I
editarUma vocação irresistivel, uma d'estas vocações a que tem por força de obedecer-se, sob pena da mais tremenda mutilação intellectual, fez de Antonio Candido um orador.
Os escriptores fazem-se, os oradores nascem! Antonio Candido nasceu orador.
N'este ponto é elle absolutamente irresponsavel do seu destino.
Poucos haverá que em Portugal não saibam as circumstancias singulares que o subjugaram e venceram tragicamente, dando-lhe, n'este nosso meio muito uniforme e muito incolor, uma individualidade extranha, um toque de romanesco, que ainda mesmo nos oradores politicos destaca e assenta bem.
A vontade respeitada e querida de alguem, que elle muito amou, impoz-lhe um genero de vida com o qual o seu espirito, a sua educação, a sua comprehensão das cousas, o iam brevemente tornar incompativel.
Moço, ingenuo, inexperiente, elle subordinou n'uma hora de inconsciencia, de abatimento mental, toda a felicidade do seu destino futuro a essa vontade que respeitava sobre todas. Mais tarde, comprehendeu que as responsabilidades gravissimas que tinha acceitado, na sua imprudencia de moço, importavam nada mais e nada menos do que a abdicação da propria consciencia. Viu então que não Moço, ingenuo, inexperiente, elle subordinou n'uma hora de inconsciencia, de abatimento mental, toda a felicidade do seu destino futuro a essa vontade que respeitava sobre todas. Mais tarde, comprehendeu que as responsabilidades gravissimas que tinha acceitado, na sua imprudencia de moço, importavam nada mais e nada menos do que a abdicação da propria consciencia. Viu então que não podia occupar com sinceridade―isto é, com dignidade, porque é indigno tudo que não é sincero―a tribuna a que o tinham feito subir, e desceu d'ella sem hesitação e sem covardia.
Fez mal, diz o mundo; e não ha ninguem que o não tenha ouvido dizer muitas vezes, com aquella despreoccupada ousadia com que dizem tudo os que não acreditam em cousa alguma.
Fez mal. Il est avec le ciel des accommodements; e a sociedade actual, como em summa todas as sociedades extra-civilisadas, não exige heroismos nem abnegações sobre-humanas.
Ella só quer o respeito apparente das convenções estabelecidas; no mais, acha regular que se sophismem os preceitos, que se illudam e transgridam hypocritamente as leis. O que exige apenas e não se dirá que exige muito―é que se acceitem as posiçoes definidas, e que se finja acatar todas as tyrannias sociaes que a tradição consagra.
Que fizesse mal ou bem não me pertence a mim julgar aqui. O caso é que o fez, e que o fez com tamanha dignidade, com uma reserva tão silenciosa, com um desdem dos bens positivos e das utilidades praticas tão intellectualmente aristocrata, que ninguem ousou atacar de frente este acto d'uma vontade, esta determinação d'uma consciencia!
Os que privam de perto com Antonio Candido sabem que elle amou muito essa tribuna, onde a sua palavra deixou vestigios de graça incomparavel e de soberbo vigor.
Amou-a muito, e nunca a ella se refere sem o respeito enternecido e a vaga saudade dos que viram dissipar-se um sonho querido.
Mas ficar onde a Fé o não prendia teria sido uma transigencia covarde com a hypocrisia mundana.
Só espiritos amesquinhados pela comprehensão d'uma falsa moral o poderiam applaudir. Antonio Candido não teve essa transigencia. Antepoz a todas as considerações de facil e util egoismo o seu culto sincero pela verdade, a sua noção grave e austera do Dever.
Com a sua intelligencia malleavel, penetrante, capaz de vêr justo e de vêr fundo, percebeu, de certo, antes de tomar a resolução definitiva de romper com o passado, as difficuldades extremas que a vida ia ter para elle. Não hesitou, porém, certo de que na sinceridade ingenua do seu coração, na pureza do seu caracter, n'aquella isenção desdenhosa que é a melhor salvaguarda do homem superior, n'este tempo sem crenças absolutas, elle encontraria sempre um guia seguro para as complicações de ordens diversas, que tivessem de surgir diante dos seus passos.II
editarOutra tribuna, a tribuna politica, se lhe abriu então ampla e rasgada!
Quem não advinha hoje as tristezas que a consciencia austera d'este homem terá sentido ao apalpar a inanidade vã das chymeras que sonhou antes de entrar n'este novo mundo!...
Porque, os que julgando amesquinhal-o e diminuil-o, lhe chamam poeta, sómente se enganam na intenção com que o fazem. Se é ser poeta não poder viver sem um ideal de justiça, de belleza, de bondade que sobredoire ainda as concepções mais vulgares, que espiritualise ainda as realidades mais praticas; se é ser poeta ter sempre a impulsalo, a commovel-o, o sonho de melhor, a aspiração indefinida a alguma cousa que ainda não foi realisada no mundo, mas por amor da qual o mundo tem caminhado sem parar; se é ser poeta ter a comprehensão, perfeita e sympathica, de todos os sonhos adoraveis com que se entretem eternamente a phantasia d'esta velha creança incorrigivel chamada, a Humanidade―Antonio Candido é poeta como os que mais o são.
Lembro-me de o ter ouvido, ha bastantes annos, fallar com enthusiasmo na vida nova que encetára,―resignado já ao tragico abortamento do seu destino de homem;―lembro-me de o ter applaudido quando, diante de mim e d'alguns amigos sinceros, dos quaes um já desappareceu da terra, elle desenrolláva com a palavra flexivel e deslumbradora, colorida e vibrante, em que a eloquencia é tão natural que chega mesmo a ser involuntaria, os planos sociaes que o consolavam de tanta cousa perdida para sempre, ou para sempre inacessivel...
É provavel que hoje Antonio Candido já não sonhe; mas acredita ainda decerto que a evolução necessaria das sociedades tende constantemente a melhorar os seus instinctos, a esclarecer a sua consciencia, a diminuir n'ellas a somma do mal e da iniquidade, a desenvolver mais e mais no seu espirito a ambição d'um alto destino... E a sua philosophia, a que elle ás vezes se refere sorrindo, e ácerca da qual os seus amigos gracejam benevolamente, não se perturba nem se ensombra, porque o meio que o cerca n'este momento parece comprazer-se em contradizer todas as suas formulas, em desmentir todas as suas conclusões...
