Jesus Christo, alçando em tantos logares, na actual Dispensação da Graça, a flammula sacrosanta de seu Evangelho, revela-se, mesmo, aos povos desconhecidos e barbaros e chama a si, por este meio, todos os habitantes do mundo, antes de executar sobre elles o ultimo julgamento. Porém os falsos christãos e, sobretudo, os apostatas, pela sua ingratidão e maldade crescentes, procuram impedir, mais do que os proprios tyrannos, a difusão da verdade, como resaltará da narrativa que vamos fazer e que nos deve estimular a seguirmos o Evangelho, embora com o sacrifício de nossas commodidades; a supportarmos, resignados, a fome, a sede, a nudez e todas as tripulações que Deus permittir nos sobrevenham para exercício, prova e aperfeiçoamento de nossa paciencia.

Como preparo indispensavel á boa intelligencia da historia dos primeiros crentes evangelicos que, por causa da sua fé intemerata na doutrina do Filho de Deus, regaram o solo brasileiro com o seu sangue, não nos occuparemos já de nosso principal assumpto e, sim, de seus preliminares – o inicio e o motivo da existencia de uma Egreja Reformada, segundo as Santas Escripturas, em paragem tão distante e apartada das nações[2].

A rememoração de tão notaveis acontecimentos, desenrolados por esse tempo, deve mover-nos a uma meditação continua sobre as maravilhas do Senhor, tanto mais quanto cremos que aquelles a quem cabe o dever de proclamal-as sentirão, no futuro, remordimentos de consciencia, si deixarem de cumpril-o; e taes considerações, aliás, levaram uma personagem digna de toda a fé a publicar, por escripto, tudo o que vira em referencia aos factos de que nos occupamos e a quem tornaremos, por emprestimo, as palavras e a narração que se seguem[3]: "Posto que a verdade, por si mesma, sem qualquer artificio, prevaleça contra a mentira, e não nos seja permittido accrescentar-lhe coisa alguma, todavia, quando opprimida durante certo tempo pelo esforço maligno dos adversarios, póde ella estar como enterrada. Mas um dia far-se-á, luz e aquillo que estivera profundamente occulto apparecerá em plena evidencia, afim de que no scenario do mundo se descubram os hypocritas e os cynicos."

Fructo e utilidade desta historia editar

Por esta razão, e porque seja louvavel reconduzir ao caminho direito os que delle se desviaram, urge tambem se torne conhecida a verdade quanto á tragedia de que o Brasil foi theatro; e, para consecução satisfatória de tal objectivo, importa comecemos pelo relato de tudo o que se convencionou, de tudo o que se fez e de tudo o que occorreu. Servira isto de aviso, para que d’ora em diante não se creia facilmente em coisas sobre que se não estiver bastante! intelligenciado e para que a respeito dellas não se exerça, com precipitação, um juízo definitivo.

O exposto seria motivo sufficiente para traçar-mes esta narrativa. Duas outras razões, porém, de não menos peso e valor, dão á tarefa o caracter de indeclinavel: a grandeza do facto e a circunstancia dos logares.

Sim, onde o historiador que haja registrado que nessa terra recentemente descoberta alguem tenha sido sacrificado e morto, porque ousára espalhar, ali, o conhecimento da Palavra de Deus? Os selvagens teem assassinado e devorado alguns Portuguezes e Francezes. Mas – qual a razão? Unicamente porque as victimas, pela sua propria avareza e ambição desmesuradas, os haviam ultrajado e offendido. Todos sabem perfeitamente que os Portuguezes e mesmo os Francezes que teem estado nessas regiões jámais falaram aos selvicolas uma palavra, siquer, no concernente a Christo Jesus Senhor nosso.

E porque os tres fieis cuja morte descreveremos mais adiante foram os primeiros que, no Brasil, experimentaram o martyrio por causa do Evangelho, segue-se que seria indecoroso, importaria uma injustiça clamorosa, e de más consequencias, si deixasse-mos a sua memorial no olvido e completamente extinta entre os homens, pois que, nesse caso, o seu sangue bradaria ao Céo por vingança contra semelhante indignidade.

Taes reflexões determinaram nas testemunhas oculares dos acontecimentos que vão ser aqui narrados e por cujos mãos transitou esta compilação o forte desejo de que a mesma fosse transmittida ao leitor, afim de prevenil-o contra as calumnias[4] que obscurecessem e deturpassem a verdade sobre as causas da empreza, meios, execução, protestos, revoltas e o mais que se segue.

Disputa de Villegaignon em França editar

Nicolas de Villegaignon, nomeado vice-almirante em Bretanha, desaviera-se com o capitão da cidadella de Brest, principal fortaleza de todo o paiz, e isso por questões technicas da fortificação da mesma. Originou-se dahi um descontentamento e, um odio mortal entre ambos, de modo que, para se defrontarem, buscavam só o momento propicio.

O caso chegára aos ouvidos de Henrique II. Este, porém, favorecia muito mais ao capitão da cidadela do que ao vice-almirante, circunstancia que tirava a Villegaignon toda a esperança de successo na disputa. Sem embargo, pensava elle que, pelo menos, poderia arruinar ou tornar odioso o seu adversário. Mas, neste sentido, ia conseguindo pouco, pelo que começou a aborrecer-se em França, accusando-a de enorme ingratidão, visto que ao serviço delia consummira toda a sua juventude na carreira militar. Accrescentava, ainda, que, em face do resultado quasi nullo que obtivera .de seus trabalhos passados, não podia mais ali permanecer por muito tempo. Ora, na cidade de Brest, residia então um preposto do thezoureiro da Marinha, o qual era íntimo de Villegaignon. Um dia, quando se achavam á meza, referio-se aquelle a uma viagem que fizera ás Indias Meridionaes e, alludindo ao Brasil, louvou elle extraordinariamente a sua temperatura, a belleza e a serenidade do céo, a fertilidade da terra, a abundância de viveres, as riquezas naturais e coisas outras de todo desconhecidas dos antigos.


Villegaignon sonha a fundação de uma monarchia no Novo Mundo editar

A descripção agradára immenso a Villegaignon e de tal modo lhe aguçou a cobiça que elle constrangia o seu informante a repetir-lhe freqüentemente as mesmas palavras, sonhando o dominio de toda essa terra. Seu desejo de ir até lá augmentava dia a dia. Faltavam-lhe, porém, os meios, tanto mais quanto, em deixando a França, queria fazel-o com honra e boa reputação, o que lhe acarretaria grande despesa, para a qual não estava apparelhado. De, resto, Henrique II julgaria muito mau que elle se exilasse voluntariamente entre gente a mais deshumana que existia debaixo do céo. Entretanto, por subtis meios, esforçava-se Villegaignon por captar as sympathias daquelles que lhe podiam dar apoio efficiente para a feliz prosecução de seu projecto, aos quaes affirmava que seu vehemente desejo e mais forte empenho era procurar um sitio de repouso e tranquïllidade, onde pudesse estabelecer os perseguidos em França por causa do Evangelho; e que, havendo longamente pensado sobre o melhor logar para fugir á crueldade e tyrannia dos homens, elle se lembrára da terra do Brasil, da qual todos os navegántes se manifestavam encantados, enaltecendo a sua temperatura e a sua fertilidade, e onde se poderia commodamente viver.

Aquelles a quem elle se dirigira creram facilmente em suas palavras, applaudindo esta empreza, mais digna de um principe do que de um simples fidalgo; e desde logo lhe prometteram a sua interferencia junto do rei, afim de que Villegaignon conseguisse todas as coisas necessarias á navegação[5].

Entendiam, até, que o emprehendimento seria agradável ao monarcha, pois resultaria em sua propria gloria e honra e em proveito da sua nação. Assim, foi o negocio solicitado com a maxima diligencia, logrando despacho favorável, tanto que em breve obtinha Villegaignon dois bellos e grandes navios e dez mil francos para os gastos com os homens que lhe seria preciso levar comsigo, assim como grande quantidade de artilharia, polvora, balas e armas para a construcção e defesa de um forte. Isto alcançado, entendeu-se elle com os capitães e pilotos para guiarem as caravellas e fazerem, em Brest, o carregamento de madeiras e outros accessorios. Para collimar o seu fim, só lhe restava encontrar gente fiel, de boa vida e educação, afim de habitar com elle no Brasil; e eis porque fez publicar por toda parte que precisava de pessoas tementes a Deus, pacificas e boas, pois bem sabia que lhe seriam mais úteis do que quaes-quer outras, em virtude da esperança que tinham de formar uma congregação cujos membros fossem votados ao serviço divino.

Algumas personagens de toda a honorabilidade, sem ligarem a menor importância á longa viagem, . nem á grandeza dos perigos que podiam sobrevir, nem á subita mudança de clima, nem á diversa maneira de viver, deixam-se persuadir pelas bellas e doces promessas de Villegaignon e decidiram-se a acompanhai-o. Era-lhe tambem indispensavel assalariar trabalhadores e operarios de todas as profissões; mas com muita difficuldade e mediante grande remuneração poude encontrai-os, e isto mesmo entre gente rustica, sem a mais leve noção de honestidade e civilidade, impudica, dissoluta e dada a toda a sorte de vícios[6].

