- Ah, perante esta única realidade, que é o mistério,
- Perante esta única realidade terrível — a de haver uma realidade,
- Perante este horrível ser que é haver ser,
- Perante este abismo de existir um abismo,
- Este abismo de a existência de tudo ser um abismo,
- Ser um abismo por simplesmente ser,
- Por poder ser,
- Por haver ser!
- — Perante isto tudo como tudo o que os homens fazem,
- Tudo o que os homens dizem,
- Tudo quanto constroem, desfazem ou se constrói ou desfaz através deles,
- Se empequena!
- Não, não se empequena... se transforma em outra coisa —
- Numa só coisa tremenda e negra e impossível,
- Urna coisa que está para além dos deuses, de Deus, do Destino
- —Aquilo que faz que haja deuses e Deus e Destino,
- Aquilo que faz que haja ser para que possa haver seres,
- Aquilo que subsiste através de todas as formas,
- De todas as vidas, abstratas ou concretas,
- Eternas ou contingentes,
- Verdadeiras ou falsas!
- Aquilo que, quando se abrangeu tudo, ainda ficou fora,
- Porque quando se abrangeu tudo não se abrangeu explicar por que é um tudo,
- Por que há qualquer coisa, por que há qualquer coisa, por que há qualquer coisa!
- Minha inteligência tornou-se um coração cheio de pavor,
- E é com minhas idéias que tremo, com a minha consciência de mim,
- Com a substância essencial do meu ser abstrato
- Que sufoco de incompreensível,
- Que me esmago de ultratranscendente,
- E deste medo, desta angústia, deste perigo do ultra-ser,
- Não se pode fugir, não se pode fugir, não se pode fugir!
- Cárcere do Ser, não há libertação de ti?
- Cárcere de pensar, não há libertação de ti?
- Ah, não, nenhuma — nem morte, nem vida, nem Deus!
- Nós, irmãos gêmeos do Destino em ambos existirmos,
- Nós, irmãos gêmeos dos Deuses todos, de toda a espécie,
- Em sermos o mesmo abismo, em sermos a mesma sombra,
- Sombra sejamos, ou sejamos luz, sempre a mesma noite.
- Ah, se afronto confiado a vida, a incerteza da sorte,
- Sorridente, impensando, a possibilidade quotidiana de todos os males,
- Inconsciente o mistério de todas as coisas e de todos os gestos,
- Por que não afrontarei sorridente, inconsciente, a Morte?
- Ignoro-a? Mas que é que eu não ignoro?
- A pena em que pego, a letra que escrevo, o papel em que escrevo,
- São mistérios menores que a Morte? Como se tudo é o mesmo mistério?
- E eu escrevo, estou escrevendo, por uma necessidade sem nada.
- Ah, afronte eu como um bicho a morte que ele não sabe que existe!
- Tenho eu a inconsciência profunda de todas as coisas naturais,
- Pois, por mais consciência que tenha, tudo é inconsciência,
- Salvo o ter criado tudo, e o ter criado tudo ainda é inconsciência,
- Porque é preciso existir para se criar tudo,
- E existir é ser inconsciente, porque existir é ser possível haver ser,
- E ser possível haver ser é maior que todos os Deuses.