De feito elle tem visto que, na lucta que as ambições pessoaes travam na scena politica, o vencedor paga o seu doloroso, o seu humilhante triumpho, com os thesouros insubstituiveis da integridade e da delicadeza moral. Elle tem tido, hora a hora, a prova irrefutavel e desconsoladora de que a habilidade vence o genio, de que a astucia vence a virtude, de que os meios tortuosos vencem os impulsos dignos e as aspirações sinceras.
A historia moderna em Portugal tem sido, sem duvida, um ensinamento fecundo e triste para esta intelligencia tão penetrante na analyse das cousas, como intuitiva e superiormente sagaz na sua concepção synthetica.
Porque é que n'esse caso não deserta elle o exercito sem ideal, onde―errando mais uma vez o caminho da vida―elle se alistou na ingenua confiança do seu optimismo juvenil?
Por muitas razões, umas claras e simples, outras mais complicadas, umas originadas, simplesmente pelo seu proprio destino, outras que derivam naturalmente da especie de determinismo historico, que principalmente o inspira ainda nas crises de mais desolação interior, ainda nas luctas mais dolorosas da sua sensibilidade um pouco feminina, quasi morbida...
Como Renan, um dos seus amigos ideaes, o mystico e bondoso coração com o qual o seu tem tantos pontos de contacto―elle acceita resignado, com o benevolo desdem das almas fortes, a dura lei que, fazendo tão grande e tão sublime a Humanidade, fez ao mesmo tempo tão frageis e tão imperfeitos os individuos, a complicação inextricavel, apparente, que existe em tudo que nos cerca, e que faz com que, muita vez, as mais contrarias soluções do mesmo problema moral sejam igualmente justas, igualmente legitimas diante do olhar da Critica; a certeza melancolica de que os males e as miserias que nos circumdam e nos fazem tanta vez perder de vista o ceu azul, o amplo espaço luminoso e puro, não são feitas pela vontade dos homens, são simplesmente modificadas por ella n'um ou n'outro ponto secundario. Elle sabe que só a vagarosa evolução dos tempos pode exercer a acção que antigamente se attribuia ao capricho ou á influencia immediata de homens providenciaes.
D'aqui a sua tolerancia, a sua resignação austera e triste, e a expressão melancolica da sua palavra, em que não ha revoltas inuteis nem injustiças escusadas, mas sim a tragica acceitação de leis ineluctaveis e crudelissimas.
Cada epocha que passa não faz mais do que servir, intelligentemente ou cegamente, conscia da sua missão historica ou ignorante d'ella, a corrente das idéas, dos factos, dos phenomenos que o periodo anterior tinha necessariamente preparado.
Caminhantes forçados d'uma estrada enorme, cujo principio se perde em sombras incognosciveis, cujo fim nenhum olhar descortina ou sondará jamais, nós seguimol-a, resistentes ou doceis, confiantes ou resignados, scepticos ou cheios de fé, egoistas ou desinteressados, parando nas etapes marcadas, perdendo-nos momentaneamente nas charnecas aridas, ou nos atalhos floridos e risonhos, mas voltando, apoz o retrocesso rapido, ao longo caminho que necessariamente temos de seguir, como o astro segue a sua trajectoria, como a Vida segue a sua evolução.
De resto, aos que perguntarem a Antonio Candido o motivo porque elle, sem ambições pessoaes de especie alguma e com poucas illusões a respeito todas as cousas, ou antes julgando todas as cousas uma illusão mais ou menos radiosa, se conserva ainda assim no seu posto de politico militante, elle responde com um bello trecho d'um dos mais bellos discursos que este orador tem pronunciado, o discurso consagrado á memoria de Braamcamp.
«O desfavor com que a acção politica é considerada por muitos espiritos superiores, no velho e no novo mundo, tem da sua parte, é forçoso confessal-o, bastantes apparencias de razão.
Pela sua influencia immediata e complexa, e pela enorme comprehensão dos interesses que move, este genero de acção é o mais vasto, o mais attrahente de quantos podem sollicitar um homem de intelligencia e de vontade; mas como estadio de exhibição moral e como processo de educação publica mostra-se a esta hora, na America e na Europa Occidental, adverso a muitos interesses da dignidade civica, da justiça distributiva, da logica que deve haver nos factos, e do prestigio que as pessoas devem conservar. Tem uma base intellectualmente falsa: a philosophia naturalista do seculo XVIII! Tem um principio inane e contradictorio: a soberania popular. Tem um processo que não qualifico... por uma delicada circumstancia de logar e de tempo: o suffragio universalisado! Tem um limite para as elevações pessoaes, que difficilmente varia: a mediocridade. Tem uma litteratura propria, quasi sempre sem ideal e sem verdade: o jornalismo e a oratoria parlamentar. Tem uma liturgia sem pompa e sem pensamento: a das ficções constitucionaes.
A grande revolução, de que promana e deve dactar-se toda a moderna historia, assumiu, como se sabe, as formas d'um drama grandioso, enorme.
«Emquanto este drama desenrollou nos Estados latinos as suas scenas formidaveis foi sublime de paixão, de força e de movimento. O theatro grego, em que intervinham deuses, não é mais maravilhoso do que este em que representaram povos!
«Mas a commoção publica, como estado violento, não podia ser perduravel; a ebullição dos espiritos, consumidora quando é prolongada, não poude deixar de diminuir; recahiram nas condições normaes da vida os homens e as nações que se tinham exaltado até ao heroismo e até ao martyrio; e viu-se então que a superficie moral do mundo ficára com o aspecto devastado, arrefecido, melancolico, d'uma floresta que o incendio consumisse, e de que os velhos troncos em cinza tivessem apenas servido para fecundar rasteiras vegetações uniformes, de pouco vigor e sem vulto definido ainda...
«A França, onde a immensa combustão principiara, ainda se reenflammou uma vez contra a senil e caduca Restauração e teve, durante alguns annos, uma prolongação artificial de vida politica na tribuna illustre de Guizot, Royer Collard e Thiers, e na imprensa convicta e apaixonada de Armand Carrel e de P. L. Courier; mas formado e desfeito o sonho de 1848, caiu, sossobrou, veio, pouco a pouco, a volver-se no que está, no que é hoje... A Italia depois de Cavour e de Garibaldi, a Hespanha depois de Espartero e de Mendizábal, Portugal depois de Mousinho da Silveira e de Saldanha,―grandes nomes que marcam a estatura de velhos povos,―voltaram fundamentalmente ao que eram d'antes, porque ha, meus senhores, uma tyrannia que as espadas não cortam, e um despotismo que a penna do legislador não fere de morte; a tyrannia das raças, e o despotismo da historia!