Emquanto aguardava o dia da partida, Villegaignon parlamentava com aquellas personagens que, como elle, seguiam de boa vontade, fazendo-lhes sentir que esperava fazer, no Brasil, optima administração com os seus conselhos, pois era seu proposito, segundo accentuava, subordinar tudo á deliberação dos mais notaveis; e que, 'no concernente á religião, seu desejo era que a Egreja a ser ali fundada fosse Reformada como a de Genebra.

Era isto o que elle promettia em todas as reuniões, pelo que todos, de coração, lhe desejavam êxito completo no seu emprehendimento, si bem que alguns suspeitassem de tal empreza, dados os precedentes do almirante e o modo tyrannico por que se houvera, quando commandante de galeras na sua mocidade[7].

A viagem editar

Sob esta boa impressão, todos os da comitiva se alojaram com Villegaignon nos navios, que logo em seguida levantaram ferros, deixando o Havre aos 15 de julho de 1555. E, depois de haverem passado, por grandes perigos, difficuldades e accidentes penosos durante a viagem, como: estacionamentos, falta d’agua potável, pestilencias, calor excessivo, ventos contrarios, tempestades, intemperies da zona torrida e outras coisas que seria fastidioso enumerar, – chegaram finalmente ao Brasil, terra da America, onde o polo Antartico se eleva 23o. sobre o horizonte, mais ou menos[8].

Por occasião do desembarque dos Francezes, os habitantes do paiz sahiram ao seu encontro e dispensaram-lhes franco acolhimento, presenteando-os com viveres e diversas coisas curiosas, no intuito de fazerem com elles uma alliança perpetua.

Servidão egypcia editar

Partindo do Havre, os passageiros não inquiriram si Villegaignon se premunira de viveres para aquelles que ficassem em terra, como fôra de suppor. Por isso, ao ser-lhes constatado que absolutamente não os havia para a sua subsistencia, acharam elles muito estranho tal procedimento e em grande maneira se aborreceram por terem que se conformar com os alimentos desta nova terra, os quaes consistiam de fructos e raízes, em logar de pão, e de agua em vez de vinho, e isto em quantidade tão miseravel que para um só homem não era bastante o que se distribuía para quatro.

Em conseqüência desta brusca mudança, diversos cahiram gravemente enfermos e não mais se puderam levantar, porque tambem não havia medicamentos o que exasperou fortemente a muitos contra Villegaignon, a quem accusavam de insaciavel avareza e de ter economisado o dinheiro do rei, empregando-o só em proveito proprio, quando devera applical-o na acquisição de viveres e de todas as coisas indispensaveis ao sustento e preservação da saude dos que levára para tão longínquas regiões.

E’ certo que os marinheiros que já tinham viajado nestes paizes, asseguraram que havia nelles abundantes provisões de boca, e que, por conseguinte, não se tornava necessario carregar de generos os navios na partida. E foi precisamente isto que servio de desculpa e defesa a Villegaignon.

A amargura dos pobres homens era tanto mais intensa quanto a situação permanecia irremediavel. Accresce que nem por isso se lhes diminuía o trabalho, mas, ao contrario, era este augmentado dia a dia, como si, porventura, fossem bem alimentados. Para. maior flagello, a ardencia do sol era tão causticante como ninguem o poderia ter imaginado. Desde a manhã até a noite obrigavam-n’os, tambem, a quebrar 'pedras, a carregar terra e a cortar madeiras, porque o logar, o tempo e a occasião requeriam uma grande diligencia, pelo receio de possível ataque, quer por parte dos naturaes do paiz, quer por parte dos Portuguezes, então inimigos acerrimos dos Francezes nessa região.

Conspiração contra Villegaignon editar

Os operarios, pouco sensíveis em questões de honra, persuadiram-se de que, si este era o começo, o fim seria inconcebível. Os mais sagazes de entre elles previam que, no caso de deixarem crescer o jugo que se lhes impunha. quando se achavam, ainda, na sua maioria, sãos e bem dispostos, mais tarde não haveria reacção possível[9].

Nestas condições, formaram um complot e reuniram os havidos por mais dignos de serem admitidos ao conselho, ficando concertados os meios pelos quaes se poderiam libertar do cruel jugo da servidão que pesava sobre elles contra todas as leis civis e humanas.

Entendiam uns que se deveriam juntar aos naturais do paiz, sem tentar mais coisa alguma. De opinião contraria eram outros, que reputavam mais acertado bandear-se para os Portuguezes que habitavam ali perto. A maioria, porem, que quasi sempre suffoca a melhor idéa, não approvou nenhum dos alvitres suggeridos, os quaes lhe pareceram impraticaveis para obtenção segura da sua plena e inteira liberdade. Finalmente, o mais audacioso demonstrou-lhes que se enganariam redondamente, si deixassem viver por mais tempo a Villegaignon e aos que tentassem defendel-o, chegando mesmo a affirmar que seria facílimo eliminai-os, pois não pairavam suspeitas a respeito delles.

Ficou vencedora esta opinião, que foi unanimemente approvada, louvando todos a intelligencia de seu autor, ao qual delegaram a chefia da conspiração; e cada qual, já dante-mão, em sua imaginação, dividia o despojo que seria arrecadada.

A senha foi dada e escolhido o dia da execução – um domingo, quando cada um se retirava para o seu logar sem provocar desconfianças. Uma só coisa parecia prejudicar e impedir o êxito da trama: eram tres marinheiros escocezes que guardavam a Villegaignon. Mas os conspiradores tentaram logo allicial-os, afim de encontrarem menos obstáculos na realização de seu projecto. Os marujos fingiram approvar o seu desígnio, allegando maus tratos recebidos de Villegaignon, tanto em França como durante a viagem ; e, em sua dissimulação, informaram-se do dia e hora exactos e dos meios da execução, bem assim dos nomes dos conspiradores que tornariam parte nella.

Senhores de todo o plano, entenderam que fôra indigno e deshumano occultal-o. Dirigiram-se, pois, de preferencia, a um dos amigos mais íntimos de Villegaignon, tanto pelo conhecimento que elle possuía da língua escoceza como por outras razões, e revelaram-lhe toda a conjuração, os nomes dos principais conspiradores, o dia e hora da execução, afim de que Villegaignon, dest’arte avisado, pudesse' tomar as precisas precauções e dar um exemplo salutar á posteridade. Villegaignon e os que lhe eram fieis, assim prevenidos, armaram-se e prenderam quatro dos principaes conspiradores, aos quaes inflingiram severíssima punição, para escarmento dos demais e para os conservar adstrictos ao seu dever e á sua condição, sendo que dois delles foram postos em prisões com cadeias e ferros e obrigados a trabalhos públicos durante certo tempo[10].

Tal foi o epilogo desta conjuração. Villegaignon não poude, portanto, negar que com elle tambem embarcára gente de bem, cujos serviços depois tão mal recompensou.

Villegaignon, por um emissario, solicita ministros á Egreja de Genebra e é attendido editar

Este acontecimento tornou Villegaignon, por algum tempo, muito affeiçoado á Palavra de Deus, revelando-se elle, com effeito, assás zeloso e interessado em organizar, ali, uma Egreja, e exprimindo, a miudo, forte desejo de ter um ministro para doutrinar a sua família e catechizar a pobre gente do paiz, ignorante das coisas de Deus e das leis da civilidade e honestidade. Outrosim, freqüentes vezes lamentava a sua propria situação, em virtude de achar-se cercado de tão diminuto numero de pessoas dignas, por quem era confortado sempre em seus desgostos, o que lhe fazia pensar que a sua vida estaria muito mais segura entre gente virtuosa do que no meio de mercenários desprovidos de honra e de toda a moral.

Apressou-se, pois, em appellar para os ministros da cidade de Genebra, fazendo-lhes sentir a imperiosa necessidade que tinha de evangelistas, por isso que fôra para lá com o unico fim de ouvir as leis e ordenações do Senhor[11]. E, accrescentando que de longa data formava a respeito delles e da Egreja Reformada o mais favorável conceito, pedia-lhes, como a irmãos em crenças, não lhe negassem conselho, beneplacito e soccorro, pois deste modo participariam dos beneficios e da perduravel memoria que de tal concurso certamente adviriam. Sob promessa do melhor dos acolhimentos, tanto no decurso da viagem como no paiz, rogava-lhes que com um ou dois ministros lhe enviassem tambem gente de officios, casada ou celibataria, indifferentemente, e mesmo algumas mulheres e moças para povoarem a nova terra; porquanto, segundo as suas previsões, difficil se tornaria habitar essa região por outros meios.

Ao receberem taes noticias, os pastores da Egreja de Genebra renderam graças a Deus, por abrir em paragens tão distantes uma porta á dilatação do reino de Jesus Christo.

Diligentemente, pois, escolheram dois ministros para tão nobre e santa missão: Pierre Richier[12] e Guillaume Chartier[13], aquelle de 50 e este de 30 annos, ambos muito versados na sã doutrina e de exemplarissima conducta; e, para com elles seguirem, foram chamados diversos operarios, dos quaes alguns eram casados[14].

A conducção desta companhia foi confiada a Philippe de Corguilleray, cognominado du Pont, cavalheiro muito considerado e que residia muito perto da cidade de Genebra, o qual, comquanto a sua idade e estado de saude não lh’o permittissem, não vacillou, todavia, em realizar tal viagem. Nem mesmo os seus negocios pessoaes e o amor que consagrava aos seus filhos o demoveram de acceitar o encargo que o Senhor lhe impunha.

