que morreram por teu amor, e se a mesma sorte me aguarda, bendirei a morte que me vem de teus formosos olhos.
— Oh, não! Quero que vivas por meu amor…
— Amas-me, então, Regina…?
— Logo te direi; deixa-me continuar a minha história.
“Causa inocente de tantas desventuras desejava sumir-me aos olhos de todo o mundo, e por isso evitava a sociedade, e isolava-me nessa vida solitária e misteriosa que tanta desconfiança e terror causava a esse bom povo da aldeia em que fui criada. Tinham razão: eu, pelo fatal condão de minha formosura, tinha-lhes custado tantas lágrimas e tanto luto…! Tinham razão em me ter na conta de um gênio satânico, de uma sereia ou fada malfazeja, e eu lhes perdoo do fundo do coração.
“Enfim as desgraças, a que dava lugar minha funesta beleza, pareciam não dever ter mais termo, e com eles meus males e amarguras aumentavam-se de dia a dia. Teus irmãos também vieram um após outro cair na rede fatal que um destino inexorável, servindo-se de meus encantos, armava a tantos infelizes! Eram por certo bem dignos de serem amados esses belos e galhardos mancebos; havia neles um não sei quê de nobres e altivos, que bem denunciavam gerar-lhe nas veias um sangue ilustre e generoso, e não pertencerem à pobre e rude classe de pescadores que habitam essas costas. Mais ardentes e temerários que todos os outros que prodígios de audácia, que provas de dedicação não puseram em prática para conquistarem o meu afeto! Mas seu amor me repugnava como o de todos os outros; admirava-os, estimava-os, mas não podia amá-los e não queria nem devia mentir. Perseguiram-me com incrível perseverança, e chegaram a lançar-se através das ondas em meu alcance até as proximidades desta ilha, cuja entrada só eu conhecia. As ondas, que esbravejam em roda destes penedos, não permitiram que aqui chegassem, e tiveram de voltar sem esperança e para sempre desalentados. Um após outro desapareceu do lugar, e eu, como todos os mais, não tive dificuldade em acreditar que tinha tido o mesmo fim funesto de todos os meus adoradores.
“Quase enlouqueci de angústia e dor. Eu, que daria de bom grado a minha vida para salvar a deles, eu era a causa de sua perdição só porque não lhes podia dar amor. Embrenhei-me mais que nunca no retiro destes rochedos, e para não ser causa da ruína de mais nenhum mortal, condenei-me a ver murchar a flor de meus anos na solidão e na tristeza em um cárcere no meio do oceano, onde eu mesma de propósito me encerrei, tendo por sentinelas as rochas inacessíveis e as vagas tempestuosas, que rugem noite e dia em torno delas.
“Todavia, não pude por muito tempo resistir ao desejo de ir ver algumas vezes essa terra, onde fui criada; essas praias, onde brinquei pequenina; e ensaiei os meus primeiros voos para chegar a esta ilha, meu último refúgio. Mas nessas ocasiões evitava, quanto me era possível, qualquer encontro; andava como a corsa arisca escondendo-me entre os rochedos, alerta ao menor ruído para escarpar aos rafeiros que a perseguem.
“Apesar, porém, de meus cuidados e precauções, tive um dia um fatal encontro que operou em todo o meu ser profunda transformação, e abalou-me o coração até nas mais íntimas fibras. Eu acabava de desembarcar e, tendo amarrado o meu barco, fui descuidadamente avançando pela praia deserta e silenciosa! O sol declinava e reinava calma intensa. Adormecido ao pé de um rochedo, que derramava fresca sombra sobre o areal, avistei um lindo mancebo na primeira flor dos anos, estendido na areia, e repousando a cabeça sobre o braço recurvado. Parei imediatamente como tocada por vara mágica; meus pés não souberam dar mais nem uma passada, e meus olhos, levados de irresistível curiosidade, se embeberam na contemplação do formoso adolescente. Era com efeito um mancebo gentil, como jamais meus olhos tenham visto…! E que expressão encantadora de bondade e candura apresentava dormindo…! Tinham essa figura os serafins do céu, com que eu às vezes sonhava. Fiquei assombrada crendo ter diante dos olhos alguma visão sobrenatural. Mas por fim notei que sobre aquela fisionomia tão serena e suave pairava como uma sombra angustiosa. Dei mais dois passos para junto dele, e observei-o com mais atenção. Pouco a pouco suas feições foram-se alterando, tremores convulsivos lhe percorriam o corpo, e o peito lhe arquejava ansioso; parecia querer arrancar um grito que se lhe pegava na garganta.
‘“Oh! meu Deus!’, pensei comigo. ‘Será possível que até mesmo aos que dormem seja funesta a minha presença?!’ Ia retirar-me mas, vendo que um terrível pesadelo o afrontava, compadeci-me, cheguei-me a ele e despertei-o. Apenas abriu os olhos e os fitou sobre mim, não sei explicar o que senti. Insólita perturbação apoderou-se de meu espírito, meus olhos se turvaram, e calor estranho afogueou-me as faces. Trocamos algumas palavras, que já não me lembro, e retirei-me aceleradamente, confusa e como que aturdida. Pareceu-me, entretanto, que ele também havia sentido essa mesma singular e profunda impressão que sobre mim havia produzido. Olhei por vezes para trás e percebi que o lindo mancebo conservava os olhos fitos sobre mim, imóvel e de braços cruzados.”
