Ó Dor das Origens milenárias! Divina Consagração das Lágrimas! Seio profundo e misterioso das Apoteoses negras do Gemido e do Soluço! Dor das supremas Dores! Dor da imponderável Saudade! Que tu sejas neste momento comigo e me unjas com a tua espiritualizante graça...
Sim! Devia ser em sonhos, num fundo de fosforescências e neblinas, que eu vi a tua sombra, o teu vulto — certo a tua carne, o teu corpo, palpitando vida, caminhando para mim, espectral e ao mesmo tempo vivo, dessa vida que respira, que fala, que olha, que olfata, que gesticula e ondula...
Sim! foi em sonhos!
Não sei que estado eu experimentava em certa hora, que estado de nervos, de sensibilidade, de vibração; não sei que música dolente de melancolia, nem que amargurantes tristezas patéticas de saudade me invadiam em certa hora, que distintamente, nitidamente vi! — vi e senti que estava perto de mim aquela Sombra santa e amada que eu perdera um dia no Letes do esquecimento que a Morte cava...
Não era alucinação nem pesadelo — não era alucinação: eu estava sentindo diante de mim, como se surgisse do caos da Existência, aquela Sombra muda, mas viva, que caminhava para mim resolutamente, na afirmação vital do Ser.
Percorria-me um frio álgido o corpo todo, um frio de pavor, pavor de vê-la, medo de olhá-la assim, naquela imprevista ressurreição.
Ah! eu a amara muito, muito, com a eloqüência profunda de um sentimento que não era talvez bem amor, mas sagração, adoração, fé religiosa, veneração e compaixão. Um sentimento que subia como incensos da minh'alma, que se exalavam ante a sua Imagem, como num altar sagrado. Sentimento épico, quase clássico, como por mármores augustos, por antigos templos cristãos. Um sentimento de carinhosa piedade patriarcal pelos seus sacrifícios, pela sua abnegação, pelos seus afetos extremos e dedicações sem limites, pela sua lhaneza estóica, pela sua caridosa ingenuidade humana, pela sua celeste ternura e misericórdia.
Mas a Sombra avultava, crescia, avultava mais, destacava da treva donde surgira, da treva do Além, das geladas névoas do sepulcral Silêncio... E das névoas, das névoas sepulcrais dos crepúsculos lôbregos, das tenebrosas argilas, vinha ela, numa transfiguração, surgindo viva: — vivas as carnes palpitantes, vivos os olhos amargurados, vivas as mãos batalhadoras, vivo e vibrante o coração majestoso de infinita bondade.
Eu a vira, a princípio em linhas indecisas, vagas, o contorno apagado, esboçado apenas num meio-tom de luz esmaecida como numa pálida claridade de lua d'alta noite, quando já os aspectos fulgurantes vão esmaiando, esvaindo lentos e perdendo a graça vaporosa e velada com as primeiras cores de rosa, os primeiros diluimentos e tenuidades da madrugada...
Depois, todo aquele fantasma tomava miraculosa feição singular, pouco a pouco; compunha-se todo aquele sistema de nervos, ampliavam-se aquelas formas, ganhavam as essenciais correções, a estrutura de um corpo vitalizado que age, que move-se, que sente.
E a Sombra buscava-me, caminhava para mim resolutamente.
Como círculos concêntricos de uma luz palejante, iam-se formando em torno dela auréolas, etéreos resplendores, nimbos diáfanos, refulgências de meteoros, vaga tonalidade violácea e amarelada, cintilas de ardentia, como que as dormentes refrações ouro-aço-azuladas de um sol de eclipse...
Parecia-me que ela vinha transfiguradamente irrompendo por entre discos, discos, discos e discos luminosos que se multiplicavam, que se acumulavam, num movimento de rodomoinho de sílfides aéreas vaporosamente circulando, girando em volta de lácteo clarão de leve luz nevoenta e gelada de uma lua polar...
Tais cambiantes, tais miríades de cintilações iriadas afetavam-me de tal modo a retina absorta, que nova e original comoção, nova sensibilidade a tocava, como de um ritmo fino...
Misticismos de êxtases, delicadezas de sensação, espasmos de ascetas enclausurados, de mártires lívidos nos cilícios da penitência, serenos na suprema Dor — circunvolviam-me de uma ideal beatitude de atenção resignada, para vê-la, para olhá-la, para reparar, trêmulo, no seu aspecto de Passado, de Esquecimento, de Túmulo, percorrendo com magoada ternura nos olhos todas as meigas curvas de sua face que eu beijara, como se o meu olhar deslumbrado tivesse tato, a apalpasse; evocando com lancinante saudade toda a angústia da sua velha e fatigada cabeça que eu tanto amara.