«N'este estado de cousas, superior aos antecedentes porque sempre é um ponto vencido na serie do progresso humano, mas repousado, egoista, apenas assignalado por um mais intenso fervilhar de vida vegetativa e intellectual, sem accidentes revolucionarios, salvo quando a questão politica trava na questão nacional, como em Italia antes da occupação de Roma, na França depois de 1870 e na Inglaterra actualmente; n'este estado de cousas, pouco propicio ás germinações do heroismo, e ás ostentações da grande força, porque os obstaculos sociaes deslocaram-se do mundo para a consciencia e o poder publico desvigorisou-se, enfraqueceu nas multiplas divisões que o fraccionaram: n'este estado de cousas, que em compensação de tanta inferioridade é pacifico, é evolutivo, é felizmente desassombrado de terrores divinos e humanos―ha um largo espaço para uma boa intelligencia que queira applicar-se, para uma energica vontade, que queira desenvolver-se, para um caracter honesto e digno que a vida publica tente com as suas glorias e os seus sacrificios, com os seus ruidosos triumphos e as suas tremendas ingratidões!»
Citei todo este largo trecho, em que vão sublinhadas por mim algumas passagens mais significativas, porque, formosissimo, como forma, admiravel com synthese historica, elle vem de molde para definir as idéas que Antonio Candido tem ácerca da politica moderna, e os motivos que actuaram n'elle para continuar na vida publica que adoptou.
Como quer que seja e sem me alongar, indiscretamente, em considerações que prendem no que ha de mais delicado e mysterioso n'uma consciencia de homem, o que é verdade é que Antonio Candido é hoje a suprema representação da arte oratoria no mundo politico e litterario d'este paiz.
Não é que no parlamento portuguez não brilhem talentos muito notaveis,―nas nossas assembléas meriodinaes sabe-se que não é o talento que falta―muitos fallam bem, argumentam bem, discutem bem.
Ha tribunos enflammados, ha luctadores politicos, a que nenhum segredo da estrategia parlamentar é vedado, mas orador, apezar de tudo é só elle.
Todos, em qualquer dos campos partidarios em que militem, o reconhecem unanimemente. Observação feita muito de passagem―o partido opposto áquelle em que Antonio Candido está, reconhece-o muito mais ostentivamente do que o seu proprio partido, injusto muitas vezes, ingrato quasi sempre para este homem que tanto o illustra.
O orador, é o mais privilegiado e o mais raro entre todos os artistas, e tambem―como que para contrabalançar a influencia directa e poderosa que só elle consegue exercer, como que para amargar e diminuir a sensação voluptuosa de força e de imperio absoluto, que só elle experimenta em certas horas de triumpho moral, quando a sua palavra fremente e indignada passa, curvando os espiritos, como a ventania passa, curvando as grandes arvores―o seu poder é de todos o mais passageiro, a sua força é de todas a mais ephemera, o brilho do seu nome é de todos o que mais rapido se apaga...
Quem é que hoje póde reconstituir pelo pensamento a commoção profunda que electrisou as almas de 89, quando a palavra de Mirabeau trovejava do alto da tribuna as suas apostrophes sublimes?... Quem fixou no papel os rugidos leoninos, os gritos titanicos de Danton? Quem, lendo os discursos de Savonarola, o inspirado dominicano florentino, comprehende o movimento desordenado e febril, com que elle agitou em convulsões de arrependimento e de lagrimas as almas italianas de seu tempo?...
Levaram o segredo de todas estas maravilhas aquelles que as ouviram e que as não poderam communicar a ninguem!
Na arte de orador, na sublime arte potente e deslumbradora, como lhe chama, no discurso já citado, aquelle que tanto lhe deve e tanto a ama synthetisam-se n'um relampago fugitivo, todas as mais bellas irradiações das outras artes!
A esculptura empresta-lhe a elegancia e a magestade das suas attitudes, a flexibilidade viril dos seus gestos, a graça malleavel e movimentada dos seus aspectos; a musica dá-lhe as notas graves ou dôces, apaixonadas ou severas, vibrantes ou meigas, sonoras, ou melancolicamente esmorecidas da sua voz; a poezia dá-lhe o encanto alado indefinivel, subjugador das suas imagens; a litteratura o requinte subtil da sua fórma, a belleza penetrante dos seus conceitos, a seducção ondeante e diversa das suas expressões; a philosophia, a amplidão dos seus horisontes, uma comprehensão da vida soberanamente inspiradora, uma envergadura de azas potente e larga bastante para que elle possa levantar-se ás amplidões sem fim do Pensamento, ás deslumbrantes vizões do Ideal...
Faz-se de todas estas cousas maravilhosas e divinas a eloquencia dos grandes oradores, mas faz-se de mais alguma cousa que sobredoira tudo isto, e sem a qual tudo isto seria artificial como a representação d'um actor de genio! E essa outra cousa, insubstituivel e sagrada, é a sinceridade ingenua do caracter, é a bondade humana e communicativa do coração!
E é isto, que além de tudo o mais Antonio Candido tem como ninguem. É isto que, acima de tudo, o torna sympathico e querido.
A nota de probidade virginal, de susceptivel e melindrosa pureza de alma, que o distingue, e acaso, no meio actual da nossa politica o singularisa, punha-a Oliveira Martins em evidencia, ha tempo, no formoso perfil parlamentar que consagrou a Antonio Candido.
«Quando Antonio Candido falla, diz elle, vêse um caracter atravez de uma obra de arte.»
E accrescenta lucidamente. «Pela sua mente impressionavel passam as ideas do seu tempo como os raios do sol pela placa sensivel do photographo, e as imagens fixam-se com a mesma nitidez e a mesma fidelidade. Pela sua alma ingenua passam, como por philtro, as ondas da corrente dos factos e ahi se depuram para surgirem depois transparentes e crystallinas. E factos e idéas, animadas e allumiadas pela sua imaginação creadora, borbulham-lhe dos labios no caudal de uma palavra incomparavel de atticismo, de colorido, de propriedade, que são as qualidades artisticas do orador, combinado com um gesto e uma voz que não mente, quando exprime a energia mascula, a convicção ingenua, a indignação fremente, ou a caridade pura, que são as qualidades moraes do homem!»
