I

Tinha dezessete anos a menina dos olhos pardos, e era uma das mais formosas criaturas que este sol fluminense tem alumiado. Algumas pessoas ainda se hão de lembrar do furor que ela causava quando aparecia na rua pelo braço do pai, velho capitão reformado, que tinha a alma tão branca como os bigodes, e o coração tão virgem como a espada. Não o julguem mal; se a espada era virgem, não é por que ele fosse um maricas, mas aconteceu, por uma série de circunstâncias estranhas à sua vontade, que nunca pôde entrar na mais ínfima escaramuça deste mundo. Quando se deu a guerra oriental de 1851,* debalde o homem quis ir combater, os chefes acharam melhor deixá-lo no quartel da saúde.

Se a glória lhe diminuiu com isso, aumentou-se a felicidade de Helena, a menina dos olhos pardos, que ficaria ao desamparo caso o pai morresse de um tiro na batalha de Caseros. Ela mesma lho dizia agora que o pai deixara o serviço ativo do exército; o capitão Morais zangava-se quando ouvia semelhante linguagem, mas a menina vencia sempre com esses argumentos que as filhas amadas sabem ter; um beijo punha termo a tudo; um sorriso bastava para dissipar as sombras.

Helena tinha idéias singulares a respeito da guerra; idéias de mulher, afinal de contas, para quem as glórias marciais não podem ter os encantos que oferecem aos homens. No ânimo dela, a guerra era sempre uma coisa injusta e ímpia. E ainda assim estava um pouco atrasada a filosofia de Helena, porque já depois dela apareceu outra fórmula mais adiantada: é a que dá a guerra como uma coisa profundamente ridícula.

Não levemos em conta estas apreciações feminis a respeito dos grandes duelos em que as nações decidem questões de uma légua de terra ou de supremacia política. Helena falava assim porque tinha um coração excelente que não compreendia que o direito precisasse de um banho de sangue. Era a bondade feita mulher, a bondade inteligente, carinhosa, evangélica, limpa de cálculo, pura de galantaria. Conhecia-lhe bem o capitão essa virtude, e tão necessária a achava, que nunca lha elogiou, por medo de que a vaidade usurpasse no coração da rapariga o domínio de tão raro sentimento.

A natureza que nos dá os seus dons por um sistema de equilíbrio constitucional, tem às vezes a singularidade de acumular na mesma criatura dotes que de ordinário andam separados.

Helena era boa e formosa; tinha a essência do céu dentro de um vaso primorosamente lavrado. As coisas boas são belas por si mesmas; por isso é comum vermos um rosto feio abrigando um elevado espírito; acumular as duas belezas, a da alma e a do corpo, encantar os olhos e prender os corações, inspirar o amor e a estima, qualidades essas que a natureza não dá às mãos largas, tamanha parece a fortuna para uma só pessoa.

Pois Helena era das escolhidas. O seu nome pagão não desdizia com as feições que Deus lhe dera, e se, como a sua homônima antiga, não era capaz de acompanhar Páris, devia isso a um coração mais reto que o da outra. Possuía as mais belas feições deste mundo; fronte pura, magníficos cabelos pretos, lustrosos, levemente ondeados; quando os penteava formavam eles uma espécie de coroa natural; por uma espécie de intuição do belo, Helena penteava-se à maneira antiga, conservando à natureza as suas graças próprias, e desterrando de si os artifícios modernos que fazem da cabeça humana uma coisa muitas vezes repugnante. Era um tanto morena, e essa cor, comparada com a dos cabelos, estava pedindo para os olhos uma cor de azeviche. Mas a natureza por um dos seus caprichos dera-lhos pardos, cor pouco comum e pouco apreciada. Os olhos pardos não podem ter o brilho dos pretos nem mesmo dos castanhos. Os de Helena ganhavam em serenidade e graça o que perdiam no fulgor.

Era alta, e tinha a elegância da estatura; os poetas americanos podiam compará-la à palmeira, e não encontrariam melhor imagem para dar idéia da graça nativa e da elegância agreste da filha do capitão Morais. Não sabia vestir-se; as suas roupas não eram feitas com o intuito de realçar os dotes da natureza; mas se algum inconveniente resultava deste defeito de arte era tão secundário que ninguém lho notara. A natureza reagia contra o desgracioso das roupas, ou antes aproveitava-se dele para ostentar as suas pompas e os seus milagres.

