Para evidenciar o terceiro aspecto, sob que se impunha, no caso, o direito de resistência, recapitulemos os episódios sucessivos da execução tumultária operada policialmente na pessoa do citado.

1º passo. Ordem verbal de comparecer perante o chefe, intimada ao Dr. Andrade Figueira por um delegado auxiliar. O intimado não obtempera, por não reconhecer a legalidade de intimações verbais. Dia 8 de março.

2º passo. Volta do mesmo delegado à casa da Rua Monte Alegre, com séquito de escrivão, pessoal da polícia, oficiais e praças do corpo militar, injungindo àquele cidadão o comparecimento, a fim de prestar declarações, sob a ameaça de que, desta vez, seria levado à força. Recusa igualmente peremptória do intimado, sob o protesto de que não seria fácil à polícia arrebatá-lo de sua casa, vivo, ou morto. No dia 9 de março.

3º passo. No mesmo dia. Tornada, pela tarde, às 4 horas, da polícia, com o primeiro mandado, “para prestar declarações”, sem especificação do seu objeto, nem cominação legal. Impugna-o o Dr. Andrade Figueira, apontando-lhe essas duas lacunas, e alegando o obstáculo de doença.

4º passo. Cerco da residência do intimado até o dia 11 por um numeroso destacamento policial e um corpo de agentes, com proibição absoluta de saída e ingresso a quem quer que, ou o que quer que fosse, pessoas da família, objetos de primeira necessidade, roupa, ou mantimentos. A filha do sitiado, senhora do coronel Trompowski, deve a entrada à proteção de um guarda, que a conheceu, tendo sido ordenança de seu marido. O seqüestrado escreve a petição de harbeas-corpus, que de arremesso, por uma janela, obtém saída para um prédio vizinho.

5º passo. No dia 11. Apresentação do mandado, com a cláusula de ser conduzido o paciente debaixo de vara. O intimado, a quem se nega a contrafé, por ele pedida, responde, contestando por escrito à polícia a faculdade, que se arrogava, de compeli-lo por esse modo, fosse como réu, fosse como testemunha. Em presença dessa atitude sai, frustrada a diligência, o delegado da 3ª Circunscrição.

6º passo. É a cena culminante. Regressa o delegado, anunciando as ordens decisivas, que trazia, de empregar a força, e cumprir a todo transe o mandado. Segue-se o escândalo ignóbil: o assalto de um troço de secretas ao velho estadista, as sevícias a sua senhora, a sua filha, a seus filhos, ao amigo assediado e o espetáculo dessa família inteira levada a murro, a cacete, a empurrões, escada abaixo, rua a fora, sol em pino, à câmara do baxá do Lavradio.

Nestes dois últimos lances está o quadro tumultuário da autoridade avocada agora a si pela satrapia do Rio de Janeiro, à sombra da lei de 1871.

Os elementos da nova instituição, tais quais sobressaem nesse desfecho, são notáveis:

Primeiro, a polícia ordena o comparecimento debaixo de vara.

Segundo, exige a obediência imediata a essa intimação.

Terceiro, desobedecida ela, converte a intimação em captura.

Nós não sabemos onde a polícia foi buscar a vara, que meneia. Se é a da justiça, foi roubada. Vara é complemento da toga, é símbolo da magistratura judicante. Nenhuma lei estende o seu uso aos agentes do poder executivo. Confusão tal não podia estar no pensamento da reforma de 20 de setembro, um de cujos intuitos capitais foi encerrar a polícia na sua competência natural, cortando pela raiz todas as funções que a entrelaçavam com a judicatura. Bem conhecemos, e já por mais de uma vez, no curso destes breves estudos, temos citado a disposição do reg. nº 4.824 no seu art. 42, nº 9. “Para a notificação e comparecimento das testemunhas e mais diligências do inquérito policial”, ali se diz, “se observarão, no que for aplicável, as disposições que regulam o processo da formação da culpa”.

Mas atentem os homens, que de coisas jurídicas tiverem alguma tintura, na ressalva cardeal ali posta em relevo com a frase:

“no que for aplicável”.