Regina fez uma pausa e fitou um olhar cheio de meiguice no rosto de Ricardo, que também a contemplava em um enlevo de amor, de assombro e de surpresa. Não podia duvidar que esse mancebo adormecido, esse ente privilegiado, que primeiro havia despertado a chama do amor no seio de Regina, era ele, ele Ricardo, que ali estava junto dela em sua ilha inacessível e solitária, com as mãos dela enlaçadas nas suas, bebendo-lhe os olhares fascinadores, aspirando-lhe o hálito balsâmico, e ouvindo de seus lábios rubros incendidos de pejo e amor duas palavras, que lhe abriam um céu de esperanças e delícias inefáveis.
Mísero moço…! Nesse momento de fatal ebriedade da alma e dos sentidos nem ao menos se lembrava de seus irmãos, de seus irmãos cujos corpos ensanguentados jaziam ali bem perto traspassados pelo punhal dessa mesma mulher, que agora com as mais sedutoras frases e olhares apaixonados o convidava ao gozo da suprema felicidade.
Mas não amaldiçoemos também a pobre fada. Tinha-se quebrado o encanto, seu destino se mudava e Deus sabe que de angústias e remorsos lhe laceravam o coração.
Ricardo sentia o coração banhar-se-lhe em eflúvios das mais deliciosas emoções; mas a lembrança do casamento de Regina vinha por vezes atravessar-lhe a mente, nela suscitando cruéis dúvidas e apreensões sobre a sinceridade da donzela. Sem ousar mais interrogá-la, esperava com impaciência que, chegando a esse ponto de sua vida, desse explicações que o tranquilizassem. Regina, que bem compreendia o seu embaraço, continuou:
“Desde o momento em que vi esse mancebo, caiu-me das mãos o condão que me mantinha na esfera ideal de minhas orgulhosas ilusões, e reconheci que em meu coração existia uma corda que me prendia a essa terra, que eu tanto detestava, e me confundia com o resto dos mortais.
“Encerrei-me longo tempo na solidão de minha ilha com o espírito em horrível perplexidade e entregue ao embate de mil pensamentos tumultuosos. Estremecia ao pensar que esse moço provavelmente teria em breve a mesma sorte de tantos outros, que por meu amor tinham terminado seus dias do modo o mais deplorável, e não podia conformar-me com a ideia de ver sacrificada mais essa vítima nas aras de minha isenção. Isenção…! Que digo…! Ai de mim! Nem essa mesmo já existia, eu amava e amava muito esse mancebo, único que possuía o condão, que devia quebrar um dia o círculo de gelo que me envolvia o coração.
“‘Eu amo enfim!’, refleti eu em minha solidão. Amo perdidamente esse mancebo; não posso duvidar, nem enganar-me a mim mesma, e estou certa de que ele partilha com ardor o meu afeto. Que motivo pois nos obriga a nos evitarmos e forjarmos por nossas próprias mãos nossa desgraça, tendo a chave que nos pode abrir as portas do mais feliz e risonho futuro…? Não, não; agora só de mim depende acabar com meus infortúnios e talvez com os de muitos outros que eu poderia ainda arrastar à perdição. Foi o céu que me apresentou esse mancebo e inspirou-me este amor para pôr um termo à cadeia de catástrofes que eu sem querer ia desenrolando nos lúgubres caminhos de minha existência.
“Saí enfim de meu retiro solitário decidida a ir procurar o gentil mancebo, confessar-lhe o meu amor e unir para sempre aos dele os meus destinos. Mas ai de mim…! A maldição de minha mãe me persegue, e parece-me que nunca mais poderei encontrar repouso e felicidade sobre essa terra que ela me vedou! Percorri toda a aldeia, vagueei pelas praias um dia inteiro, e outro e outro ainda, mas o jovem nunca mais me apareceu…! Fiquei aterrada imaginando que talvez, desanimado com o exemplo de tantos outros, muito depressa se teria entregado ao desalento e ao desespero, e, quem sabe, em breve teria o fim comum a todos os que tinham a desdita de amar-me.
“Eu, que jamais perguntei por ninguém, e que até ali vivia como indiferente ao resto da humanidade, ousei indagar dos habitantes da aldeia o que era feito do mancebo.
“‘Tu bem sabes, Regina, qual é a sorte de teus amantes’, respondiam-me à pressa, e evitando-me como a uma pessoa eivada de mal contagioso. ‘Queres saber de Ricardo…? Não penses mais nele, teve a sorte de seus irmãos.’”
— Ricardo! — exclamou o mancebo caindo delirante de amor e de alegria aos pés da fada encantadora. — Era eu, pois, esse mancebo adormecido, esse ente afortunado a quem o céu reservara a dita de despertar em teu seio a chama do primeiro amor…?!
— E quem mais poderia ser, Ricardo…?
— Oh! Acredito! Acredito…! Tu me amavas, e amas-me ainda, não é assim, Regina…? Repete-me ainda uma vez, mais outra e muitas… tamanha ventura ainda me parece um sonho…
— Não preciso repetir-te que te amo. Se eu não te amasse como poderias te achar junto de mim neste meu retiro inacessível…?
— Bem sei, mas… entretanto, pouco tempo depois que me conheceste…
— Não sejas impaciente — interrompeu Regina —, escuta-me ainda um momento, eu vou já terminar.
“Ninguém pode fazer ideia da sombria tristeza e desesperação que se apoderou de minha alma julgando-te perdido para sempre.
“‘Belo dormente!’, murmurava eu em minhas dolorosas cismas, ‘para que te fui eu despertar de teu sonho descuidado para lançar-te na alma o eterno pesadelo de uma paixão devoradora que te devia precipitar no túmulo…! Tu, o único que soubeste despertar em minha alma o mais puro e delicioso dos sentimentos, tu, que somente poderias abrir-me as portas desse jardim de delícias inefáveis que sonhei em minha infância, tu morres sem saber que também por teu amor definho e morro entregue à mais cruel e angustiosa solidão…!”