A tal história da aniagem

Andam os jornais e a tribuna da Câmara num bate-bocas danado a propósito da diminuição dos impostos sobre as sacas de aniagem importadas.

As primeiras figuras do debate são o senhor doutor Jorge Street e o senhor doutor Veiga Miranda, deputado federal.

O primeiro é dos homens de fortuna que, pela sua inteligência, cultura e largueza de espírito, eu mais admiro.

Não posso negar aqui que já lhe pedi um favor, no começo da minha vida de escritor.

Ele leu meu primeiro livro, isto há mais de dez anos; e quis me ajudar.

Por intermédio do doutor Delamare que, por aqueles tempos dirigia a Fábrica Rink. eu lhe fiz um pedido, que não era de dinheiro; e, embora ele não me pudesse servir, eu lhe sou imensamente grato.

Conquanto atualmente eu me haja declarado inimigo irreconciliável do capitalismo, não posso deixar de demonstrar publicamente o meu agradecimento por tão generosa pessoa que saiu de sua importância e riqueza, para se interessar pela minha pobreza e humildade.

Digo isto aqui ao doutor Jorge Street porquanto pela nossa concepção de riqueza e propriedade, não me julgo muito separado de sua senhoria.

O seu último artigo, justificando a existência de associações operárias ou sindicatos, para tratar e discutir as suas questões com os patrões, mostrou muito bem que o doutor Jorge Street não era um ricaço vulgar.

Ele dizia muito bem que, em face do poder do capital, os operários só podiam lutar associados. Tinha toda a razão plenamente, e só os absolutos Andrades Bezerras, com uma erudição de última hora, extremamente pernóstica, podem contestá-lo. Esse reacionário senhor tem uma grande descoberta; é a sociologia católica. Porque semelhante deputado não descobre uma geometria muslêmica ou uma física budista?

Tudo isto, porém, não vem ao caso. Falava eu do debate entre os senhores Jorge Street e Veiga Miranda; e me alon­guei em tratando do primeiro. Seria, entretanto, injustiça não dizer alguma coisa sobre o segundo de quem tenho recebido favores inestimáveis.

O senhor Veiga Miranda é um grande romancista, talvez dos maiores da geração atual. O seu último livro - Mau Olhado -; é, em todos os sentidos, uma obra notável.

Tive ocasião de dizer isto em longo artigo que, creio, sua senhoria não leu, apesar de lhe ter eu enviado a revista.

Mas o que decorre dos seus livros é que o seu pensa­mento não passa de atividade mental completamente retró­grada.

Ele ama a fazenda e os fazendeiros e faz de ambos o núcleo da nossa civilização.

Talvez haja nisso um pouco de verdade; mas como é, doutor Veiga Miranda, que sua senhoria se esquece do es­cravo?

Uma coisa supõe outra e ambas têm de coexistir. Há um grande erro de lógica e de rigor artístico em querer separar as duas coisas ou mesmo ofuscar uma em favor da outra. Já os românticos, Bernardo Guimarães, José de Alencar e outros tinham pressentido isto; e os seus livros estão aí para mostrá-lo.

O seu amor à fazenda e ao fazendeiro leva-o a soltar na Câmara várias catilinárias contra os industriais que fabri­cam a embalagem, isto é, a sacaria de aniagem para o acon­dicionamento do café.

O senhor doutor Veiga Miranda, que sempre viveu no interior, deve saber que o que faz a miserável condição do nosso trabalhador rural, não foi a indústria das cidades, foi a indústria da roça. Não há chefe pior do que o fazendeiro, o usineiro de açúcar e o dono de seringal.

Um dono de fábrica de tecidos é, à vista de semelhante gente, muito melhor do que um dono de fazenda de café de São Paulo, que é uma grande peste nacional.

Eles se têm e se arrogam todos os direitos de senhor feudal, até o de primícias.

Não quero citar fatos, mas o senhor doutor Veiga Miranda quis desafiar-me e mencionou o caso que se passou com um irmão de uma grande pessoa que chegou a ser até pre­sidente da república. Foi a tal nobreza rural que desmora­lizou a gente rural...

A questão da aniagem é uma das burrices da república que eu odeio. Eles, os legisladores republicanos, criaram o protecionismo imbecilmente ou por desonestidade. Não sa­biam com o que jogavam. Agora apelam para os interesses da nobreza rural (ex-Alfredo Ellis e o Zé Bezerra) que tem explorado os negros, os portugueses e italianos, para se enri­quecerem.

Os industriais, muito inteligentemente, caíram em cima deles e fizeram pagar as extorsões de tais lavradores que não sabem plantar, a toda uma população que o meu amigo Mon­teiro Lobato chama de jecas-tatus e fenece por aí.

À semelhante gente que quer criar até a tolice da Ordem dos Advogados, na minha despedida da vida, eu só posso dizer como o meu preto velho que me criou e eu o amei e ele me amou, Manuel de Oliveira: "eles que são brancos, que lá se entendam".

A.B.C., Rio, 27-9-1919