Com os olhos nela, examinemos se o mecanismo processual da coação debaixo de vara seria aplicável ao uso, que dela acaba de fazer a anarquia policial, se se concilia com a própria natureza das funções exercitadas por esse ramo do poder.

No assunto, a disposição geral vem a ser a que se encontra no Código do Processo, art. 95, onde se prescreve:

“As testemunhas, que não comparecerem sem motivo justificado, tendo sido citadas, serão conduzidas debaixo de vara, e sofrerão a pena de desobediência.

“Esta pena será imposta pela autoridade, que mandou citar, ou por aquela, perante a qual devia comparecer.”

Assim que o arbítrio de mandar conduzir debaixo de vara e o jus de infligir a pena de desobediência, são elementos da mesma autoridade, inseparáveis nas mãos do mesmo magistrado. Aquele, que mandou citar, pesa com a sua vara sobre a testemunha indócil, e aplica o castigo à desobediente. São duas manifestações da autoridade, que a mesma vara emblema em si: coagir o desobediente, e puni-lo.

Ora pode o chefe de Polícia impor à testemunha refratária a pena dos desobedientes? Ninguém, por ignorante que seja, o afirmará. As penas da desobediência, que o art. 135 do Cód. Penal fixa em prisão celular por um a três meses, não se impõem senão por sentença. Sentença é função judicial, e a polícia não julga. Pois, se não tem a investidura para a aplicação final da pena, ipso jure não a terá para a imposição preliminar da força. As duas atribuições estão conjugadas na mesma faculdade, assim pela sua índole comum, como pelo texto incisivo da lei. De modo que a competência estabelecida no art. 95 do Código do Processo não cabe no inquérito policial, por não ser aplicável às autoridades que o processam.

Aí, portanto, verificada realmente a desobediência, a ação legal segue rumo diverso do observado nos casos, em que o desacato é à autoridade dos tribunais. Autua-se o desobediente, para ser processado pelo seu juiz natural. É o que a polícia havia de fazer com o Dr. Andrade Figueira, se deveras o pudesse considerar razoavelmente incurso nesse delito.

Não há, na legislação do processo penal, outro texto, onde, a propósito de formação da culpa, se trate da repressão da desobediência nas testemunhas, ou nos réus, e se fale em condução debaixo de vara. Ora ao inquérito o decr. nº 4.824, de 22 de novembro de 1871 (art. 42, nº 9) só mandou estender as disposições concernentes à formação da culpa.

Dessas a única existente em relação ao ponto controverso já vimos que está necessariamente fora da alçada policial. E nas demais não lhe fica onde restolhe; porque à formação da culpa não se aplica nenhuma.

Quando não, vejamos.

Depois do art. 95 o primeiro, em que topamos, é o art. 212. Mas esse está no capítulo Das sentenças no juízo de paz. Cogita-se dos remédios a essas sentenças, e determina-se que

“Tais recursos não terão lugar:

“§ 2º Quando (esse juízes) punirem as testemunhas, que não obedecerem às suas notificações.”

Após esse não se depara outra prescrição, que se ocupe de testemunhas insubmissas ao chamamento judicial, antes do art. 231, onde se dispõe:

“No caso do art. 228, o juiz de paz mandará notificar as testemunhas, para comparecerem na próxima primeira reunião de jurados, sob as penas de desobediência e de serem conduzidas debaixo de vara ao juramento”.

Aqui reaparece a vara, compelindo as testemunhas rebeldes. Mas é na mão da justiça que reaparece, e já na fase do júri. Não é essa, pois, a vara, de que se há de servir a polícia no inquérito policial.

Vamos adiante. No Código do Processo não há mais nada a tal respeito.

Passemos, portanto, à lei de 3 de dezembro de 1841.

Ali não se prevê a desobediência de testemunhas senão nos arts. 52 e 53. Mas já é também para o júri que se legisla. Preceituam esse dois textos:

“As notificações das testemunhas se farão por mandados dos juízes municipais, que ficam substituindo os juízes de paz da cabeça do termo, ou do distrito onde se reunirem os jurados, para cumprirem quanto a estes competia a respeito dos processos, que tiverem de ser submetidos ao júri.

