A infanta D. Maria de Portugal e suas damas/A princeza erudita
E AGORA, que sabemos dos estudos e passatempos da filha de D. Manoel? das artes que cultivou? dos lavores de sua mão? do viver no seu paço? do circulo de damas nobres e donzellas eruditas que constituiam a sua côrte e imitavam o seu exemplo? dos poetas e sabios, seus protegidos? das obras que lhe foram dedicadas ou de que foi inspiradora? dos institutos de educação que fomentou?
Mais alguma coisa, felizmente, do que da famigerada Escola de Sagres, embora as notas soltas que foi preciso colher em muitas e diversas obras, nem mesmo a este respeito elucidem quanto seria para desejar.
Os coevos pintaram a sua casa como domicilio das Musas e universidade feminina, já o deixei dito a principio d'este estudo. O biographo e os auctores feministas dos seculos XVI e XVIII forçam a nota, desenhando-a antes como um mosteiro reformado que podia a religiosas ser espelho e doutrina de bem-viver. Os modernos que se occupam de sciencias, artes e letras, seguem o exemplo do phantasioso polygrapho Manuel de Faria e Sousa, e consideram o seu pequeno reino litterario como verdadeira côrte de amor e gaia sciencia, comquanto, não podendo contradizer em absoluto os antecessores e para afugentar sombras, medos e horrores feministas, tambem ajuntem sempre, á cautela e com justo motivo, ao titulo de Academia da Infanta o subtitulo: escola de virtudes e honestidade.
Só estes fallam de Serões da Infanta, dando por provado que toda a pleiada camoniana se reunia constantemente em volta de D. Maria, no paço independente onde os monarcas a haviam installado lado, [1] mal chegou a completar dezaseis annos. [2] Segundo elles, foi ahi em uma constellação de intelligentissimas bellezas que o cantor dos Lusiadas encontrou as suas Tagides, e se desenrolaram parte das desgraças e venturas da sua juventude, assim como outros successos notorios, alegres e tristės, da vida amorosa de vates palacianos. [3]
O intuito artistico de altear a estatua da Infanta, de fazer d'ella a personificação feminina mais brilhante da cultura classica, e de pôr em contraste os seus dotes liberaes com o obscurantismo dos protectores da Inquisição e do Jesuitismo, levou-os a proceder com alguma arbitrariedade. Exagerando, e muito, de um lado a austeridade dos costumes e o rigor do regimen repressivo que vigorava no paço real, e do outro lado a liberdade e o esplendor mundano da Infanta, pintam D. João III e a Rainha D. Catharina como completamente faltos de intelligencia e saber, sombrios, antagonicos ás artes e a divertimentos, gastando os seus dias em novenas, ladainhas e autos da fé; e transformam a Infanta que na verdade foi mais seria do que graciosa, mais erudita do que artista, e devota como os reinantes, de formosa Pallas-Atheneia em jucunda Venus, ou Musagete feminina. [4]
Tentarei restabelecer a verdade, que fica, a meu vêr a meio-caminho, como de costume.
- ↑ 89 A Infanta residiu primeiro modestamente na Alcaçova Velha; em seguida no campo de S. Clara; e finalmente com ostentação perto de Santos o Novo, no bairro aristocratico de Xabregas. (Pacheco f. 126). No tempo provavel dos Serões (1538 ou 1540 até 1555), o seu domicilio era no segundo dos paços citados.
- ↑ 90 Já sabemos que, obrigados por contrato a entregarem-lhe a sua legitima, quatro annos depois do fallecimento de D. Manoel, ou segundo outros aos dezaseis, os reinantes não haviam cumprido, e nunca cumpriram esse dever, sob varios pretextos, entre os quaes avultam o seu estado de filha adoptiva, a inconveniencia de a deixar sahir do paço, emquanto não estivesse casada, as duvidas àcerca da importancia da somma devida... e a falta de dinheiro.
- ↑ 91 Nos poemas e dramas, nas novellas, e nos romances historicos, dedicados a Camões, um logar proeminente é em geral concedido à Infanta. Sirva de exemplo, entre muitos, o drama de Cypriano Jardim, publicado por occasião do centenario.
- ↑ 92 Alguns costumes, quer delicados, quer primitivos, da corte portuguesa, como por ex. o de as damas não tomarem parte em banquetes, ou ainda o de não se sentarem em cadeiras altas, mas antes rente ao chão, em cadeiras e estrados baixos, são erroneamente considerados por alguns auctores como outros tantos indicios de reacção austera contra o esplendoroso mundanismo do Renascimento italiano.