O Padre Eterno está coberto do masellas,
E tu, (teu nome o atesta, ó bonzo,) és uma d'ellas.
Masella, escuta:
Deus, o Deus em que acredito,
Essa luz que allumina essa noite — o infinito,
Esse efluvio d'amor que em tudo anda disperso,
Espirito que, enchendo o abismo do universo.
Cabe com todo o seu vastissimo esplendor
N'um olhar de creança ou n'um calix de flor,
Esse Deus immortal, unico, bom, clemente,
O Deus de quem tu es o hereje e eu sou o crente,
Esse Deus ó Masella, é um Deus plebeu e humilde,
Cuja firma não dá nos banqueiros Rotschild
Credito algum, um Deus descalço e proletario.
Que em vez de libras guarda em seu profundo erario
Montões d'astros, um Deus do tal maneira vil,
Que não tem cortezãos, não tem lista civil,
Nem bispos, nem cardiaes, nem sacristães, nem tropa,
Nem nuncios para dar pelas côrtes da Europa
Em doirados salões e esplendidas estufas
Festins onde se serve o Evangelho com trufas,
A Biblia com champagne, e a alma de Jesus,
Bem picada, recheiando os faisões e os perus!
Embaixador de quem? de Christo? não; do papa.
Quem é o papa?
Um Deus inventado á sucapa,
Um Deus para fazer o qual bastam apenas
Quatro coisas: — cardeaes, papel, tinteiro e pennas.
Deita-se n'uma saca uma lista qualquer.
Qualquer nome — Gregorio, ou Borgia, ou Lacenaire,
Ou Papavoine — e prompto! em dois minutos fica
Manipulado um Deus authentico, obra rica,
Tonsurado, sagrado, infalivel, divino...
Quer dizer, sahiu Deus d'uma bolsa do quino!
É um Deus por concurso, um Deus feitos por tretas,
E em cuja divindade ideal ha favas pretas!
Apezar disso é Deus. Vai pousar-lhe no seio
O Espirito Santo, esse pombo correio
Da Providencia. É elle o redemptor e o oraculo.
A humnidade vai adiante do seu baculo,
Soluçando, ululando, exhausta, ensanguentada
Pavoroso tropel de sombras pela estrada
Do destino fatal. O pensamento humano
É simplesmente um cão sabujo e ultramontano,
Um cão vadio, um cão faminto, um cão impuro,
Que o papa recolheu de noite n'um monturo,
E a quem ás vezes dá com parcimonia biblica,
A pitança d'um Breve e o osso d'uma Enciclica.
Um papa é isto: — um juiz sem lei; omnipotente.
Czar das consciencias. Póde irremessivelmente
Chamuscal-as em fogo, ou torral-as em brazas,
Ou fazer-lhes nascer das costas um par d'azas.
O globo é para elle a bôla d'um bilhar.
Domina os reis. O Throno é o lacaio do Altar.
Seus templos são prisões e seus dogmas algemas.
Cingem-lhe a fronte augusta e nobre os tres diademas,
E na potente mão, invencivel harpeu,
Tem as chaves do inferno... e a gazua do céu.
Masella, o theatro é velho, a receita é pequena,
E ha mil annos que está a mesma farça em scena.
Abaixo a farça! Abaixo o pardieiro divino,
O céo, que já não tem nem sombras de inquilino.
Serafins, cherubins, anjos, legião eterna
Dos eleitos, tudo isso andou, poz-se na perna,
Deixando lá ficar, ó cafila d'ingratos!
O cadaver d'um Deus roido pelos ratos.
Abaixo o inferno, aonde os démos, meus Irmãos,
Não têm fogo se quer para aquecer as mãos;
Porquê lá onde a curia os rebeldes despenha
Ha sobra do infieis, mas ha falta de lenha.
Já nem é forno; aquillo é adega sombria,
Onde o defluxo faz a côrte á pneumonia,
E onde não ha nariz precito que ande enxuto.
Cada heresiarca suja um lenço por minuto,
De modo que hoje o inferno (oxalá que m'o evites,
Masella!) é de temer por causa das bronchites.
Abaixo o purgatorio! Entre chamma ex-faminta,
Que reclama com ancia algumas mãos de tinta,
Gelam reprobos nus, reprobos em pelote,
Que precisam d'um fogo, ó céos, ou d'um capote!
Abaixo a farça! abaixo o entremez da paixão,
Porque o Christo é de gesso e a cruz de papelão.
Abaixo essa parodia infame em que agonisa
N'um Golgota de lona um clown sem camisa
Que, depois d'expirar convulso, de repente
Salta abaixo da cruz funambulescamente,
E arranca às multidões assombradas e mudas
A esportula que cai no saquitel do Judas.
Não! o martyr que fez com o seu olhar sublime
O luar do Perdão para a noite do Crime,
E que abriu com a luz da bemaventurança
N'este carcere a vida, esta janella--a Esp'rança,
O semi-deus que està, com um farol de gloria
No topo da montanha escalvada da historia
Contemplando o infinito e illuminando a terra,
Essa alma que a flôr da alma humana encerra,
Não é vossa, não é de qualquer confraria
Que dispõe d'uma adega escura, d'uma pia
E d'um padre, não tem o domicilio em Roma,
Não é vinho nem pão que se beba ou se coma,
Merendando, em familia. Ess'alma Universal,
Essa concentração divina do Ideal
É de quem soffre, é de quem geme, é de quem chora,
É de todos que vão pela existencia fóra
Tristes--santo, ou heròe, ou escravo, ou proscripto,
Calcando o lodo e olhando os astros no Infinito.
Quando Christo inclinou, morrendo, a fronte calma,
Foi a Egreja buscar-lhe o corpo e o mundo a alma.