O capitão revia-se nessa interessante criatura como se fora o espelho da sua mocidade, a transformação esplêndida das suas esperanças, a realização desejada dos seus mais caros sonhos. Helena era verdadeiramente filha do amor, foi o amor que ligou no mais feliz dos consórcios o pai e a mãe da menina. A mãe morrera quando ela apenas tinha dez anos, e quando mais necessária se tomava para a educação de Helena. Apesar da idéia comum de que as mães são mais necessárias na primeira educação, eu creio que a segunda educação é a que mais exige a missão da maternidade. A primeira é quase que toda física; está ao alcance de qualquer mulher, mas quando o coração e o espírito começam a desenvolver-se, então é que se torna necessária a influência benéfica e amorosa da mãe. Pois foi nessa quadra que Helena perdeu a mãe, e ficou entregue aos cuidados do pai. Mas o amor dele e a boa índole dela ajudaram-se por modo que aos dezessete anos tinha Helena uma educação excelente.

Eram pobres; o único meio de subsistência que tinham era o meio soldo do capitão, e uma pensão deixada a Helena por sua madrinha. Pobreza honrada e alegre. A tristeza era hóspede rara em casa do capitão; nas poucas vezes em que lá aparecia demorava-se pouco. O capitão era avesso aos importunos. Despedia-os com a rudeza de soldado e a tranqüilidade de filósofo. Não é dado a todos despedir importunos; é mister ter adquirido antes uma reputação de originalidade.

Entre as pessoas que freqüentavam a casa, duas eram da mais perfeita intimidade do capitão: o Leandro X., excelente médico que adquirira uma reputação sólida; e Valentim, seu filho, rapaz de vinte anos, estudante de engenharia.

O Leandro era velho amigo do capitão. Velho amigo, sem que Leandro fosse homem velho; contava 42 anos e bem dispostos. Era um cavalheiro de perfeita educação, boa alma, grande talento, tudo realçado por uma lhaneza de maneiras e uma simplicidade de costumes que agradavam essencialmente ao velho Morais. Apesar da diferença de condição social, Leandro fora sempre o mesmo amigo, qualidade raríssima, e porventura a maior de que se pode um homem enobrecer, porque é preciso uma grande elevação de caráter e de bom senso para resistir às variações da fortuna.

Educado nos mesmos princípios, Valentim seria o mesmo em relação à família do capitão Morais, se, em virtude da liberdade que o pai lhe dava, não votasse a mocidade a outros atrativos que lhe eram mais agradáveis do que a companhia de um velho militar e de uma menina pobre, ainda que bonita. Contudo ia lá muitas vezes.

II

Achando-se uma noite em casa, Leandro foi procurado pelo capitão que, apesar da familiaridade, não entrava nunca em casa do médico que não mandasse anunciar.

— Não gosto disto, José, disse Leandro apenas viu entrar-lhe na sala o velho Morais; já te disse que esta casa é nossa; só se mandam anunciar as pessoas estranhas. Tu não és estranho...

— Manias de velho! disse o capitão sorrindo.

— Os maníacos são para o hospício, respondeu o médico galhofeiramente. Eu não quero amigos maníacos, ouviste?

— Vá lá, vá lá; nada de ralhos. Médicos só ralham com doentes. Eu estou são como um pero.

— Entretanto, respondeu Leandro, a julgar pela hora em que me apareces, creio que vens tratar de moléstia.

— Não é, disse Morais. É uma novidade!

— Caiu o ministério, aposto? Ah! meu rico, importa-me pouco com isso; caiam ou subam, é-me indiferente.

— E a mim? Outrora sempre tinha algum interesse para saber quem era o ministro da Guerra, mas agora...

— Bem; vamos lá à novidade.

O capitão puxou do bolso um enorme charuto, e preparava-se para acendê-lo quando o amigo disse:

— Queres dos meus?

— Não; tu fumas havana e eu fumo do país.

— Patriota!

— Não, econômico. O vício é sempre vício; logo, prefiro os mais baratos.

Acendeu o charuto e começou:

— Dize cá; não te parece que Helena já está boa para casar?

O rosto do médico contraiu-se um pouco; mas ele soube conter-se a tempo, e disse tranqüilamente ao capitão:

— Parece que sim.

— A mim não me parecia isso, mas alguém fez-me pensar em tal assunto, e vejo com efeito que, apesar de ter dezessete anos, a pequena tem juízo de trinta.