Doía-me aquela Aparição, afligia-me aquele Ressurgimento, tão vivo na minha presença, tão tangível ali, tão flagrantemente, que eu não sei de abnegações nem de resignações humanas, só celestes, só divinas! capazes de sofrer, sem estranha convulsão d'espanto, essa realidade móvel que vinha do Desconhecido...
E a Sombra buscava-me, caminhava para mim resolutamente!
Uma onda forte de emoções me inebriava, me atordoava como uma dor física, fazia-me pairar num círculo dantesco de fenômenos, paralisando-me a voz, o gesto, o andar, mumificando-me à Terra.
Só, dentro do meu cérebro, o pensamento girava, funcionava como em brumas muito altas, num revolvimento de germens recônditos; formavam-se mudamente idéias que não achavam a expressão eloqüente da linguagem, tão confusas e atropeladas de terror sagrado vinham elas...
Mas um mistério maior desolava-me de morte, torturava-me, dava-me o suplício gelado de achar-me vivo numa sepultura: — o mistério da semelhança!
Ela parecer-se comigo, ter os mesmos traços, certos estremecimentos da face, o mesmo olhar, o mesmo espesso lábio sensual, a mesma expressão nostálgica de beduíno no semblante, a mesma fugitiva melancolia — tudo, tudo isso me flagelava, eram tormentos insanos que eu sofria calado, parecendo que ela trazia em si, em impressionismos abstratos, desfeita, desaparecida, muita sensação que já fora minha, muita esperança, metade da minh'alma já morta, partículas originais de afeto, de cuidados, segredos e curiosidades íntimas, perdões e clemências que tinham ido embora para sempre com ela.
Uma infinidade de sentimentos obscuros, secretos, eu via passar, ondulando, através daquela Sombra, como através de um espelho fantástico que ali estivesse milagrosamente refletindo paixões...
Eu existia naquela semelhança perseguidora, naquela semelhança que parecia reproduzir imensa aluvião de fenômenos da alma que já dormiam eternamente no meu ser...
Eram períodos gradativos e curiosos, a evolução lenta de organismo novo que procura adaptar-se à Vida, a intuição eloqüente dos Destinos, formando grandes e enevoadas colunas de mistério, como as hebraicas colunas de fogo...
Então, eu via-me ali quase que vivendo em parte, tendo bem pouco do que tinha quando ela, de fato, vivia — via-me em parte, porque se ela na existência trouxera o meu sangue e esse sangue gelara, deixara de circular nas suas veias, certo era que bem pouco desse sangue eu trazia também agora a circular nas minhas.
E sentia diante de tão flagelante semelhança, uma dualidade de natureza operando em mim mesmo: — a que partia, fremente, do meu ser, que existia no meu eu e a que partia, estranha, daquela Sombra móvel... E no espírito crescia-me a obsessão de que ambas essas naturezas, pertencendo-me, se desequilibravam no entanto no plano geral de existirem unas e indivisíveis. Uma era a natureza real, a propriamente minha; outra era a natureza da Sombra, estranha. E eu debatia-me, debatia-me com ânsia para libertar-me da segunda e envolver-me todo, isolar-me, concentrar-me e subjetivar-me, profunda, fundamentalmente na primeira...
E eu lutava, bracejava doloridamente, bracejava, tateando numa dúvida cruciante, para sair fora daquele cárcere de angústia, para desprender-me daquela tumular Visão, para fugir daquele mirrado esqueleto a que eu estava agrilhetado e cujo impressionismo de pavor me dilacerava e queimava as carnes, me devorava como uma chaga, rasgava-me a punhaladas o coração, hipertrofiava-me, despedaçava-me os nervos...
E eu abria muito os olhos, assombrado, num espanto mudo... E um silêncio negro e gelado e espessas névoas de sono pesavam no ambiente... E nos olhos passavam-me deslumbramentos cegantes, visões pulverulentas de além-sepulcro... E eu abria cada vez mais os olhos, assombrado, num espanto mudo... E eu abria cada vez mais os olhos, cada vez mais, cada vez mais... E os olhos, espasmados de terror, aflitos, perseguidos pela Sombra, parecia-me senti-los crescer, dilatarem-se, grandemente, longamente, rasgadamente abertos e fascinados pelos magnetismos letais da Sombra...