Para provar quanto é rara a reunião de faculdades que constituem este aristocrata do pensamento, esse maestro da palavra que se chama orador,―no sentido amplo e complexo, no sentido artistico que eu aqui dou á palavra―basta vêr-se que Portugal que tem tido sempre uma florescencia notavel de bellos talentos... desaproveitados, só teve no passado um orador chamado José Estevão, como só tem no presente um orador chamado Antonio Candido.
E a geração de José Estevão foi: Garrett, foi Castilho, foi Rebello da Silva, foi Herculano, foi Rodrigo da Fonseca, foi Fontes, foi Sampaio, assim como a geração de Antonio Candido é composta de tantos nomes illustres, que estão no pensamento e na memoria de todos, e que tanto na politica como em todas as outras manifestações da actividade intellectual tem dado de si soberbas provas.
Antonio Candido, porem, foi mais infeliz que o seu glorioso antecessor, porque em quanto esse achou o meio perfeitamente adquado ás suas bellas qualidades de tribuno impetuoso, enflammado, um tanto declamatorio como o seu tempo; emquanto esse podia vibrar ainda intensamente ao nome, então virginal, poetico, mysterioso, de Liberdade,―este, na fria quadra evolutiva que atravessamos, n'este periodo, que se chama positivo mas ao qual se deveria chamar sceptico, não encontra, fóra de si, nada que o estimule, nada que o anime, nada que responda ao sonho altissimo que a sua imaginação sonhára, antes de ter penetrado nos meandros complicados d'este moderno constitucionalismo, tecido de ficções transparentes, n'este mesquinho periodo politico, que é o triumpho da mediocridade, que é a tortura do genio, e a condemnação das fortes individualidades!...
Dessem a Antonio Candido os soberbos assumptos, que Emilio Castellar tem tido na sua brilhante e revolta existencia de agitador e de tribuno; dessem-lhe a vizão radiosa e juvenil da Democracia e da Liberdade, que deslumbrou na aurora da sua vida publica, esse bello Atheniense chamado José Estevão; dessem-lhe o theatro collossal em que representou esse titan de cabeça convulsionada e febril que foi Mirabeau;―e veriam se não era egual a qualquer d'esses, sem comtudo se parecer com nenhum d'elles, o homem que póde, ainda hoje, em Portugal, n'este momento de victorioso mercantilismo e de arranjos e combinações deprimentes, fulminar de admiração um auditorio de burocratas, fazer tremer de enthusiasmo uma assembleia de homens de negocios!...
É que o orador, infeliz em tudo como eu ha pouco dizia, alem de todas as singulares faculdades individuaes que necessita de possuir, para exercer e desenvolver o pleno vigor do seu genio, precisa tambem de que o tempo em que vive,―pela grandeza das suas luctas, pelo contraste das suas agitações, pela desordenada corrente dos seus desejos, pelo combate tumultuoso das suas paixões civicas, pelo interesse dramatico dos seus acontecimentos,―corresponda aos ideaes generosos que lhe illuminam a consciencia, e á fibra guerreira que palpita e freme na alma de todo o luctador, quer seja da Ideia quer seja da Acção!
Sempre uma quadra epica da vida dos povos antigos ou modernos, foi representada e contida na palavra d'um orador. E appareceria esse orador se as circumstancias o não houvessem por assim dizer, determinado e creado? Talvez que não!
Pois a superioridade extraordinaria de Antonio Candido, e talvez a maior causa da tristeza que transparece em tudo que elle diz, a fatalidade mais insanavel do seu destino, é ter apparecido n'uma epocha em que segundo elle proprio disse a hora das grandes paixões politicas passou no mundo!
As circumstancias não o favorecem; a transformação por que está passando a politica portugueza, e infelizmente toda a politica europeia, não o inspira nem impulsiona; e no emtanto, apezar de todas as más influencias, que parecem tender em toda a parte a paralysar o caracter e o talento, é tal a pureza crystallina da sua consciencia, é tal a illuminação fulgurante da sua palavra, que elle consegue crear para si, um logar á parte, indisputavel, aristocraticamente reservado, em que saboreia as delicias requintadas da sua isolação e do seu altivo desinteresse.
Sem ter transposto para sempre o circulo acanhado da politica partidaria, sem ter sahido definitivamente da jaula estreita do nosso constitucionalismo nacional, Antonio Candido, consegue em admiraveis sortidas de que todos se lembram, dizer verdades profundas ao paiz que teima em não querer ouvil-as. Na sessão de 87 a tantos respeitos desoladora, n'essa sessão em que passaram sem debate leis d'uma grande importancia economica e d'um alcance politico altissimo, e em que se consumiram dias e dias discutindo os mais inuteis e ociosos pequenos assumptos pessoaes, as questiunculas de interesse mais restricto e mais acanhado, a palavra de Antonio Candido deixou, todavia, um rasto de inolvidavel e luminosa critica.
Vio-se ali um parlamentar julgando o parlamento; um filho da Revolução dizer á Revolução as verdades tristissimas que estão na consciencia de todos! Criticando a moderna comprehensão que temos da Liberdade, o orador, não teve a irreverencia que insulta, mas teve a razão austera e firme que adverte, a lucida comprehensão que vê longe e que vê justo, e que de leis inluctaveis sabe tirar as duras e ineluctaveis conclusões!
Já estamos longe do tempo em que se acreditava no empyrismo de receitas particulares, e na vinda de Messias privilegiados e salvadores.
É inutil accusar este ou aquelle individuo de males, cujo segredo e cuja origem só acha, quem investigue o espirito da nossa raça, o modo porque n'ella actuaram as inesperadas transformações que soffreu, a corrente historica dos acontecimentos, as mil influencias complexas, os mil factores diversos que nos fizeram... o que hoje sômos!
Diante dos acontecimentos que desdobram sob o nosso olhar a sua trama variada ou uniforme, é porem, nosso costume incorrigivel, accusar-mos não só os homens, mas ainda certos e determinados nomes de homens!
Não percebemos ainda que uma sociedade, que um paiz, possam na sua qualidade de organismos vivos, estar sujeitos ás mesmas condições de germinação, desenvolvimento, degeneração e morte, a que está sujeita a Vida Universal em qualquer das suas infinitas manifestações.
Revoltamo-nos contra o que não pudémos evitar! Attribuimos á preversidade insolita dos individuos o que é puramente o resultado de leis historicas incombativeis! D'aqui a nossa colera insensata, e contraproducente!