Em passando pela França com destino a Honfleur, porto de mar da Normandia, onde os navios a esperavam, espalhou-se logo a noticia da presença da comitiva e muitos enthusiastas se decidiram associar-se a ella, tendo-se, por occasião do embarque, apresentado grande numero de pessoas de Paris e da Normandia, das quaes só algumas foram admitti-das, pois os navios não comportavam todas – tal o renome desta expedição largamente annunciada.

Iamo-nos esquecendo de assignalar que o emissario de Villegaignon havia referido muitas coisas honrosas a respeito deste, dizendo que os operarios seriam muito bem remunerados, que as mulheres dos casados receberiam pensões e que a todos seria dado tudo o que necessario fosse á sua vida e manutençao, ìnclusivé o direito de livremente regressarem a França, caso não se adaptassem á nova terra e não fossem recebidos, ali, segundo as promessas feitas em plena assembléa de Genebra.

Chegados a Honfleur, logar de seu embarque, foram acolhidos com muita cordialidade por aquel-les que estavam encarregados da sua recepção e os quaes, como era de esperar, lhes reiteraram as mesmas promessas. No momento da partida cada qual se installou no navio que lhe fôra designado pelo chefe da navegação, pois seria impossível alojal-os todos num só, sem graves inconvenientes. Zarparam logo do porto de Honfleur e, enfunadas as velas, deixaram em breve as terras da Europa e aproximaram-se das ilhas Afortunadas[15], limitrophes da, Africa, onde – fosse pelo grande numero de pessoas ou fosse por furto praticado pelas guarnições – tiveram inicio as torturas dos passageiros pela espantosa reducção de alimento, como si, acaso, estivessem no mar ha dez mezes, occasionando este facto varios motins no decurso da viagem.

A’s reclamações os marinheiros respondiam sem rebuços que eram constrangidos a proceder deste modo em consequencia da falta de viveres; e, quando os ministros lhes censuravam o mal e a injuria feita aos armadores, despojando-os de seus bens e mesmo de seus navios, o que seria horroroso permenorizar, maltratavam-n'os igualmente, calumniando-os da maneìra a mais vil e replicándo-lhes que assim lhes fôra ordenado por Villegaignon, por quem elles, marinheiros, se sentiam apoiados. A’ vista disso os ministros acharam prudente remetter-se ao silencio, e os que dahi em diante ousavam reclamar particularmente eram cobertos de irrisão e ludibriados.

Abster-nos-emos de falar do mal praticado contra os Inglezes, dos quaes roubaram dinheiro e mercadorias e com quem estavamos, então, de paz jurada ; nem da sua pirataria exercida contra Hespanhoes e Portuguezes, cujos navios e cargas foram tomados á força e cujas equipagens – oh! crueldade inaudita! – foram encerradas em um navio, sem provisões, sem velas, sem botes, e deixadas, assim, ao abandono, em pleno oceano, á mercê das ondas, no maior e no mais cruciante dos infortunios...[16]

Nada mais encontrando para saque, prosseguiram em sua rota em direcção ao Brasil, tendo suportado na zona torrida calor intensissimo e outros incommodos. Após quatro mezes completos de permanencia no mar e extenuados por tão longa reclusão, transpuseram finalmente a barra de Coligny, na America Austral, e parte do Brasil situada como ficou atraz mencionado, encontrando lá a Villegaignon em uma ilha fortificada de ambos os lados com peças de artilharia – ilha tão deserta e desprovida de recursos que não haveria ninguem capaz de adaptal-a a um logar de habitação[17].

O rio[18] em que se acha localisado esta ilha é de belleza incomparavel, amplo e muito adequado aos grandes navios, podendo-se nelle penetrar a qualquer hora do dia ou da noite sem o mínimo receio de perigo. A entrada, em que se veem dois altos picos, tem de largura meia legua e doze braças de profundidade. Sua extensão é superior a dez leguas e em certos logares de tal modo se amplia que mede de seis a sete leguas de largo. E’ semeado de ilhas e ilhotas de singular belleza e recebe afluentes em que abundam grandes peixes. Dir-se-á mesmo que é o mar que alli se espraia. Na ilha a que alludimos residia Villegaignon, pois escolhera-a para a construcção do forte a que se compromettera para com Henrique II.

E porque chegamos a este ponto parece-nos conveniente referir por quem e a que época foi descoberta esta região, visto que muitos leigos em taes assumptos suppõem haver sido Villegaignon o primeiro que ali esteve, quando a verdade é que, depois de Christovam Colombo, em 1497, a expensas do rei de Hespanha, haver descoberto a parte occidental, Americo Vespucio[19], então aos serviços do rei de Portugal, reconheceu, em 1500 mais ou menos, o continente do Brasil a uma grande distancia das Indias Occidentaes.

Os Portuguezes, na sua preoccupação de se apossarem dos melhores portos e enseadas, erigiram em Coligny uma torre de pedra, á qual denominaram Janeiro por haverem ali entrado nos primeiros dias desse mez; e nella deixaram elles alguns pobres condemnados á morte, para que se familiarizassem com os habitantes do paiz e apprendessem a sua lingua. Os desterrados, porém, após certo tempo, comportaram-se tão mal em relação aos indigenas que alguns delles foram por estes assassinados e, até, comidos, e os outros tiveram que fugir para mar alto num pequeno barco. Depois os Portuguezes não ousaram mais ali habitar, porque o seu nome se fez até hoje tão odioso que para os indios é uma grande delicia o comer a cabeça de um Portuguez.

Mais tarde, em 1525, talvez, os armadores Francezes de Honfleur enviaram là os seus navios, tratando com os naturaes do paiz e comprando-lhes pau-brasil, pelles e outras mercadorias. Estabeleceram com elles uma alliança que ainda perdura e teem continuado todos os annos a navegação.

E' claro, portanto, que Villegaignon não foi o descobridor desse continente nem o seu primeiro habitante estrangeiro. Feita esta rapida digressão, aliás indispensavel á boa intelligencia da presente historia, remettemos aos livros que tratam do assumpto aquelles que desejarem aprofundar-se no mesmo.

O desembarque dos fieis editar

Voltemos, pois, á comitiva de que iamos falando.

Chegados ao anhelado porto de Coligny, desembarcàram a 7 de março de 1557, tendo sido recebidos por Villegaignon e os demais com grandes demonstrações de regosijo, pelo concurso efficaz que lhes iam prestar. Foram dadas salvas, accesas fogueiras e não foram poupadas outras coisas de uso em momentos festivos.

Os ministros apresentaram as suas credenciaes assignadas por J. Calvin e que, outrosim, davam testemunho a respeito dos outros da companhia. Villegaignon, após ter lido as cartas, regosijou-se e ficou sobremodo satisfeito com saber que tanta gente honesta e virtuosa tomára a suá empreza em alta consideraçào e estima. Declarou lhes então abertamente o que o induzira a abandonar os prazeres e delicias da França para viver de privações em um paiz onde, nos annos precedentes, estivera tão mal acompanhado, circumstancia que o levára a supplicar o favor e a coadjuvação dos pastores de Genebra. E como tal concurso não lhe fôra recusado, como era patente de tão grande numero de pessoas enviadas, sentia-se por isso mesmo ainda mais obrigado para com os de Genebra, de quem esperava a continuação de seu auxilio, dada a boa vontade que haviam manifestado desde o principio, o que agradecia com muito affecto.

Aos ministros e seus companheiros pedio estabelecessem o regulamento e a disciplina da Egreja, segundo a fórma da de Genebra, á qual elle promettera, em plena assembléa, submetter-se e bem assim toda a sua companhia.

Quanto ao governo civil, formou Villegaignon um Conselho, constituindo-o de dez pessoas das mais respeitaveis e cujo presidente era elle proprio. A este Conselho teriam que ser levadas todas as questões religiosas ou profanas, afim de serem pelo mesmo julgadas e dirimidas[20].

Reputaram os ministros excellente esta organização e exhortaram a companhia a permanecer sempre modesta e serviçal, sem esquecer o facto que alguns delles tinham abandonado as suas mulheres, os seus filhos, os seus haveres, que todos deixaram a patria natal para gozar dos beneficios da prégação do Evangelho; e accrescentaram que, si Deus lhes concedesse a graça de se estabelecerem definitivamente nesse logar, prefiririam antes supportar todos os dissabores e soffrimentos do que esmorecer e recuar do seu posto.

Villegaignon fez sentir aos ministros que, no concernente á Egreja, queria fosse ella conforme a disciplina e ordem da de Genebra, á cuja ampliação vinha dedicando a sua vida e os seus bens, e que não desejava regressar mais á França. Em ouvindo estas asserções, todos se possuiram de forte animo e encorajados para o cumprimento dos seus deveres, maxmé os pastores para o exercicio do seu ministerio em que se revezariam todas as semanas, pois teriam que prégar uma vez por dia e duas aos domingos[21].

Os officiaes de profissões diversas applicaram-se desde logo, com o maximo enthusiasmo, ás obras da fortificação da ilha, trabalhando mesmo como serventes, circumstancia a que não ligaram a menor importancia tal a confiança que depositavam nas promessas de Villegaignon.

Ambição de Cointac e divergencias sobre a Eucharistia editar

Ora succedeu que um dos membros da comitiva dos ministros - e eis a causa das perturbações que se seguem, de nome Jean Cointac[22], academico da Sorbonne, de certa illustração, impellído pelo desejo insensato de passar por mais sabio que aquelles, pretendia a Superintendencia do Episcopado, allegando que o logar lhe fôra promettido em França. Foi, porém, embargado na sua estulta aspiração e perdeu a estima de toda a companhia.