Invadia-me um desejo angustioso, soluçante, um delírio mortal de gritar, de gritar alto, atroadoramente, de encher todo aquele ambiente com os meus gritos desesperados; mas, apenas meus lábios se moviam para gritar, um soluço estrangulador guilhotinava-me a voz, desarticulava-me a língua, e apenas rouco, surdo, absurdo som ininteligível, como o grunhido animal de um mudo, rolava, arrastava, rangia áspera, pedregosamente na garganta o seu torvo tartamudismo.
Parecia-me que se eu gritasse, se abalasse a atmosfera com grandes e longos brados, talvez que o Fantasma, assim arrebatado, assim repelido, assim violentamente sacudido pelos gritos, se aterrorizasse e desaparecesse...
Parecia-me que esses gritos de terror sobrepujariam, venceriam afinal o alucinante fantasma, que era o próprio terror...
Mas ao mesmo tempo, temia que esses gritos, como um vento sinistro que levanta, torna mais intensas as chamas de um incêndio, despertassem, acordassem de repente com impetuosidade, com estranha veemência, a vida insana, estupenda, que eu imaginava estar nebulosamente dormindo lá dentro, lá bem no fundo misterioso desse Fantasma.
E a Sombra buscava-me, caminhava para mim resolutamente!
Por um fenômeno singular de visão, que os nervos superestesiavam, eu a via, ora perto, ora longe, mais longe, muito longe, quase já sumida, já apagada no fundo das cinzas da distância, vindo e se afastando, se afastando e vindo para mim...
Mas que germens ocultos fecundaram de novo aquela vida, que seivas inauditas a geraram de novo, que filtros mágicos, maravilhosos, a ressuscitaram, que ela me aparece de tal forma agora, muda, muda, caminhando serenamente para mim, solene e augusta na divinal atitude, sublime, egrégia, como se fosse soberanamente julgar as almas no supremo Juízo Final!
E como eu a reconhecia então — ela — a mesma que a Imaginação sonhara — Mãe! Mãe! Mãe! — três vezes bendita entre as mulheres, três vezes crucificada de Agonia!
E toda a longínqua e azulada colina de um passado foi se desnevoando, desnevoando, aparecendo aos meus olhos, bíblica, povoada dos brancos e mansos rebanhos da paz, da alegria, da suavidade infantil, da adolescência ingênua, guardados pelo amor daquela Sombra, — cândido pastor, simples e tranqüilo, vestido de linho alvo, guiado pela estrela simbólica, sob a clemência dos Céus...
E por que me viera assim surpreender essa heróica e transcendente Aparição? O que vinha ela saber de mim? O que quereria nesse extremo momento? O que buscava? A minh'alma, o meu pecado, o meu crime em viver ainda e abandoná-la no Além, só e fria, enterrada tantos torvos palmos, tão profundamente enterrada na terra lutulenta e enregelada? O que buscava ela? O que procurava em mim assim surgindo, andando sonâmbula, vagando sem rumo e rumor como sobre onda, nuvem, espuma?
Mas por que me aparecia ela agora? Seria para exprobrar-me o passado? Seria, por acaso, porque não pude envolver na vida em mais delicados cuidados e recônditas carícias as suas longas dores angustiadas?! Ah! porém ela agora está morta, ela agora está morta! Se estivesse viva sentiria então que devotamentos, que consagrações, que inabaláveis, que terríveis dedicações a cercariam, defendendo-a, como couraças e lanças gloriosas de um soberbo e insólito heroísmo; como eu a estremeceria de um amor infinito, como eu lhe votaria afetos supremos, entranhados, profundos!
Que segredos tremendos me vinha agora fazer essa Sombra viva, que eu sentia, que eu via, olhando-me muito, em silêncio, mergulhando os seus olhos cavados nos meus olhos, estendendo — ah! horrível! — os braços longos, para mim, como para abraçar-me num abraço, por certo, gélido, num abraço, por certo, esquelético e terrível!
Oh! como era lancinante, que aflição de afogado ante essa Visão que me chumbava os pés, que me punha um peso imenso de pavor na língua, um suor letal na fronte e como que lúgubres cadeias de ferro nos pulsos!
