Naquela hora de superexcitação nervosa, tarde na noite nevoenta em que os ventos lugubremente grasnavam, rondando, rondando, Maurício entrou agitado da rua...
Via-se bem, pela lividez espectral do seu rosto, os tumultos sinistros que trazia consigo.
Com o cérebro escaldando, numa temperatura mental inconcebível, parecia que alguma cousa dentro do seu ser estava sendo guilhotinada e que grandes, caudalosas torrentes de sangue vivo, quente, o alagavam interiormente, deixando-o exangue, desfalecido...
Era, na verdade, um aspecto extravagante o desse cardíaco lascivo, desse neurastênico que o álcool andava aos poucos devastando e povoando já das suas visões trementes e delirantes, lá do fundo absíntico das impenitentes boêmias; desse sombrio e ferrenho misantropo fechado ao alto da sua velha torre torva de melancolia, sentindo em torno o mundo, grosso mar vasto, ululando deprecações...
Cabelos em desalinho, olhos estupefatos, boca num espasmo de angústia, mãos convulsas e avelhantadas, braços tateando o ar como garras, pernas trêmulas, tudo naquela desgraçada matéria determinava uma vulcanização muito íntima, um desespero muito particular, talvez o desmoronamento absoluto.
Era o lance cruel de uma dessas vidas despedaçadas, dilaceradas, sem centros harmônicos de um objetivo ideal, sem pontos de apoio, girando fora das órbitas da unidade dos sentidos e que vagam, de um a outro extremo da alma, de um ao outro pólo do ser, sem uma luzerna, sem um santelmo, sem Refúgios interiores, quase o vácuo de si próprias, batidas por um frio sinistro de desolação, sob a lei inexorável, horrível, dos desequilíbrios e degenerescências. Demônios mórbidos, fatais, arremessados à terra para cobri-la, como de um luto de peste, do sentimento negro, perverso, infernal, do aniquilamento e das culpas.
Qualquer cousa de curioso, de secreto, dava-se, sem dúvida, no fundo dessa excepcional natureza que a noite tanto e tão intensamente carregara dos seus esparsos fluidos misteriosos.
Apenas mergulhado no aposento, triste tugúrio abandonado e frio, acendeu logo, com a mão febril, nervosamente, a pequena lâmpada que pousava sobre um velho móvel querido que ali jazia como a recordação de vagos e inolvidáveis tempos...
Assim que a luz coou em torno a sua tíbia claridade amarelenta, Maurício aproximou-se da luz, sôfrego, a fronte em suor, numa ansiedade muda.
Em sobressaltos, inquieto, palpitando, nervoso, cada vez mais nervoso, uma agitação contínua na pupila, quase num delírio, arrastado por curiosidade torturante e ao mesmo tempo por medo avassalador, chegou uma das mãos à luz, aproximou-a da luz, aproximou-a mais da luz, quase a fazendo arder, crepitar, estalar na chama da luz, inquiriu mentalmente toda a palma da mão, o cabalístico M letal, as unhas, uma por uma as falanges, novamente a palma da mão, examinou-a, palpou-a, analisou-a longamente, demoradamente, com movimentos singulares de sonâmbulo e de mago, conservando no rosto tal expressão horrível, tal expressão transfigurada que não era mais deste mundo...
E ele olhava e tornava a olhar para a mão, a perscrutá-la bem, detendo-se em cada linha, em cada traço da mão, como sob impressão magnética.
— Mas, não, não! dizia, arrepiando o lábio num velado sorriso contrafeito, macabro. Não! Eu vi! Eu vi! Eu bem lhe fui acompanhando a gradação, o vulto que fazia aqui em toda a mão; a princípio ténue, leve, pequena; depois grande, densa e negra, enchendo a mão toda pavorosamente, reptilmente rastejando, pondo-me calafrios tremendos na espinha. Sim! Eu bem a vi, aqui, aqui, persistente, entranhada, a horrível nódoa negra, manchando-me a mão toda, não sei como, não sei donde mandada.
E os outros que lá estavam também como eu no cabaré, na sua hora d'álcool, sentiram-me a obsessão e riram e perguntaram se eu não estaria louco, se não era de fato um demente.