Dahi o odio mortal que votava aos ministros, a quem procurava amesquinhar e ridicularizar em todas as controversias e prégações, que epilogava rigorosamente para dar-se ares de entendìdo. Elle tinha, com effeito, certa apparencia de virtude, era eloquente e persuasivo, quer discorrendo em francez quer em latim. Além disto, adaptava-se ao paladar de cada um, motivo por que Villegaignon o ouvia com particular interesse, prestando attenção ás muitas questões frivolas e nescias que trazia a publico, com o intuito de parecer superior e mais idoneo do que os pastores legitimamente eleitos por suffragio dos irmãos, consoante a fórma da Egreja Primitiva.

Chegado o dia da celebração da Santa Ceia, pois o Conselho resolvera que esta se realizasse uma vez por mez, Cointac, após haver perguntado que lithurgia se pretendia observar, e onde se achavam as vestes sacerdotaes e os vasos sagrados, affirmou, questionando, que, neste sacramento, era conveniente e indispensavel, além de outras coisas, o uso de pão sem fermento e de vinho misturado com agua, porque assim fôra praticado por Justino Martyr, lrineu e Tertuliano.

Os ministros, porém, mostraram a inanidade do argumento e declararam, de modo peremptorio, que nas Escripturas não havia apoio para semelhante innovação e que o dever do crente é manter-se rigorosamente adstricto ao que Jesus Christo fez e ensinou e ao que os seus discipulos nos deixaram por escripto. Em agindo de maneira diversa, será rebelde e jámais bom filho. De resto, lembraram a promessa que lhes fôra feita em França e reiterada em Coligny - a de que viveriam segundo as leis da Reforma existente no logar de onde partiram.

Sem embargo, Villegaignon juntou-se a Cointac, declarando que os antigos eram mais autorizados que os theologos modernos; e exigio energicamente que tal mistura se fizesse, porquanto Clemente, que convivera com os apostolos, a effectuára. Ponderou-lhes, ainda, que a sua vontade não podia ser contráriada, por isso que elle era o chefe da companhia. Os pastores e a maioria da assembléa não concordavam que esta pratica fosse obrigatória e entenderam que não deviam mesmo admittil-a para evitar que tal superstição occasionasse, no futuro, sérias perturbações á Egreja, tanto mais quanto Villegaignon e Cointac haviam asseverado que o pão, depois de pronunciadas as palavras de consagração pelo ministro, era santo e que, consequentemente, qualquer parte que do mesmo sobejasse devia ser preciosamente conservada como reliquia sagrada. Verificou-se isto antes da Santa Ceia e momentaneamente os animos se acalmaram. Ambos os partidos fingiram estar de accordo, afim de que a celebração da Eucharistia não fosse relegada para outra occasião.

Ora Villegaignon e Cointac, á vista da opposição dos ministros sobre este ponto, e sabendo que não podiam constrangel-os a confessarem que era necessario e dependente do sacramento a addição de agua ao vinho, ordenaram secretamente ao dispenseiro que fizesse tal mistura numa proporção rázoavel. Os prégadores haviam, em seus ultimos sermões, exhortado a que todos se examinassem a si mesmos antes de aproximar-se da Mesa da Communhão, no que foram attendidos. Corpo, porém, Coíntac assumira uma attítude tão estranha que nem parecera um Reformado, e houvesse mesmo referido a alguns que ella dar-lhe-ia certo beneficio em França, um dos ministros pedio-lhe fizesse, em publico, a sua profissão de fé, afim de que se dissipasse a má impressão do seu proceder, ao que annuio immediatamente, ficando todos sobremodo satisfeitos, maximé porque nesse mesmo dia[23] Villegaignon confirmou a sua fé perante toda a congregação.

Entretanto, a autoridade dos ministros e o facto de haverem estes se dirigido a elle sómente irritaram de novo a Cointac, o qual guardou em seu coração um profundo resentimento. Participaram, pois, da Santa Ceia, Villegaignon, Cointac e os que pareciam dignos de ser a ella admittidos, fazendo todos os mais vivos protestos de que esqueceriam as quizilias havidas. Dias depois queixou-se Cointac particularmente a Villegaignon da humiliação por que o ministro o fizera passar em plena Egreja. E, despertando as questões que estavam já como adorrnecidas, concertaram ambos um meio de calumniar a instituição desta, comparando os antigos com os modernos, marcando-lhes as differenciações e formando um ritual cujos preceitos deveriam ser observados á risca. Não hesitaram, até, em declarar que a Egreja de Genebra era mal governada e dirigida por herejes, isto porque entendiam que ella, pelos seus ministros, os havia censurado.

Não aceitavam todos os pontos do Papado, em que viam muitos erros. Dos Allemães queriam conservar o que se lhes afigurasse bom, accrescentando e tirando á doutrina segundo lhes ditava a sua fantasia. Era do seu novo estatuto que o Baptismo se fizesse tambem com sal, oleo e saliva ; que, ficando o pão da Santa Ceia consagrado pelas palavras sacramentaes proferidas pelo ministro, não se devia ïnquirir si o commungante exercia ou não a fé christã ; que era necessario levar as sobras deste pão aos doentes e aos que as solicitassem ; emfim, artigos outros que seria enfadonho descrever.

A imposição determiinou graves discordias, que augmentavam dia a dia. Este mau começo foi assás favorecido por alguns que lhe não previam as futuras consequencias, pois advertiram a Villegaignon que em França havia rumores de que os Lutheranos estavam fazéndo a travessia em flotilhas e que, portanto, era bem possivel conseguissem persuadir o rei a causar-lhe muitos desgostos, taes como: tomar-lhe os navios, confiscar-lhe os bens e impedir que alguem lhe prestasse soccorro.

Villegaignon reflectio demoradamente sobre isto e, parecendo-lhe que a coisa poderia vir a consummar-se, resolveu por-se ao abrigo de tal eventualidade. Passados alguns dias realizaram-se dois casamentos, havendo comparecido à cerimonia a maioria da officialidade e dos marujos. Era a semana de Richier e o thema sobre que ia discorrer nesse dia era o baptismo de João.

O orador entrou francamente no assumpto e, com a maior energia, insistio em asseverar que aquelles que não trepidaram em corromper este sacramento com a introducção de sal, oleo e saliva eram imprudentes e falsarios. A prédica escandalizára immenso a Villegaignon, o qual violentamente encolerizado contradictou ao ministro perante a congregação, sustentando que os que haviam feito taes accrescimos eram melhores que Richier e seus companheiros e que elle, Villegaignon, não estava disposto a abrogar o que se observava ha mais de mil annos para acceitar uma nova cerimonia calvinista. Disse ainda outros insultos e revelou propositos malignos.

Resolveu não mais assistir aos sermões e ás reuniões de oração e, até, de abster-se de comer com os ministros. Procurou Richier explicar-se para rebater as calumnias que lhe eram assacadas por Villegaignon e Cointac, porém não conseguio que o escutassem. Então os mais influentes, em extremo desgostosos com estas discordias, entenderam-se com ambas as partes, ponderando-lhes muitas coisas, e persuadiram-n'as a se harmonizarem, o que Villegaignon e Cointac prometteram fazer, comtanto que se coordenassem os pontos em litigio, os quaes deveriam ser submettidos ás Egrejas da França e da Allemanha, para que ellas decidissem a respeito. E, no sentido de chegar-se a um resultado mais seguro, escolheram o mais joven dos ministros, isto é; a Chartier, para ser o portador da consulta; mas a verdade é que isto não passava de um ardil de Villegaignon e Cointac para se desembaraçarem deste prégador, como o almirante o confessou mais tarde. Quanto a Richier, este ficaria e teria liberdade para prégar, desde que se abstivesse de falar sobre os sacramentos e os demais artigos em questão.

Posto que iniquas e muito prejudiciaes, a congregaçào, todavia, acceitou estas condições por amor à paz e porque esperava fossem inviolavelmente respeitadas as decisões procedentes da França e da Suissa. Porém Villegaignon e Cointac tinham já o proposito de não acceitar coisa alguma que fosse resolvida por estas Egrejas e o de submetter-se unicamente à Sorbonne de Paris. Si Villegaignon quizesse logo impedir a prégação do Evangelho, como fez mais tarde, estas contendas não lhe causariam estorvo, por isso que ainda se achavam ancorados no porto os navios que conduziram a comitiva. Reconheceu, entretanto, que, si a recambiasse para a França, em cumprimento á sua promessa, importaria esse acto não só grande deshonra, mas tambem grave inconveniente, porque ver-se-ia quasi sòsinho para enfrentar os Portuguezes e os selvagens. Com o intuito de encobrir o seu mau designio e de não perder a boa reputação que a sua correspondencia lhe conquistára em França, Villegaignon a todos affirmou que outra coisa não desejava sinão a paz e a união da Egreja e bem assim que assumia o compromisso de esperar a resolução dos pontos controvertidos.