Como era dolorosamente, lugubremente medonho o seu caminhar tateante, oscilante, mas que seguia resoluto para mim, perseguindo-me, atraindo-me como um demônio, fascinando-me como um filtro pecaminoso, como um vício secreto, como um mal doentio, como uma serpente magnética, como uma nevrose fatal!
E a Sombra caminhava, caminhava para mim resolutamente, resolutamente, agora com o passo mais largo, alongando mais para mim o vulto hediondo... Caminhava, caminhava... E eu, pregado, estatelado ao chão, jazia inerte, hirto, petrificado, sem ação para libertar-me daquele horror... E ela perseguia-me, perseguia-me, inexorável Remorso! com o passo cada vez mais largo, alongando cada vez mais para mim o vulto hediondo, quase já — ó Trevas eternas! — tocando as minhas vestes, quase, quase... Quando, eu, quebrando, partindo, despedaçando todos os ferros de algemas das tormentosas masmorras do meu Sonho, num grande grito, afinal, por tanto e tão longo tempo angustiadamente sufocado, acordei de repente, esvaindo-se então a Sombra, de um sopro, retornando as letíficas, glaciais estradas do Além, de onde por instantes surgira...
Apenas o meu cérebro, atordoado ainda, adormentado, abatido, ficara, como dentre restos de fumo denso, de vapores espessos do fogo de sanguinolenta batalha, turbado pela pesada bruma letárgica do pesadelo que o invadira, subjetivamente chamando este monólogo amargo:
— Ah! Sim! Sim! Que estranho pavor! Que estranho pavor ter-te bem junto a mim, num contacto álgido — Tu! — que eu na Grande Hora da Vida amei já, lá para o passado dos anos! Tu, a quem eu consagrei Evangelhos de Adoração, altas venerações, sentimentos excelsos, solenes como elevadas torres de cristal tocando sideralmente as Estrelas...
Tu! que produziste a dolente, a magoada Obra de sangue da minha existência e a quem eu dediquei alma, afetos, ternuras, suavidades do coração, sinfonias beethovínicas do Amor, Tu! — misericordiosa! — Tu! — clemente para mim como nem os Céus o são!, Tu! — dá-me o teu perdão, o teu perdão, porque eu não poderia mais receber os teus abraços, os teus beijos, o teu olhar de sepulcro, teria de repelir-te e — ó! desespero dos Esquecimentos eternos! — de repudiar até a tua Sombra, tão grande e tão fundo seria em mim o terror de sentir-te perto!
Não que eu desdenhasse da tua Entidade amargurada, aflitiva, tristíssima, dolorosíssima; da tua bondade suprema, compassiva e comovente; não que eu crivasse de pungentes ironias a tua obscura alma presa, arrastada pelos ergástulos das lágrimas, abalada tragicamente por soluços...
Mas tu me aparecerias tão mudada, tão transfigurada por fluidos, trazendo tão prodigiosos eflúvios de outros mundos, tantos raios doutras esferas, tantas fantásticas expressões e singularidades absolutas da treva de atros, tetros báratros, que eu, frágil, que eu, matéria humana, que eu, tecido tênue de nervos, me aterrorizaria e sucumbiria de pasmo...
No entanto experimento ainda uma esquisita sensação de dor de lembrança, de saudade, se te evoco, se recordo os bens assinalados que me fizeste, a Criatura ideal que foste, tão meiga de bondade, que toda a carícia da terra é hoje para mim desprezível e vã diante do mar soberano da tua espiritual Afeição.
E, é só espiritualmente, só pela éterificação do Pensamento, que sinto que ardes ainda, em chama perpétua, nas majestosas lâmpadas evocativas dos sacrossantos ocasos das Recordações.
Mas, se por um absurdo da Natureza me aparecesses flagrantemente, tangivelmente viva, não mais esqueleto, não mais cadáver inteiriçado — seria tamanho o abalo, a convulsão do meu ser, tão intensos delírios e vertigens, tantas ondas de estremecimento me agitariam, tão latentes seriam as transfigurações, as metamorfoses dos meus sentidos, repudiando-te aterrorizado nesse momento — que até tu mesma, que foste Mãe piedosa, Mãe clemente, Mãe misericordiosa, desconhecerias teu filho e talvez então o amaldiçoasses, blasfemando; talvez lhe arremessasses à face Anátemas como pedras, desoladamente chorando e soluçando para sempre por tanto e tão doloroso desamparo e esquecimento eterno!...