Podem os homens modificar as condições moraes d'uma sociedade, não podem obstar a que a vida d'ella siga o curso fatal que segue tudo que vive na terra, e que na terra tem de morrer.
N'este ponto, Antonio Candido educado por Comte e por Littré tem uma vantagem incontestavel sobre quasi todos os seus contemporaneos portuguezes. Nenhum, que eu saiba, se embebeu mais profundamente das lições do grande philosopho positivista, nenhum vê de mais alto e com uma imparcialidade mais bella e mais fecundante para o espirito, a evolução necessaria das leis sociologicas a que todas as civilisações estão subordinadas. Mas extranho contraste! Este positivista de educação, é um idealista incorrigivel, por temperamento.
Apezar d'isso ou talvez por isso mesmo nunca o ouvirão accusar um homem dos acontecimentos de que pela maior parte das vezes esse homem não foi senão o vizivel instrumento; nunca o ouvirão accusar o presente de não ter sabido perpetuar as virtudes e as crenças do passado.
Se tem saudades das bellas cousas extinctas, se tem pena de não ter vindo ao mundo n'outra quadra, em que o mundo ia n'um ponto mais pittoresco ou mais interessante, mais illuminado ou mais espiritualista do seu caminhar indefinido, se sente a nostalgia dos bellos ideaes hoje desfeitos, nem por isso deixa de reconhecer que toda a vontade individual é impotente para guardar na alma da Humanidade, pensamentos que se vão fatalmente dissipando, phantasias que a experiencia repelle, sonhos de que infelizmente se acordou, radiosas chymeras meras que se esvairam com a hora infantil em que tinham visto a luz...
Como orador e como artista, Antonio Candido não pertence á raça impetuosa e enflammada de Castellar ou de José Estevão.
Educado, como já disse, pelos processos da sciencia positiva, tão displinadora e tão methodica; não se deixando nunca possuir pelo seu assumpto, antes possuindo-o, subjugando-o, vencendo-o, torcendo-o a todas as magicas flexibilidades da forma mais correcta e mais superiormente bella; desprezando os artificios d’uma rhetorica envelhe- cida e inane; sem nunca se deixar ir atraz das seducções um tanto serodias da pompa e da exhuberancia oratorias; possuindo uma razão clara e lucida, um poder de critica muito notavel, elle é justamente o orador moderno tal como os auditorios d'hoje teem o direito de exigir...
O orador que impressiona mas que persuade, que tem o brilho e a côr, a illuminação e o prestigio, mas que tem tambem o facto, o documento, a demonstracção scientifica, a comprehensão positiva das cousas.
Essa eloquencia que tão poucos teem sabido comprehender, essa eloquencia que os ignorantes desdenham, e que os mediocres teem em pouca conta, encontrou na critica indigena as interpretações mais diversas e mais extraordinarias.
Precedido d'uma celebridade cujas exigencias elle soube completamente realisar, Antonio Candido, apparecendo em S. Bento fez um d'aquelles seus discursos magistraes em que as bellas e largas syntheses brilham como constellações, n'um fundo azul de arte pura e de belleza a um tempo moderna e classica.
Foi então que o jornalismo portuguez o sagrou rouxinol. As appellações mais vulgares, que ficaram desde esse dia como cauda obrigatoria ao seu nome, foram as de: orador maviosissimo, harmonioso tenor, voz eloquente e suave, etc. etc. Cantor dos bosques sagrados de S. Bento―eis a sua posição social e artistica, perante a critica do seu paiz.
«―Mas eu não sou tal rouxinol! Eu nunca na minha vida cantei!―exclamava elle em vão com um gesto de suplice resistencia. Eu não tenho a pezar-me na consciencia nem um trilo nem uma volata.
―É rouxinol―respondeu severa e cathedratica a critica portugueza. É rouxinol, e rouxinol hade ficar!...
Foi uma hora amargurada esta, na vida do orador. Resignou-se então por algum tempo, para ver se o despediam d'entre o bando dos alados cantores, a fazer politica de pequenos interesses, e de pequenos assumptos.
Defendeu eleições, atacou dictaduras; foi vehemente e apaixonado no ataque ás personalidades eminentes; teve ironias mordentes e cruas, teve energias inesperadas; foi o orador politico, opportunista, habil, argumentador e arguto, que é necessario ser-se pelos modos, para arrancar de sobre os hombros as azas um pouco humilhantes de rouxinol.
Ás vezes no meio d'estes discursos de argumentação terra a terra, a sua imaginação opulenta e d'um brilhantismo extranho e raro, tinha uma fuga subita pelas largos espaços estrellados d'onde andava foragida, mas dos quaes se sentia eternamente nostalgica...
Outras vezes a sua faculdade critica tão educada e tão fina, d'uma subtileza de comprehensão tão viva e requintada, atirava para o meio do auditorio―sempre seduzido, senão sempre inteiramente capaz de o perceber―com uma d'aquellas interpetrações geniaes, um d'aquelles aperçus soberbos, que só pertencem aos que meditam e estudam os mais arduos e complexos problemas da vida social.
Foi por essa occasião que alguns noticiaristas principiaram surrateiramente a chamar-lhe aguia. Nunca se soube bem qual a razão d'aquella mudança. Já que elle estava, no emtanto, adstricto aos dominios da ornithologia, antes aguia do que rouxinol,―pensou decerto Antonio Candido.
E aguia e rouxinol lhe ficaram alternativamente chamando os seus amigos e os seus adversarios.
Foi talvez para escapar a esta importuna classificação, que elle ultimamente, queimando os seus navios, sacrificando denodadamente qualquer ambição politica que ainda porventura se acoitasse no mais intimo e secreto do seu alto espirito, fez ouvir em S. Bento uma palavra de verdade suprema e tambem de suprema condemnação de toda a politica interna d'este malfadado paiz.
De todos os lados da imprensa levantou-se um brado que, condemnando a doutrina, glorificava o orador. Esqueceram-se, n'essa tardia accusação, de que em S. Bento a camara inteira o applaudira vertiginosamente, porque era a verdade quem punha na sua palavra a indignação fremente, a paixão intensa e viva, a melancolia immensa, inconsolavel, feita de ironia e de razão...
