Versos da mocidade (Vicente de Carvalho, 1912)/Ardentias/Adormecida

ADORMECIDA

Ela dormia... Sobre o alvor do leito
Dezenhava-se, esplendida mirajem,
Seu lindo corpo, escultural, perfeito.

Encrespado das rendas da roupajem,
Seu seio brandamente palpitava
Como a lagôa no tremor da arajem.

Sôlto, o cabelo se dezenrolava
Sobre os lençoes, em plena rebeldia,
Como um revolto mar que os alagava.

Como no ceu, quando desponta o dia,
A aurora raia, de um sorrizo a aurora
Pelo seu meigo rosto se espandia.

E ela dormia descuidada... Fóra,
O mar gemia um cantico planjente
Como uma alma perdida que erra e chora.

Um raio de luar, branco e tremente,
Pela janela mal cerrada veiu
Entrando, surda, sorrateiramente...

Ia beijal-a em voluptuoso anceio;
Mas, ao vel-a dormindo entre as serenas
Ondas daquele sono sem receio,

Hesitou em beijar-lhe as mãos pequenas,
E humildemente, e como ajoelhando,
Beijou-lhe a fimbria do vestido apenas...

E o lindo quadro, estatico, fitando,
Senti não sei que mistica ternura
Por toda a alma se me derramando

Porque ácima daquela formozura
Do corpo, os seus quinze anos virjinais
Envolviam-lhe a anjelica figura
Na sombra de umas azas ideais.