A saga de Apsû no Enūma eliš

A saga de Apsû no Enūma eliš (tradução e comentários)


The Apsu Saga in the Enūma Eliš (Translation and Comments)


Jacyntho Lins Brandão
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, Minas Gerais / Brasil
jlinsbrandao@ufmg.br


Resumo: O trabalho apresenta uma tradução com comentários dos primeiros setenta e oito versos do Enūma eliš, em que, a par da linha genealógica que vai de Apsu-Tiámat até Ea, relata-se o modo como este último venceu o primeiro dos deuses.

Palavras-chave: Enuma elish; Cosmogonia babilônica; Teogonia babilônica.


Abstract: This paper presents a translation with comments of the first seventy-eight verses of the Enūma Eliš, in which, along with the genealogical line that goes from Apsu-Tiámat to Ea, it is reported how the latter overcame the first of the gods.

Keywords: Enuma Elish; Babylonian Cosmogony; Babylonian Theogony.


Enūma eliš (“Quando no alto”) são as palavras iniciais do poema babilônico que aqui se traduz, bem como o título da obra, como é usual nas culturas antigas do Oriente Médio. Ele foi conservado em tabuinhas de argila de procedência babilônica e assíria, escritas em duas colunas, distribuindo-se por sete tabuinhas que contêm entre 132 e 168 versos. Os manuscritos assírios somam oitenta e seis testemunhos, tendo sido descobertos em escavações levadas a cabo em Assur (25 tabuinhas ou fragmentos), Sultantepe (13), Nimrod (2) e Nínive (46) – estas últimas tendo pertencido à biblioteca de Assurbanípal (685-628 a. C.), descoberta em 1849 pela expedição arqueológica liderada por Austen Henry Layard, na cidade atual de Mossul, no Iraque. Os manuscritos babilônicos, em número de noventa e cinco, têm procedência incerta, salvo sete exceções (tabuinhas encontradas em Kish, Úruk, Síppar e Tell Hadad), sendo do período neobabilônico (626-539 a. C.) ou mesmo da época persa (séc. VI-IV a. C.).[1] Sete das tabuinhas encontradas em Assur são as mais antigas de que se tem conhecimento, datando da primeira metade do século IX a. C.[2] Mesmo que essa documentação seja do primeiro milênio, acredita-se que o poema tenha sido composto em torno de dois séculos antes, depois da conquista de Elam pelo rei Nebucadnezar (1125-1104 a. C.), provavelmente para celebrar essa vitória e a glória do deus de Babilônia, Márduk.[3]

Em linhas gerais, esses são os marcos cronológicos da história antiga do Enūma eliš, que, deixando de circular quando a escrita cuneiforme foi inteiramente abandonada e esquecida, nos albores da era cristã, permaneceu dois milênios literalmente enterrado sob a areia dos desertos do Iraque, até as descobertas de Layard, que permitiram que pudesse voltar a ser lido. A data do início da história moderna do poema é 1876, quando vem à luz, em Nova York, o livro intitulado The Chaldean Account of Genesis, da autoria de George Smith, o mesmo assiriólogo britânico que em 1872, havia dado a conhecer, também pela primeira vez, o relato do dilúvio presente em Ele que o abismo viu, a chamada epopeia de Gilgámesh.[4] Da mesma forma que com relação ao dilúvio, chamava a atenção de Smith e de seus contemporâneos a semelhança de aspectos do Enūma eliš – em especial as águas primordiais – com a narrativa do Gênesis bíblico, isso estando suficientemente ressaltado no título por ele dado ao poema: O relato caldeu da gênese.

Quatorze anos mais tarde, em 1890, Peter Jensen publica, por sua vez, em Strasbourg, uma tradução para o alemão, com transliteração do texto e comentários, em Die Kosmologie der Babylonier (A cosmologia dos babilônios), a que se seguem trabalhos devidos a outros acadêmicos também alemães, nomeadamente Heinrich Zimmer (Göttingen, 1895), Friedrich Delitzsch (Leipzig, 1896) e Peter Jensen (Berlim, 1900). Em 1902, o poema volta a ser traduzido para o inglês no livro de L. W. King intitulado The Seven Tables of Creation (As sete tábuas da criação), publicado em Londres em dois volumes – o primeiro com a transliteração, a tradução e comentários, o segundo com a reprodução das tabuinhas em cuneiforme, às quais se ajuntam novos fragmentos identificados pelo autor. Nas primeiras quatro décadas do século XX, mais três traduções para o alemão foram lançadas, além de outras três para o inglês,[5] a que se somaram a primeira para o italiano (G. Furlani, Il poema della creazione, Bologna, 1934) e a primeira para o francês (René Labat, Le poème babylonien de la création, Paris, 1935).

De então até o início do terceiro milênio, mesmo que tenham surgido traduções para várias línguas, na sua maior parte feitas a partir daquelas para o inglês e o francês, nada de importante aconteceu com relação ao conhecimento do texto acádio. Essa situação muda em 2005, quando Philippe Talon publicou The Standard Babylonian Creation Myth Enūma eliš, com introdução, texto cuneiforme, transliteração, lista de signos, tradução para o francês e glossário, volume que integra a coleção “State Archives of Assyria Cuneiform Texts”, da Universidade de Helsinki. Em 2012, apareceu o volume Das babylonische Weltschöpfungsepos Enūma eliš, da autoria de T. R. Kämmerer e L. A. Metzler, parte da série “Alter Orient und Altes Testament”, publicada pela Universidade de Münster. Em 2013, a editora Eisenbrauns, de Winona Lake, lançou o monumental Babylonian creation myths, obra póstuma de Wilfred G. Lambert, com o texto acádio transliterado e tradução para o inglês, acompanhados dos comentários antigos do poema, também em acádio e em tradução, ao que se somam extensos estudos sobre aspectos importantes da obra, posta em confronto com ampla documentação cosmogônica e mitológica suméria e acádia. Assim, pode-se dizer que a tarefa mais que secular de edição crítica do poema está feita, o texto com que se conta hoje sendo bastante completo e restando apenas algumas poucas passagens lacunares, especialmente na tabuinha 5.[6]

Este trabalho tem como objetivo não mais que oferecer uma tradução e comentários ao primeiro episódio do poema, que poderíamos chamar de “A saga de Apsu”. A edição crítica que sigo é a de Lambert (2013). Na tradução, os espaços no interior da maior parte dos versos correspondem à marcação de hemistíquios no texto cuneiforme, conforme indicado na mesma edição. Adoto ainda de Lambert a organização em dísticos, que me parece responder bem ao ritmo semântico e fonológico do poema. Os comentários referem-se tanto a aspectos de conteúdo e estilo, quanto a soluções de tradução por mim adotadas.

ENŪMA ELIŠ

(QUANDO NO ALTO)


Tabuinha 1


[1] Quando no altonão nomeado o firmamento,
Embaixo o solopor nome não chamado,

Apsu, o primeiro, gerador deles,
Matriz Tiámat,procriadora deles todos

[5] Suas águas como um só misturaram,
E prado não enredavam,junco não aglomeravam.

Quando dos deusesnão surgira algum,
Por nomes não se chamavam,destinos não decretavam,

Engendraram-se deuses em seu interior:
[10] Láhmu e Láhamu surgiram,por nomes chamados.

Enquanto cresciam, avultavam-se,
Ánshar e Kishar foram engendrados,sobre eles se avantajavam.

Alongaram-se os dias,somaram-se os anos,
Ánu foi deles primogênito,igual a seus pais,

[15] Ánshar em Ánu,seu rebento, refletia-se,
E Ánu, tal seu reflexo, procriou Nudimmud.

Nudímmud, a seus pais,era quem dominava, ele,
De todo agudo, sagaz,em força robusto,

Vigorosíssimo, maisque o procriador de seu pai, Ánshar,
[20] Não tinha igual entre os deuses, seus irmãos.

E associaram-se então os irmãos, os deuses,
Perturbaram e seu alarido irradiava-se.

E disturbaram de Tiámat as entranhas,
Com algazarra durano interior do Anduruna.

[25] Não reduzia Apsu o seu bramido
E Tiámat emudecia em face deles.

Acerba sim sua ação diante dela:
Não sendo boa sua conduta, a eles resguardava.

Então Apsu,gerador dos grandes deuses,
[30] Conclamou Múmmu,seu intendente, e disse-lhe:

Múmmu, intendente,bom para meu ânimo,
Vem! junto de Tiámat vamos!

E foram, diante de Tiámat sentaram-se,
Com palavras ponderaramsobre os deuses, seus rebentos.

[35] Apsu sua boca abriu
E a Tiámat ruidoso disse:

É sim molesta sua conduta para mim:
De dia não repouso,de noite não durmo;

Destrua-se sua conduta, seja dispersa!
[40] Silêncio se façae durmamos nós!

Tiámat isso quando ouviu,
Encolerizou-se e clamou contra seu consorte,

Clamou assim apenada,enraivecida ela só —
Maldade lançara ele em suas entranhas:

[45] Por que nóso que engendramos destruiríamos?
Sua conduta é molesta?Suportemos benignos!

Retrucou Múmmu,a Apsu aconselhou,
De intendente insubmissoo conselho de seu Múmmu:

Destrói sim, meu pai,a conduta perturbadora,
[50] De dia repouses,de noite durmas!

E alegrou-se Apsu,brilhou-lhe a face,
Pela maldade que tramoupara os deuses, seus filhos.

Múmmu abraçou-lhe a nuca,
Assentou-lhe nos joelhos,a ele beijou.

[55] O que tramaram em tal assembleia
Aos deuses, seus rebentos, repetiu-se.

E ouviram os deuses e desarvoravam-se,
Silêncio os tomou,calados sentaram-se.

Superiormente agudo,experto, capaz,
[60] Ea, em tudo sagaz,desvendou-lhes o plano,

E produziu todo o ardil, fê-lo firme.
Foi astucioso: superiorera seu encantamento puro.

E recitou-o, nas águas o fez repousar,
Sono nele inseminou,dormiu ele em paz,

[65] E fez dormir Apsudo sono nele inseminado.
(Múmmu, o mentor,extenuado atordoava-se.)

Desatou-lhe os tendões,arrebatou-lhe a coroa,
Sua aura tirou,em si revestiu-a,

E encadeou Apsu, matou-o.
[70] (Prendeu Múmmu,sobre ele pôs a tranca.)

Firmou sobre o Apsu sua morada.
(Capturou Múmmu,reteve-lhe a brida.)

Após os malvadosencadear, abater,
Ea ergueu-seem triunfo sobre seus adversários.

[75] No interior de sua residênciaem repouso sossegou,
E denominou-a Apsu,revelou seus santuários,

Naquele lugar sua câmara estabeleceu,
Ea e Dámkina, sua esposa,com grandeza assentaram-se.

COMENTÁRIOS

Versos 1-6: Os primeiros oito versos do poema são considerados por alguns intérpretes uma longa série de orações subordinadas temporais ("quando, no alto, não nomeado era o céu e, embaixo, a terra por nome não era chamada, quando Apsu, o primeiro, progenitor deles, e genetriz Tiámat, procriadora deles todos, suas águas juntos misturavam, quando prado não se formava e junco não se estendia, e quando dos deuses não manifesto era algum, por nome não chamados, os fados não fixados..."), cuja principal se encontraria apenas no verso 9: "então criaram-se deuses em seu seio".

Haubold propõe um entendimento diferente, que é o que adoto, por considerá-lo mais pertinente para o que se lê: a) os versos 1-2 constituiriam uma breve subordinada temporal (“quando, no alto, não era nomeado o céu, embaixo, a terra por nome não era chamada”), a que se segue a oração principal, com um longo sujeito composto (“Apsu, o primeiro, progenitor deles, Matriz Tiámat, procriadora deles todos, suas águas juntos misturavam”, v. 3-5) e uma adversativa (“mas prado não enredavam, junco não amontoavam”, v. 6); b) segue-se nova frase, composta por oração temporal (“quando, dos deuses, não manifesto era algum, e por nome não se chamavam nem fados não fixavam”, v. 7-8) e nova principal (“então criaram-se deuses em seu seio”); cf. Haubold, 2017, p. 224-227; esse é também o entendimento de George, 2016, p. 19.

Tal opção, mais atenta ao sentido das formas verbais estativas que se usam na passagem, tem a vantagem de distinguir as duas situações que se expõem, bem marcadas pelo uso da conjunção enūma (quando): a) quando Apsu e Tiámat mesclavam suas águas, estavam tão entregues a si que isso os impedia de fazer surgir prados e juncos (v. 1-6); b) quando os deuses não se tinham manifestado, não tinham nomes nem fados fixados, então surgiram eles no seio de Apsu-Tiámat (7-9). Não há dúvida de que é a este último movimento – o surgimento dos deuses – que todo trecho visa, mas a situação inicial é exposta em duas etapas, a primeira de caráter cosmológico, a segunda de ordem teológica, dois aspectos importantes do poema, que não pode ser reduzido a apenas uma cosmogonia, tampouco a simples teogonia – tanto que Apsu e Tiámat se apresentam como deuses, com personalidade própria, bem como enquanto os elementos de que se formará o mundo, numa conjunção complexa.