Accusaram-n'o porque, fugindo á banalidade e á falsidade historica de que todos ali são mais ou menos reus, elle não attribuia a ausencia de costumes politicos, a falseação do systema representativo, a exagerada elasticidade das ficções constitucionaes a violação sempre impune, de todas as suas praxes, as mil imperfeições do nosso machinismo governativo á vontade do sr. Fulano ao ministerio do sr. Cicrano, aos maus conselhos do sr. X e ao systema de corrupção do sr. J.
Era isto que elles estavam costumados a ouvir; era a continuação d'isto que elles reclamavam. Mas Antonio Candido é que lh'o não fez. É uma desforra brilhante e inolvidavel este discurso! É uma desforra das mil vezes em que o orador teve de pôr a sua palavra, não ao serviço d'uma causa má, mas ao serviço d'uma questão pequena ou d'um assumpto inferior.
Com a impaciencia, longo tempo soffreada, d'uma consciencia honesta, que vê continuamente, em torno de si, falseada a verdade dos factos, desfigurada a noção das coisas deslocados os assumptos, confundidas as mais claras e simples questões,―elle fez a largos traços a nossa historia constitucional, e provou, uma vez por todas, com o brilho e o atticismo da sua palavra sem rival, que isto que nós chamamos decadencia do systema parlamentar, não é mais do que uma justa e inevitavel consequencia de factos, de que esta geração não tem a culpa nem a responsabilidade, e de que ella tem fatalmente de ser a victima e o joguete.
É bello de verdade e de eloquencia impressionadora todo este trecho do seu ultimo discurso politico, que desenha, com rapida vivacidade, o modo porque o constitucionalismo foi improvisadamente implantado entre nós, e os obstaculos que para o seu pleno e vigoroso desenvolvimento encontrou na nossa educação tradicional, na nossa indole herdada de fidalgos preguiçosos, nos nossos costumes seculares, na nossa pobreza, na nossa ignorancia, nos defeitos irreductiveis de raça que tão adversos nos tornam por ora e, talvez para sempre, á ficção chamada systema representativo.
Taine no 2.º volume do seu trabalho sobre as origens da França contemporanea escreveu este trecho, que os nossos politicos deviam meditar um pouco, antes de se entregarem á desabalada gritaria contra os governos que se teem succedido, sempre perpetrando os mesmos erros, e sempre conseguindo resultados iguaes:
«Se ha n'este mundo cousa que seja difficil de elaborar-se, é uma constituição, sobretudo uma constituição completa. Substituir os velhos quadros, dentro dos quaes vivia uma nação, por quadros differentes, apropriados e duradoiros; applicar um molde de cem mil compartimentos á vida de uns poucos de milhões de homens; construil-o tão harmoniosamente, adaptal-o com tamanha habilidade e tamanha opportunidade, com uma tão exacta apreciação das necessidades d'esses homens e das suas faculdades, que elles entrem dentro d'elle de seu mutuo proprio, para ahi se moverem sem atrictos asperos; e que immediatamente a sua acção improvisada tenha a facilidade d'uma velha rotina―eis uma empreza que é positivamente prodigiosa, e provavelmente muito superior ás forças do espirito humano...»
Foi isto que nós tentamos fazer, e é do abortamento d'esta empreza impossivel, que se originam e que resultam todas as nossas desgraças, todas as provações dolorosas que temos atravessado, todas as amargas desillusões que a nossa alma nacional tem soffrido e que tão abatida e descrente a fizeram desde muito...
E foi isto que o orador fez sentir, com a clareza e a nitidez da sua palavra privilegiada, na assemblea representativa e no paiz inteiro.
Parece impossivel que este modo de levantar a discussão, de illuminar os phenomenos sociologicos, de fazer a critica ampla e elevada da nossa vida publica, produzisse um effeito de indignação patriotica na imprensa d'este paiz.
E o grande pensador foi finalmente demittido do seu posto de rouxinol honorario da camara dos deputados!
Se Antonio Candido, faltando á verdade da sua intelligencia e á verdade da sua consciencia, tivesse declamado pomposamente sobre a decadencia politica dos nossos dias, attribuindo-a aos manejos machiavelicos do sr. Fontes, que Deus haja,―uns applaudiriam enthusiasticamente, outros, invertendo o caso, lançariam a responsabilidade d'essa decadencia ás locubrações mysteriosamente preversas do sr. José Luciano que Deus conserve, mas ninguem alcunharia de anti-patriotica a inspiração honrada e nobre d'esse discurso, tão bello pela arte com que foi dicto, como foi grande pela sincera verdade com que foi pensado.
Visto que o orador é o homem, fallemos do homem.
Quem vê Antonio Candido n'uma sala, quem conversa com elle, quem o observa, caprichoso, desigual, expontaneo, mais triste do que alegre, ora silencioso e esquivo como uma creança amuada, ora vibrante, apaixonado, inquieto, defendendo ou atacando uma these artistica ou um problema de moral,―perceberá logo que esse homem, apesar de não ser o que nas salas se chama um conversador, tem o dom da palavra maravilhoso e raro, que a poucos é concedido; mas não saberá, ainda assim, advinhar n'elle o portentoso orador que as nossas assembléas politicas conhecem e acclamam.
É que Antonio Candido, que, como todos os artistas sinceros, sente tudo o que diz, e em quem, antes de sêrem verbo incomparavel, as ideias são sangue das veias, vibração dos nervos, cellulas do cerebro,―transfigura-se d'um modo indizivel, logo que, entre elle e o seu auditorio, se estabelece aquella corrente magnetica, que faz com que centenas de homens vibrem á voz d'um só homem, que faz com que a sensibilidade d'um homem se exalte se exacerbe d'um modo violento, doloroso quasi com a commoção de todos.
O olhar, que a contemplação das cousas da vida e a vizão interior, desalentada e triste, tem apagado e como que vellado mysteriosamente, accende-se então em scentelhas chammejantes, ou fulgura como luz fixa, penetradora, intensa e viva; a cabeça, admiravelmente modelada, levanta se n'uma attitude de orgulho infinito; o gesto faz-se, ora largo, soberbo, magestoso, ora incisivo, ironico, sublinhando com extranho vigor os tons diversissimos do discurso; na voz poderosa, d'uma gamma opulentissima, vibram-lhe magnificamente todas as cordas que, diante d'um auditorio um tanto sceptico, póde fazer vibrar um artista intelligente―a ironia tempera n'ella a indignação, uma graça dolente e melancolica, attenua-lhe e como que lhe subtiliza artisticamente a tristeza. A sua dicção correcta até ao atticismo possue todos os segredos da moderna comprehensão da arte. A palavra sahe-lhe colorida por todos os cambiantes d'um sentir sincero e profundo, as intenções teem uma graça penetrante, uma fina malicia, benevola e indulgente, de quem conhece o mundo e os homens, de quem tem para a Vida, incompleta como é sempre, miseravel como é tantas vezes,―uma larga tolerancia, feita de sympathia e de bondade...