— Queres então casá-la?

— Não quero nem deixo de querer.

— Como?

— Vieram pedir-ma.

— Ah!

— Veio pedir-ma um rapaz que diz ser empregado não sei em que secretaria; respondi que consultaria a pequena; mas antes de lhe falar, achei melhor vir ter contigo. Que achas?

— Homem, agradeço-te a fineza; mas creio que deves fazer uma só consulta: a do coração de tua filha.

— Bem sei, respondeu o capitão; mas se eu lhe faltasse não serias tu o pai dela?

— Seria pai... seria... disse o médico franzindo as sobrancelhas. Queres que te diga o que penso? Penso que se o rapaz merecer a honra de casar com ela, e se ela consentir, não podes hesitar.

A conversa continuou neste sentido. O capitão, depois de ouvir uma aprovação com que contava, saiu para casa, enquanto o médico recolheu-se ao seu aposento.

No dia seguinte, o capitão comunicou à filha a proposta que lhe fora feita, e perguntou-lhe se gostava do rapaz.

A moça admirou-se muito que o rapaz fosse pedir-lhe a mão antes de havê-la consultado; e declarou que, posto não antipatizasse com o rapaz, não pensara nunca em tomá-lo por marido.

A resposta era fulminante.

— Eu não quero, disse o pai, obrigar-te a coisa nenhuma; nem tenho interesse pelo rapaz; no entanto, pareceu-me falar tão comovido que não sei se...

— Acha então que por isso...?

— Nunca! Vou dizer-lhe que não aceitas a proposta.

Com efeito, nesse mesmo dia o pretendente recebeu uma resposta negativa.

Não sei, nem vem ao caso, como recebeu o pretendente a resposta da moça. Importa saber que este incidente não deu mais nada de si; e a casa continuou do mesmo modo que dantes.

Não continuou positivamente o mesmo; porque durante três dias o Leandro não apareceu lá, e era raro que deixasse de ir um só dia.

Foi essa ausência notada por ambos. O capitão, ao terceiro dia, foi à casa do amigo, e não o encontrou.

Deixou-lhe um bilhete.

No dia seguinte apareceu Leandro em casa do velho Morais.

— Bem podia eu esperar-te! disse o capitão; se te não escrevo, ainda agora não virias aqui. Estás zangado conosco?

— Ora essa! exclamou alegremente Leandro; não me zangaria jamais contigo.

— Então por que motivo esta ausência?

— Meu caro, tu pensas que eu sou médico de pouco mais ou menos? Tive ultimamente tanto que fazer que não me foi possível dispensar um só minuto; mas como estava certo de que não te zangarias...

A frase foi cortada pela entrada de Helena que se dirigiu alegremente ao médico.

— Viva! viva! exclamou ela; já o dávamos por morto... tantos dias!

— Eu já expliquei ao papai o motivo desta ausência de três dias...

— Três séculos, disse Helena.

— Vês? disse o capitão. A pequena acha que foram três séculos.

— Está feito, não falemos mais nisto. Aqui estou; não expliquemos mais nada. Já jantaram?

— Ainda não.

— Pois contem comigo.

— Bravo! exclamou a filha do capitão batendo palmas.

Muito havia que Leandro não jantara em casa de Morais; de maneira que a declaração foi aceita com íntima satisfação do pai e da filha.

O capitão fez um sinal à filha; a moça ia sair, quando o médico a chamou.

— Venha cá, disse este, eu vi o sinal; janto com a condição de não acrescentarem nada ao jantar.

— Mas não foi isso... disse Helena, olhando para o pai.

— Se foi! eu bem vi...

Helena ficou.

— Além de que desejo aproveitar o momento para dar-lhe os meus parabéns.

— Por quê? perguntou a moça admirada.

— Vai casar!

— Qual casar! exclamou o capitão; isso acabou.

— Como? perguntou Leandro levantando-se de súbito.

— Sim, a pequena não quis.

Leandro reparou então que cedera a um movimento de súbita alegria, e sentou-se dizendo:

— Pois eu cuidei que fosse coisa feita.

— Não era.

— Helena tem idéias de casar segundo o seu coração, disse o capitão, e eu acho que faz bem. Não te parece?

— Decerto que faz bem.

