Prestes de novo a batalhar, chegavam
Os valentes guerreiros. Mas onde ele,
O duro chefe da indomável tribo,
O senhor das montanhas? Afirmava
Tatupeba que o vira, antes da aurora,
Erguer-se, e ao longo do vizinho rio,
Por algum tempo caminhar calado,
Como se o abafara um pensamento
E lhe impedira o sono. Vão receio
De batalhar? Oh! não! Quase na infância,
A torva catadura viu da guerra,
Ofício de homens, que aprendeu brincando
Com seu pai, extremado entre os guerreiros,
E na bravura e na prudência; a frecha
Ninguém soubera menear como ele,
Nem mais veloz nem mais certeira nunca.
A lentos passos caminhando chega,
Enfim, o bravo Jaciúca. Torvo
E merencório traz o duro aspecto.
“— Vamos (diz ele) a descansar na taba,
Entre festas e danças; penduremos
As armas nossas, que sobeja há sido
A glória, e a doce paz nos chama.”
Leve,
Surdo rumor entre os guerreiros soa;
Vai subindo, é rugido, é já tumulto,
Como o grunhir de trajaçus no mato,
Que se aproxima e cresce. Jaciúca
Olhos quietos pelo campo estende;
Seu feio rosto é como a rocha dura
Que o raio quebra, mas não lasca o vento.
Fecha os lábios e pensativo espera.
Tatupeba, que a raiva a custo esconde,
Ergue-se então; crava-lhe os fulvos olhos,
Como a afiada ponta de uma frecha.
Seu porte, entre os irmãos, semelha à vista
Jequitibá robusto; mais que todos,
Terror inspira e universal respeito.
Ergue-se e fala: — “Longos sóis hei visto,
Pelejei muitas guerras; a meu lado
Vi cair mais valentes do que folhas
Arranca o furacão; mas nunca o ânimo
Dos lidadores abalou a palavra
Como essa tua; nunca os braços nossos
Ficar deixaram nos desertos campos
Os ossos não vingados dos guerreiros.
Que gênio mau te insinuou tal crime?”
Assim falando, Tatupeba o solo
Com a planta feriu. Os olhos todos
Pendem da boca do sombrio chefe.
Silencioso Jaciúca ouvira
As falas do guerreiro; silencioso
E quieto ficou. Após instantes,
A fronte sacudiu, como expelindo
Idéias más que o cérebro lhe turvam,
E a voz lhe rompe do íntimo do peito.
“Ó guerreiros (diz ele), aqui deitados
Estivestes a noite, e toda inteira
A dormistes de certo; eu, não distante,
Do rio à margem a trabalhar comigo,
Afiava na mente atra vingança;
Até que os frouxos membros descaíram
Sobre a macia relva, e um tempo largo
Assim fiquei entre vigília e sono.
Viam meus olhos ondular as águas,
Mas no alheado pensamento os ecos
Sussurravam da infância. Um gênio amigo
Aos tempos me levava em que no rosto
De meu pai aprendi, com frio pasmo,
A rara intrepidez, válida herança,
Que tanto custa ao pérfido inimigo.
De repente, uma luz pálida e triste
Inunda o campo: transparente névoa
E luminosa aquilo parecia,
Ou baço refletir da branca lua
Que nuvens cobrem. Lívido e curvado,
Içaíba a meus olhos aparece.
Vi-o qual era antes da fria morte;
Só a expressão do rosto lhe mudara;
Enérgicas não tinha, mas serenas
As feições. “Vem comigo!” Assim me fala
O extinto bravo; e, súbito estreitando
Ao peito o corpo do saudoso amigo,
Juntos voamos à região das nuvens.
“Olha!” disse Içaíba, e o braço alonga
Para a terra. Ó guerreiros! largo espaço
Era presa de alheio senhorio.
Fitei os olhos mais; e pouco a pouco,
Como enche o rio e todo o campo alaga,
Umas gentes estranhas se estendiam
De sertão em sertão. Presas do fogo
As matas vi, abrigo do guerreiro,
E ao torvo incêndio e às invasões da morte
Vi as tribos fugir, ceder a custo,
Com lágrimas alguns, todos com sangue,
A virgem terra ao bárbaro inimigo.
Mau vento os trouxe de remota praia
Aqueles homens novos, jamais vistos
De guerreiro ancião, a quem não coube
Sequer a glória de morrer contente
E todo reviver na ousada prole.
Era o termo da vida que chegara
Ao povo de Tupã! Grito de morte
Único enchia os ares, — um suspiro
De tristeza e terror, que reboava
Pelos recessos da floresta antiga
E talvez ameigava o peito às feras...
Surdos os manitós deixado haviam
Os seus fortes heróis; surdos se foram
Entre os gênios folgar da raça nova,
E rir talvez das lágrimas choradas
Pelos olhos das virgens... Oh! se ao menos
Fora pranto de livres! Era a morte
A menor das angústias; vi curvada
E cativa rojar no pó da terra
A fronte do guerreiro, agora altiva,
Livre, como o condor que frecha as nuvens;
Não canitar a cinge, mas vergonha,
Melancólico adorno do vencido.
O rosto desviei do estranho quadro.
“Olha!” repete o pálido Içaíba.
Olhei de novo, e na saudosa taba,
Que os nossos arcos defender souberam,
Em vez da sombra do piaga santo,
Que, ao som do maracá, colhia as vozes
Do pensamento eterno, e as infundia
No seio do guerreiro, como o fumo
Do petum lhe dobrava ímpeto e força,
Um vulto descobri de vestes negras,
Nua quase a cabeça, e cor de espuma
Alguns cabelos raros. Tinha o rosto
Alvo e quieto. Em suas mãos sustinha
Extenso lenho com dois curtos braços.
Ia só; todo o campo era deserto.
Nem um guerreiro! um arco! — A tribo? “Extinta!”
“A tal palavra, uma pesada sombra
A vista me apagou, e pela face
Senti rolar a lágrima primeira.
O sinistro espetáculo mudara.
Ao dissipar-se a nuvem de meus olhos
Achei-me junto do vizinho rio,
Reclinado como antes, e defronte
A pálida figura de Içaíba.
“— Torna à taba, me disse o extinto moço;
Luas e luas volverão no espaço
Antes da morte, mas a morte é certa,
E terrível será. Nação bem outra,
Sobre as ruínas da valente raça
Virá sentar-se, e brilhará na terra
Gloriosa e rica. Uma chorada lágrima,
Talvez, talvez, no meio de triunfos.
Há de ser a tardia, escassa paga
Da morte nossa. Poupa ao menos essa
Derradeira esperança de guardá-lo
Todo o valor para o supremo dia
E com honra ceder a estranhas hostes;
Salva ao menos as últimas relíquias
Desta nação vencida; não se rasguem
Peitos que irmãos ao mesmo sol nasceram
E Anhangá[1] fez contrários... Todos eles
Poucos serão para a tremenda luta,
Mas de sobra hão de ser para chorá-la.”
Assim falara o pálido Içaíba;
Alguns instantes contemplou meu rosto,
Calado e firme. A cachoeira ao longe
Interrompia apenas o silêncio;
E eu morto, eu mesmo me sentia morto.
Ele um triste suspiro magoado
Soltou do peito; os apagados olhos
Às estrelas ergueu, sereno e triste,
E de novo rompendo o vôo aos ares,
Como uma frecha penetrou nas nuvens.”
Nota
editar- ↑ A verdadeira pronúncia desta palavra é an-hanga. É outro caso em que fui antes com a maneira corrente e comum na poesia.