Nos versos iniciais, o que mais ressalta é a repetição enfática do advérbio de negação (não), condizente com a apresentação do que antecede os primeiros movimentos cosmogônicos. Note-se que não se trata de criação ex nihilo (a partir do nada), ideia que parece estranha à maior parte das cosmogonias da zona de convergência do Mediterrâneo oriental, incluindo a bíblica (cf. BOTTÉRO, 1993, p. 165167). Para George, “os habitantes da Mesopotamia antiga, em inadvertida conformidade com a física moderna, criam que nada pode vir do nada. Tem de haver algo desde o princípio” (George, 2016, p. 12). A forma, contudo, de falar do que antecede a cosmogonia propriamente dita só se diz no negativo: antes de haver nomes para céu e terra, antes de haver separação das águas, antes de haver pastagem e pântanos, antes de haver deuses com seus nomes e fados. Condizente com as necessidades de expressão do estado inicial, a maior parte dos versos prescinde de verbos ou usam-nos na forma estativa (que expressa estados).

O modo como se insiste na ausência de nomeação – para o céu, a terra e os deuses – responde a uma coalescência entre nome e existência. Para López-Ruiz, de uma perspectiva comparatista, o que caracteriza o estado pré-cosmogônico no Enūma eliš é justamente essa:

ausência de nomes, que implica em ausência de linguagem e, assim, por extensão, ausência de pessoas ou deuses que articulem uma linguagem. A ideia de ‘criação por nomeação’, que reverberará no Gênesis 1 [da Bíblia hebraica], está também presente na cosmogonia egípcia, especialmente na teologia menfita, em que Ptah traz o universo à existência ao nomear todas as coisas, usando seu coração e sua língua. Isso constitui uma ontologia (ou epistemologia) de pleno direito, segundo a qual coisas não existem antes de receber um nome. […] Observe-se também o contraste entre essa ausência inicial de nomes e a abundância de nomes de Márduk, cujos cinquenta nomes são recitados como a culminância do poema. Ele é não só o deus com mais nomes, mas também o principal criador, na segunda parte deste texto, que foi claramente elaborado para exaltá-lo. (LÓPEZ-RUIZ, 2012, p. 33)

Também para Foster “o poeta evidentemente considera a nomeação um ato de criação e uma explanação de algo já trazido à existência”, de tal modo que a “análise semântica e fonológica de nomes poderia levar ao entendimento das coisas nomeadas” (FOSTER, 1996, p. 351).

Esse aspecto foi inteiramente assumido por Lambert, que traduziu assim os dois primeiros versos: “When the heavens above did not exist,/And earth beneath had not come into being” (LAMBERT, 2013, p. 51), o que poderia, sem dúvida, ser tido como sobre-interpretação, em que a referência a nomes e ao nomear fica inteiramente eludida, ou seja, elude-se justamente aquilo que expressa a coalescência entre nome e ser, própria da cultura que produziu o texto.


Versos 1-2: A referência, nos versos 1-2, ao céu e à terra constitui um merismo, ou seja, referir-se às partes para dizer o todo (céu + terra = mundo), como também se faz no primeiro versículo do Gênesis hebraico ("No princípio criou Elohim o céu e a terra").


Traduzi šamāmu por "firmamento" por se tratar de palavra paroxítona (em acádio, os versos terminam geralmente em paroxítonas), bem como de termo poético derivado de šamû, "céu".


Hutter propõe que ammatu (v. 2), deva ser entendido e traduzido não como 'terra', mas como 'mundo inferior' (Unterwelt), considerando que na Teodiceia babilônica se procede à relação am-ma-tiš = ´kima` er-șe-tú (´como terra`), este último termo, erșetu, sendo corrente para designar o mundo subterrâneo (habitação dos mortos, cf. Hutter, 1985, p. 187-188). São dois os seus argumentos: a) na tabuinha 6 (v. 40, 44, 46, 60, 79), quando se diz que Márduk pôs os Anunákku e os Igígu "acima e abaixo", o que se afirma é que os pôs "no céu e no mundo inferior"; b) o par de deuses primordial (Urgöterpaar), Apsu-Tiámat, representa a totalidade do mundo ainda não organizado e, quando de sua separação, dá origem ao mundo subterrâneo (Apsu), à terra (feita por Márduk com a metade do corpo de Tiámat) e ao céu (a outra metade do corpo de Tiámat), o que implicaria que o merismo compreendido por šamāmū + ammatum (céu + terra) deveria corresponder aos três planos (céu-terra-subterrâneo ou céu-terra-apsu), o céu e o Unterwelt constituindo os dois extremos (também Foster, 1996, p. 353, traduz ammatu por "netherworld").

Contudo, deve-se recordar que o mundo inferior é correntemente nomeado, em sumério e acádio, por termos que significam também 'terra' —como o sumério 'kur' e o acádio erșetu (cf. HOROWITZ, 1998, p. 268-294). Como, todavia, ammatu não é um termo corrente para 'terra', optei, na tradução, por 'solo', considerando que a situação inicial é a da existência das águas (Apsu e Tiámat), sem que ainda houvesse uma camada sólida à vista (anote-se que, dos tradutores mais recentes, Lambert, Talon e Elli optam, respectivamente, por earth, terre e terra).

Ressalte-se a estrutura poeticamente elaborada deste primeiro dístico, em que os termos, em cada metade dos versos, se correspondem numa organização quiástica (em forma de X):

enūma
quando
Eliš
no alto
šapliš
em baixo
ammatum
o solo
lā nabû
não nomeado
šamāmū
o firmamento
šuma
por nome
lā zakrat
não chamado
a) em termos fonéticos e semânticos, eliš e šapliš no primeiro hemistíquio, bem como, no segundo, la nabû e la zakrat;
b) em termos apenas fonéticos, no primeiro hemistíquio enūma e ammatum, no segundo, šamāmu e šumma.


Já nestes versos encontramos um traço estilístico bastante peculiar do Enūma eliš: a abundância de sinônimos, que muitas vezes oferece dificuldades para a tradução. Da esfera de nome/nomear, usam-se três termos de raízes diferentes: o substantivo šuma, acusativo de šumu, 'nome'; e os verbos nabû (masculino da terceira pessoa do singular do conjuntivo do estativo do verbo nabû) e zakrat (feminino da terceira pessoa do singular do conjuntivo do estativo de zakāru), ambos com o sentido de 'nomear', 'dar nome', 'chamar'. Em português não são tantas as opções.


Versos 3-4: A mesma dificuldade de tradução volta a registrar-se nos versos 3-4, em que ocorrem três termos na esfera semântica de 'progenitor(a)': zārû, 'semente', 'sêmen', 'progenitor'; mu´allidat(u), particípio feminino de (w)alādu, 'dar à luz', 'gerar', 'engendrar'; mummû, um termo poético raro para 'mãe', 'genetriz' (ver comentário sobre este último abaixo).

Uma segunda questão é a quem se refere o possessivo šunu, 'deles', nos epítetos "gerador deles" (zārušun[u]), relativo a Apsu, e "procriadora da totalidade deles" (mu´allidat gimrišun[u]), a Tiámat. Em geral, interpreta-se que se trata dos deuses descendentes de Tiámat e Apsu, que é o primeiro (reštû). Contudo, em termos gramaticais, considerando-se o valor anafórico dos possessivos, seria de esperar que remetessem a algo ou alguém já dito, os únicos dois elementos até então nomeados sendo o firmamento (šamāmū) e o solo (ammatum). Assim, conforme George,

essa passagem afirma que, antes que houvesse céu e terra, existiam duas massas de água: 'Apsû (água do solo) e Tiamat (mar). Essas águas são, respectivamente, masculina e feminina, e identificadas como os pais do 'firmamento' e da 'superficie sólida'. Estes últimos são expressões literárias para 'céu e terra'. Assim, as mais antigas estruturas no universo, Firmamento e Terra, foram criação da água. (GEORGE, 2016, p. 19)

Como, todavia, o Enūma eliš é uma teogonia, as duas expressões — "gerador deles" (zārūšun[u]) e "procriadora da totalidade deles" (mu´allidat gimrišun[u]) – poderiam ser entendidas como antecipação do que será referido a partir de dois versos depois, os deuses que se criaram no "seio deles" (gerebšun[u]), como propõe Talon: "os versos 3-4 anunciam, pelos sufixos šun(u) a geração dos deuses. O leitor sabe que de Tiámat e de Apsu nascerão os deuses. Esses dois versos dirigem-se a ele" (TALON, 1992).

Apsû é o primeiro deus de que o poema narra a saga. O acádio Apsû é um empréstimo do sumério 'ab.zu' (= ZU.AB), que designa a massa de água doce que há sob a terra, donde procedem as fontes e os rios, termo composto de 'ab' ('aba'), 'lago', 'mar', e 'zu' ('sú'), 'sabedoria', 'conhecimento' (cf. o verbo 'zu', 'conhecer', 'entender', 'ensinar'). Trata-se da residência do deus Enki (em acádio Ea), especialmente relacionado com o conhecimento, de sua mãe, Nammu, de sua esposa, Damgalnuna (Dámkina), além de outras divindades que se encontram sob o governo do primeiro.

Apenas no Enūma eliš se apresenta Apsu como um deus que realiza ações antropomórficas, gerando filhos, arrependendo-se disso, desejando destruí-los e sendo vencido por um de seus descendentes. Desse ponto de vista, ele corresponde ao Céu (Ouranós) na Teogonia de Hesíodo, bem como ao Céu no poema hitita comumente chamado O reinado dos céus. Ressalte-se, contudo, que em nenhum desses outros poemas se trata de alguma forma de água, o deus babilônico correspondente ao céu sendo Ánu. Contudo, “em documentos sumérios do terceiro milênio, um Apsu pessoal é atestado”, oferendas sendo feitas para exaltá-lo, ainda que “permaneça um divindade muito pouco conhecida” (LAMBERT, 2013, p. 217-218).

Como costuma acontecer com divindades que são elementos da natureza, não há representações visuais antropomórficas de Apsu. Num selo do período acádio, encontrado em Ur, vê-se Ea, com forma humana, sentado num trono e rodeado pelas águas do Apsu (imagem reproduzida em BLACK et al., 2000, p. 27). Pode ser que o poeta tenha tido o propósito etiológico de explicar a existência do lençol de água subterrâneo ao relatar como Apsu, vencido por Ea, se tornou a morada deste último (cf. v. 71-78 infra).

Como termo comum, denomina-se também apsu um tanque colocado no interior de santuários, a exemplo do construído pelo rei Senaqueribe (704-681 a. C.) no templo de Assur, na cidade de mesmo nome (hoje no Voderasiatische Museum, em Berlim).

Verso 4: Mummu é termo que, com o sentido de ‘mãe/genetriz/matriz’, ocorre apenas aqui, como epíteto de Tiámat (muitos optam mesmo por considerá-lo parte do nome próprio da deusa, Múmmu-Tiámat). Como termo comum, registram-se três homófonos de mummû: o primeiro designa um ‘objeto de madeira’; o segundo, um ‘ruído’; o último, derivado do sumério ‘úmun’, ‘sabedoria’ ou ‘habilidade’. É este último que se deve entender, serve de epíteto para Tiámat, “usado para poderes sobrenaturais e atos criativos”, de modo que Lambert o traduz como “demiurge” (LAMBERT, 2013, p. 218-219 e 251).

Considere-se que mais à frente Múmmu é o nome do mensageiro de Apsu (v. 30), o que parece ter sido fator de dúvida para muitos leitores. Damáscio (séc. V-VI d. C.), por exemplo – baseado em informação provavelmente procedente de Eudemo de Rodes, discípulo de Aristóteles—, acreditava que Múmmu fosse o primeiro filho de Apsu e Tiámat: "dentre os bárbaros, os babilônios parecem ter deixado em silêncio o princípio único do todo para postular dois, Tauthé [isto é, Tiámat] e Apason [Apsu], fazendo de Apason o marido de Tauthé e chamando esta última mãe dos deuses, dos quais nasceu um filho unigênito, Mumin, sendo ele, creio, o mundo inteligível procedente dos dois princípios" (DAMASCIUS, Sobre os princípios 125, 1).