Entrementes, e para ractificar a alliança de perfeita amizade com Villegaignon, pedio e obteve Cointac em casamento a uma joven, natural de Rouen, de quem se enamorára, e a qual herdára alguns bens de um tio que fallecera no Brasil, mas teve que sujeitar-se á condição de que não a deixaria nunca passar privações. Richier foi o celebrante deste casamento na Egreja. Appropinquou-se o momento da partida dos navios, num dos quaes seguiam Chartier e outros companheiros, como portadores dos artigos em questão e a resposta aos quaes deveria ser enviada seis mezes depois da sua chegada á França. Quando Villegaignon e Cointac viram que estes não podiam mais regressar aos que com elles ficavam em terra) declararam-lhes então terminantemente que não acceitariam nenhuma resolução que não procedesse da Sorbonne ; e, contra o parecer de Cointac, addicionou, ainda, Villegaignon outros artigos, a saber: a transubstanciação, a invocação dos Santos, as orações pelos mortos, o purgatorio e o sacrificio da Missa. Desde esta data[24] Cointac começou a suspeitar de Villegaignon, por faltar ás suas promessas tantas vezes reiteradas.

O trabalho dos pobres operarios era augmentado na razão directa da fome que experimentavam. Alguns delles animaram-se a reclamar contra este estado de coisas, mas foram repellidos tão grosseiramente e com tantas ameaças que se não atreveram dahi em diante a formular nenhuma queixa. Limitaram-se apenas a retirar-se para du Pont e Richier, sob cujo patrocinio haviam ido para a nova terra. Por seu turno Richier e du Pont, vendo-se completamente ludibriados pelo almirante, lastimavam a sua propria condição. Este desdenhava os sermões de Richier e, caprichoso, exigia que pregasse ora sobre um assumpto ora sobre outro, ao que Richier sempre se recusava.

Assim, Villegaignon absteve-se de comparecer aos serviços divinos, no que foi seguido por alguns da companhia, pois uma grande parte entendia que o que se passára era tão pernicioso e mau que a causa da Religião estava, ali, irremediavelmente perdida.

Odio de Villegaignon contra Thoret editar

Devemos, outrosim, relatar um facto posterior à sahida dos navios.

Villegaignon nomeára commandante do forte a Thoret, homem de vivaz intelligencia e que havia seguido a carreira das armas em Piemonte, o qual durante algum tempo foi muito estimado por aquelle. Quando, porém, o almirante se certificou que Thoret não lhe dava a sua solidariedade nas questões de ordem religiosa, converteu a sua sympathia em desamor, occasionando-lhe muitos desgostos.

Mas passemos ao facto: Tendo-se apresentado na ilha diversos selvagens para receberem o pagamento de alguns escravos que haviam vendido a Villegaignon, este encaminhou-os ao recebedor de mercadorias vindo de Paris, La-Faucille, com quem, entretanto, não puderam entender-se, pelo que procuraram de novo o almirante, obtemperando-lhe que desejavam retirar-se e que, por conseguinte, ordenasse lhes fosse realizado o embolso a que tinham direito. Villegaignon encarregou então a Thoret de regularizar o negocio. No desempenho da sua missão, Thoret observou a La-Faucille que elle agia mal, compromettendo-se por coisa de somenos importancia.

La-Faucille não recebeu de bom humor o reparo de Thoret e ambos se encolerizaram, sendo que este, provocado pelas respostas offensivas daquelle, teve que desmentil-o em plena face. Ora o Conselho havia estabelecido uma lei segundo a qual ninguem podia desmentir a outrem que lhe fosse igual ou superior na escala social, sob pena do infractor ter que fazer reparação de honra, de joelho em terra e de bonet na mão, perdendo, ainda, por tres mezes, o emprego que tivesse.

Villegaignon e Cointac, testemunhas presenciaes do desmentido, instigaram La-Faucille a exigir satisfação de honra segundo a lei, embora este se incÍinasse antes a reconciliar-se, como, de facto, era a sua disposiçào. Elles mesmos lhe redigiram a queixa e, no dia do Conselho, chamaram a Thoret, o qual muito estranhou a malevola interferencia de Villegaignon num caso que, ao contrario de esforçar-se por desnaturar ao ponto de parecer que era a um tempo juiz e parte, devera elle ser o primeiro a solucionar particularmente, visto que occorrera por questões de seus serviços. Perante o Conselho confessou Thoret haver, com efeito, desmentido a La-Faucille e cujo acto ainda mantinha, tanto mais quanto fôra elle o provocado, e isto em demasia. Requeria, pois, se interpretasse a letra e o espirito da lei sem quaesquer paixões, porquanto estava prompto a submetter-se a ella.

O Conselho entendia que ambos eram delinquentes e que se deviam nomear dois arbitros para decidirem a questão. Seu parecer era que a lei, neste particular, devera ter outra amplitude, visto como, si offensor e offendido eram culpados, seria logico que as penas da mesma fossem applicadas a um e a outro. Villegaignon e Cointac recusaram o seu apoio ao alvitre suggerido é insistiram em reclamar que se cumprisse a lei, applicando-se as suas penalidades a Thoret que confessára a injuria. Villegaignon, presidente do Conselho, lavrou, em seguida, a sentença condemnatoria de Thoret, contra o voto da maioria dos que o compunham.

Valoroso e habilissimo no manejo das armas, Thoret relutou muito em se conformar com a sentença, que reputava iniqua e procedente de seus inimigos. Cedendo, entretanto, ás supplicas de Richier e du Pont, que o exhortavam a supportar com paciencia o mal que os impios lhe faziam, e para não occasionar perturbações á Egreja, submetteu-se á sentença e cumprio as suas penalidades.

Destituido Thoret do commando da fortaleza, Villegaignon e Cointac zombavam dos Genebrinos, qualificando-os de pusillanimes; e lisongeavam-se de haver obrigado Thoret a fazer publica confissão de delicto, coisa por elles, seus inimigos, considerada um estigma por demais infamante. Tão frequentes zombarias de tal modo irritaram e desgostaram Thoret que este praticou a temeridade de atravessar secretamente um braço de mar de duas leguas sobre tres pedaços de madeira ligados entre si á guiza de balsa, para embarcar em um navio breton, ancorado num porto a trinta leguas de distancia, e o commandante do qual o acolheu com muita sympathia.

Villegaignon afflige a Egreja editar

Si as circumstancias o favorecessem, Villegaignon prosseguiria nas crueldades que desejava executar e a que esta dera inicio; porquanto a paciencia e a modestia dos pobres fieis augmentavam de tal maneira sua audacia que não pensava sinão em subverter e destruir a ordem ecclesiastica e civil que elle proprio estabelecera e confirmára com tamanho interesse. Declarou nullo o Conselho, passando elle a resolver tudo segundo os desejos e caprichos do seu coração; e mais: prohibio absolutamente a Richier de prégar e de reunir os crentes para oração, à menos que o ministro se dispuzesse a rectificar a formula das preces, as quaes, segundo o almirante, eram erroneas.

Evidentemente, o seu fim era constranger os fieis, por medidas extremas, a acceitarem uma nova religião que o seu cerebro architectára. A desolação da Egreja era indescriptivel, maximé porque estes males sobrevinham num momento em que os fieis não podiam regressar para a França. Frequentes vezes solicitaram a Villegaignon que lhes permittisse reunirem-se publicamente emquanto aguardavám a chegada dos navios, allegando que em sã consciencia não podiam retirar-se sem diffundirem entre os selvagens a luz do Evangelho.

Jámais, porém, foram nisto attendidos.

Villegaignon recusou-lhes, outrosim, as passagens, dizendo lhes que eram tão miseraveis e abjectos que as proprias ondas se negariam a transportal-os e que, por conseguinte, elles occasionariam a perda infalível do navio em que partissem. Si alguem se tem achado em perplexidade, estes fieis o estiveram mais que quaesquer outros, pois nenhuma das suas justas pretenções mereceram o despacho desejado.

Neste comenos, chegára do Havre um navio francez, que não pertencia a Villegaignon nem aos seus alliados. O commandante revelou-se muito favoravel a du Pont e Richier e entre elles ficou ajustado o preço de cem escudos pela passagem de dezeseis pessoas e por cuja importancia se obrigava du Pont. Restava, entretanto, obter as licenças, sem o que o embarque não se poderia effectuar.

Villegaignon, sabendo que o commandante concedera as passagens, ficou sobremodo indignado e, em represália, quiz impedil-o de carregar o seu navio é de traficar com os selvagens. Estes, porém, haviam já promettido ao commandante e aos officiaes que lhes forneceriam tudo o que requisitassem. Negou, ainda, as licenças pedidas por du Pont e Richier, allegando que elles se comprometteram a fazer-Lhe companhia até a chegada dos seus navios. Mas responderam-lhe que essa razão estava prejudicada, visto que elle violára as primeiras promessas; prohibindo-os, contra a sua própria fé, de prégarem e de se reunirem em commum para oração, o que importava prival-os do maior bem que podiam desejar. E accrescentaram que, como dias antes manifestasse propositos sinistros, ameaçando-os de exterminal-os, resolveram então adoptar o expediente mais satisfatório ao almirante e a todos retirarem-se para a França pelo navio que acabára de chegar. De resto, disseram-lhe que era coisa bem estranha que ha pouco quizesse expulsal-os e que, entretanto, agora os pretendesse reter.

Concluiram, pois, fazendo-lhe sentir que queriam voltar para a França com licença ou sem ella, porque assim era necessario; e, empregando palavras rudes e incisivas, declararam-lhe que, visto haver-se elle apartado da fé, não mais o consideravam suzerano e, sim, apostata, tyranno e inimigo da Republica. Em os ouvindo falar tão audaciosamente, Villegaignon não só lhes concedeu as licenças na forma em que as desejavam, mas intimou-os, até, a deixarem a ilha o mais depressa possível[25].

