O préstito universal em que a humanidade acompanha os restos mortais do último rei assassinado, ainda se não sumiu, com o corpo da vítima, na cripta onde se sepultam e esquecem as maiores desgraças humanas. Não é tarde, pois, para nos juntarmos ao imenso saimento com o luto desta casa, cujas portas, reabertas depois da nova sinistra, ainda não acabaram de exaltar o eco dos sentimentos, com que o nosso coração se associa ao pranto da Itália e ao horror da civilização cristã, consternada e perplexa.

À infernal grandeza destes atentados, renascentes na sua audácia gigantesca, o pensamento recua da vítima para o algoz, do algoz para a satânica organização, que lhe arma o braço. A considerar nessa fatalidade, que cresce para o século vizinho como as ondas de uma erupção submarina para as praias indefesas, poderíamos distrair-nos da cabeça ferida pelo último raio, absortos na contemplação do horizonte escuro e do pélago empolado. Mas felizmente o receio ainda pode menos que a indignação, a espécie humana ainda não se julga exausta de recursos contra a invasão da barbaria, e os que crêem, como nós, na ordem divina das coisas não têm motivo para faltar aos mortos pela causa da sociedade ameaçada com derradeira oblação da simpatia, da justiça e do reconhecimento.­

Não é aos maus chefes de Estado que se reserva hoje a sorte do punhal, a que nos tempos de Codro, Aristógiton e Bruto eram fadados os déspotas. Numa república, onde os presidentes, que naturalmente não podiam reinar, também não administram, nem governam, a alucinação do anarquismo justiça os crimes de Tibério, na bondade inofensiva de um Carnot. Umberto assinara o código, que aboliu, na Itália, o cadafalso; e os que a sua mão benfazeja redimiu da guilhotina, o fulminaram com a morte. Assim se paga atualmente, nas mais altas magistraturas da terra, a honra de representar a sociedade e o múnus de servi-la. É ela, a ordem social, a que se executa em efígie nesses holocaustos. Todo aquele que recebe dos seus concidadãos o mandato supremo do governo está no banco dos réus, diante do tribunal invisível, onde o homicídio simultaneamente exerce os papéis de acusador, juiz e algoz. Não se ataca na sucessão da coroa, transformada em sentença capital, o privilégio da hereditariedade. Não. Nem a eleição popular salva os seus designados temporários do fúnebre destino.

Este século ressuma sangue. A própria atitude do Papa em oração pelo infortúnio da casa de Sabóia não ensina doçura aos religionários de Jesus. Sobre o ataúde mal resfriado o Universo indigita, de Paris, a nação acabrunhada pela terrível surpresa como o escândalo da cristandade. Parece que não era, da parte de cristãos, o melhor meio de combater as proezas de uma seita, que confunde no mesmo ódio implacável as instituições terrestres e as celestes. Na linguagem dos órgãos socialistas, “o maior inimigo do socialismo é o cristianismo”. “Em varrendo a Deus do cérebro humano, teremos, ao mesmo tempo, banido o que se chama a graça divina; e, quando se reconhecer que o céu lá de cima não passa de uma falsidade imensa, os homens tratarão de criar para si um céu neste mundo.”

Felizmente a mão do Sumo Pontífice estendida sobre aquele féretro salvou a autoridade moral de uma igreja, cuja cumplicidade, ainda indireta, com as paixões da desordem seria o golpe de misericórdia na civilização do Cristo. As reivindicações do Vaticano contra o Quirinal não turbarão, pois, a grandeza desta solenidade, em que se reúnem, de perto, ou de longe, todos os povos cultos; e o esquife do filho de Vítor Emanuel, ocupará o seu derradeiro jazigo entre preces universais.

Tinha direito a acabar de outro modo o filho do herói, a quem a pátria dera merecidamente o nome de pai. Bem moço ele associa­ra o seu nome aos fastos gloriosos do progenitor, quando, há trinta e quatro anos, expôs a vida, em Vilafranca, esforçando, numa conjuntura de extremo perigo, a divisão, que comandava, contra o fogo dos Imperiais. Formidável quinhão, na história, o de suceder a um soberano, que fundara a independência, a unidade e a constituição do país. Quando o herdeiro de Vítor Emanuel subiu ao trono, findava no túmulo do autor de seus dias o período épico da formação italiana. A vitória e o gênio tinham embalado e coroado os tempos, que se encerravam. Todas as fortunas haviam sorrido ao ditoso monarca, e, entre elas, mais difícil talvez que todas, a de ser no governo a imagem do soberano constitucional; com esse critério de neutralidade e intervenção entre os partidos, que é, nas monarquias parlamentares, o mais precioso talento dos reis.

Grandes eram em demasia as dificuldades para o novo reinado. As questões pululavam do chão na península, onde a inteligência de uma grande raça em plena ressurreição se debatia com as contingências de um meio social profundamente imbuído nos resíduos de séculos de superstição, desunião, revolução e opressão. Tremendos problemas, de toda a ordem, nacionais e internacionais, submeteram à mais séria prova a dinastia, desarmada, para os encarar, das vantagens que cercam o trono em países educados no regímen constitucional, como a Bélgica e a Inglaterra.

Mas não se poderia dizer que falecesse a compreensão deles ao príncipe, que, há dois anos, endereçava aos membros do parlamento e da municipalidade romana, reunidos em Campidoglio, estas palavras inspiradas: “Entre os majestosos portentos da grandeza antiga, não nos pareça modesta a moderna grandeza.

“A antiga foi, pelo espírito dos tempos, universal; e nacional a nova. Da primeira se teve uma Itália romana. Uma Roma italiana dá-nos a outra. Aquela foi produto da força. Esta é expressão do direito. E, como todo direito, Roma italiana é inviolável. Para concluir a nossa regeneração civil, devemos ter em mira os dois mais altos fins, que o pensamento hodierno indica aos povos livres: a atividade da vida e a educação do espírito. Num país onde a alegria exubera assim no riso do céu e na fertilidade do solo, num país opulento, como este, de inteligência e virtudes, o trabalho e a escola são os fautores de uma grandeza real e segura, o abrigo e a defesa contra todos os riscos possíveis”.

Destas linhas, testamento político de um estadista e de um patriota, baixa a suave irradiação de uma auréola sobre a melancolia da trágedia de Monza.