Tiāmat é a forma absoluta (status absolutus ou estado indefinido) de Tiāmtu ou tâmtu, termo feminino com o significado de 'mar'. Nos manuscritos, como anota Lambert, seu nome aparece em diferentes formas, que os editores normalizam como Tiāmat. Diferentemente do que ocorre com Apsu, de etimologia desconhecida, Tiámat deriva da raiz semítica tḫm, presente tanto no hebraico teḫôm (o abismo primevo de águas referido em Gênesis 1,1: "A terra era vaga e vazia, e trevas sobre o teḫom"), como também no ugarítico tḫmt (na expressão grm wthmt, 'montanhas e abismo de águas') e no árabe Tiḫāmat (planície costeira ao longo das margens sudoeste e sul da Península Arábica; cf. TOORN, 1999, p. 867).

Ainda que se tenha tornado comum considerar que Tiámat é a água salgada (do mar), por oposição a Apsu, que seria a água doce de fontes e rios, isso não aparece em nenhum texto. No Enūma Eliš o contraste é entre uma divindade feminina, Tiámat, e outra masculina, Apsu (cf. GABRIEL, 2014, p. 116, nota 31). Conforme Lambert, sem dúvida o fato de Tiámat significar 'Mar' fala por si. Contudo,


'Mar', para os babilônios significava qualquer vasta extensão de água, tanto os lagos armênios quanto o Golfo Pérsico e o Mediterrâneo. E os dois rios [Tigre e Eufrates] eram muito salinos, o que os antigos conheciam e tentavam solucionar com seus sistemas de irrigação. Não há nenhuma evidência de que a salinidade da água fosse um critério para a designação de 'mar'. De modo similar, não há nenhuma prova de que a diferença entre Apsû e Tiamat no Enuma Eliš fosse pensada pelos babilônios como a da água doce contrastada com a salgada. (LAMBERT, 2013, p. 446)

Como no caso de Apsu, não há representações visuais de Tiámat, sendo dificil definir como deveria ser imaginada. Se no início do poema ela parece ser, como seu paredro, simplesmente água — já que se afirma que os dois "suas águas como um só misturavam" (1, 5) —, na sequência ambos aparecem separados, uma vez que Apsu, na companhia do mensageiro Múmmu, vai ao encontro de Tiámat, para com ela conversar (cf. 1, 30-31), o estado de separação tornando-se permanente após a derrota de Apsu. Como se afirma que a perturbação provocada pelos deuses mais novos se dá no interior de Tiámat (karšu, cf. v. 23 infra, designa o 'estômago', as 'entranhas'), tem-se a impressão de que o mar estaria dentro dela, sendo essa espécie de invólucro do mar que teria sido, mais à frente, partido em dois por Márduk, para com as duas partes fazer o céu e a terra. Mas talvez seja mais condizente com o texto não fixar, com relação à deusa, uma representação zoomórfica muito exata.

Todavia, como ressalta Xiang (2018), não se pode desfigurar o modo como Tiámat aparece no Enūma Eliš, reduzindo-a a um primitivo 'caos' que Márduk, no final, ordena. De fato, ela age antropomorficamente (ou teomorficamente), inclusive apresentando mudança de atitude: se, de início, se recusa a eliminar sua prole, contra o parecer de Apsu, mais à frente assume a guerra contra os deuses mais novos (cf. 1, 105 ss). Assim, em termos poéticos, vem a ser a personagem mais bem trabalhada, inclusive por ser aquela em torno da qual gira toda a ação. Sua importância é confirmada nos versos finais, em que se afirma: "Proclamem o canto de Márduk,/ Que a Tiámat encadeou e assumiu a realeza" (7, 161-162 infra), ou seja, sendo o texto um canto de louvor a Márduk, esse louvor só se lhe aplica enquanto aquele que venceu Tiámat e sua glória decorre da grandeza dela.


Verso 5: "Como um só” traduz išteniš, termo derivado de išten, 'um', mais o sufixo formador de advérbios -iš. Isso significa que Apsu e Tiámat, estando mesclados como se fossem um, não perdiam sua identidade.

Verso 6: Numa condição em que os protodeuses se misturavam como se um só, não logravam enredar pradarias (ou seja, produzir uma superficie seca) e amontoar juncos (nos pântanos, produzindo uma superficie aquosa), numa situação anterior ao aparecimento da paisagem, portanto, o que acontecerá apenas quando Tiámat for partida ao meio por Márduk e metade de seu cadáver der origem à terra.


Em termos de uma teleologia da narrativa, este verso ganha relevante significação, pois indica o ponto de partida donde se chegará ao objetivo cosmogônico final — a corografia. De outra perspectiva, caso se adote, com Hutter, o entendimento de que ammatu, no v. 2, significa, não 'terra', mas o 'mundo inferior', então esta é a primeira vez que se faz referência à superficie da terra, na qualidade de um terceiro elemento entre o firmamento, no alto, e o 'submundo'.


Versos 7-20: Nos primeiros oito versos do poema o que se desenhava era uma situação bastante estática, expressa pela ausência de verbos ou, com uma única exceção, pelo uso de verbos no modo estativo — uma forma que não tem "por função pôr o estado em relação com o processo, nem evocar o desenvolvimento anterior, mas sobretudo constatar a existência do estado expresso pelo radical do verbo" (cf. COHEN apud TALON, 1992). A única ação expressa com uso de um verbo no presente histórico é a de que Apsu e Tiámat misturam suas águas, o que todavia não redunda na formação de uma paisagem.


O que se constata no trecho que segue é que as ações então se sucedem. Essa mudança é anunciada pela repetição da conjunção enūma (quando), a qual, introduzindo três orações destinadas a descrever a situação ainda estática com relação aos deuses ("Quando dos deuses não surgira algum,/ Por nomes não se chamavam, destinos não decretavam), desemboca na oração principal: "Então engendraram-se (ibbanû) deuses no seu interior", com que se inicia a narrativa dos acontecimentos, com "a aparição em cascata de verbos no perfectivo", o que "dá a impressão de rapidez e encadeamento" (cf. TALON, 1992).

Rapidez e encadeamento é uma dicção bastante apropriada para esta que é a seção propriamente genealógica do poema, sendo toda genealogia, no fundo, uma lista e a organização de listas configurando uma forma autêntica de epistemologia bastante explorada pelo pensamento mesopotâmico (cf. MIEROOP, 2015).

Em termos gerais, algumas peculiaridades devem ser ressaltadas. A primeira, do ponto de vista teogônico, é que se trata de passagem relativamente breve, em que as gerações se sucedem com rapidez:

Apsu-Tiámat
Láhmu-Láhamu
Ánshar-Kíshar
Ánu
Nudímmud

O ponto de chegada, como se vê, é Nudímmud ou Ea (em sumério, Enki). São duas as tradições relativas a ele: conforme a mais difundida, que aqui se adota, Ea é filho de Ánu; conforme outra, de Namma, uma deusa feminina, a massa de água primordial, a qual o gera por partenogênese (cf. LAMBERT, 2013, p. 44) — o que faria de Ea o primeiro dos deuses. A importância que se atribui à sua genealogia decorre naturalmente do fato de que, segundo o Enūma Eliš, é ele o pai de Márduk.

Deve-se, contudo, observar a relevância que, na lista genealógica, tem Ánu, o qual aparece sem um par feminino. Tudo leva a crer que é a partir da genealogia de Ánu que o autor do Enūma Eliš compôs a sua, que, sob vários aspectos, é sui generis. Isso porque, com exceção de Namma, caso pouco difundido, o primeiro deus nas genealogias teogônicas sumérias e babilônicas costuma ser a Terra: no exemplo mais antigo de que dispomos, que deve remontar à metade do terceiro milênio, o par inicial é Enki-Ninki (en = senhor; nin = semhora; ki = Terra), logo, literalmente, "Senhor Terra" e "Senhora Terra".

É curioso que a lista genealógica que mais se aproxima do Enūma Eliš seja a conservada, em grego, por Damáscio (Sobre os princípios 125, 1):

Tauthé-Apason
Dakhe-Dakho
Kissares-Assoro
Ano/Ilino/Ao.

Ainda que corrompidos, os nomes são quase transparentes. Assim, Tauthé = Tiámat e Apason = Apsu; Dakhe = Láhamu e Dákho = Láhmu; Kissares = Kishar e Assoro = Ánshar; Ano = Ánu, Ilino = Énlil e Ao = Ea (nos casos de Dakhe e Dakho, a diferença decorre de confusão, em grego, de duas letras triangulares, delta (Δ) e lâmbda (Λ), o que teria levado à leitura de ΔAXE em lugar de ΛAXE, e de ΔAXOC em vez de ΛAXOC).

Com relação à sequência do Enūma Eliš, há duas diferenças a serem destacadas na de Damáscio. A primeira, o fato de que, ao contrário daquela, nesta os pares se apresentam com o componente feminino antecedendo o masculino. A segunda, mais significativa, está em Ano (Ánu), Ilino (Énlil) e Ao (Ea) serem irmãos. Ora, a presença de Ano como filho de Kissares e Assoro assegura que se trata, como no Enūma Eliš, da genealogia desse deus. Do mesmo modo, o fato de que Damáscio afirme que "de Ao [Ea] e Dauke [Dámkina] um filho nasceu, Belo [Belum, isto é, Márduk], que dizem ser o demiurgo", mostra que é com certeza a mesma genealogia que ele conhece (cf. TALON, 2001). A principal divergência fica por conta da presença de Ilino/Énlil, que tradicionalmente integra a tríade dos deuses principais (Ánu, a quem cabe o céu; Ea, senhor do Apsu; Énlil, que domina a superficie da terra), não aparecendo ele, contudo, neste ponto do Enūma Eliš nem tendo nenhum papel ativo no poema (a tríade Ánu-Énlil-Ea é referida cinco vezes no poema, a partir de 4, 146).

Deve-se observar que, mesmo que a sequência seja dedicada à genealogia de Ea, não se deve supor que apenas os deuses referidos nela tenham sido engendrados por Apsu-Tiámat. Com efeito, há outros deuses referidos no relato como indivíduos (Múmmu, Quingu e Kakka) ou como grupos (os irmãos que se associam e, com seu movimento, perturbam primeiro Apsu, depois Tiámat, os Anunákki e os Ígigi), os quais fazem parte da descendência de Apsu e Tiámat.


Versos 7-8: Nestes dois versos, que preparam a cascata de acontecimentos que se seguem, o foco com relação aos novos deuses põe-se em três aspectos: a) eles não se tinham ainda manifestado (cf. o verbo šūpu, estativo de (w)apû, 'tornar-se visível', 'aparecer'; no modo Š, 'fazer manifesto', 'manifestar-se', 'produzir', 'criar'); b) eles ainda não tinham sido nomeados (zukkurū, estativo D de zakāru, nomear) com um nome (šūma), uma declaração pleonástica que insiste na coalescência entre existência e nomeação, conforme o que se encontrava já nos dois primeiros versos do poema; c) mais uma declaração pleonástica, eles ainda não tinham, literalmente, 'destinado destinos' (šīmātu lā šīmī), com uso de objeto direto interno, já que šīmātu/šīmtu (o que está fixado', 'testamento', 'destino') deriva de šiamu/šâmu ('fixar', 'decretar') — considerando os usos dos dois termos no restante do poema, optei por traduzir šīmātu šīamu sempre por 'decretar (um) destino', em que algo do efeito sonoro se preserva.


Verso 9: "Engendraram" traduz ibbanû, pretérito N de banû, verbo cujos sentidos são: a) 'criar', 'edificar"; falando de deuses, 'criar' pessoas, grãos etc.; 'fazer' uma estatueta etc.; 'construir' uma casa, uma embarcação; em matemática, 'construir'; por extensão de sentido, 'moldar' uma forma; 'erguer' uma cidade; b) falando de pessoas, 'gerar' um filho. Conforme Lambert, "o [verbo] acádio abrange duas ideias bem distintas que têm diferentes equivalentes sumérios", a saber: "uma é banû = dû, 'fazer', ou, mais especificamente, construir', enquanto banû = (u)tu alude a parentesco" (Lambert, 1998, p. 192).

O mesmo Lambert, em sua edição do Enūma Eliš, afirma que

não há termo babilônico específico para a criação pelos deuses, como bārā´ no hebraico bíblico, mas usa-se uma variedade de termos e circunlocuções, alguns dos quais aparecem nesses versos [v. 1-12]. O verbo banû é o mais explícito e é usado aqui nos versos 9 e 12 para indicar o processo positivo que se descreve. Ele pode ser relacionado com binu, 'filho' [...], pelo lado semítico, mas os equivalentes sumérios para banû e bunnû (si, si4, sig7, mú etc.) falam a favor de um sentido intransitivo, e 'germinar' é um deles, ainda que ser belo' seja o mais comum. (LAMBERT, 2013, p. 469)

Considerando isso, traduzi banû não por 'criar', que é uma das acepções possíveis em acádio, mas por 'engendrar', que, conforme o dicionário, tem os seguintes significados em português:

1. dar existência a'; 'formar', 'gerar' (engendrar crias); 2. 'tirar' ou 'surgir' aparentemente do nada, 'criar(-se)', 'produzir(-se)', 'gerar(-se)' (engendrar projetos de casas populares) (engendram-se várias soluções práticas para o problema), 2.1. fig. (a preguiça engendra ignorância) (ali todos viram engendrar-se a violência); 3. 'conceber na imaginação'; 'engenhar', 'imaginar', 'inventar' (engendrar pretextos); (cf. HOUAISS, 2001, s. v).