A Egreja recolheu a cinza e nós a luz.
E, louca! julgou ser a esposa de Jesus,
Porque estreitava ao peito um cadaver gelado!
Dez seculos durou na treva esse noivado.
Dez seculos passou a funebre bacante
N'um sepulchro a oscular as gangrenas do amante,
Unido a cada chaga immunda um beijo em flôr,
Tentando reviver ao furioso calor
D'esses beijos um corpo inanimado e frio.
Que tragedia dantesca esse himeneu sombrio!
Pobre Heloisa da morte, o teu casto Abeillard
Nem para ti abriu o azul do seu olhar,
Nem murmurou baixinho uma palavra só!
E o Deus tornou-se em lodo abjecto e o lodo em pó!
E na campa nupcial, no talamo--sentina,
Da carcassa d'um Deus funebre Messalina,
Putrefacta expiraste ao pé da podridão.
É que um cadaver, seja ou d'um Christo ou d'um cão.
Materia morta, exhala a mesma pestilencia.
Só a alma é immortal; só essa pura essencia,
Jámais se decompõe ou jàmais se aniquila.
O corpo é simplesmente a alampada de argila;
A alma, eis o clarão. Por isso o Nazareno
Pertence ao mundo. Tu escolheste o veneno,
O cadaver, e nós o Espirito, a alvorada.
E foi com essa hostia esplendida e sagrada,
Com a alma de luz do Filho e Maria
Que o mundo celebrou a grande eucharistia,
Egreja!... O coração da victima innocente
Comungamol-o nós: diluiu-se ethereamente,
Cheio de paz e amor, no coração humano.
Foi um sol que expirou. Onde tombou? No oceano.
Mas como, p'ra poder explorar sem canceira
Com o inferno essa mina, a terra essa melgueira,
O velho Padre-Santo, o Redemptor-Tichborue,
Precisa d'um Jesus sangrento que lhe adorne
O altar, e aos pés do altar necessita que esteja
Toda banhada em pranto a noiva eterna, a Egreja,
E como o noivo e a noiva ambos tinham morrido,
O Padre Santo, que é um padre divertido,
Mandou escripturar então por um cornaca
Uma Egreja a um bordel e um Christo a uma barraca.
Fóra esse Deus! Abaixo esse Deus salafrario,
Deus com ramo de loiro á porta do Calvario,
Deus que marcha ao suplicio, á epopeia da Dôr
Com Cyreneu na frente a rufar n'um tambor,
Deus de quem Harpagão é caixeiro e Tartufo
Guarda livros, um Deus palhaço, um Christo bufo,
Um martyr de aluguel, ebrio, que se apregoa
Com guisos atinir nos espinhos da c'roa,
Um Deus a quem Mandrin passou folha corrida,
Um Deus que fez da morte o seu modo de vida,
Um Deus que representa a farça da Paixão
Pintado, ensanguentado a vinho e a vermelhão,
Um Deus que sobe ao céo, acrobata farnesio,
Em aerostato, a vai no banho d'um trapesio
A fazer o signal da cruz e a prancha com limpeza
Identica, arrojando á multidão surpreza
Bençãos anjelicaes variadas e embrulhadas
Em prospectos, e emfim descendo ás gargalhadas,
Para ir repartir em qualquer sacristia
Os lucros da função por toda a companhia!
Que regabofe! O Christo, um magro actor de fama,
Estropeado galan senil depois do drama,
Lava o gesso e o zarcão da tromoia sangrenta
Com a esponja do fel na pia da agua benta.
A Magdalena, vesga e sordida rameira,
Guarba os seios de estopa, o prato, a cabelleira,
Limpa a maceração do olhar, que causa asco,
Feita a rolha queimada e inutil d'algum frasco
De mercurio ou de absinto, e, como uma alcateia,
Atira-se esfaimada ao bacalhau da ceia.
O bom do Cyrineu, a transpirar, pragueja;
Manda aos quintos a cruz e manda ao diabo a egreja;
Despe a farpela, e bebe a rir alegremente,
D'um trago só, canada e meia de aguardente.
Pilatos o pançudo e calvo safardana
Ronca, dormindo. A vil soldadesca romana
Tira as barbas, e põe muitissimo pacata
N'um bahu os morriões e espadagões de lata.
O bom e o máo ladrão jogam a bisca. O anjo
Que partira o sepulchro, um robusto marmanjo,
Desaparafusando as azas d'oiro e o nimbo,
Pede ao velho Caiphaz lume para o cachimbo
E grave e silencioso, a um canto o thesoureiro
— Judas, reparte, empilha em montes o dinheiro
Da recita, tirando o quinhão do empresario
— O Papa a quem pertence o Theatro do Calvario.
E dividida a prosa e ruminada a orgia,
Ao sagrado e doirado alvorescer do dia,
Lá vai esse roldão de sevandijas podres,
Cambaleante tropel de ventres feitos odres.
Indo dormir talvez, oh pandega, oh delicia!
Jesus co'a Magdalena á esquadra de policia.
Vamos! basta de farça, e basta de farçantes!
Mil bombas a vapor jorrem desinfectantes
N'esse velho bordel da Egreja o vaticano,
Colera! faz-te mar, Justiça! faz-te oceano,
E inundae, submergi o Versalhes maldito
De Jehovah, Rei-sol macrobio do infinito.
Vamos, fogo ao covil! E emquanto os salteadores,
Nuncios, bispos, cardeaes, conegos, monsenhores,
Truculenta manada obesa de hipopotamos
Virgem-mãe dos heróes, ó Liberdade! enxotam'os,
E faze-m'os transpor, a grunhir, sem demoras
As fronteiras do globo em vinte e quatro horas!