Leandro não dissimulou a alegria que causara a nova situação da moça, e durante o jantar esteve como nos seus bons tempos. Helena estava nesse dia travessa como um diabrete.

No fim do jantar apareceu Valentim, que era um rapaz bem apessoado e elegante, um pouco estouvado, mas isso mesmo sem quebra do respeito que devia às outras pessoas.

Valentim nada soube do casamento; mas o capitão julgou que devia dizer-lhe ter havido um pedido recusado por Helena.

— Recusado! exclamou o rapaz.

— Pois então!

— A mesma Helena recusou um casamento; na sua idade é raro.

Helena respondeu com gravidade:

— Eu não consultei a idade, consultei o coração.

— Bem respondido! exclamou Leandro.

Valentim sorriu com certo ar de mofa que não escapou ao pai. Este franziu a testa, e o rapaz, compreendendo a repreensão, acrescentou vivamente:

— Pois há de perdoar-me a frase, D. Helena; bem sei que numa moça das suas qualidades o coração domina tudo.

Morais armou o gamão, ameaça infalível de uma ou duas horas de aborrecimento para o médico. Não podia recusar porque desgostava ao velho militar; suspirando foi assentar-se diante do capitão e começou o jogo.

— Ao menos faço esta guerra, costumava dizer o capitão quando gamoneava.

Valentim bem quisera sair e ir passear com alguns amigos; mas não achou bonito deixar a rapariga só; entrou a conversar com ela.

O gamão e a conversa só acabaram quando veio a hora do chá. Leandro perdera quase todas as partidas, e conseqüentemente o capitão estava radiante; Helena estava um pouco triste; Valentim pediu para retirar-se e foi-se embora.

III

A menina dos olhos pardos era muito reqüestada; além daquele namorado despedido, outros lhe apareceram sem que a sorte os favorecesse mais do que ao primeiro.

— A falar verdade, disse um dia o capitão; a falar verdade, acho que o teu coração está sendo exigente.

— Por quê? disse Helena.

— Ninguém te agrada...

— Ninguém.

O pai insistiu; amava loucamente a filha e não queria contrariá-la num ato tão solene da vida.

De ordinário os leitores são perspicazes, sobretudo quando o romancista lhes deixa entrever as coisas. Era claro que o Leandro amava a rapariga. Como nasceu esse amor, não o sei eu, nem interessa à narrativa; o certo é que existia o amor.

Leandro mais de uma vez pensou em dizer tudo o que sentia; mas receando que a rapariga não sentisse por ele coisa nenhuma, quis evitar o inconveniente de declarar-se namorado naquela idade, sem a vantagem de imediato casamento.

Estavam as coisas neste pé quando Valentim entrou a mudar completamente de hábitos; tornou-se mais assíduo em casa; passava longas noites em casa do capitão; tornou-se tão diverso do que era que o pai fez consigo a seguinte reflexão:

— O rapaz está outro; isto quer dizer que sofreu lá por fora alguma decepção.

Leandro não se enganava em parte. Tendo caído em apaixonar-se por uma das cortesãs mais admiradas da cidade, Valentim reconheceu dentro de pouco tempo todos os perigos de uma situação falsa. Pôde esquivar-se a tempo; mas ainda assim custou-lhe muito ao coração.

Nada disse ao pai; mas o coração doente teve uma enfermeira; foi a filha de Morais.

Valentim contou-lhe que tivera um amor... não correspondido. A moça, que era toda coração, suavizou a perda com a ciência da simplicidade. Valentim passava horas e horas com ela contando-lhe mil sonhos que tivera com aquele amor mal recompensado.

— Não pense mais nisso, dizia-lhe Helena; se essa moça foi tão cruel que não quis casar com o senhor, lá há de pagar a sua culpa.

— Mas é difícil esquecer, respondia Valentim.

— Há de vir o tempo.

— Ai, o tempo!

— O tempo é tudo.

Dizia bem Helena; o tempo é tudo. Com o tempo, o filho de Leandro não só esqueceu a esquiva dama dos seus pensamentos, como entrou a sentir-se bem na companhia de Helena.

Um dia, o rapaz perguntou a si mesmo se começava a amar Helena.

Pareceu-lhe que sim.

Quis confirmá-lo, e nessa mesma noite, achando-se a sós com ela, deixou-se ficar num desses silêncios eloqüentes quando duas pessoas se amam verdadeiramente.