“As testemunhas, que, sendo notificadas, não comparecerem na sessão, em que a causa deve ser julgada, poderão ser conduzidas debaixo de prisão, para deporem, e punidas pelo juiz de direito com a pena de cinco a quinze dias de prisão.”

Como se está vendo, aqui é o juiz municipal, sucessor do juiz de paz nessa investidura, quem expede os mandados citatórios. Mas a vara, que conduz debaixo de prisão as testemunhas remissas, é a do juiz de direito.

Será essa a vara, que a polícia acaba de empalmar? Não pode ser, desde que o reg. de 1871 só lhe franqueou as atribuições relativas à formação da culpa, e a de que se ocupam os dois textos recém-transcritos pertence ao regímen do plenário, cometido ao júri.

Além desses, que entendam com o assunto em questão, só se nos oferece, no reg. nº 120, de 31 de janeiro de 1842, o art. 294 e o art. 232.

O primeiro estabelece:

“As testemunhas, que tiverem deposto no processo de formação da culpa, ficam obrigadas, por espaço de um ano, a comunicar à autoridade, que formou o mesmo processo, qualquer mudança de sua residência, sujeitando-se, pela simples omissão, a todas as penas do não-comparecimento, em conformidade do art. 53 da lei de 3 de dezembro de 1841.”

O outro decreta:

“O juiz municipal, logo que tiver conhecimento da época da reunião do júri, fará notificar as testemunhas, para comparecerem nessa sessão. As que não comparecerem, ficarão sujeitas aos procedimentos ordenados no art. 53 da lei de 3 de dezembro de 1841.”

Ambos, como se acaba de verificar, reiterando o cânon da lei de 3 de dezembro de 1841 no seu art. 53, adotam providências especificamente destinadas a assegurar a presença, no julgamento pelo júri, das testemunhas ouvidas na formação da culpa.

Há, porém, agora um confronto, cuja necessidade nos impõem os textos para aqui trasladados. Coteje-se o art. 95 do Código do Processo com o art. 53 da lei de 3 de dezembro. No primeiro, que rege a formação da culpa, a fórmula da ação legal é a condução da testemunha debaixo de vara. No segundo, que toca ao júri, o constrangimento se traduz imediatamente na prisão. “Debaixo de vara”, diz o primeiro. “Debaixo de prisão”, reza o segundo. Logo, a sanção deste não é idêntica à daquele. Logo vara não é sinônimo de prisão. O que resiste à citação para o júri, pode ser detido incontinenti; porque o art. 53 da lei de 3 de dezembro singular e formalmente o autoriza. O que não se inclina ao preceito da vara, apenas incorre na capitulação de desobediência, a fim de ser submetido ao processo respectivo.

O que no inquérito recente acaba de fazer, portanto, a nova jurisprudência policial, é sublimar-se acima da própria magistratura, convertendo a citação em prisão imediata, coisa que as nossas leis só admitem contra as testemunhas esquivas ao júri. Só a benefício desse tribunal, e como exclusivo privilégio seu, se instituiu a autoridade extraordinária de citar debaixo de prisão as testemunhas fugidias.

Para isso teve o legislador razões particulares, que lhe não assistiriam, se ampliasse a mesma sanção ao sumário e ao inquérito policial. “Vê-se destas multiplicadas disposições”, pondera o velho Pimenta Bueno (p. 119), “a importância, que a lei dá à presença das testemunhas perante o júri, e com razão, porque se trata não menos que da prova dos crimes, ou da inocência”. O júri delibera numa só sessão; de sorte que a ausência de uma testemunha relevante ou deixará irreparavelmente lacunosa a verificação da verdade, ou constrangerá o tribunal ao adiamento da causa. O inquérito diversamente, como a formação da culpa, tem a duração de muitos dias, abrange uma sucessão mais ou menos longa de audiên­cias; e a da testemunha, que se não inquirir no primeiro desses dois períodos, ou no outro, não fica irremediavelmente preterida. Se falhou ao inquérito, deporá no sumário. Se não depôs no sumário, falará no julgamento. Só a ausência, pois, a este exigia o freio instantâneo da prisão.

De modo que a vara manejada pela polícia contra o Dr. Andrade Figueira foi a do presidente do júri.

Não podia ser maior a audácia da usurpação.

Vamos seguindo.