A vida é uma comedia sem sentido

AO MEU AMIGO J. F. MOREIRA

no dia do enterro de seu irmão


A vida é uma comédia sem sentido,
Uma história de sangue e de poeira,
Um deserto sem luz...
A escara de uma lava em crânio ardido
E depois sobre o lodo... uma caveira,
Uns ossos e uma cruz!

Parece que uma atroz fatalidade
A mente insana no porvir alenta
E zomba da iludida!
O frio do vendaval da eternidade

Apaga sobre a fronte macilenta
A lâmpada da vida.

Não digas, coração, que a alma descansa
Quando as idéias no prazer enfurda
O escárnio zombeteiro...
Que loucura!... amanhã o peito cansa...
Resta um enterro... e uma reza surda...
E depois... o coveiro!

Fermente a seiva juvenil no peito,
Vele o talento numa fronte santa
Que o gênio empalidece...
Embalde! à noite, ao pé de casa leito
O fantasma terrível se levanta...
E seu bafo entorpece!

E contudo essa morte é um segredo
Que gela as mãos do trovador na lira
E escarnece da crença;
Um pesadelo - uma visão de medo...
Verdade que parece mentira
E inocula a descrença!

E quem sabe? é a dúvida medonha!
Quem os véus arregaça do infinito

E os túmulos destampa?
Quem, quando dorme ou vela, ou quando sonha,
Ouviu revelações no horrendo grito
A rebentar da campa?

E quem sabe? é a dúvida terrível:
É a larva que aos lábios nos aperta,
Entreabrindo o sudário!
A realidade é um pesadelo incrível!
Semelha um sonho a lápida deserta
E o leito mortuário!

E quando acordarão os que dormitam?
Quando estas cinzas se erguerão, tremendo,
Em nuvens se expandindo?
Perguntai-os aos ciprestes que se agitam,
Ao vento pela treva se escondendo,
Nas ruínas bramindo!

E contudo parece um desvairo,
Blasfêmia atroz o cântico atrevido
Que rugem osçateus;
Sem a sombra de Deus é tão vazio
O mundo - cemitério envilecido!...
Oh! creiamos em Deus!


Creiamos, sim, ao menos para a vida
Não mergulhar-se numa noite escura...
E não enlouquecer...
Utopia ou verdade, a alma perdida
Precisa de uma idéia eterna e pura
- Deus e Céu... para crer!

Consola-te! nós somos condenados
À noite da amargura: o vento norte
Nossos faróis apaga...
Iremos todos, pobre naufragados,
Frios rolar no litoral - da morte,
Repelidos da vaga!

S. Paulo, 2 de novembro 1851