Sentiu que a amava. Quis pegar-lhe na mão; ela retirou-a vivamente; insistiu; Helena saiu da sala.

O capitão que estava lendo uma obra sobre campanhas, apenas viu que a filha saía, interrompeu a leitura para conversar com Valentim que por sua parte mostrou-se taciturno.

— Que tens? perguntou o velho Morais.

— Nada.

— Não parece.

— Por quê?

— Não é esse o teu ar de costume.

— Estou preocupado com uns negócios.

— Negócios de rapazes, sei o que isso é, respondeu o capitão sorrindo maliciosamente, o que produziu em Valentim um sorriso também malicioso.

A entrada do médico desviou a conversa desse ponto; Helena pouco depois voltou para a sala.

Valentim olhou para ela; a moça tinha os olhos vermelhos.

Choraria?

Valentim nessa noite nada mais disse; mas no dia seguinte escreveu-lhe uma carta, cujo teor é o seguinte:

D. Helena. Vi que um gesto meu a mortificou. Era quanto bastava para não insistir no sentimento de que estou possuído. Todavia, quero dizer por carta que a amo, e que, ainda quando não possa obter o seu amor, desejo ter a certeza de que me perdoa e estima. Dificilmente uma moça deixa de perdoar a um rapaz que lhe pega na mão para beijar-lha. Helena deu verbalmente a Valentim, na seguinte noite, a resposta à carta que ele mandara.

Estava perdoado.

Mas amado também?

Valentim quis sabê-lo.

— Não falemos nisso, atalhou Helena.

— Nenhuma esperança ao menos?

— Não sei.

Tomara eu que todas as mulheres por quem me apaixonasse me dessem em caso de idêntica pergunta a resposta de Helena.

— Não sei!

Valentim, que era já um pouco adestrado nestas campanhas de amor, compreendeu que a situação estava salva.

Não se passaram muitos dias.

Helena foi-se ameigando mais, e uma noite quando menos esperava, o rapaz ouviu da boca da moça as seguintes palavras cheias de uma franqueza desusada:

— Disse-lhe que não sabia se podia ter esperanças de ser amado. Agora digo-lhe que pode tê-la, e até mais, digo-lhe que já é amado.

Valentim ouviu estas palavras com um sentimento misturado de satisfação e pasmo. Não teve palavras com que responder; beijou-a mão e saiu.

Estava começado o primeiro capítulo de amor entre Helena e Valentim.

IV

A primeira idéia que ocorreu ao rapaz foi comunicar ao pai o amor por Helena e tratar do casamento que podia ser logo. Mas lembrou que era melhor tomar grau e depois então tomar a grave responsabilidade do casamento.

Ao mesmo tempo iria aprofundando mais as raízes de amor que sentia pela rapariga.

Leandro não atinou com a causa da mudança de hábitos de Valentim, nem a das visitas assíduas à casa do capitão.

O amor é cego.

Mas o capitão, que não era cego, descobriu a razão da assiduidade do moço, que até então ia lá duas ou três vezes por semana, e agora todos os dias.

No entanto, calou-se; esperava a declaração dos dois, e o pedido por parte de Valentim.

Mas nem declaração, nem pedido.

Quis falar nisso ao seu velho amigo; mas foi dissuadido por causa que não importa à narrativa.

Pela sua parte, Valentim queria entender-se antes com o pai, e concordar com ele em esperar o grau, segundo fica dito. Tinha como certo o consentimento do médico.

Foi no meio desta situação, de expectativa para todos, que Helena tomou uma resolução, filha toda do seu caráter independente e despido de formalidade; lembrou-se falar no assunto ao pai de Valentim.

Quando Leandro ouviu que os dois se amavam, teve uma grande dor, foi para ele notícia tão mortificante quão inesperada.

Todavia soube conter-se; aprovou sorrindo a escolha do filho e a da rapariga, dizendo-lhe que podiam contar com ele.

Depois, não podendo continuar uma conversa que doía deveras, saiu deixando a moça contente com o resultado do seu passo.

Nessa noite, Valentim não foi à casa de Helena, o que a contrariou bastante; chegara tarde por ter passado a noite em casa de um colega que partia para S. Paulo.

Leandro já estava recolhido, quando o filho entrou; este perguntou pelo pai; depois de obter resposta do criado, encaminhou-se para o seu aposento a fim de dormir.