Mas eu ouvi e nada lhes disse, nada lhes respondi porque eu bem via, bem estava vendo a nódoa tomar-me pouco a pouco conta de toda a mão, alastrar-se por ela, negra, em breves momentos. Eu bem a vi! E o que importava o desdém ou a indiferença dos outros, o ridículo que os outros me lançassem, se só eu a via, só eu! unicamente eu percebia que ela cá estava, funda, intensa, sem que eu a pudesse extinguir, fazê-la desaparecer para sempre. Sim! Ela cá estava! Senti então de repente um pavor maior lembrando-me se ela me tomasse o corpo todo, me subisse pelo tronco, me manchasse o rosto, envolvendo-me tenebrosamente na sua oleosa baba negra. E assim pensando parecia-me estar já avassalado por ela, que me cobria como de um manto fúnebre.
E nesta sugestão doentia, numa extraordinária vibração de nervos, que titilavam de horror, voei pelas ruas em busca de repouso em meu triste aposento, pois era tão forte a obsessão, tão violenta, punha-me em tal estado, que até julguei, com essa infantilidade ingênua que nos transfigura nas íntimas e esmagadoras aflições, que desapareceria aquela nódoa lúgubre logo que eu estivesse tranqüilamente repousado.
Sim! este meu triste, generoso e leal aposento que com tanto e tanto carinho me acolhe sempre na hora do meu grande abandono, dos meus extremos desfalecimentos, saberia condensar todas as suas diluentas amarguras, todas as suas queixas secretas, todas as suas mágoas esparsas, dar-lhes corpo, dar-lhes vida e alma para, consolando-me, trazer calma piedosa a esta minha agitação profunda.
Com efeito, agora, olho e torno a olhar, para a mão e nada encontro nela, nada do que eu vi, porque eu vi! Não encontro mais a nódoa, não está cá. Olho e torno a olhar, reparo, observo bem tudo e não encontro, não vejo mais a nódoa...
E não a vejo, mesmo, por mais que examine, em nenhuma das mãos! Ah! respiro! Não a vejo em nenhuma das mãos! Respiro, enfim! Que alívio! Que alívio supremo!
Foi, sem dúvida, foi loucura minha, neblinoso torpor de embriaguez, visão, sombra, pesadelo de momentos. Tinham razão os outros em rir... Foi simples loucura minha, simples loucura minha, simples loucura minha!
Entretanto, como se uma diabólica força oculta no seu pobre cérebro demente insistisse, agisse dentro dele com perversa e feroz tenacidade calculada, fisgando-lhe as arestas cruas e agudas de cerrada argumentação casuística, mas em certos planos, de certo modo, irrefutável, Maurício colocou-se diante de um espelho oval que havia no aposento, e mirou-se bem nele, com atenção, com minúcia.
Como que queria reconhecer-se, como que acreditava ter perdido a legitimidade do seu ser, terem reaparecido, por um desses incompreensíveis fenômenos nervosos, a perfeita identidade das suas feições, as linhas do seu semblante, da sua natureza, e com elas a sua própria sensibilidade.
Mas, não! Ele ali estava, vendo-se apenas tão desfigurado, tão abatido, com esse aspecto vago, ignoto, retrospectivamente antigo, de quem já além viveu... Quase se desconhecia! Não era mais o intrépido, o afouto Maurício de outrora, que a bravura de sentimentos bizarros iluminava de esplendor e força. Não era mais o adolescente, amado desse amor frívolo da mundanal mocidade, e cuja alma engrinaldava-se de rosas, esmaltava-se d'estrelas, vibrava de canções e cânticos, na frescura e no azul matinal de um idílio que lhe parecia eterno. Não era mais esse Maurício que através dos longos rumos do tempo se perdera e desaparecera...
Era agora um outro Maurício, todo vivamente abalado, é certo, por inquietos sonhos de indefinível ansiedade, mas por isso mesmo acabando, findando já para tudo.
Na encruzilhada dos caminhos que percorrera, ele, embevecido, perplexo, como que divulgava, pela curiosa, desoladora e irônica sugestão do espelho, duas nobres figuras de inefável expressão contemplativa que se enlaçavam num amplexo enlevativo e saudoso de idolatrados sentimentos velhos, surgindo das brumas álgidas do Esquecimento.
Uma dessas figuras o olhava, atenta, nova e cariciosamente risonha, na meiguice mais cândida, a cabeça loira pendida numa atitude de enternecimento supremo.