E a pairar sobre tudo isto, dando a tudo isto um toque de irresistivel sinceridade―tornando uma creação de moral cada manifestação eloquente de arte―aquella tristeza que elle exprime tanta vez em traços leves, discretos e subtis: a tristeza que sentem os grandes pensadores, ao verem que é, no fim de contas, tão estreita e tão limitada a esphera da sua acção, que é tão inefficaz o poder isolado da sua vontade, que é inutil e vão todo o esforço com que elles queiram combater a corrente impetuosa que passa, a qual os mediocres continuam, com louvavel modestia, a imaginar determinada, guiada por elles...
Alem dos seus discursos parlamentares, que já davam um bom volume e que, segundo ouvi, serão breve publicados, Antonio Candido tem feito algumas conferencias litterarias de subido merito, que no tribuno revelam o pensador, no orador o litterato delicadissimo, o artista vibrante, superiormente cultivado, a fina sensibilidade em que os mais differentes estados se repercutem vivamente.
Estas conferencias são superiores aos discursos, porque os assumptos escolhidos pelo orador põem mais á vontade o seu espirito, dão mais espaço á sua imaginação, dão ensejo ao seu genio de manifestar-se em mais liberdade.
D'entre ellas destaca-se, pela belleza litteraria, a que foi pronunciada no Porto, quando Victor Hugo morreu.
Nem na patria do grande sonhador da Légende des Siécles, em que já tinham morrido quasi todos os companheiros idolatras do poeta, se encontrou, n'aquella occasião, uma voz que melhor e mais lucidamente soubesse, em traços tão rapidos, com eloquencia tão maravilhosa e tão adequada á grande gloria que se celebrava, julgar o o homem e o escriptor, aquilatar o valor e a especie da sua obra, fazer valer a exhuberancia extraordinaria d'aquella organisação, pôr em relêvo a força creadora do gigante adormecido!...
Era para este genero de conferencias,―muito moderno, muito no gosto do nosso tempo, que póde elevar-se á cathegoria d'uma arte perfeita,―para este genero, a que Renan tem dado o prestigio da sua perfeição atheniense de estylo, a graça ondeante e melancolica do seu pensamento de celta, que eu quizera vêr voltado o espirito de Antonio Candido.
É que elle tem perfeitamente a especie de talento e de imaginação que este trabalho requer. Desdenhoso e desattento para o contorno das cousas exteriores; não se dando demasiadamente ao espectaculo mais ou menos pittoresco da Natureza vizivel; adversario da comprehensão egoista da arte pela arte; tendo por audaciosas hypotheses inverificaveis os sonhos transcendentaes da methaphysica;―são principalmente as preoccupações da ordem moral que o interessam, são as vizões e as contemplações da consciencia que o absorvem, com exclusão de todos os interesses e de todas as actividades praticas.
Cada grande espirito escolhe para esphera da sua acção e da sua influencia aquella em que melhor se aclima o seu temperamento especial.
Uns, os philosophos, concentram-se na especulação desinteressada, sem se preoccuparem sequer das consequencias terriveis, destructivas, assolladoras muitas vezes, que possam resultar das suas premissas audaciosas. Indifferentes a tudo que não seja a logica do seu systema, seguem-n'a até ás extremas conclusões, sem curarem do mal ou do bem que possam produzir na humanidade.
Quando Spinoza o bemaventurado, como, lhe chamavam os que o conheciam de perto, doente e pobre no canto isolado da sua obscura casa, negava ao Deus pessoal a possibilidade de existir, á Natureza um fim e um principio, ao homem a noção do mal e do bem, e o livre arbitrio―minando assim as bases fundamentaes em que assenta a segurança e a moralisação das sociedades, pensava elle, porventura, que da applicação pratica das suas ideias podiam provir os cataclysmos moraes mais terriveis, a subversão de todos os principios existentes, o cahos de todas as leis e de todos os dogmas?
A lembrança de que, das descobertas da astronomia e da physica, proviria para o homem uma comprehensão do seu destino inteiramente diversa da que elle tinha até ali, uma concepção do Universo contraria em tudo á que elle formára, passou alguma vez pelo espirito de Galileo, de Copernico, ou de Newton?
E o artista que adora e procura no mundo a belleza como elle a imagina, a reproducção real d'um typo que elle sonhou, distingue acaso a belleza, que é pura e sã, d'aquella que é preversa e corruptora? Não. Para elle a belleza existe por si só, é só ella que o exalta e encanta, é só ella que lhe dá a sensação unica, voluptuosa e divina, por amor da qual, aos seus olhos, a vida tem um sentido e tem um fim!
O psychologo, como o artista e como o philosopho, não se preoccupa absolutamente nada com o resultado nem com a applicação das suas observações e das suas sondagens.
O seu desejo de penetrar os escaninhos mais secretos, mais escusos, mais tenebrosos do coração humano, tem em si mesmo o seu limite, o seu fim e a sua razão.
O que o interessa é o funccionar da machina cerebral, a germinação e o desenvolver do pensamento, o jogo e a combinação das paixões; são os estados variaveis e complicados da consciencia, as inextricaveis e confusas vegetações da Ideia e do instincto, o impeto irreductivel dos sentidos, a engrenagem complexa do organismo humano. É-lhe absolutamente indifferente que haja paixões peccaminosas ou sentimentos legitimos, ideias preversas ou ideias sãs, instinctos criminosos ou instinctos bons.
Essa ordem de considerações fica alem dos limites que a si proprio traçou. Não tem indignações nem desprezos, não tem admirações nem alegrias. Tem simplesmente a curiosidade attenta do chimico, em presença do qual dois productos se combinam ou se repellem, do naturalista que encontrou a lei pela qual se explica um phenomeno da materia.
