O melro, eu conheci-o:
Era negro, vibrante, luzidio,
Madrugador, jovial;
Logo de manhã cedo
Começava a soltar d'entre o arvoredo
Verdadeiras risadas de cristal.
E assim que o padre cura abria a porta
Que dá para o passal,
Repicando umas finas ironias,
O melro d'entre a horta
Dizia-lhe: «Bons dias!»
E o velho padre cura
Não gostava d'aquellas cortezias.

O cura era um velhote conservado,
Malicioso, alegre, prasenteiro;
Não tinha pombas brancas no telhado,
Nem rosas no canteiro;
Andava ás lebres pelo monte, a pé,
Livre de rheumatismos,
Graças a Deus, e graças a Noé.
O melro despresava os exorcismos
Que o padre lhe dizia:
Cantava, assobiava alegremente,
Até que ultimamente
O velho disse um dia:
«Nada, já não tem geito! este ladrão
Dá cabo dos trigaes!
Qual seria a rasão
Porque Deus fez os melros e os pardaes?!»

E o melro no entretanto,
Honesto como um santo,
Mal vinha no oriente
A madrugada clara
Já elle andava jovial, inquieto,
Comendo alegremente, honradamente,
Todos os parasitas da seara
Desde a formiga ao mais pequeno insecto.
E apezar d'isto o rude proletario,
O bom trabalhador,
Nunca exigiu augmento de salario.

Que grande tolo o padre confessor!

Foi para a eira o trigo;
E armando uns espantalhos
Disse o abbade comsigo:
«Acabaram-se as penas e os trabalhos.»
Mas logo do manhã, maldito espanto!
O abbade, inda na cama,
Ouviu do melro o costumado canto,
Ficou ardendo em chamma;
Pega na caçadeira,
Levanta-se d'um salto,
E vê o melro a assobiar na eira
Em cima do seu velho chapéu alto!

Chegou a coisa a termo
Que o bom do padre cura andava enfermo,
Não fallava nem ria,
Minado por tão intimo desgosto;
E o vermelho oleoso do seu rosto
Tornava-se amarello dia a dia.
E foi tal a paixão, a desventura,
(Muito embora o leitor não me acredite)
Que o bom do padre cura
Perdera... o appetite!

  • * * * *


Andando no quintal um certo dia
Lendo em voz alta o _Velho Testamento_
Enxergou por acaso (que alegria!
Que ditoso momento!)
Um ninho com seis melros escondido
Entre uma carvalheira.
E ao vel-os exclamou enfurecido:

«A mãe comeu o fructo prohibido;
Esse fructo era a minha sementeira:
Era o pão, e era o milho;
Transmittiu-se o peccado.
E, se a mãe não pagou, que pague o filho,
É doutrina da Egreja. Estou vingado!»

E engaiolando os pobres passaritos
Soltava exclamações:
«É uma praga. Maldictos!
Dão-me cabo de tudo estes ladrões!
Raios os partam! andai lá que emfim...»

E deixando a gaiola pendurada
Continuou a ler o seu latim
Fungando uma pitada.

  • * * * *


Vinha tombando a noite silenciosa;
E caia por sobre a naturesa
Uma serena paz religiosa,
Uma bella tristesa
Harmonica, viril, indefinida.
A luz crepuscular
Infiltra-nos na alma dolorida
Um mysticismo heroico e salutar.
As arvores, de luz inda doiradas,
Sobre os montes longiquos, solitarios,
Tinham tomado as fórmas rendilhadas
Das plantas dos herbarios.
Recolhiam-se a casa os lavradores.
Dormiam virginaes as coisas mansas:
Os rebanhos e as flores,
As aves e as creanças.

Ia subindo a escada o velho abbade;
A sua negra, athletica figura
Destacava na frouxa claridade,
Como uma nodoa escura.
E introduzindo a chave no portal
Murmurou entre dentes:

«Tal e qual... tal e qual!...
Guisados com arroz são excellentes.»

  • * * * *


Nasceu a lua. As folhas dos arbustos
Tinham o brilho meigo, avelludado
Do sorriso dos martyres, dos justos.
Um effluvio dormente e perfumado
Embebedava as seivas luxuriantes.
Todas as forças vivas da materia
Murmuravam dialogos gigantes
Pela amplidão etherea.
São precisos silencios virginaes,
Disposições sympathicas, nervosas,
Para ouvir estas fallas silenciosas
Dos mudos vegetaes.
As orvalhadas, frescas espessuras
Presentiam-se quasi a germinar.
Desmaiavam-se as candidas verduras
Nos Magnetismos brancos do luar.
...................................