Quando se retiravam, não houve mala ou embrulho que Villegaignon não revistasse, com o intuito de apanhal-os em flagrante delicto de furto. As ferramentas dos operarios e os livros de Richier e du Pont, tudo arrebatou sob o fundamento de que fôra adquirido com o seu dinheiro, segundo uma das leis que o Conselho em tempo estabelecera.

A bagagem, entretanto, não poude ser transportada toda de uma vez, motivo por que dois operarios tiveram que aguardar segunda viagem do barco, no ponto de embarque, ao lado das que lhes pertenciam. Um delles era torneiro e o outro marceneiro. Em poder daquelle encontrou Villegaignon pequenos objectos de ébano torneados, os quaes o pobre homem fizera nos seus momentos de lazer, quando não trabalhava para o almirante, afim de poder arranjar algum dinheiro em França por occasião do seu regresso, pois tinha filhos a sustentar. Villegaignon, que não podia mais conter a sua ira, chamou de ladrão ao torneiro e por duas ou tres vezes levantou contra elle o punho para o maltratar. Surprehendido, todavia, por um de seus familiares, conteve-se e limitou a sua vingança a quebrar com os pés taes artigos, ao mesmo tempo que blasphemava o nome de Deus.

Acalmada a colera, Villegaignon cahio em si, reconhecendo o grande mal praticado contra o operario e que o facto daria á posteridade um testemunho da sua crueldade, além de evidenciar á companhia que, si elle se imaginasse o mais forte, teria decerto passado todos ao fio da espada. No presupposto de que a lembrança desta sua iniquidade se apagaria caso indemnizasse com alguma coisa o damno do torneiro, assim ordenou que se fizesse.

Os gentis homens e grande numero dos amigos e servos de Villegaignon muito se entristeceram com a superveniencia destes acontecimentos, considerando que haviam sido por elle cathechizados e instruidos, que com elle resistiram ás primeiras contrariedades, que, emfim, eram testemunhas dos desgostos, rebelliões e lutas que occorreram desde o começo e de cujos males o Senhor a todos livrára.

Mas o almirante, vendo-os muito affeiçoados a Richier, procurou dissuadil-os de seguirem a heresia dos modernos, que, consoante dizia, repugnava, in totum, ás tradicções dos primeiros padres da Egreja, os quaes haviam deixado um systema absolutamente conforme aos preceitos dos Apostolos. Assim, por meios suasorios, intentava attrahil-os aos deveres religiosos. Como, porém, este recurso não désse resultado positivo, ameaçou a diversos, maltratou a alguns e a outros forçou-os a irem descobrir terras longinquas. Em resumo, não houve meio de que não lançasse mão para os obrigar a mudar de convicções, esperando obter pela prepotencia o que não lográra alcançar pela persuasão.

Cointac, expulso de Coligny, amaldiçoa o dia e a hora em que conheceu a Villegaignon! editar

Du Pont, Richier e os seus companheiros estavam já no continente, a meia legua de distancia do forte de Coligny, numa aldeia[26] construida mezes antes por alguns pobres Francezes que Villegaignon expulsára da ilha como bocas inuteis e entre os quaes se contava o proprio Cointac! Este apercebera-se do mal occasionado pela sua, desenfreada ambição, quando se vio entregue ao abandono e exilado como pessoa de nenhum valor entre os selvagens, e isto por Villegaignon, de quem esperava ser cumulado de distincções e recompensas.

Por isso, nesta nova phase, amaldiçoava, com grandes imprecações, o dia e a hora em que havia conhecido o almirante.

Du Pont, Richier e os demais alimentavam-se, ali, de raízes, fructas e legumes que os selvagens lhes traziam a troco das suas roupas, pois aquelles não tinham mercadoria alguma nem os meios de adquiril-a, até a partida do navio.

Villegaignon procura embaraçar o embarque dos Genebrinos editar

Por outro lado, Villegaignon trabalhava no sentido de impedir que o commandante os embarcasse, não trepidando de, com este objectivo, accusar tanto a officiaes como a alguns marinheiros de crimes enormes. Resultou dahi uma sublevação de uns contra os outros: queriam os officiaes manter a sua promessa, porque o seu cumprimento dar-lhes-ia não pequeno resultado pecuniario; contrarios a ella eram os marinheiros, visto não terem parte alguma nesse beneficio.

Entretanto, vendo frustrado o seu plano, e reconhecendo que em vão se esforçava por mudar as convicções religiosas que implantára em seus subalternos, Villegaignon buscava ensejo de praticar um acto violento, afim de intimidal-os e movel-os a deixarem a pertinacia das suas opiniões.

Villegaignon maltrata os seus mordomos por serem calvinistas editar

Dirigindo-se ao seu mordomo, que o acompanhava desde o embarque em Honfleur e que o servia fielmente em todas as conjuncturas, interrogou-o sobre a sua attitude e disposições no momento, Explicou-se este sufficientemente e de modo o mais respeitoso lhe supplicou licença para se retirar com os outros para a França, assim por saber que os seus serviços deixaram de ser-lhe agradaveis, como em razão de não existir mais na nova terra siquer um resto de Egreja.

Villegaignon discutio longamente o assumpto e ameaçou de mandar açoitar o mordomo e de prendei-o com grilhões. Por fim, cançado dos seus reiterados pedidos, tirou-lhe as roupas que lhe havia dado e expulsou-o brutalmente da fortaleza, sem tomar na mínima consideração os seus tres annos de serviços abnegados.

Oito dias depois o substituto do mordomo, porque censurasse aos que blasphemavam e empregasse o melhor e mais ingente de seus esforços em moralizar aquelles sobre quem exercia autoridade, embora evitando os castigos de pauladas e algemas, foi accusado de ser um ministro, o que lhe valeu muitas injurias e maus tratos, a perda da maior parte dos seus haveres e a sua expulsão violenta da ilha. Este procurou tambem a companhia de Richier e du Pont, á qual se unio.

Crueldade de Villegaignon editar

Outros factos igualmente condemnaveis merecem registro.

Villegaignon assalariára diversos artezãos por dois annos, no transcorrer de cujo praso alguns morreram extenuados pelo trabalho e outros pela extrema escassez de alimento. Os de constituição mais robusta puderam resistir a tudo isto, mas, emquanto esperavam a terminação daquelle praso, um dia parecia-lhes um anno. Não tinham descanço e eram obrigados a trabalhos pesadissimos. Sua alimentação consistia apenas de farinha, que lhes era distribuída em proporção insufficiente – uma quarta parte da necessaria. E mais veneno do que agua era a que bebiam, por isso que procedia de uma cisterna suja e infecta, Um delles, não podendo continuar a passar desta maneira, pedio a Villegaignon que o deixasse ir viver entre os selvagens, o que lhe foi permittido sob condição de renunciar aos seus salarios, devendo o acto ser legalizado perante o notario, ao que o operario se submetteu, pois desejava obter a sua liberdade. Permaneceu elle entre os indígenas algum tempo, os quais o alimentavam a troco de peças do vestuario. Quando, porém, nada mais lhe restava que a camisa, não lhe forneceram mais alimento e expulsaram-n’o.

Ficou, pois, o pobre homem reduzido a extrema penuria, comendo herva e quaesquer fructas, sem inquirir si lhe eram ou não prejudiciaes á saude. Acossado pela miseria, implorou por diversas vezes a Villegaignon que pelo amor de Deus se compadecesse delle.

O almirante, porém, jámais attendeu ás suas instantes rogativas.

Certa manhã, sob uma arvore, foi o infeliz encontrado morto á fome...

No continente os Genebrinos experimentam ainda grandes provações editar

Entretanto, Richier, du Pont e os seus companheiros estavam no continente em circumstancias muito criticas, quer pela falta de comestíveis, quer pela sua longa estadia no mesmo, a que a demora da partida do navio os obrigava; e a situação era, ainda aggravada pela exigencia feita pelos marinheiros, em virtude da qual cada um teria que arranjar uma provisão de dois alqueires de farinha, sob pena de não consentirem no seu embarque.

Mas era tão intenso o seu desejo de libertação do jugo despotico do almirante, que de boa, vontade alienaram parte das suas roupas para attender á imposição dos marujos. Emquanto isto se passava, alguns subalternos de Villegaignon, que de quando em vez iam ao continente, começaram a fomentar intrigas: a Richier e du Pont diziam que o almirante lamentava não haver sacrificado todos os dezesseis e que, si lhe cahissem nas mãos outra vez, não escapariam á sua vingança; a Villegaignon referiam que du Pont e Richier se recriminavam a si mesmos pela sua usillanimidade em terem supportado tantos aggravos de um tyranno pestillento, a quem não se devia deixar que reinasse por mais tempo, accrescentando, ainda, que estes huguenottes promettiam voltar bem acompanhados e equipados para o expulsarem e aos seus cumplices. Os delatores constituem verdadeira praga, que enfraquece as Republicas e os Governos, e aquelles de que falamos irritaram immenso a ambas as facções, pois conseguiram fazer-se acreditar.