Igualmente o olhava a outra, subjugada pela febre devoradora do desespero, curvada de anos, por entre rugas e soluços... E ambas essas figuras evocativas se enlaçavam, emocionalmente se enlaçavam, do fundo sombrio e longínquo daquele espelho, no abraço extremo, profundo, infinito, como que fundidas na mesma apaixonada e embriagada convulsão da Vida...
E, então, por uma esquisita afinidade de pensamento, como se por acaso mais essa outra obsessão da identidade perdida desnaturasse o rumo lógico do seu raciocínio, esclarecendo, mesmo por esse fato e com igual irrefutabilidade, o fenômeno da nódoa que o perseguia, Maurício espalmou diante do espelho ambas as mãos, certificando-se de tudo, pois até quase lhe parecera, na agonia cruciante daquelas implacáveis conjeturas psíquicas e por lenta compreensibilidade nebulosa, labiríntica do cérebro, mesmo por certa infantilidade demente, que o espelho, refletindo assim sobre o seu busto, desnevoaria, arrancaria mais depressa toda a fatal verdade sobre a nódoa do que apenas a simples chama dúbia e amarelenta da doce luz da lâmpada.
E o espelho, no seu fundo glacial de boca turva, crespusculada, de poço; cova de névoas e treva de onde naquela hora se desenterravam todos os seus Afetos; alma de cristal onde um delicado sentimento de esquecimento e de saudade parecia estar diluído; o espelho, naquela alta hora noturna dormente e sonolentamente mergulhado na doce luz amarelentada, da lâmpada, lembrava brumoso vale de lágrimas aureolado de luar...
E Maurício revia-se no espelho, consultava-o, analisava, comentava, analisava os próprios reflexos e mutismo do espelho; feria a fina corda vibrátil dos seus nervos, dos seus sentidos de desequilibrado, de impotente, monologava com eles, e esse exame tão detalhado, tão minudente, tão penetrante, dava-lhe certa atração doentia, certa volúpia martirizante, certa lascívia de angústia.
Mas, nada. Mesmo ante o espelho ele não distinguia nada nas mãos, nem no rosto, nem em parte alguma do corpo. Estava salvo, efetivamente estava salvo do caprichoso e funesto abalo que o sacudira e gelara! Estava salvo! Estava salvo!
Nisto, de repente, como se com aquelas argüições e investigações mentais tivesse despertado, provocado violentamente o Mistério, rasgado os profundos véus translúcidos e transcendentes do Mistério, ei-lo que agora fixa demoradamente os olhos na mão esquerda e, recuando como um fantasma até à outra extremidade do aposento, solta este grito surdo.
— Ah! a nódoa!
Então, a visão que ele teve nesse momento, foi tremenda. Recuado até ao fundo da parede, o tronco vergado, a cabeça vencida, na expressão dos supremos aniquilamentos, os braços desalentados, os olhos acesos numa fosforescência e parados numa imobilidade persistente de olho de ciclope, a boca escumando todo o horror até ali concentrado, dolorosamente vivido naquele organismo, encolhido como um fardo humano, na atitude de um animal acuado, Maurício estava medonho.
Sentia que a nódoa da mão já lhe tomava um braço todo, depois outro, que lhe envolvia o peito e o ventre, que lhe descia às pernas e aos pés e que subia fatalmente, numa inexorabilidade terrível, numa avassalação desolante de peste, pelo rosto, como langue lesma negra, viscosa e envenenada lagarta de pauis apodrecidos, nódoa que até lhe amortalhava os olhos, que o tornava irremediavelmente cego. E por todo ele era só aquela nódoa, aquela nódoa, aquela flageladora nódoa a crescer implacavelmente. Nódoa que mesmo lhe sufocava a garganta para os gemidos e para os gritos, lhe tirava o olfato, lhe roubava os movimentos, o paralisava e gelava todo e o arremessava agora ali, mudo, para um canto, como uma cousa inútil, num semi-idiotismo esquisito, numa lividez mortal, rangendo os dentes e olhando o vácuo, pasmosamente olhando o vácuo...
E, assim encolhido, atirado a um canto, as feições já invadidas de súbita e precoce senilidade, dentes rigidamente cerrados, olhos muito abertos vidrados do espanto, do terror singular concentrado no fundo devastado das órbitas, Maurício foi encontrado morto, devorado pela sensacional obsessão delirante daquela estranha nódoa que, no entanto, sem que ele soubesse ou pudesse determinar nitidamente no cérebro alucinado, era a profunda, a incoercível, a grande nódoa negra simbólica da sua própria vida.