Mas ao passar pelo gabinete do pai, viu a porta meio aberta; empurrou-a devagarinho; ao fundo estava Leandro sentado à secretária, com um retrato fotografado na mão.

De quando em quando o médico beijava a fotografia repetidas vezes; depois inclinava a cabeça e parecia meditar.

Valentim respeitou o sentimento que aquele movimento manifestava, e dominando o espanto que causava aquele amor do pai, não imaginado nem sabido por ele, procurou retirar-se e fechar a porta com a mesma cautela com que a abrira. Mas nesse instante o braço do pai fez um movimento e a luz bateu em cheio no retrato.

Valentim reconheceu Helena.

Deu um pequeno grito e saiu.

Leandro levantou a cabeça, foi à porta; e supondo que o grito era apenas o resultado de sua imaginação exaltada, voltou a assentar-se na secretária.

Valentim não dormiu nessa noite.

Leandro deitou-se tarde.

V

Quando no dia seguinte Valentim foi ver Helena, esta contou-lhe a conversa que tivera com o Leandro; disse-lhe que o médico aprovava o amor deles e desejava que fossem felizes.

— Alegrou-se com a notícia? perguntou Valentim.

— Parece. Desconfias que não gosta?

— Não; mas pergunto.

— Eu creio que ficou muito contente. Ele é tão bom para todos!

— É!

— Que tens tu?

— Nada.

— Pareces triste?

— Qual! estou um pouco doente.

— De quê?

— Dói-me o peito.

A doença do peito veio aqui como uma saída de homem que não tem outra. Helena magoou-se um pouco com a doença do amante; mas este tranqüilizou-a dizendo que era coisa passageira.

Dois dias correram depois deste diálogo; Valentim não deu a entender que tristezas o aborreciam nem as causas delas. Procurava ser alegre, o que consolava a sentimental Helena. Um belo dia, porém, Valentim comunicou à amante o projeto que tinha de fazer uma viagem a S. Paulo, a qual era necessária para ir visitar uma tia.

Helena não viu a necessidade de visitar essa tia, e da mesma opinião foi Leandro; mas insistindo Valentim, foi preciso deixá-lo seguir conforme pedia.

Dias depois embarcava.

Não escondamos o egoísmo de Leandro; apesar de pai, estimou a partida do filho; pareceu-lhe que a ausência podia influir no sentido de dissuadir os dois namorados.

É coisa corrente que o amor é sempre mais forte em certas idades já incompatíveis com ele. Eu não creio que seja mais forte; é mais notado, isso sim; e algumas vezes mais ridículo.

Vendo partir o filho, Leandro perdera a tristeza que se apoderara dele nos últimos dias. Recomendou ao filho que não contrariasse a tia, e disse-lhe isso por contar que a sra. D. Ana das Dores, sua cunhada, desejaria guardar consigo o mais que pudesse o digno rapaz.

Ficando senhor do terreno, Leandro tratou de obter vantagens que reconhecia de difícil alcance. Logo nos primeiros passos, reconheceu a singularidade da sua posição. A menor palavra de afeto dita por ele era ouvida com infantil interesse por Helena, que a ouvia como de um pai.

Esta situação humilhou o médico.

O capitão era do mesmo sentir da filha. Não poucas vezes encetava com o amigo uma conversa deste gênero:

— Quando casarmos os nossos pequenos, dizia ele.

— Sim... quando...

— Havemos de fazer uma festa, sim?

— Acho que sim.

Tudo isto contribuía para que Leandro desistisse de lutar com o filho no coração de uma menina que já o amava como pai.

Mas Leandro, aliás homem de juízo e reto quando dispunha de si, era um perfeito doido agora que o dominava um sentimento mais forte.

Demorava-se longas horas em casa de Morais; conversava com Helena; encaminhava a conversa, quanto podia, para o caminho do seu coração. Mas nem as suas demoras, nem as suas conversas inspiravam desconfiança; todos viam nele o sogro de Helena.

Esta situação contrariava-o.

Leandro não reparava que isso mesmo era a conseqüência natural da situação esquerda em que se colocara depois de saber que o filho amava Helena.

Um homem apaixonado não repara em coisa nenhuma.

VI

Estavam as coisas neste pé quando Leandro recebeu uma carta de Valentim, dizendo-lhe que era obrigado a demorar-se mais um mês em S. Paulo.

Quando Helena soube disto ficou triste.