Aproximando-se o dia da partida de Richier e du Pont, previo Villegaignon que elles podiam causar-lhe grandes prejuízos e annullar-lhe, em França, a boa fama que adquirira uns annos precedentes. Assim, e para obviar a este maleficio, deliberou catalogar certos pontos sobre os quaes prégára Richier e respondel-os ao sabor dos Papistas, pois sentia-se desamparado pelos Reformados.

E, afim de não trabalhar em falso, instruio reservadamente um de seus amigos, o qual nestas questões secollocára ao seu lado constrangido por sérias ameaças; e encarregou-o de saber de Richier a sua opinião sobre os Sacramentos e outros artigos.

O emissario do almirante, no desempenho da sua missão, procurou o ministro, a quem se revelou muito interessado em instruir-se relativamente a alguns pontos doutrinarios, de que não possuía conhecimentos bastante solidas. Richier, longe de suspeitar das intenções malevolas do inquiridor, acreditou na sua sinceridade e expoz-lhe verbalmente tudo o que pensava sobre as questões propostas. O consulente reduzio a escripto todas as respostas e, sem as mostrar ao ministro, passou-as ás mãos do almirante, quedas seleccionou a seu belprazer.

Soubesse Richier que o tyranno é que mandára solicitar-lhe tal parecer, e tel-o-ia escripto de proprio punho, com mais ordem e profundeza de doutrina do que o que Villegaignon publicou depois em seu livro[27]. Ora o almirante, temendo, outrosim, que muitos dos seus subalternos o abandonassem por causa dos maus tratos, resolveu afastar dezoito de entre elles, enviando-os num navio ao rio da Prata, a 500 leguas do Polo Antarctico, e dando-lhes um pagem para os servir. Nomeára, porém, commandante a um de seus servos mais fieis, e mestre a um marinheiro que retivera da ultima viagem, homem, aliás, muito immoral e sem nenhum temor de Deus.

Duplo era o fim desta, expedição: separar uns dos outros, como já referimos, e procurar minas de ouro ou. prata para serem offerecidas ao rei Henrique.

Na vespera da partida foi o adestre denunciado ao commandante como autor de execravel delicto um acto de sodomia praticado contra um mocinho, parente daquelle. O commandante e os tripulantes possuíram-se de forte indignação, notadamente o primeiro porque o crime fôra perpetrado no seu departamento. Sem embargo, depois de interrogai-o e porque persistisse em negar o crime, o commandante mandou apresentai-o a Richier, que continuava sendo considerado ministro, pois Villegaignon não o depoz nunca desse cargo.

Richier fez sentir ao marinheiro o seu horrendo peccado e mostrou-lhe a severidade da Lei Divina sobre os que fazem taes coisas. Comprehendeu, então, o criminoso a enormidade da sua culpa e, temendo os juízos inflexíveis de Deus, tentou, no seu desespero, atirar-se ao mar com o intuito de suicidar-se, declarando ao mesmo tempo que se achava arrependido do acto hediondo que praticára.

Em face desta confissão, o ministro aconselhou o commandante a levar na expedição o marinheiro, a quem devia ameaçar de morte si viesse a demonstrar, que era falso o seu arrependimento. No dia seguinte sahio o navio, tendo a bordo este marinheiro, cujos serviços eram indispensaveis, porque ninguem, como elle, conhecia as manobras da nau.

A versão de que Richier perdoára o marinheiro a troco de uma barrica de pimenta é absolutamente falsa, como ficou provado pelo depoimento do criminoso. Este, quando voltou da viagem, e no momento da sua morte, declarou perante Villegaignon e mais O de cincoenta pessoas dignas de fé, que tal accusação não era verdadeira ; que, com effeito, havia vendido uma barrica de pimenta a du Pont e Richier, isto quinze dias antes do seu crime, e que lh’a pagaram muito bem, mesmo acima do justo valor. As testemunhas viveram muito tempo e algumas voltaram á França.

Richier, du Pont e outros fieis regressam á França editar

Concluído o carregamento do navio[28], o commandante embarcou du Pont, Richier e os demais fieis, ao todo dezesseis pessoas, e, levantando ferros, a nau fez-se ao largo e deixou Coligny[29], com grande pezar para Villegaignon e tambem para alguns marinheiros que se haviam esforçado por impedir-lhes o embarque e que iam causar-lhes muitos desgostos durante a viagem, de modo a que a recordação da mesma jámais se apagasse da memoria dos passageiros.

Estes marujos eram apenas serventes e não participavam dos lucros da nau e, por conseguinte, oppunham-se ao embarque dos passageiros, tendo em vista os poucos mantimentos existentes a bordo. Demais, dizia-se que Villegaignon subornára cinco dos mais viciados, promettendo-lhes grandes vantagens, afim de entregarem du Pont e Richier á Justiça quando chegassem á França, o que ficou depois provado ser exacto[30].

O navio, após ter navegado 25 ou 26 leguás, começou a fazer agua de todos os lados, fosse por ser já muito velho, fosse por estar carregadissimo.

Todos a bordo receavam perecer. A tripulação trabalhava dia e noite para esgotar toda a agua e perdia a esperança de conseguil-o. Commandante, officiaes e passageiros achavam-se tão amedrontados que preferiam estar ainda no porto de Coligny. Na popa havia um barco, de que os marinheiros pensaram logo apossar-se afim de fugirem para terra durante a noite; mas o commandante e os officiaes, tendo-lhes a tempo descoberto o plano, tornaram as precisas precauções, de modo a frustrar esse perverso designio. Sobreveio ainda outro mal não inferior: a agua penetrára na despensa dos biscoitos, inutilizando a maior parte destes, o que desalentou ainda mais a tripulação. Os passageiros, na sua maioria, vendo o desanimo dos marinheiros, pediram ao commandante que lhes désse o barco para alcançarem a terra, ao que se recusou peremptoriamente, por isso que seria grande o seu prejuízo si elles desembarcassem.

Entrementes, communicaram ao commandante que era possível dar sahida a toda a agua e suggeriram-lhe a conveniencia de mandar embora alguns passageiros para darem logar aos outros. Richier e du Pont dispunham-se já a entrar no barco, quando a isso foram obstados pelo commandante, que os encorajou, affirmando-lhes que tudo iria melhor do que se esperava. Accrescentou, porém, que de boa vontade daria o barco a quaesquer outros passageiros que quizessem voltar para terra, visto serem insufficientes as provisões de boca existentes no navio.

Cinco dos passageiros, entretanto, acceitaram o offerecimento do commandante contra o desejo dos seus companheiros, que previam que Villegaignon decerto os maltrataria. Não pensavam deste modo.

Os cinco, mas, ao contrario, esperavam ser bem acolhidos, por isso que jamais offenderam o almirante, a quem sempre serviram com muita dedicação[31].

Despedindo-se, pezarosos, dos seus companheiros e amigos, e recommendando-se á protecção Divina, tanto os que seguiam como os que voltavam, entraram os cinco huguenotes no barco e, retrocedendo, navegaram com rumo a Coligny, onde tres delles, como passaremos a narrar, perderam a vida pela defensa do Evangelho de Jesus Christo.