Essas três esferas semânticas, que se interpenetram, acredito que expressam bem os três campos de sentido que banû tem no poema: a) 'gerar', como em 1, 9, "engendraram-se deuses no seu interior [de Apsu e Tiámat]" e 1, 105, "engendrando quatro ventos, procriou-os Ánu"; b) 'criar', 'produzir', como em 7, 135, "porque os lugares celestes [Márduk] engendrou e formou o mundo inferior", 5, 39, "[Márduk] engendrou então o dia", e 6, 129, "à gente que [Márduk] engendrou, dotando-a de vida"; 3. 'conceber', 'engenhar', como em 1, 132, "em reunião postos, [os deuses] engendram a batalha", 6, 30, “Quingu é quem engendrou a guerra", e 7, 11, "engendre ele [Márduk] um sortilégio, os deuses sosseguem". Como é natural, alguns usos não são tão facilmente classificáveis, como quando se diz que Tiámat "engendrou Turbilhão — vento mau—, Borrasca, Ciclone" (1, 161), o que se poderia entender tanto como 'criou' quanto como 'gerou', ou em 131-132, "engendrar, destruir, perdoar, punir existam pois a seu mando", que resume bem o poder de Márduk, 'engendrar' tendo um sentido bastante amplo.


Verso 10: É notável como a referência aos dois primeiros deuses, Láhmu e Láhamu, retoma três termos usados dos dois versos anteriores, o que imprime um ritmo bem concertado à dição do poema: Láhmu e Láhamu surgiram (uštāpu, pretérito Št de (w)apû) e por nomes (šumi) foram chamados (izzakrū, pretérito N de zakāru).


Os dois nomes, nos originais, recebem o classificador 'deus' — dLaḫmu u dLaḫāmu—e, no poema, eles aparecem sempre como par. Neste ponto, nada indica que sejam os pais do par seguinte, Ánshar e Kishar, o que todavia corresponde à lógica das listas teogônicas e é afirmado mais à frente, em 3, 6, quando Ánshar declara que são eles "os deuses, meus pais". Todavia, a referência a "pai" ou "pais" é, muitas vezes, sinônimo de 'ancestrais': assim, em 3, 68 afirma-se que "foi Kakka até os deuses, seus pais", ou seja, até Láhmu e Láhamu, o que parece ser referência mais à senioridade de ambos que a filiação.

O par de deuses aparece com bastante frequência em listas com a genealogia de Ánu procedentes de encantamentos, datadas no primeiro milênio a. C., de acordo com o que apresenta Lambert (2013, p. 417, com as referências sobre a procedência das listas):

an-šar dki-šar
ddu-ri dda-ri
dlàḫ-ma dla-ḫa-ma
da-la-la dbe-li-li
den-uru-ul-la dnin-uru-ul-la

ddu-ri dda-ri
dlàḫ-ma dla-ḫa-ma
den-gur dga-ra
da-la-la dbe-li-li


[dlaḫ-m]a dla-ḫa-ma
den-gar dgà-ra
da-la-la dbé-li-li
[dd]u-ri dda—rí

ddu-rí dda-rí
dlaḫ-mu dla-ḫá-mu
da-la-la dbe-li-li



Com exceção da lista da primeira coluna, que inclui Anshar e Kishar no princípio e, no fim, Enurulla e Ninurulla — 'Senhor da Primeira Cidade' e 'Senhora da Primeira Cidade', o que, para Lambert (2013, p. 426), mostra "a importância da cidade no pensamento mesopotâmico antigo" —, bem como da inclusão de Engur (o mesmo que Apsu?) e seu feminino em duas outras colunas, a sequência Dúri-Dári/Láhmu-Láhamu/ Alala-Belili parece ser bastante regular. O último par (Alala-Belili) parece, como o considera Lambert, "sem significância cosmogônica", enquanto o primeiro, Dúri-Dári, remete a uma temporalidade primordial: tanto Dúri quanto Dári são variantes do mesmo radical, significando um tempo não dimensionável ou algum período de tempo (em Ele que o abismo viu 7, 103, traduzi a expressão dūr dār por "de era em era": "Vem, Shámhat, o fado fixar-te-ei,/ E o fado não cessará de era em era!").

O que importa, considerando esses registros, é constatar que, exteriormente ao Enūma eliš, existe uma tradição da genealogia de Ánu que inclui Láhmu e Láhamu, provavelmente como o segundo par da lista, ou seja, como uma espécie de intermediário entre uma era primordial e as eras subsequentes. Para a construção de sua teogonia sui generis tudo leva a crer que o autor do Enūma eliš tenha considerado ou mesmo partido desse tipo de tradição. Conforme George, "considerando a cultura e capacidade intelectual do poeta, é possível que ele tenha selecionado Láhmu e Láhamu dentre as antigas divindades ancestrais não aleatoriamente, mas como o par que garantia mais potencial para múltiplas explicações" (GEORGE, 2016, p. 21).

Sobre a natureza de Láhmu e Láhamu, Jacobsen propôs que, considerando-se a raiz semítica lḫm, 'lama', registrada nos termos acádios luḫummû/luḫmû, 'lodo', 'lama', os dois primeiros deuses nascidos dos protodeuses, que eram água, corresponderiam à primeira formação de uma substância telúrica (cf. JACOBSEN, 1976, p. 169). Heimpel, por seu lado, defende que se trata de monstros marinhos de forma bovina, os quais representariam um estado intermediário entre as águas primordiais e os deuses antropomórficos (HEIMPEL, 1998; cf. também GABRIEL, 2014, p. 119). Na esteira dos nomes e trabalhando com imagens, Wiggermann mostra que o herói com espessa barba e três cachos de cada lado da face, normalmente nu e com uma faixa em torno da cintura é o laḫmu, seu nome estando em acordo com o termo acádio idêntico (laḫmu) cujo significado é 'peludo', negando ele, contudo, que se trate da mesma figura presente não só no Enūma eliš como em outras listas teogônicas (WIGGERMANN, 1981-1982, p. 90-105). Finalmente, Lambert argumenta não só que a hipótese de Jacobsen deve ser descartada, por ser inconsistente com os usos cosmogônicos de Láhmu/Láhamu, como que o laḫmu peludo de Wiggermann é o mesmo das cosmogonias, o seu papel nelas sendo o de prover a separação entre o céu e a terra, ou seja, trata-se de espécies de Atlantes que, tendo os pés agarrados no chão, sustentam com os braços o teto que é o céu (LAMBERT, 1985).

O argumento principal de Lambert é a relação de laḫmu com pilares do batente de portas (em sumério, 'dubla'), especialmente de — sabendo-se que templos se entendem como representação do cosmo: nesse sentido, há “uma abundância de figurinhas de argila e placas da época assíria e babilônica tardia que apresentam laḫmū sustentando estacas", essas imagens "tendo sido enterradas perto de portais com o propósito expresso de afastar os males, como breves inscrições indicam". Ainda que a função desse tipo de laḫmū não seja a mesma dos pares cosmogônicos, conhecem-se textos em que a ele se atribui uma função cósmica: tem face humana, é barbudo, está nu, traz um cinto, seu pé direito é a garra de um pássaro e tem ele um rabo de leão, "com as duas mãos agarra o céu", "com seu pé esquerdo agarra a terra, seu pé direito cruza e agarra a panturrilha de seu companheiro" e "seu nome é Láhmu-Contenda": "estes são os laḫmū do céu e da terra, do Apsu de Ea". Conclui Lambert, "cada um desse par agarra o céu (sc. acima) com ambas as mãos e agarra a terra (sc. abaixo) com, respectivamente, o pé direito e esquerdo, uma alternância adequada para o ponto de vista de um artista, a fim de prover maior simetria visual", o que corresponde à necessidade de "manter céu e terra a uma distância fixa", como no Enūma eliš 5, 61. Assim, "os dois laḫmū às portas (ou sustentando as estacas da porta) têm a função cósmica de sustentar o céu no alto, ficando presumivelmente em cada extremo do eixo leste-oeste" (LAMBERT, 1985, p. 198-199).

Saliente-se, contudo, que no Enūma eliš, Láhmu e Láhamu, sempre referidos juntos, não exercem nenhuma função cósmica, mas antes a função teogônica de serem tidos como os mais antigos dos grandes deuses, sua presença sendo necessária em momentos cruciais do relato, como a decretação do destino de Márduk, antes da luta contra Tiámat (3, 1 ss) e, depois da vitória, "Láhmu e Láhamu ----/ Abriram então suas bocas, disseram aos deuses, os Ígigi:/ Antes Márduk era o filho nosso amado,/ Agora é vosso rei, em suas ordens atentai!" (5, 107-110); além disso, ao lado de Ánshar, são também eles os primeiros a proclamar os nomes de Márduk: "por três nomes, cada um, o chamaram Ánshar, Láhmu e Láhamu" (6, 157), configurando assim uma tríade divina semelhante à mais comum, Ánu, Énlil, Ea.


Verso 11: "Enquanto cresciam, avultavam-se" (adi irbû išīḫū) introduz uma primeira noção de temporalidade, menos como contagem do tempo que como sucessão dos estados que afetam os primeiros deuses, assim: a) Láhmu e Láhamu foram engendrados "quando dos deuses não surgira algum", ou seja, são eles os primeiros a quebrar o que se poderia considerar como repouso ou inanição (ou ainda atemporalidade) de Apsu-Tiámat; b) o passo em que são engendrados Ánshar e Kishar toma como referência não algum tipo de temporalidade externa, mas o crescimento de Láhmu e Láhamu, ou seja, trata-se de uma marcação, em termos de sucessão. Naturalmente, tanto para a cosmogonia quanto para a teogonia o fluxo das sucessões configura o que se pode chamar de 'tempo', aqui expresso não em termos abstratos, mas como ocorrências nos corpos dos primeiros deuses, uma espécie de tempo corporificado.


Verso 12: Este verso introduz o segundo par de deuses gerados — Ánshar e Kishar —, havendo duas possiblidades de entendimento: a) eles são filhos de Láhmu e Láhamu; b) eles são filhos de Apsu e Tiámat.


Um argumento de ordem antropomórfica a favor da segunda hipótese é que foram eles engendrados enquanto o par anterior (Láhmu e Láhamu) ainda crescia: conforme Talon, "eles seriam gerados independentemente uns dos outros: enquanto crescem Láhmu e Láhamu, Ánsar e Kishar são criados e lhes são superiores", de modo que o "esquema genealógico" não apareceria "senão com Ánshar, marcando a ruptura com a emergência indiferenciada dos deuses precedentes" — ou seja, antes da geração de Ánu por Ánshar e Kishar, o que havia era uma espécie de "geração espontânea" nas águas primevas (TALON, 1992, p. 4; cf. também GEORGE, 2016, p. 20). Essa é também a leitura de Damáscio (Dos princípios 125, 1), segundo o qual de Tauthé (Tiámat) e Apason (Apsu) nasceu primeiro um filho, Moumin (Múmmu), "e dos mesmos procede uma outra geração, Dakhé [Láhamu] e Dakhós [Láhmu]; então, novamente, a partir deles houve uma terceira geração, Kissarés [Kishar] e Assorós [Anshar]".

A favor do primeiro entendimento, recorde-se que, em 3, 6, Ánshar declara que Láhmu e Láhamu são "os deuses, meus pais". O argumento principal, contudo, a favor da primeira hipótese é que todo esse passo tem como objetivo traçar a genealogia de Ánu — e, por consequência, de Ea e, também consequentemente, de Márduk —, a lógica que dá consistência a qualquer genealogia sendo a sucessão de pais para filhos. Acrescente-se ainda que a afirmativa do verso 9 ("Então engendraram-se deuses no seu interior", isto é, no interior de Apsu-Tiámat) não diz respeito apenas aos que se nomeiam nos versos seguintes, mas, como já foi salientado, há uma multidão de outros deuses gerados. Não interessa, contudo, ao autor referir-se a todos eles, pois seu objetivo é a genealogia de Márduk, num poema dedicado à glória deste deus, não fazendo sentido, por outro lado, referir-se a deuses que não fossem seus ancestrais.