— Descansa, menina, dizia-lhe o médico, é só um mês; daqui a um mês ele cá está.

— E acha pouco? perguntava Helena.

— Nem muito nem pouco; é um mês.

— Deixa-te de explicações, interrompeu Morais; estas meninas são exigentes sempre com os namorados. Não é assim, Helena?

Helena sorriu arrufada.

— Eu explico tudo, disse Leandro; o que elas têm é medo de que alguma rival apareça pela frente.

— Oh! isso não! exclamou Helena.

— Bravo! que confiança! disse o capitão indo buscar o tabuleiro do gamão; Leandro, agradece em nome de teu filho.

Leandro já começava a abrir um sorriso para Helena quando viu o tabuleiro fatal; o sorriso converteu-se em suspiro.

— Confiança, tenho, disse Helena; ele não é capaz de enganar-me. Creio nele como em mim mesma.

O capitão tirara de um saco de chita as tábuas do gamão e começava a dispô-las no tabuleiro, quando vieram dizer que um homem de fora desejava falar-lhe.

Saiu para ir ver quem era.

Ficando só com Helena, o médico procurou tranqüilizá-la a respeito do filho; e ao mesmo tempo perguntava-lhe se, visto a confiança que lhe tinha, viesse Valentim a enganá-la, que resolução tomaria.

— Não sei, respondeu Helena; creio que a morte...

— A morte? perguntou Leandro; eu não creio na morte por amor... A menina consolava-se como outras se tem consolado. Esqueceria um ingrato nos braços de um homem que a amaria deveras.

— Não creio!

A conversa continuou; mas não deu de si nenhuma idéia nova.

No fim de vinte minutos voltou Morais.

Vinha um pouco acabrunhado. Leandro reparou nisso e perguntou-lhe que tinha. O capitão respondeu que nada; mas como continuasse triste, Leandro disse-lhe alegremente:

— Vamos ao gamão!

Nem isto arrancou o capitão à tristeza que o abatia. O sintoma era tão evidente, que Helena ficou convencida de que alguma coisa havia de gravidade naquele momento.

Interrogou-o com a ternura que sempre empregava em relação ao pai. Morais confessou que se tratava de um antigo credor que depois de alguns anos vinha exigir o pagamento de uma dívida avultada.

Helena ficou triste.

Depois de algum silêncio, Leandro disse para Morais:

— Homem, eu ainda tenho alguma coisa; se chegar é para pagar ao teu credor. Não te aflijas por coisas que não valem a pena. Creio que não pode ser muita coisa; e ainda que seja, eu tenho amigos. Vamos lá; alegra-te e deixa-te de tristezas...

— Não! não devo abusar!

— Qual abusar, nem meio abusar! É o que faltava! havia eu de ser teu amigo em dias de bonança, e voltar as costas nos dias da adversidade! Isso é bom para os amigos vulgares. Eu não...

Por honra de Leandro, devemos dizer que dizendo isto e fazendo esta oferta ao amigo, não se lembrara de Helena. Era sincero.

O capitão compreendeu o que havia de delicado na oferta do médico, e não recusou mais. A sua resposta foi apertar as mãos ao amigo.

— Logo me dirás quanto é, disse Leandro para terminar a conversa.

— Sim, respondeu Morais; vamos ao gamão.

O médico não contava com o desenlace; devia contar porque era a idéia dominante do capitão.

Helena antes que o médico tomasse lugar à mesa, apertou-lhe a mão, murmurando:

— Obrigado!

Leandro estremeceu sentindo o contacto e ouvindo a voz de Helena. Abriu-se-lhe nos lábios um sorriso, e foi jogar com o capitão, que já estava de copo em punho.

VII

Foi paga integralmente a dívida de Morais que não andava por grande coisa, posto assim o parecesse ao capitão, cujos haveres eram nenhuns.

Este fato estreitou mais, se era possível, a amizade dos dois pais.

Os dias correram lentos para Helena que esperava o amante. Mas justamente no fim do tempo apareceu outra carta de Valentim dizendo ao pai que ainda por lá se demoraria. De Helena não dizia palavra. No fim da carta perguntava-lhe, amigavelmente, se, tendo encontrado em S. Paulo uma moça que agradou, consentia o pai no casamento dele.