Notas editar

  1. Crespin 1564, pag. 837 ; 1570, pag. 442 ; 1597, pag. 190 ; 1619, pag. 410. Na edição de 1564 esta narrativa vem subordinada ao título: Sobre a igreja dos Fieis no paiz do Brasil, parte da America Austral: sua afflicção e dispersão.
  2. Quanto ao fracasso da tentativa de colonização huguenote, Jean de Lery, um dos membros da expedição, deixou-nos interessantíssimo trabalho, intitulado: Histoire d'un voyage fait en la terre du Brésil, livro este que teve já oito edições em francez, das quaes a mais recente se deve a Paul Gaffarel, Paris, 1880, e cinco em latim. Mas esta obra, tendo apparecido pela primeira vez em 1578,é claro que da mesma não se poderia ter soccorrido Crespin para a presente noticia, que figurava já na edição de 1564. O martyrologio é a reproducção pura e simples de um pequeno volume, in-16, de 48 fls., que em parte alguma vimos mencionado, mas do qual ha um exemplar na Bibliotheca do Arsenal (H 12102), e intitula-se: Histoire des choses mémorables survenues en la terre du Brésil, partie de l’Amérique Australe, sous le gouvernement de N. de Villegaignon, depuis l’an 1555 jusqu’á l’an 1558 (1561, S I). Quem é, todavia, o autor deste escripto? Qual é essa personagem digna de fé á qual Crespin declara pertencerem as "palavras e a narração" deste capítulo de seu livr? A hesitação não e possível sinão entre os nomes de doas testemunhas presenciaes dos factos, ambas as quaes se teem occupado delles por escripto. Um é Pierre Richier, que fôra, como ministro, enviado por Calvino ao Brasil, e que, em 1561, publicou uma Refutação ás loucas fantasias, ás execraveis blasphemias, aos erros e ás mentiras de Nicolas Durand de Villegaignon (in-16, S I, 176 fls. – Bibliotheca do Protestantismo Francez), obra seguida nesse mesmo armo de pamphletos energicos sobre o mesmo assumpto e, provavelmente, do mesmo autor. Mas um exame attento leva-nos a crer que Richier não póde ter sido o autor da narrativa reproduzida por Crespin – tamanha é a differença entre o fundo e a fórma deste relato. e a maneira peculiar por que Richier descreve os mesmos acontecimentos ; diversidade tanto mais estranhavel si elle houvesse feito duas vezes, no mesmo armo, a alludida narração. Resta-nos, pois, Jean de Lery, autor da obra acima indicada. Verdade é que, referindo, no prefacio de seu livro, as vicissitudes do respectivo manuscrito, elle não allude a esta publicação de 1561; mas, quasi no fim da obra, declara haver collaborado no Livro dos Martyres (vide adiante, no martyrio de Jean du Bourdel, a nota correspondente). Facilmente se concebe que Crespin, não podendo logo inserir a narrativa em seu Martyrologio, o qual só em 1564 appareceu, deliberou fazer da mesma uma edição distinta; e tal a origem do pequeno volume de 1561, destinado a refutar a versão que dos factos espalharam Villegaignon e os seus amigos.
  3. Trata-se, evidentemente, de Jean de Lery, ao qual, posto que lhe não decline o nome, Crespin se reconhece devedor da narração que passa a fazer. Esta é a reproducçâo do opusculo publicado em 1561 – Histoire des choses mémorables survenues en la terre de Brésil, de que falámos em a nota precedente.
  4. Allusão á obra de Thevet, cosmographo de Henrique II e companheiro de Villegaignon: Les singularités de la France Antarctique (1558), onde o autor defende o almirante das accusações dos Protestantes, a quem calumnia mas aos quaes Jean de Lery faz justiça em seu livro – Histoire d'un voyage fait dans le pays du Brésil
  5. Crespin omitte a parte tomada por Coligny nesta empreza, decerto por considerar-se desobrigado, em I56I, de inserir-lhe o nome na narrativa de uma expedição tristemente celebre e que foi um verdadeiro fracasso. Mas, Jean de Lery, publicando o seu livro aipis a morte de Coligny, completa neste particular, a narração de 1561: "De facto, sob tal pretexto e porque revelasse as mais bellas intenções, Villegaignon conquistou a sympathia dos mais influentes da Religião Reformada, os quaes, inspirados pelo mesmo motivo affectado por aquelle, desejavam retirar-se para um tal refugio: no numero destes estava Gaspard de Coligny, almirante de França, de abençoada memória, o qual, gosando do favor de Henrique II, que então reinava, fez-lhe sentir que Villegaignon poderia descobrir muitas riquezas e conquistar grandes vantagens para o reino, caso fizesse a projectada viagem. Assim, Coligny obteve que a Villegaignon fossem dados dois bellos navios equipados e munidos de artilharia, bem como dez mil francos para a viagem" (Lery, edição Gaffarel 1, 40. Vide tambem Bèze, Historia Ecclesiastica, 1, 59; Aubigné, Historia Universal, tomo I, livro I, cap. XVI e livro II, cap. VIII; Delaborde, Gaspard de Coligny, 1, I45; II, 431).
  6. Claude Haton, em suas Memorias (edição Bourquelot, pag. 17) diz: "Com permissão do rei, Villegaignon visitou as prisões de Paris para ver os prisioneiros que lhe podiam ser úteis."
  7. Villegaignon commandára as quatro galeras que levaram soccorros a rainha d’Escocia, Maria de Lorena, e a sua conducta, nesta expedição, valeu-lhe o título de vice-almirante de Bretanha.
  8. Villegaignon entrou na Guanabara no dia 10 de novembro de 1555.
  9. Em sua carta a Calvino (Opera, XVI, 417), Villegaignon pretende que a revolta teve origem no facto de haver elle prohibido que as mulheres indígenas entrassem na colonia desacompanhadas de seus maridos – medida que levou vinte e seis mercenarios, voluptatis illecti cupiditate, a conspirarem contra a sua vida, Thevet, em sua Cosmographia, procura lançar sobre os ministros genebrinos a responsabilidade, desta conspiração, quando é certo que ella se realizou antes da chegada dos mesmos, como o prova a propria carta de Villegaignon (Lery, Prefacio, tomo I, p. 13).
  10. Segundo Barré, em sua carta de 25 de maio de 1556, um dos presos, sentindo-se muito culpado e sem esperanças, portanto, de salvar-se, teve meios de arrastar-se até o muro e atirou-se á agua, afogando-se. Um outro foi estrangulado. Os outros passaram a servir como escravos
  11. Jean de Lery diz, de maneira positiva (obra citada, cap. I, p. gr), que Villegaignon enviou expressamente um emissario a Genebra, solicitando por este á Egreja e aos ministros dali que o ajudassem e soccorressem, tanto quanto lhes fosse possível, nesta empreza Accrescenta, outrosim, que elle escreveu no mesmo sentido a Coligny;
  12. Pierre Richier, doutor em theologia e ex-frade carmelita, convertera-se ao Protestantismo e, após haver feito seus estudos em Genebra, dirigio-se ao Brasil em 1556, de onde voltou no anno seguinte, sendo então enviado a Rochelle, em cujo lagar organizou a Egreja e morreu a 8 de março de 1580. Ali publicou elle, primeiro em latim (1561) e depois em francez (1562), a Regulação ás loucas fantasias, ás execrareis blasphemias, aos erros e ás mentiras de Nicolas Durand de Villegaignon.
  13. Guillaume Chartier, natural de Vitré – Bretanha, estudou em Genebra e acceitou com muito ardor o cargo de missionario da Reforma da America. Nicolas des Gallars, tendo-o visto e ao seu companheiro na occasião de embarque, escreveu a Calvino (Opera XVI, 270) que elles partiam eadem alacritate animi quam antea proe se ferebant. Posteriormente ao insuccesso desta expedição, nada mais se sabe de Chartier senão que foi capellão de Jeanne d’Albret.
  14. "Eis os nomes dos huguenotes que acompanharam du Pont, Richier e Chartier: Pierre Bourdon, Matthieu Verneuil, Jean du Bourdel, André la Fon, Nicolas Denis, Jean Gardien, Martin David, Nicolas Raviquet, Nicolas Carmeau, Jacques Rousseau e eu, Jean de Lery, que me juntei á companhia, assim pelo forte desejo que Deus me dera de contribuir para a sua gloria como pela curiosidade de ver esse novo mundo. Ao todo eramos quatorze e, para a realização de tal viagem, sahimos de Genebra aos 10 de setembro de 1556." (Lery, ed. Gaffarel, tomo I, p. 44).
  15. As Canárias
  16. Sobre taes actos de pirataria e a viagem, vide Lery, obra citada, tomo I, cap. II, p. 45g, ed. Gaffarel.
  17. Villegaignon installou-se primeiro na ilha Ratier, hoje fortaleza da Lage, passando-se depois para a ilha de Serigipe, a que chamou de Coligny e que tem actualmente o seu nome.
  18. Os Francezes pensavam que a bahia de Guanabara era a foz de um grande rio.
  19. Referencia não ao descobridor Pedro Alvares Cabral mas á expedição exploradora de André Gonçalves, que aportou ao Rio de Janeiro a 1 de janeiro de 1502 e da qual fazia parte o cosmographo florentino Americo Vespucio.
  20. Lery dá o discurso pronunciado neste momento por Villegaignon (1- 87, eci, Gaffarel).
  21. No concernete ás primeiras impressões dos ministros genebrinos, vide as cartas dos mesmos a Calvino (Opera XVI, 433-440).
  22. Jean Cointac; Lery chama-o Cointa, appellidado Hector (Lery, p. 91).
  23. A Santa Ceia foi celebrada pela primeira vez, em terras da America, no forte de Coligny, em um domingo, 21 de março de 1557 (Lery, ed. citada,1-90). Villegaignon foi o primeiro a apresentar-se à Meza do Senhor e, de joelhos, recebeu o pão e o vinho das mãos do ministro (p. 97), fazendo, então, duas preces em alta voz, que Lery registrou em seu livro (I-90).
  24. 4 de junho de 1557, dia da sahida de Chartier da bahia da Guanabara.
  25. Os fieis sahiram de Coligny e passaram-se para o continente em fins de outubro de 1557.
  26. Briqueterie (Olaria), à esquerda de quem entra em Guanabara; esclarece Lery.
  27. Este livro é, talvez, o intitulado – Ad articulos Calviniae de sacramento eucharistiae traditiones responsiones per N. Villegainon, Paris, 1560.
  28. Chamado Jacques.
  29. A 4 de janeiro de 1558.
  30. Lery. em seu livro II – 145, pormenoriza melhor este ponto: "Villegaignon entregou ao commandante do navio um cofre envolvido em panno encerado, contendo cartas para diversos, e no qual, sem que o soubessemos, incluio tambem um processo por elle feito contra nós, cem ordem expressa ao primeiro juiz a quem fossemos entregues em França, de prender-nos e queimar-nos como hereges." Mais adiante (II,177), Lery refere que á chegada dos huguenotes, o cofre, com effeito, foi entregue, em França, a pessoas da justiça, as quaes, felizmente, eram favoráveis aos Reformados, a quem trataram melhor do que o podiam fazer, oferecendo recursos aos que se achavam preciza-dos de emprestando dinheiro a du Pont e a alguns outros.
  31. Eis os seus nomes : Pierre Bourdon, Jean du Bourdel, Matthieu Verneuil, André la Fon e Jacques le Balleur. Outrosim, declara Lery (pag. 15o) que elle proprio se decidira a voltar com os cinco ao forte de Coligny, chegando mesmo a entrar no escaler, e só a instancias de um amigo desistiu de voltar com aquelles, proseguindo na viagem a bordo do Jacques. A esta sábia resolução devemos a narrativa que elle nos deixou sobre taes acontecimentos.