O significado dos nomes Anšar e Kišar é transparente a partir dos termos sumérios de que se compõem: 'an', 'céu'; 'ki', 'terra'; 'šar', 'totalidade'. Assim, trata-se, respectivamente, da 'totalidade do céu' e da 'totalidade da terra', ou, conforme Claus Wilcke, do 'círculo do céu' e do 'círculo da terra' (WILCKE apud GABRIEL, 2014, p. 119, n. 44). Não parece, contudo, que a etimologia dos nomes corresponda à função cosmogônica que os dois deuses têm no poema, pois 'céu' e 'terra' só muito mais à frente serão criados por Márduk, a partir do cadáver de Tiámat, por ele partido em dois.

Da perspectiva teogônica, chama a atenção que Kishar não apareça em nenhum outro ponto da narrativa. Anshar, pelo contrário, tem uma atuação de bastante destaque, já que, antes da entronização de Márduk, é ele quem atua como verdadeiro chefe dos deuses. Assim, diante da ameaça de Tiámat, que se prepara para a guerra, é ele quem comissiona para domá-la, primeiro, Ea, que recua, depois, Ánu, que também se declara impotente, e finalmente Márduk (cf. 2, 53 ss); a fim de que este possa desempenhar sua missão, é ainda Anshar quem convoca a assembleia dos deuses que visa a fixar-lhe o destino (3, 1 ss). Destaque-se o verso 2, 148, em que Márduk declara, dirigindo-se a Anshar: "a nuca de Tiámat pisarás tu", o que indica como o destino dos deuses se liga à liderança de Ánshar, de tal modo que se pode dizer que eles se dividiam, então, em dois campos: os que estavam com Tiámat versus os que se alinhavam com Anshar.

A inanição de Kishar como personagem da trama atinge também outras deusas, com exceção de Tiámat. Parece haver, de fato, no poema, um apagamento do feminino, o que se observa mesmo quando da criação da humanidade (na tabuinha 6), de que, em outras fontes, como no Atrahasīs se encarrega da deusa-mãe (Mamítum, Arúru).


Verso 13: Com este verso introduz-se de modo mais incisivo uma temporalização da narrativa, agora tendo como critério não mais os corpos (de Láhmu e Láhamu), mas entidades temporais (dias e noites): "alongaram-se os dias, somaram-se os anos" (urrikū ūmī uṣṣibū šanāti). Como dias e anos ainda não foram configurados, o que só acontecerá quando Márduk criar céu e terra a partir do cadáver de Tiámat, menos que apontar para a existência de algum tipo de um calendário já neste momento, o verso deve ser tomado como uma fórmula para indicar um transcurso do tempo que se quer caracterizar como tendo uma considerável duração. Se o nascimento de Ánshar e Kishar foi antecedido por pouco pelo de Láhmu e Láhamu (deu-se enquanto estes últimos ainda cresciam), o de Ánu transcorreu bem depois do de seus pais.


Versos 14-15: Como várias vezes já reiterado, Ánu é o ponto de chegada da genealogia baseada nos pares de macho e fêmea, tanto que não se registra aqui qual seria sua correspondente feminina, isso indicando que, nos modelos que serviram de base para o poeta do Enūma Eliš, era de sua ancestralidade que se tratava.


O deus que se denomina em sumério 'An' e em acádio Anu corresponde ao Céu, tanto que o mesmo signo cuneiforme é usado para escrever as três palavras. Na documentação suméria, o deus An já aparece em meados do terceiro milênio, em listas procedentes de Fara. Na época de Gudea de Lagash (séc. XXII a. C.) ele já é o cabeça do panteão, bem como, nos períodos de Ur III e Isin-Larsa (séc. XX-XVIII a. C.), seu culto é documentado em hinos e preces. No período paleobabilônico (séc. XIX-XVI a. C.) costuma ser representado como membro da tríade Ánu-Énlil-Ea, que divide entre si as três camadas do cosmo: ao primeiro cabe o céu, considerado como uma sólida e remota estrutura ao alto da superfície da terra; a Énlil cabe o governo da superfície da terra habitada, o que ele faz a partir de centro desta, a cidade de Níppur, onde se encontrava seu templo; Ea/Enki governava o espaço abaixo da terra, onde se encontram as águas do Apsu. Algumas vezes se atribui uma esposa a Ánu, em geral as deusas Ántu (simplesmente o feminino de Ánu), Urash (Terra) ou Ishtar. Enfim, ele costuma ser considerado o pai dos deuses e demônios, cabendo-lhe, em última instância, decretar os destinos.

Como acontece com Tiámat e Apsu, Ánu foi raramente (talvez nunca) representado nas artes visuais, sendo difícil, de qualquer modo, conjeturar quais seriam os índices iconográficos que permitiriam sua identificação, com exceção de, no período cassita (séc. XVI-XII) e neo-assírio (séc. X-VII), o turbante com chifres, atributo também de outros deuses (BLACK et al., 2003, p. 30).

Ánu constitui uma divindade análoga a outras na zona de convergência do Mediterrâneo oriental, incluindo o sírio Baal Shamem (Senhor do Céu) e o grego Ouranós (Céu), embora nenhum dos correlatos se apresente, nos respectivos panteões, com a mesma importância que ele. Em alguns casos, como no grego, trata-se de um deus presente nas teogonias, mas que carece de culto (cf. TOORN, 1999, p. 388-389).

No Enūma eliš, Ánu é uma personagem atuante, no mesmo nível que Ea, ou seja, enquanto adjuvante. Sua autoridade no panteão se encontra na verdade transferida para Ánshar — o qual não deixa de ser uma espécie de manifestação do mesmo deus, enquanto remete, como já referido, à 'totalidade do céu' (an-šar). A coalescência entre os dois ganha significativa expressão no modo como se narra a sucessão divina neste passo: em vez de, como nos casos anteriores, afirmar-se que o deus surgiu ou foi engendrado por seus antecessores, o que se diz é que ele é o "primogênito deles" (apilšunu), é "igual a seus pais" (šānin abbīšu) e que "Ánshar em Ánu, seu rebento, refletia-se" (Anšar dAnum bukrašu umaššilma).


Verso 16: Este verso tem intencional relação com o anterior, pois desdobra o que se afirma naquele: assim como Ánshar reflete-se em Ánu, "Ánu, tal seu reflexo (tamšīlāšu), procriou Nudímmud", ou seja, é como se fosse um jogo de espelhos, em que Nudímmud — outro nome de Ea — reflete Ánu, que reflete Anshar (o termo tamšilu, 'imagem', 'semelhança', é derivado do verbo usado no verso anterior, mašālu, 'ser ou ficar igual'). Essa ideia sugere que o autor termina por constituir uma espécie de nova tríade divina sui generis, Anshar-Ánu-Ea, em que a precedência cabe ao primeiro, os dois outros agindo como auxiliares.


Ea é o nome acádio do sumério Enki, cuja principal característica é a relação com o 'abzu' (Apsu), onde habita. Ele é também chamado de Ninshiku ou Nudímmud, este último composto dos termos sumérios 'dím' (criar) e 'mud' ('trazer diante'), "relacionado com seu papel posterior de criador da humanidade" (GABRIEL, 2014, p. 119). Trata-se, portanto, de um deus subterrâneo, associado com sabedoria, magia, encantamentos, além de com as artes e requintes da civilização (conforme já o definia Deimel, em 1914: "É-a, deus abyssi et aquae (dulcis?); deus sapientiae et artium; deus magorum"). O centro de seu culto é o E-abzu ('Casa de Apsu') em Eridu, em que se encontram indícios de culto a um deus ctônico desde a mais remota pré-história (cf. ESPAK, 2006, cap. 2).

No poema sumério conhecido como Inana e Enki, dentre aquilo que o deus coloca na barca da deusa, para que ela transporte de Eridu para Úruk, encontram-se poderes (em sumério, 'me') tão variados quanto os ligados ao culto divino, à música, à arquitetura, à metalurgia, à guerra e ao sexo (comentários em BRANDÃO, 2019, p. 49-55).

É provavelmente por sua relação com a vida civilizada que Ea se apresenta não só como favorável aos homens, mas como o criador da própria humanidade: no poema conhecido como Atraḫasīs (Supersábio), é Ea quem propõe aos deuses a criação dos homens, para assumir os trabalhos dos İgigi, instruindo Mámi, a deusa-mãe, sobre como fazê-lo (cf. Atraḫasīs 1, 206 ss.). No mesmo poema, é a partir dos conselhos astutos de Ea que o Supersábio consegue superar os flagelos enviados pelos deuses (uma peste, uma seca e, finalmente, o dilúvio), impedindo a extinção completa da humanidade. A forma como age põe em relevo sua astúcia, que atinge o máximo por ocasião do dilúvio, episódio retomado também na tabuinha 11 de Ele que o abismo viu: estando sob o juramento que o impedia de alertar Atrahasis/Uta-napíshti sobre a iminência da enchente, Ea dirige-se não diretamente a seu protegido, mas a uma cerca de caniços: "O príncipe Ea com eles sob jura estava,/ Mas suas palavras repetiu à cerca de caniços: /Cerca! cerca! parede! parede!/ Cerca, escuta! parede, resguarda!/ Homem de Shurúppak, filho de Ubara-Tútu,/ Derruba a casa, constrói um barco,/ Abandona a riqueza e escolhe a vida" (Ele que o abismo viu, 11, 19-25). Mais à frente, findo o dilúvio, ele próprio declarará a seus pares, os outros deuses: "Eu não revelei o segredo dos grandes deuses:/ Ao Supersábio um sonho fiz ter e o segredo dos deuses ele ouviu" (11, 196-197). Nisso se vê como é ardiloso, o que o põe na categoria de divindades como o grego Prometeu (ver Duchemin, 2000).

Enki/Ea é bastante representado nas artes visuais, com barba comprida, chapéu com muitos chifres e veste longa e plissada. Às vezes jorram de seus braços correntes de água na direção do solo, nas quais se veem peixes. Outras vezes ele se encontra sentado, recebendo oferendas, ou no interior de uma estrutura, que pode ser o Apsu ou o templo em Eridu, o E-abzu, cercado por canais de água (cf. BLACK et al., 2003, p. 75).


Versos 17-20: Na sucessão dos deuses há uma perspectiva progressiva, em termos de capacidade, a qual já fora sugerida no verso 12, ao declarar-se que Ánshar e Kishar se avantajavam com relação a seus pais, Láhmu e Láhamu. É, todavia, com relação a Ea, na passagem em questão, que essa noção se afirma, verso a verso:

a) de seus pais ele é o dominador, šālissunu šuma,
b) ele é de todo agudo, palka uznu — em que o termo uznu ('orelha', 'ouvido'), de acordo com o torneio de linguagem próprio das línguas semíticas, em que é preferentemente o ouvido (e não a vista) que topicaliza corporalmente o canal que mais produz conhecimento, significa 'sabedoria', 'entendimento', 'compreensão', 'consciência', 'atenção' (minha tradução por 'agudo' tenta preservar algo da imagem auditiva do termo);
c) ele é ḫasīsu, um sinônimo de uznu, com os mesmos sentidos (traduzi por 'sagaz');
d) ele é "em força robusto", tradução bastante literal de emūqān pungul, que acrescenta uma superioridade física às mencionadas superioridades intelectuais de Ea;


e) ele é guššuru, muito forte', a que se acrescenta a comparação com Ánshar, pai de seu pai;

f) enfim, em consequência de tudo isso, ele "não tinha igual entre os deuses, seus irmãos" — ou seus pares', outra leitura possível.

Em conclusão, Ea é superior aos deuses com relação aos quais está numa posição vertical em termos de sucessão, seus antecedentes — já que superior a Anshar, o qual, por sua vez, é superior a Láhmu e Láhamu —, estando acima também de todos os outros deuses com os quais tem uma relação horizontal, os aqui chamados "seus irmãos" (atḫêšu).


Verso 21: Aqui se processa a uma mudança de foco: até imediatamente antes, toda a luz esteve jogada nos processos de geração, a partir de agora, a situação dos primeiros deuses estando em parte consolidada — incluindo mesmo os "irmãos" ou "pares" (atḫû) não referidos por um nome —, tem início o relato das primeiras ações (cf. GABRIEL, 2014, p. 119; TALON, 1992, p. 5-6). Deve-se observar como isso deixa em suspenso o elogio de Ea nos versos precedentes, o qual fará sentido apenas no passo seguinte (a partir do verso 47), quando de sua vitória sobre Apsu. De fato, é como se, na presente passagem ocorresse uma dobra na narrativa, com retorno ao início do poema, pois estão em cena, de novo, Apsu e Tiámat, que, como então, têm de lidar com questões relacionadas com sua fertilidade: no trecho anterior, a procriação; neste, suas consequências.