O primeiro movimento de Leandro foi de alegria; o tal casamento vinha perfeitamente a propósito. Casado o rapaz, ficava o campo livre. Mas Leandro refletiu depois e lembrou-se de que, sendo ele senhor do segredo dos dois, por confidência de Helena, cumpria-lhe fazer algum esforço, ainda que aparente, para desfazer o projeto de casamento em S. Paulo.

Não quis porém fazê-lo sem comunicar a Helena o conteúdo da carta do filho.

— Que diz ele? perguntou Helena a Leandro quando este disse ter recebido carta de Valentim. Quando volta?

— Não sei, respondeu Leandro.

— Pois ele não lhe fala nisso? perguntou Helena cada vez mais ansiosa.

— Não; nem fala em ti. Isto de rapazes, são os mesmos; aquele é meu filho e eu não deixo de acusá-lo porque merece. O que eu creio é que o pequeno achou por lá alguma coisa que o distraiu... algum namoro...

— Isso, não! respondeu Helena.

— No entanto, é possível... Os rapazes não são seguros; dois olhos fazem esquecer outros dois com a mesma facilidade com que o dia de hoje faz esquecer o de ontem, e o de amanhã fará esquecer o de hoje.

— A mim, o que me espanta é não marcar dia da chegada. Dar-se-á que venha sem ser esperado?

Leandro abanou a cabeça.

Helena fitou o médico; depois faiscaram os olhos como se alguma idéia surgisse; sorriu alegremente e disse:

— Adivinhei!

— O quê?

— Valentim já chegou.

— Quando?

— Hoje.

— Hoje, não; nem amanhã, nem sei quando...

— O doutor quer enganar-me; ele está aí... Mostre-me a carta dele. Só vendo acreditarei.

Leandro tirou a carta do bolso e entregou-a à moça; foi esquecimento ou propósito o de dar a carta em que Valentim falava de um casamento? Não estou informado a este respeito; mas o certo é que entregou a carta.

Helena abriu-a, e leu as primeiras linhas.

— É isso, é, respondeu ela tristemente.

E ia dobrando a carta para restituí-la ao médico, quando os olhos caíram por acaso numa frase que indicava o casamento. Abriu outra vez a carta, leu-a com febril agitação, deu um grito e caiu.

Acudiu a preta que a servia, e o pai que se achava na sala de jantar.

Conduzida para o quarto, Helena recebeu os primeiros cuidados médicos de Leandro, que nessa noite não dormiu e achou conveniente velar pela doente.

O capitão acompanhou-o nesse ato.

Só no dia seguinte é que Helena voltou a si; Leandro não a achava ainda fora de perigo; começou um tratamento rigorosíssimo.

VIII

Poucos dias depois, começara a convalescença de Helena, quando Leandro recebeu uma carta da tia de Valentim, dizendo-lhe que não compreendia o rapaz — porque passava os dias a chorar e não se queria ir embora.

Será alguma paixão? perguntava a tia.

Leandro releu a carta sem compreender; por que motivo Valentim deixara a corte nas vésperas do casamento e ia chorar na província deixando a felicidade cá?

Não podia atinar com o mistério.

No entanto, resolveu escrever ao filho, ordenando-lhe que viesse imediatamente para a corte.

A carta partiu de manhã.

A noite, estando no gabinete a pensar no mistério de Valentim, pegou no retrato de Helena.

Lembrou-lhe repentinamente o grito que ouvira quando uma noite estava na mesma posição contemplando a efígie da moça.

Compreendeu tudo.

Num só momento a alma de Leandro sofreu uma revolução; envergonhou-se de ter obstado assim à felicidade do filho; envergonhou-se do sacrifício espontâneo de Valentim; e todo o amor que sentia pela filha do capitão converteu-se em afetos paternais.

Leandro esperou ansiosamente o filho. No entanto, tratou de tranqüilizar a moça, dizendo-lhe que a história do casamento era uma invenção para pôr à prova o amor dela.

— Não precisava isso, disse Helena.

Helena foi-se restabelecendo.

Dez dias depois chegou Valentim.

— Aqui estou! disse ele depois dos primeiros abraços. Que me quer meu pai?

— Quero que te cases com Helena que está à tua espera.

— Mas eu falei-lhe noutro amor...

— Eu mando!

Valentim olhou espantado para Leandro. Compreenderia? Não sei: o que todos sabem é que dois meses depois estavam casados e um ano depois Leandro e Morais esqueciam o gamão para brincar com o primeiro neto.

O qual neto não foi o último.