  • * * * *


E n'isto o melro foi direito ao ninho.
Para o agasalhar andou buscando
Umas pennugens doces como arminho,
Um feltrosito assetinado e brando.
Chegou lá, e viu tudo.
Partiu como uma frecha; e louco e mudo
Correu por todo o matagal; em vão!
Mas eis que solta de repente um grito
Indo encontrar os filhos na prisão.

«Quem vos metteu aqui?!» O mais velhito
Todo tremente, murmurou então:

«Foi aquelle homem negro.--Quando veio
Chamei, chamei... Andavas tu na horta...
Ai que susto, que susto! Elle é tão feio!...
Tive-lhe tanto medo!... Abre esta porta,
E esconde-nos debaixo da tua aza!
Olha, já vão florindo as assucenas;
Vamos a construir a nossa casa
N'um bonito logar...
Ai! quem me dera, minha mãe, ter pennas
Para vôar, vôar!»

E o melro hallucinado
Clamou:

«Senhor! Senhor!
É por ventura crime ou é peccado
Que eu tenha muito amor
A estes innocentes?!
Ó natureza, ó Deus, como consentes
Que me roubem assim os meus filhinhos,
Os filhos que eu criei!
Quanta dôr, quanto amor, quantos carinhos,
Quanta noite perdida
Nem eu sei...
E tudo, tudo em vão!
Filhos da minha vida!
Filhos do coração!!...
Não bastaria a natureza inteira,
Não bastaria o céo para voardes,
E prendem-vos assim d'esta maneira!...
Covardes!
A luz, a luz, o movimento insano
Eis o aguilhão, a fé que nos abraza...
Encarcerar a aza
É encarcerar o pensamento humano.
A culpa tive-a eu! quasi á noitinha
Parti, deixei-os sós ...
A culpa tive-a eu, a culpa é minha,
De mais ninguem!... Que atroz!
E eu devia sabel-o!
Eu tinha obrigação de adivinhar...
Remorso eterno! eterno pesadello!...
...........................................
Falta-me a luz e o ar!... Oh, quem me dera
Ser abutre ou ser féra
Para partir o carcere maldicto!...
E como a noite é limpida e formosa!
Nem um ai, nem um grito...
Que noite triste! oh noite silenciosa!...»

  • * * * *


E a natureza fresca, omnipotente,
Sorria castamente
Com o sorriso alegre dos heroes.
Nas sebes orvalhadas,
Entre folhas luzentes como espadas,
Cantavam rouxinoes.

Os vegetaes felizes
Mergulhavam as sofregas raizes
A procurar na terra as seivas boas,
Com a avidez e as raivas tenebrosas
Das pequeninas feras vigorosas
Sugando á noite os peitos das leoas.
A lua triste, a lua merencorea,
Desdemona marmorea,
Rolava pelo azul da immensidade,
Immersa n'uma luz serena e fria,
Branca como a harmonia,
Pura como a verdade.
E entre a luz do luar e os sons e as flores,
Na atonia cruel das grandes dores,
O melro solitario
Jazia inerte, exanime, sereno,
Bem como outr'ora a mãe do Nazareno
Na noite do calvario!...
Segundo o seu costume habitual,
Logo de madrugada
O padre-cura foi para o quintal,
Levando a biblia e sobraçando a enxada.
Antes de dizer missa,
O velho abade inevitavelmente
Tratava da hortaliça
E resava a Deus Padre Onipotente
Varios trechos latinos,
Salvando d'esta forma juntamente
As ervilhas, as almas e os pepinos.

E já de longe ia bradando:

--«Olé!
Dormiram bem?... Estimo...
Eu lhes darei o mimo,
Canalha vil, grandissima ralè!
Então vocês, seus almas do diabo,
Julgavam que isto que era só dar cabo,
Da horta e do pomar,
E bico alegre e estomago contente,
E o camello do cura que se aguente,
Que engrolle o seu latim e vá bugiar!...
Grandes larapios!... Era o que faltava.
Vocês irem ao milho,
E a mim mandar-me á fava!
Pois muito bem, agora que vos pilho
Eu vos ensinarei, meus safardanas!
Vocês são mariolões, são ratazanas,
Tem bico é certo, mas não tem tonsura...
E nas manhas um melro nunca chega
Ás manhas naturaes d'um padre-cura.
O melhor vinho que encontrar na adega
É para hoje, olé!... Que bambochata!
Que petisqueira! Melros com chouriço!...
E então a Fortunata
Que tem um dedo e um geito para isso!...
Heide comer-vos todos um a um,
Lambendo os beiços, com tal gana enfim
Que comendo-vos todos, mesmo assim
Eu fico ainda quasi que em jejum!
E depois de vos ter dentro da pança,
Depois de vos jantar,
Vocês verão como o velhote dança,
Como elle é melro e sabe assobiar!...»