A mudança de foco faz-se de um modo hábil, pois se dá pela repetição, neste verso, da última palavra do anterior, atḫû ('irmãos', 'pares'), a qual funciona, portanto, como encaixe (cf. GABRIEL, 2014, p. 120: o verso 21 funciona como Scharnierves, verso-dobradiça). Com mais exatidão, observe-se que é toda a expressão ilāni atḫêšu (os deuses, seus irmãos), que fecha o v. 20, que se reflete nas últimas palavras do verso seguinte, atḫu ilāni (os irmãos, os deuses), numa correlação quiástica (todo quiasma se pode dizer que é um espelho, na medida em que este devolve uma imagem invertida).

O verbo, posto no início do verso e realçado pela enclítica -ma, encontra-se no pretérito (innindū, "associaram-se"), introduzindo uma ação e seus agentes, contra o pano de fundo dos versos anteriores. A ênfase no sintagma atḫû ilāni acima apontada desvia o foco dos grandes deuses (os deuses de quem se declinam os nomes) para a massa dos outros deuses gerados, ao que tudo indica, por Apsu-Tiámat. O fato de que esses deuses sejam apresentados como atḫû (irmãos ou pares) marca uma diferença significativa com relação aos deuses nomeados, pela inexistência de diferenças de estatuto, em termos de menor ou maior senioridade, maior ou menor importância. Trata-se de um dado narrativo importante: as ações que levarão ao fim (no sentido de final e finalidade) do poema — ou seja, a entronização de Márduk — são desencadeadas não pelos deuses nomeados, mas por essa massa um tanto amorfa dos inominados atḫû ilāni.


Versos 22-24: A primeira informação sobre o incômodo provocado pelos "irmãos, os deuses" focaliza Tiámat, concentrando-se na esfera auditiva e espacial: a) de um lado, o forte alarido que se irradia (šapû, 'ser denso', 'ser alto', encontra-se no modo Gtn, ištappu, que tem sentido iterativo) e a algazarra dura (šu'āri šu'duru); b) de outro, as entranhas de Tiámat e o interior do Anduruna.


Anduruna é aqui, de acordo com Lambert, uma "localização cósmica": num exercício escolar procedente de Susa, afirma-se que é o lugar "onde o sol nasce"; conforme outros registros, um local no mundo inferior, referido como "a grande prisão do Anduruna" (mar-kás rabu šá an-dúru-na) ou "anduruna casa dos destino (a]n-dúru-na bīt ta-ši-[ma-a-ti]) (apud LAMBERT, 2013, p. 470). Note-se que, neste ponto do poema, não existem ainda nem o nascente nem o mundo inferior, motivo por que o mais razoável seria entender que Anduruna seria alguma localização no interior da própria Tiámat ou um modo de referir-se a esse interior, seu karšu, que traduzi por "entranhas" (cf. o CAD, 1956-2010, também 'estômago', 'interior', 'epigástrico', 'útero', 'ventre'), observando-se que tanto karassa quanto Anduruna se encontram na última posição nos versos do dístico, o que parece reforçar a intenção paralelística do autor.

O que traduzi por "algazarra", šu`āru, conforme o CAD, significa propriamente 'dança', o que, no contexto do incômodo de Tiámat, deve ser entendido como a realização de movimentos rápidos e iterativos (cf. TALON, um jogo barulhento'). Com "algazarra dura no interior do Anduruna" eu quis preservar a aliteração do original — šu´āri šu ´duru qereb Anduruna—, o verbo šu´duru tendo a acepção de 'causar aborrecimento, incômodo, susto'.


Versos 25-28: Apsu volta a ser introduzido na narrativa, a fim de que já se comece a esboçar a diferença de sua reação em contraste com a de Tiámat: enquanto esta se mantinha em silêncio e, mesmo disturbada, resguardava os deuses irmãos, sugere-se que aquele tentava fazer com que diminuíssem o ruído que faziam, sem sucesso ("Não reduzia Apsu o seu bramido"). É essa diferença de atitude que levará ao desfecho da cena, a partir do verso 29.


Talon (1992, p. entende que são ambos, Apsu e Tiámat, que tinham paciência com o distúrbio, traduzindo assim o verso 28: "leur conduite n'était pas bonne, toux deux leur restaient (nénamoins) bienveillants". Ele explica que lê iggamilā, que seria um dual, em vez de iggamila, singular — e, "se isso não for pertinente, se compreenderá ´ela (Tiámat) mantinha-se com eles (todavia) benevolente´". Adoto este último entendimento, que é também o de Lambert (2013, p. 51).


Versos 29-32: Esta é a primeira ocorrência, no poema, de discurso direto, o que garante que de fato, tendo-se deixado uma parte eminentemente descritiva, começa agora a narrativa propriamente dita.


Vogelzang (1990) classifica a forma como se introduzem discursos diretos na literatura acádia nas seguintes categorias (dos exemplos dados por Vogelzang, apresento apenas os que ela colhe no Enūma Eliš, a que ajunto outros):

a) com uma percepção, usualmente assinalada como 'ver' ou 'ouvir': "Márduk, isso quando ouviu,/ Como o dia brilharam seus traços com intensidade: Fazei sim Babilônia, de que desejastes a obra!/ Seus tijolos lhe deem forma, a sede seja alta!" (6, 55-58);
b) com uma reação, que pode ser emotiva, mental ou física: "E ouviu Tiámat tais ditos bons para si:/ O que vós deliberastes façamos hoje!"(1, 125-126);
c) com uma fala, que pode ser introduzida por 'dizer' ou outro verbum dicendi ('responder', 'gritar', 'comandar' etc.), com outra fala ou mesmo sem nenhuma introdução, como no presente exemplo.

Em geral — é ainda Vogelzang que chama a atenção para isso —, a extensão e a importância do discurso direto têm relação com o modo como é introduzido. Há mesmo a tendência de que o número de versos da introdução corresponda ao número de versos do discurso direto.


Verso 30: Introduz-se uma nova personagem, o intendente de Apsu, Múmmu, cujo nome deriva do sumério 'úmun', 'sabedoria' ou 'habilidade'. Ainda que o termo sumério seja abstrato, existe a expressão bīt mummi, ou seja, 'Casa de Múmmu', a qual designa uma parte do templo "destinada a sabedoria esotérica, especialmente manifesta pela feitura e revivificação de estátuas de deuses", o que, conforme Lambert (2013), fez com que o sentido de 'sabedoria' se deslocasse, em acádio, para o de 'poder criativo', sendo talvez por isso que Damáscio explica que Mumin — que ele entende ser o primeiro filho de Apsu e Tiámat — é o "mundo inteligível" (noetós kósmos).


O fato de que Múmmu seja apresentado como šukkallum, 'intendente', levaria a supor que seu chefe imediato recebesse o título de 'lugal' (rei), o que todavia não acontece — ficando essa denominação atribuída apenas a Ánshar e Márduk. Tanto nessa passagem quanto na seguinte, ressalta o modo como Apsu não age sem a assistência de Múmmu, que ele afirma ser alguém que é bom para seu ânimo, que o abraça e beija. De tal modo são eles unidos e Múmmu lhe é fiel, que sofrerá com seu chefe todas as consequências de suas ações.


Versos 37-40: A fala de Apsu, dirigida a Tiámat expõe com clareza o problema enfrentado pelos dois deuses, em quatro versos perfeitamente bem encadeados: o primeiro e o terceiro insistem na conduta inadequada dos deuses irmãos (o que a repetição, na segunda posição, de alkassumu realça); o segundo e o quarto fazem referência ao descanso e ao sono, incialmente em termos de privação, em seguida como um voto positivo:

imtarşamma alkassunu eliya
urriš lā šupšuḫāku mūšiš lā şallāku
lushalliqma alkassunu lusappih
qūlu liššakinma i niștal nīni

É sim molesta sua conduta para mim:
De dia não repouso, de noite não durmo.
Destrua-se sua conduta, seja dispersa!
Silêncio se faça e durmamos nós!

Este é um tema teológico e um motivo narrativo de especial importância: o sono dos deuses. Do primeiro ponto de vista, parece que é próprio da natureza divina — ou pelo menos da natureza dos grandes deuses — uma certa inércia, expressa em termos de repouso ou sono. Isso não significa que, em determinados momentos, eles deixem de agir, mas que, uma vez que se estabeleça certa ordem, então o repouso é um requisito indispensável de sua existência. Da segunda perspectiva, a dos motivos narrativos, o que se observa é que um deus que não logra dormir age de modo transtornado.

A ocorrência mais antiga desse motivo encontra-se no poema conhecido como Atraḫasīs (séc. XVIII a. C.) — cujo nome original são suas primeiras palavras: Inūma ilu awilum (Quando os deuses como homens). Nele, o sono dos deuses é que dá consistência à trama, que assim pode ser resumida:

a)de início, uma parte dos deuses, como homens, tinha de assumir o encargo do trabalho (cf. 1, 1-2: "Quando os deuses, como homens/ Suportavam o trabalho e penavam na labuta"), a saber, os Ígigi, os quais se encarregavam dos trabalhos agrícolas, envolvendo irrigação e plantio, a fim de que os Anunákki, grandes deuses, pudessem gozar de repouso (cf. 1, 5-6: "Os grandes Anunákki, os sete,/ trabalho fizeram os Ígigi penar");
b)após quarenta anos, os Ígigi revoltam-se e cercam a morada dos Anunákki, à noite, enquanto estes dormiam, cabendo a Kálkal despertar Núsku, a fim de que desperte seu senhor, Énlil (cf. 1, 78-81: "Núsku despertou o seu senhor,/Da cama o fez sair:/ Meu senhor, está cercada tua casa,/ A batalha veio à tua porta");
c)a solução para o problema é dada por Enki: a criação da humanidade, para que assumisse o trabalho dos deuses, o que se faz com a produção, por Mami, a mãe dos deuses, de quatorze protótipos (lullû) humanos, sete machos e sete fêmeas, a partir dos quais a população se multiplica;
d)como consequência,

Não ainda se haviam passado doze centenas de anos,
A terra ampliava-se, as gentes multiplicavam-se,
A terra como um boi mugia,
Com seus brados os deuses disturbavam-se.
Énlil ouviu o bramido (rigmu) deles,
Disse aos grandes deuses:
Atingiu-me o bramido da humanidade,
Com seus brados estou privado de sono (šittu) (1, 352-359);


e)então os deuses resolvem enviar uma peste, para reduzir o número de homens e, consequentemente, o barulho produzido por eles, mas Enki instrui o Supersábio sobre como fazer cessar a peste;
f)de novo, "ainda não se haviam passado doze centenas de anos" e tudo se repete, Énlil ouve o bramido dos homens e não logra

dormir,

g)então os deuses resolvem enviar uma seca para dizimar a humanidade, mas Enki instrui o Supersábio como fazê-la cessar,
h)de novo, "ainda não se haviam passado doze centenas de anos" e tudo se repete, Énlil ouve o bramido dos homens e não logra dormir,
i)os deuses, então, optam pela solução mais radical, mandar o dilúvio, que aniquilaria por completo a humanidade, mas Enki instrui o Supersábio que construa a arca e tudo mais, o que salva os homens da completa extinção, levando a uma nova aliança com os deuses. (cf. LAMBERT et al., 1999)

Observe-se como essa antropogonia, a mais elaborada de quantas foram produzidas na zona de convergência do Mediterrâneo oriental — incluindo as gregas e hebraicas —, concentra-se inteiramente sobre três pilares: o homem foi criado para trabalhar (o fardo do trabalho é o que define a condição humana); o trabalho produz ruídos (movimentos ruidosos são inerentes à condição humana); o alarido da humanidade disturba os deuses (o gozo do repouso define a condição divina). Dessa perspectiva, fica claro que o que provoca ruídos, os quais, passado certo limite, perturbam os deuses, é a própria atividade dos homens sobre a face da terra, noutros termos, a própria vida humana (cf. OSHIMA, 2014, p. 281-282).

A associação entre movimento/ruído e perturbação dos deuses parece uma concepção tipicamente babilônica — que não encontra paralelo, por exemplo, entre gregos, hititas e outros povos que habitam a mesma zona de convergência cultural. O tema do sono divino, contudo, deixou rastros entre os hebreus, em geral não no sentido de que Yahweh quer dormir e não pode, mas afirmando-se que ele deve ser despertado (cf. MROZEK; VOTTO, 1999, p. 419).

É especialmente interessante que o motivo da gritaria humana que impede um deus de dormir se encontre em encantamentos destinados a fazer cessar o choro de bebês. Assim, por exemplo,

Encantamento: O bebê que faz nervoso seu pai,
Nos olhos de sua mãe põe lágrimas
Com sua gritaria, com a gritaria de seu choro,
Kusarikku ficou assustado e Ea acordou.
Ea acordou e não consegue dormir,
Ishtar não pega no sono! (apud OSHIMA, 2014, p. 280)


Versos 41-46: A função desse desfecho parece ser resguardar Tiámat, atribuindo-se inteiramente a Apsu a responsabilidade dos próximos acontecimentos. De qualquer modo, não deixa de ser surpreendente que Tiámat, de quem a algazarra dos deuses especialmente perturba as entranhas (não se afirma isso com relação a Apsu), seja justamente quem recusa qualquer tipo de ação (ao contrário do que acontecerá depois). A diferença de atitude estaria em que, aqui, apenas Apsu se sente perturbado, ao passo que, mais à frente, será um conjunto de deuses que se dirigem a Tiámat, como seus filhos, pedindo providências para fazer cessar o flagelo do movimento provocado pelos ventos no interior dela, movimento que não os deixa dormir, enchendo-os de fadiga, os olhos estropiados. Seja como for, é significativo que o narrador afirme que a cólera de Tiámat decorre do fato de Apsu ter-lhe lançado "maldade" (lemuttu) nas entranhas.


Talon interpreta que, com uggugat ēdiššiša ("enraivecida ela só", v. 43), o texto dá a entender que Apsu e Múmmu partiram e que Tiámat foi deixada sozinha. A ser assim, a pergunta "Por que nós o que engendramos destruiríamos?", bem como o conselho que se segue, "Sua conduta é molesta? Suportemos benignos!", não seriam dirigidos aos dois (ou em especial a ele, Apsu), mas representariam uma reflexão dela consigo mesma: "deixada só, ela termina por acalmar-se e decidir não fazer nada, apesar do mal que lhe fizeram as palavras de Apsu". Essa mudança de cena esclareceria como, na passagem que imediatamente segue, Múmmu se dirige a Apsu supondo que ambos se encontrem sozinhos (TALON, 1992, p. 7-8).

Observe-se que a introdução do discurso direto de Tiámat é especialmente longa — quatro versos introdutórios para apenas dois de fala —, o que tem como resultado reforçar a importância do que ela diz (cf. VOGELZANG, 1990, p. 56 et passim). Também Talon, que divide o poema em quadras, observa que os dois versos com a fala de Tiámat impõem uma quebra no esquema quaternário, tendo como resultado ampliar seu efeito: "Nesses dois versos, Tiámat lança, de qualquer modo, um apelo à estabilidade. A ruptura do estilo sublinha esse fato, põe-no em evidência e tem um aspecto dramático certeiro" (TALON, 1992, p. 8).


Versos 47-78: O relato da derrota de Apsu constitui passagem estreitamente conexa com a anterior (v. 21-46), pois em ambas o que se narra é a saga deste deus. Considerando ambos os trechos, o que logo se constata é que se trata de episódio bastante curto (58 versos), todavia, abordando acontecimentos de enorme importância tanto do ponto de vista de suas conexões internas quanto externas.


Desta última perspectiva, fica evidente o caráter etiológico da narrativa. Antes de ser personagem do poema, Apsu tem o estatuto cósmico apontado antes — a massa de água sobre o qual a terra se assenta, noutros termos, ao lado do céu e da superfície da terra, ele é o terceiro elemento da geografia cósmica, bem como — recorde-se mais uma vez — é a morada de Ea, que divide o cosmo com Ánu (a quem cabe o céu) e com Énlil (que domina a superfície da terra). Assim, é evidente a intenção etiológica do poeta: ele visa a esclarecer por que e como Apsu, o protodeus, terminou por ser o Apsu, lugar cósmico; e porquê e como o Apsu coube ao deus Ea.

Do ponto de vista das conexões internas, o entrecho dedicado a Apsu — com sua perturbação, tentativa de aniquilar os outros deuses, derrota e transformação na morada de Ea — responde à necessidade de prover um local ilustre para o nascimento de Márduk, que será narrado no trecho imediatamente seguinte. De fato, é no passo em causa que Apsu termina por discernir-se claramente de Tiámat, tornando-se a morada de apenas dois dos deuses e o local de nascimento de apenas um deles, Márduk. Pode-se assim aquilatar o quão indispensável é a saga de Apsu na economia do poema.

Configurada em seus dois movimentos — a perturbação e a derrota —, Gabriel (2014) chama a atenção para a importância que tem, na organização poética do relato, o uso reiterado do verbo pašāḫum, que traduzi sempre por "repousar. Assim,


a)de início ele marca a perturbação de Apsu, quando o deus declara que "de dia não posso repousar" (urriš lā šupšuḫāku, v. 38);
b) em seguida, Múmmu o incentiva a aniquilar os deuses, para que "de dia possas repousar" (urriš lū šupšuḫāt, v. 50, sendo de notar como se trata da mesma expressão anterior, com mudança apenas da pessoa verbal e do advérbio de negação para a partícula desiderativa , o que produz claro efeito poético);
c)mais à frente, é o narrador quem afirma que Ea, lançando seu encantamento contra Apsu, "na água o fez repousar" (ina mê ušapšiḫ, v. 63);
d)enfim, depois de sua vitória e de fazer do Apsu sua morada, Ea "em repouso sossegou" (šupšuḫiš inīḫma).


Fica bem marcado como todo entrecho tem sua amarração no desejo de repouso que move não só Apsu, como as outras personagens envolvidas, incluindo o próprio Ea.


Versos 47-50: Talon considera que esta "cena [...] começa de algum modo in medias res, com a resposta de Múmmu a uma pergunta não formulada no texto", o que reforçaria "a hipótese evocada antes de uma mudança de cena" entre a parte anterior e a presente. Ora, o uso do verbo apālum, 'responder', parece-me que implica em simples contradição com o que Tiámat declarara imediatamente antes com tanta ênfase ("Por que nós o que engendramos destruiríamos?/ Sua conduta é molesta? Suportemos benignos!"), sendo a isso que Múmmu retruca, aparentemente já sem a presença da deusa ("Retrucou Múmmu, a Apsu aconselhou"). Ressalte-se que é ele qualificado como "intendente insubmisso" (šukkallum lā māgiru), o que reforça mais sua contraposição a Tiámat. Enfim, observe-se como a introdução ao discurso direto tem a mesma medida de dois versos que o próprio discurso.


Versos 53-54: Há uma variedade de entendimentos destes versos com relação a quem é o sujeito dos três verbos. Elli traduz: "Abracció il collo di Mummu (costui) si sedette sulle sue ginocchia (mentre Apsû) lo bacciava" (ELLI, 2015, p. 84); Talon: "Il enlaça alors le cou de Mummu et/ celui-ci s'assit sur ses genoux, tandis que lui l'embrassait" (TALON, 2005, p. 80); Lambert: "Mummu put his arms around Apsû's neck,/ He sat on his knees kissing him" (LAMBERT, 2013, p. 53); o CAD (1956-2010): "Mummu sat on his lap and began to fondle him"; a minha tradução: "Múmmu abraçou-lhe a nuca,/ Assentou-lhe nos joelhos, a ele beijou".


Parece que Elli e Talon entendem que estes versos dão continuidade aos dois anteriores, em que o sujeito era Apsu: "E alegrou-se Apsu, brilhou-lhe a face,/ Pela maldade que tramou para os deuses, seus filhos". Todavia, três argumentos me fazem entender que o sujeito muda de uma frase para a seguinte: a) um de ordem gramatical, o fato de que o verso 53 comece com Mummu, não havendo razão para supor que não se trate de um nominativo, o próprio fato de ser expresso pelo nome do deus ressaltando a mudança de sujeito com relação à frase anterior (o acádio admite sujeito nulo, uma vez que os verbos têm conjugação que marca pessoa, número e gênero); b) o segundo argumento é de ordem estilística, o balanceamento perfeito entre os versos desta passagem, a saber, dois que introduzem o discurso direto de Múmmu (47-48), dois com esse discurso (49-50), dois com a reação de Apsu (51-52), dois com a calorosa manifestação de Múmmu (53-54); c) o último, da ordem da tradução, a opção de dar o texto com a maior simplicidade possível, não vendo eu razão para não traduzi-lo literalmente, inclusive respeitando a ordem em que as palavras nele se usam: "Múmmu abraçou-lhe a nuca,/ Assentou-lhe nos joelhos, a ele beijou".

Talon adota o entendimento que ficou acima registrado, com pequena variação ("Il [Apsu] entroura de son bras le cou de Mummu et/ celui-ci s'assit sur sex genoux, tandis que lui l'embrassait") e interpreta que


é possível que os versos 53-54 representem mais que uma simples fórmula que marca o contentamento de Apsu. Este, com efeito, é o amante de Tiámat (ḫarmu, como Dúmuzi o é de Ishtar). Ora, o verso 54 poderia ser interpretado sexualmente e, nesse caso, Apsu quebra a ordem das coisas. Ele rejeita Tiámat e escolhe fazer de Múmmu seu amante. O paralelo é evidente com o que se passará na sequência, quando Tiámat escolherá um novato, Quíngu, para substituir Apsu, assassinado por Ea. (TALON, 1992, p. 9)


Versos 55-56: O ritmo do texto continua bem distribuído entre este dístico e o seguinte: a notícia que têm os deuses sobre o que Apsu e Múmmu tramam; e a reação daqueles.


No primeiro caso, é significativo que se use o termo puḫru, 'assembleia', para designar o acerto feito entre Apsu e Múmmu. Ainda que ele possa significar também 'reunião', especialmente se referido a uma família, o sentido primeiro é de 'assembleia formal' de deuses ou do povo, para tomar decisões e efetivar procedimentos judiciais, sendo essa a acepção em todos os demais usos ao longo do poema (cobrindo o mesmo campo semântico, o autor utiliza também ukkinnu, empréstimo do sumério 'ukkin', aplicado, em especial, à 'assembleia dos deuses'). Com razão Bartash anota que o entendimento e a tradução desta passagem é dificil, pois, "nesse contexto, puḫru não pode ter um sentido institucional, já que só dois protagonistas [...] estão envolvidos" (BARTASH, 2010, p. 1086). É por essa dificuldade que Talon (2005) evita traduzir puḫru, preferindo dizer "tout ce qu'ils avaient comploté ensemble", do mesmo modo que Elli (2015) opta por "tutto ciò che avevano complottato insieme". Lambert (2013) não se furta de verter o termo, com mais precisão, por "gathering": "What they plot in their gathering".

É justamente o uso desviante do termo que entendo dar ao passo um sentido claramente irônico: só pode ser irônico que uma conversa de dois (recorde-se que a terceira personagem que poderia nela estar envolvida, Tiámat, recusou isso) leve a uma decisão tão drástica, que afeta todos os deuses. Para transmitir essa ideia, traduzi puḫruššun (a assembleia deles) por "tal assembleia", isto é, uma assembleia ilegítima, que não só envolve um senhor e seu intendente, como termina com este abraçando, sentando no colo e beijando aquele.


Verso 57-58: A notícia do que se decidiu na tal assembleia provoca nos deuses duas reações: a primeira, ficarem "desarvorados" (cf. dâlu, 'mover-se em volta', 'correr à volta', 'disturbar-se'); a segunda, ao contrário, aquietarem-se. Em mais de um ponto da narrativa os deuses agirão, em conjunto, desarvorados (ou em frenesi, como traduz Lambert), atitude que se aplica também a Tiámat, quando da preparação da guerra, nas cenas seguintes. Aqui, o fato de que imediatamente se assentem em silêncio, faz com que a reação não destoe da lógica que rege toda a saga de Apsu, ou seja, a alternância entre movimentação e repouso, este último expresso, neste caso, pelo verbo (w)ašābu, 'sentar-se', usado quatro vezes: a) Apsu e Múmmu assentaram-se junto de Tiámat; b) Múmmu assentou no colo de Apsu; c) os deuses assentaram em silêncio; d) no último verso desta seção — ou seja, na conclusão mesmo da saga de Apsu—, Ea e Dámkina com grandeza assentaram-se.


Versos 59-62: Estes versos trazem Ea de novo para o centro da narrativa, provendo, portanto, a ligação entre a presente passagem, que é uma narrativa de sucessão, e o relato teogônico inicial (v. 1-20). O paralelismo narrativo é perfeito: na teogonia ia-se de Apsu até Ea, o deus que não tinha igual entre seus irmãos; aqui, na sucessão, vai-se por igual de Apsu até Ea.