Mas n'isto o padre cura titubiante,
Quasi desfallecendo,
Atonito de horror, parou deante
D'este drama estupendo:

O melro, ao ver aproximar o abade,
Despertou da atonia,
Lançando-se furioso contra a grade
Do carcere. Torcia,
Para os partir os ferros da prisão,
Crispando as unhas convulsivamente
Com a furia d'um leão,
Batalha inutil, desespero ardente!
Quebrou as garras, depenou as azas
E hallucinado, exangue,
Os olhos como brazas,
Heroe febril, a gotejar em sangue,
Partiu n'um vôo arrebatado e louco.
Trazendo dentro em pouco
Preso no bico um ramo de veneno,
E bello e grande e tragico e sereno
Disse:
«Meus filhos, a existencia é boa
Só quando é livre. A liberdade é a lei.
Prende-se a aza, mas a alma vôa...
Ó filhos, voemos pelo azul!... Comei!--»

E mais sublime do que Christo quando
Morreu na cruz, maior do que Catão,
Matou os quatros filhos, trespassando
Quatro vezes o proprio coração!
Soltou, fitando o abade, uma pungente
Gargalhada de lagrimas, de dôr,
E partiu pelo espaço heroicamente,
Indo cahir, já morto, de repente
N'um carcavão com silveiraes em flôr.

E o velho abade, livido d'espanto,
Exclamou afinal:

«Tudo que existe é immaculado e é santo!
Ha em toda a miseria o mesmo pranto,
E em todo o coração ha um grito igual.
Deus semeou d'almas o universo todo.
Tudo o que vive ri e canta e chora...
Tudo foi feito com o mesmo lodo,
Purificado com a mesma aurora.
Ó misterio sagrado da existencia,
Só hoje te adivinho,
Ao vêr que a alma tom a mesma essencia
Pela dôr, pelo amor, pela innocencia,
Quer guarde um berço, quer proteja um ninho!
Só hoje sei que em toda a creatura.
Desde a mais bella até á mais impura,
Ou n'uma pomba ou n'uma fera brava,
Deus habita, Deus sonha, Deus murmura!...
..........................................
..........................................
Ah, Deus é bem maior do que eu julgava!...»

E quedou silencioso. O velho mundo,
Das suas crenças antigas, n'um momento,
Viu-o sumir exhausto, moribundo
Nos abysmos sem fundo
Do tenebroso mar do Pensamento.
E chorou e chorou... A Egreja, a Crença.
Rude montanha pavorosa, escura,
Que enchia o globo com a sombra immensa
Dos seus setenta seculos d'altura;
O Himalaia de dogmas triumphantes,
Mais eternos que o bronze e que o granito,
Onde aos prophetas Deus falava d'antes
Entre raios e nuvens trovejantes
Lá dos confins siderios do infinito;
Esse colosso enorme, em dois instantes
Viu-o tremer, fender-se e desabar
N'uma ruina espantosa,
Só de tocar-lhe a aza vaporosa
D'uma avesinha tremula, a expirar!...
......................................
......................................
E, arremessando a biblia, o velho abade
Murmurou:

«Ha mais fé e ha mais verdade
Ha mais Deus com certeza
Nos cardos secos d'um rochedo nú
Que n'essa biblia antiga... Ó Natureza,
A unica biblia verdadeira és tu!...»[1]


  1. O facto em que se baseia este poemeto, com quanto pouco conhecido, é absolutamente verdadeiro. Os melros e algumas outras aves, como os pintasilgos e os rouxinoes, quando lhes encarceram os filhos, envenenam-n'os. Muitas vezes, (sarcasmo tragico, crueldade sublime!) deixando-os vivos, arrancam-lhes a lingua! Ora nem todos os melros, pintasilgos e rouxinoes assassinam os filhos, quando lh'os prendem. Só o fazem os mais extraordinarios, os mais heroicos. O que nos demonstra que a acção é livre e responsavel, e não um simples producto d'uma fatalidade organica. É pena que Michelet ignorasse este facto. Que paginas divinas que elle não teria escripto! L'Oiseau ficou incompleto.