É significativo que o retorno de Ea se faça com uma série de qualificativos que tanto confirmam quanto ampliam o que dele havia sido dito antes. Observe-se como os dois trechos se atam:

v. 17-20

dNudimmud ša abbišu šālissunu šuma
palka uzru ḫasīs emūqān pungul
guššur ma´diš ana ālid abbišu Anšar
lā iši šānina ina ilāni atḫêšu

Nudimmud, a seus pais, era quem dominava, ele,
De todo agudo, sagaz, em força robusto,
Vigorosíssimo, mais que o procriador de seu pai, Ánshar,
Não tinha igual entre os deuses, seus irmãos.

v. 60-62

Ea ḫasīs mimmama iše´´ â šibqišun
ibšimšumma uşurat kali ukišu
unakkilšu šūtura tâšu ellum

Ea, em tudo sagaz, desvendou-lhes o plano,
E produziu todo o ardil, fê-lo firme,
Foi astucioso: superior era seu encantamento puro.

O encaixe entre as duas passagens se dá, como se vê, pela reiteração do adjetivo ḫasīsu, 'sagaz' (recorde-se que, como substantivo, o termo significa tanto 'orelha' quanto 'sabedoria'), ou seja, é a sagacidade de Ea que permite a amarração entre teogonia e sucessão — essa inteligência que aqui se demonstra exatamente como acuidade de audição, uma vez que a vitória depende da capacidade do deus em desvendar os planos de Apsu.

No primeiro caso o da genealogia — são duas as qualidades superiores que se atribuem a Ea, acuidade/sagacidade (cf. uznu/ḫasīsu) e força (emūqu); no segundo — o da sucessão —, sagacidade (ḫasīsu) e astúcia (cf. uşurtu, 'plano', 'desígnio', 'ardil'; e unnakkil, pretérito de nakālu, 'ser astuto, hábil, esperto'). Ora, se sagacidade se aplica aos dois casos (no primeiro sendo relativa ao que poderíamos entender como dotes naturais do deus; no segundo, aos requisitos para que ele entre em ação), quando se trata de agir o que se realça é a importância da astúcia — e não da força — como complemento da sagacidade. Isso está inteiramente de acordo com o caráter de Ea.


Verso 62-65: Depois de ressaltar que Ea age com astúcia, o verso 62 introduz o meio por qual ele a exerce: seu "encantamento puro" (tû ellu) — e aqui devo confessar uma derrota como tradutor: não encontro em português uma palavra bem breve que possa verter , 'fórmula de encantamento'.

Essa fórmula produz nada menos que aquilo a que Apsu aspirava: seu repouso. Os versos 64-65 são enfáticos nesse sentido, explorando o recurso paralelístico do quiasma:

šittu irteḫīšu
sono derramou/inseminou nele
ṣalil tubbātiš
dormiu em paz
ušaṣlilma Apsû
fez dormir Apsu
reḫi šittum
derramado/inseminado em/com sono

Além da palavra 'sono' (šittu) e do verbo 'dormir' (ṣalalu) — ambos usados duas vezes—, o que remete diretamente ao encantamento é o verbo rehû, que tem dois sentidos: a) 'derramar', 'verter' um líquido; b) 'inseminar', isto é, "derramar sêmen'. Nos dois casos, isso implica que o encantamento introduz algo (o sono) em Apsu, a propriedade de uso de um termo relativo a líquidos para explicitar a natureza do encantamento devendo-se ao fato de que o próprio Apsu é água.

Mais ainda: se, como se afirmou no início, além de ser água Apsu é também macho, o que de algum modo implica que era ele que derramava sêmen em Tiámat, a fêmea, para que fosse então gerada a prole de ambos, aqui o processo se inverte, pois, em vez de inseminar, é Apsu quem é inseminado (pelo encantamento de Ea), o resultado dessa inseminação sendo não a produção de algo, mas o mergulho num estado de inanição e improdutividade. Esse motivo narrativo não é estranho a outros mitos de sucessão: na Teogonia de Hesíodo, o Céu (Ouranós), uma vez emasculado por seu filho Crono, afasta-se definitivamente da terra, perdendo sua potência procriativa.

O traço mais relevante, contudo, é que Ea faz nada mais que realizar o desejo de Apsu.


Verso 66-72: Depois de descrever o que se passa com Apsu, o narrador faz com que se lance um breve olhar sobre Múmmu, que se encontra associado àquele desde o início desta passagem: "Múmmu, o mentor, extenuado atordoava-se". Antes, ele havia sido chamado de sukkalu ('intendente', 'administrador'), agora se diz ser o tamlāku (conselheiro', 'mentor') do deus, o que ressalta sua responsabilidade na trama.


É habilidosa a forma como o narrador entretece o que diz respeito a um e outro deus neste ponto culminante da saga: após três versos relativos a Apsu, intercala ele um verso sobre Múmmu; de novo, mais três versos sobre Apsu, seguidos por um relativo a Múmmu; enfim, um verso sobre o destino final de Apsu, mais um sobre a sorte final de Múmmu:


E recitou-o, nas águas o fez repousar,
Sono nele inseminou, dormiu ele em paz,
E fez dormir Apsu do sono nele inseminado.
(Múmmu, o mentor, extenuado atordoava-se.)
Desatou-lhe os tendões, arrebatou-lhe a coroa,
Sua aura tirou, em si revestiu-a,
E encadeou Apsu, matou-o.
(Prendeu Múmmu, sobre ele pôs a tranca.)
Firmou sobre o Apsu sua morada.
(Capturou Múmmu, reteve-lhe a brida.)


Esse recurso paralelístico tem um efeito rítmico notável e, por sua extrema precisão, realça a importância desta passagem (para reproduzi-lo de algum modo na tradução, pus o que diz respeito a Múmmu entre parênteses, já que se trata também, na distribuição da atenção que se dá a cada personagem, de apresentar o papel de Apsu como dominante). A comparação com a derrota de Tiámat por Márduk, na tabuinha 4, demonstra que não se trata de um esquema narrativo aleatório. Como aqui, também naquele caso demora-se nas ações cumpridas por Márduk contra a deusa (depois de lançar-lhe dentro os ventos, "ele atirou uma flecha, rasgou suas entranhas,/ Seu interior cortou, retalhou-lhe o coração./ Encadeou-a então, sua vida exterminou:/ Seu cadáver lançou, sobre ela ergueu-se", 4, 100-104), para em seguida prestar atenção no que acontece com seu séquito ("E os deuses, seus aliados, que iam a seu flanco,/ Tremeram, amedrontaram-se, voltaram atrás./ Saíram e sua vida salvaram./ Cerco os envolvia, fugir não podiam./ Capturou-os ele e suas armas quebrou...", v. 4, 106-111).

Versos 67-69: São cinco as ações a que Ea submete Apsu: a) desatar-lhe os tendões; b) arrebatar-lhe a coroa; c) tirar-lhe a aura; d) encadeá-lo; e) matá-lo. Examinemos cada uma delas e seu significado.


O fato de que Ea arrebate a coroa de Apsû mostra como se trata de uma sucessão no poder, o mesmo podendo valer para o riksu, que em geral se traduz como 'faixa', outro signo de realeza (cf. BOTTÉRO; KRAMER, 1993, p. 607), mas que também admite o entendimento proposto por Lambert, 'tendão', que é o que adoto, por considerá-lo mais pertinente: depois de sedar Apsû, Ea rompe-lhe o tendão e provoca a dissolução dos vínculos que faziam do protodeus um ente ativo, levando-o a assumir (ou retornar a) uma forma passiva (cf. LAMBERT, 2008, p. 38). Note-se que essa é a primeira das ações de Ea, provavelmente a mais importante, pois tem impacto na própria natureza de Apsu, apenas em seguida vindo o arrebatamento de sua coroa, relacionada com sua função como o rei dos deuses.

Terceiro movimento: Ea tira de Apsu a "aura" (melammu). Esta palavra, melammu, é a forma acádia de 'melam', termo sumério que designa o brilho que brota de deuses, heróis e mesmo reis, bem como de templos ou de emblemas sagrados. Muitas vezes se afirma que os deuses 'vestem' sua 'aura' (ou sua 'coroa'), a qual, portanto, pode ser-lhe tirada e, se um deus morre, seu melammu se extingue (BLACK et al., 2000, p. 130-131). Nesta passagem, a natureza da aura enquanto espécie de adereço da divindade fica realçada, pois, diferentemente de nas ações anteriores, não se trata apenas de Ea arrebatá-la de Apsu, pois ele tira-a dele para revestir-se com ela (observe-se que isso se faz antes da morte de Apsu).

Desatar-lhe os tendões e arrebatar de Apsu os signos de realeza e divindade são pré-requisitos para os últimos desdobramentos: encadeá-lo e matá-lo (cf. SONIK, 2012, p. 87). Parece que essas duas ações se entendem como quase simultâneas, sendo para elas que confluem as anteriores, as quais tiram de Apsu seu caráter ativo, enquanto procriador e rei, para mergulhá-lo em passividade: "Ea dá cumprimento, num sentido perverso, ao desejo de Apsu de encontrar descanso, o que o leva à matança do ser primitivo. A importância de descansar é revertida neste ponto e direcionada contra o ser primordial" (GABRIEL, 2014, p. 123).


Verso 73-74: O cumprimento final de uma ação heroica exige que o vencedor se erga sobre seu adversário, como acontece aqui, configurando seu triunfo. O mesmo se dará, mais à frente, quando Márduk derrotar e matar Tiámat: "Encadeou-a então, sua vida exterminou;/ Seu cadáver lançou, sobre ela ergueu-se" (4, 103-104).


Versos 75-78: Nos dois dísticos finais do episódio, deuses e mundo são reconduzidos a um estado de equilíbrio, o que condiz com a função que Ea desempenha em várias narrativas. Esse equilíbrio é conquistado com a conversão de Apsu num lugar, o que representa uma espécie de preliminar, em grau menor, do que será posteriormente a luta de Tiámat e sua derrota para Márduk: do mesmo modo que mais à frente o cadáver da deusa se tornará céu e terra, isto é, dois terços do mundo, aqui o cadáver do deus vencido se torna um terço dele, o Apsu.


Mais que com relação a Márduk, neste caso a ação afeta especialmente o vencedor, Ea, tanto que, afinal, na conclusão dos trabalhos, é de seu próprio repouso que se trata, ou seja, ele próprio conquista aquilo intensamente almejado por seu adversário. Note-se o jogo de espelhamento (ou substituições), com manutenção da mesma sintaxe: a) Apsu planeja eliminar os deuses, dentre os quais Ea, para gozar de repouso; b) mas é Ea quem termina por eliminar Apsu e gozar de repouso. Em resumo, nos termos de Sonik (2012, p. 90),

o autor do Enūma eliš tem um senso de humor peculiar: Apsu, que buscava destruir os deuses para que pudesse dormir, é posto num profundo sono por Ea, a fim de ser morto, alcançando, assim, antes da morte, o desejo de seu coração (1, 65-66). Depois, tão logo mata Apsu, Ea retira-se ele próprio para seus aposentos, construídos sobre o cadáver de Apsu, e de imediato goza de um bem merecido e pacífico sono (1,75).
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Recebido em: 25 de maio de 2020.

Aprovado em: 10 de junho de 2020.

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  1. Com relação aos nomes próprios acádios, a identificação das sílabas tônicas segue normas bem precisas (cf. Huehnergard, 2005, p. 3-4), o que orienta a forma como os acentuo, conforme os usos do português. No que diz respeito aos nomes próprios sumérios, uma língua de que se conhece mal o sistema fonológico, deixo-os sem nenhum acento, a não ser quando são correntes também em acádio, caso em que uso do critério anterior (Énlil, Úruk).
  2. Cf. Lambert (2013, p. 3-4).
  3. Cf. Yingling (2011, p. 38); cf. também Bottéro; Kramer (1993, p. 603); e, com extensa abordagem da questão e argumentação convincente, Lambert (2013, p. 439-444).
  4. Cf. Brandão (2017, p. 15-16).
  5. Cf. Heidel (1951, p. 3), as traduções são as seguintes: A. Ungnad, Die Religion der Babylonier und Assyrer (Jena, 1921); Erich Ebeling, Das babylonische Weltschöpfungslied, in Bruno Meissner, Altorientalische Texte und Untersucungen (Breslau, 1921); S. Langdon, The Babylonian Epic of Creation (Oxford, 1923); S. Langdon, Babylonian Penitential Psalms to Which Are Added Fragments of the Epic of Creation from Kish (Paris, 1927); E. A. Wallis Budge, The Babylonian Legends of the Creation (Londres, 1931); Anton Deimel, “Enuma eliš” und Hexaëmeron (Roma, 1934).
  6. Às boas inciativas levadas a cabo neste milênio, acrescente-se a obra de Alberto Elli, Enūma eliš: Il mito babilonese della creazione, publicada em 2015, em que se reproduz o texto cuneiforme de Talon, acompanhado de transliteração, normalização do acádio verso a verso, comentários lexicais e gramaticais, além de tradução para o italiano. O livro se encontra disponível gratuitamente no site mediterraneoantico.it.