Ha porem outra ordem de espiritos, que teem, como o philosopho, uma concepção particular do Universo e da Vida; que teem, como o artista, o amor do bello; que teem, como o psychologo, a curiosa penetração do homem interior,―mas que, de cada facto veem a consequencia, de cada lei veem a applicação, de cada aspecto bello das cousas veem a influencia. Julgam, estudam, absolvem ou condemnam, impõem condições á belleza, regras immutaveis á consciencia, preceitos sagrados á Vida Humana e á vida social. Não lhes basta o interesse dramatico, a magnifica florescencia da Paixão, a vitalidade intensa do instincto, o jogo admiravel das energias physicas ou mentaes. De tudo isto se preoccupam, tudo isto estudam e analysam, mas com o fim de pôr o equilibrio e a harmonia n'estas forças indomitas, que, entregues a si mesmas se aniquillariam mutuamente, sem uma lei suprema que as subordinasse!
O espirito de Antonio Candido pertence ao genero d'estes espiritos em que predominam as preoccupações de ordem moral.
Os asperos deveres e as amargas tristezas de todos os dias; os nossos sentimentos mais intimos; as nossas mais irrepremiveis paixões; as incertezas, as agonias do espirito alanceado por tantas contradicções e tantas duvidas, e que, em nenhuma solução, das que offerece a philosophia ou a crença religiosa, encontrou ainda o repouso desejado; e lucta interior travada entre o mysticismo―innato ou herdado no homem―e o racionalismo victorioso mas cruel, cujas ondas veem, dia e noite, bater impetuosas contra a fortaleza mal segura, em que elle abrigou os seus deuses foragidos; os combates da consciencia e da vontade, do instincto e da razão; todo este mundo enorme, que cada um de nós traz dentro de si, para sua tortura e seu orgulho;―eis em summa o que attrae irresistivelmente este espirito contemplativo, no qual a educação moderna não poude nunca vencer de todo a nostalgia, talvez inconsciente, d'outras eras de simplicidade e de fé, em que a vida era mais facil, em que o dogmatismo religioso se impunha sem esforço á consciencia individual e a conservava mais tranquilla, mais ignorante e mais... feliz!
O seu sonho―bello e radioso sonho, talvez nunca realisado―seria a pacificação da alma moderna, tão desordenada, inquieta e dolorida n'este momento, de que, todos mais ou menos, sentimos em nós a repercussão dilacerante!
Elle não é dos indifferentes, que assistem impassiveis e frios a estas angustias enternecedôras do espirito contemporaneo, ou dos que trabalham para propagar, em torno de si, o desinteresse absoluto das cousas invisiveis, das cousas ideiaes...
Achar uma solução pacificadora para este estado de crise latente, reconciliar as aspirações irreductiveis da nossa alma, que são o seu mais precioso e imperecivel thesouro, com as imposições da philosophia d'este seculo, que se tem insinuado até nos espiritos que a ignoram, pela indirecta e invizivel influencia que opera na litteratura, na arte, no theatro, em todas as manifestações que democratizam e vulgarisam a Ideia―tal seria a ambição suprema d'este pensador, em quem a vida interna é tão exigente e intensa, tão desenvolvida e tão profunda.
Em varias conferencias feitas em Lisboa, em Coimbra e no Porto, Antonio Candido tem tocado em todos estes pontos delicados e melindrosos da consciencia moderna.
Em nenhuma, porem, os tocou mais magistralmente do que no discurso pronunciado em 12 de abril de 1888, no theatro de S. Carlos, e n'um saráu promovido pela imprensa lisbonense em favor das victimas do Porto.
Tenho ainda no ouvido, as palavras d'aquelle protesto heroico contra o pessimismo doutrina, d'aquelle hymno entoado ás Alegrias e ás Virtudes da vida, por esse melancolico, por esse vencido da felicidade, cuja voz musical parecia embebida em lagrimas, quando pintou as bellas e radiosas cousas que a Humanidade tem feito e que lhe conquistaram o direito indeclinavel de amar a existencia, que a par de tantas tristezas tem tantos risos, que a par de tanta covardia tem tão sublimes heroismos, que a par de tantas paixões cruas e de tão mortiferas angustias tem graças de tão ineffavel virtude, e voluptuosidades de encanto incomparavel. Que desinteressada homenagem prestada a essa Vida, que trahiu para elle as suas promessas todas, que nem das chymeras, que a constituem e compõem, quiz fazer a chymera suprema que o illudisse e fizesse feliz!...
Se realmente Antonio Candido versando estas questões de interesse maximo, tratando estes problemas de tão complexa e vital importancia, podia fazer um serviço grande á alma portugueza, porque é que elle se não consagrou principalmente a esta alta e moralisadora tarefa social? Porque não falla, elle que o sabe tão bem, aos que teem sêde de uma palavra de vida; aos que não julgam grosseiramente que é só de pão que vive o homem d'hoje.
E não é! Não o calumniemos, ao pobre homem d'hoje, tão mal pintado pela litteratura decadente d'este tempo. Nunca, no meio do mais asqueroso mercantilismo, houve mais violentas aspirações idealistas! Nunca, no meio de mais desenfreadas ambições pessoaes, houve uma ancia mais apaixonada e mais dolorosa de alguma cousa grande, indefinida e immortal!
Eu sei que essa tarefa de orador e do escriptor moralista faria sorrir ironicamente a turba multa soez dos triumphadores do dia, e que ella não daria vantagens praticas de especie alguma ao que lhe acceitasse as responsabilidades e os trabalhos.
Mas sei tambem que o pensador illustre, desinteressado, altivo e desdenhoso, bastante superior para cahir no desagrado pleno d'essa cousa niveladôra e immoral chamada o sufragio universal, poderia, renunciando ao preço mesquinho com que o mundo sabe pagar aos que o servem, guardar no coração, como um thesouro immaculado a consciencia de haver semeado o bem, de haver lançado a luz d'uma palavra sincera nos mil labyrintos tenebrosos em que a alma agonisante de hoje se perde e se debate desnorteada, de haver fallado emfim, aos homens, d'aquellas bellas e sublimes cousas, cuja posse, sonhada só que seja, nos consola de todo o mal, de toda a tristeza de viver!..
Se a verdade não é privelegio exclusivo de ninguem, aquelles que possuem uma das parcellas sagradas d'esse bem devem repartir d'elle com os seus irmãos indigentes! Contar as delicias da Abnegação, os triumphos do Sacrificio, a graça ineffavel da Virtude, não será possuil-os por momentos, não será evocar nas almas o desejo sublime de os alcançar tambem? Socegar a consciencia dos que duvidam dizendo-lhe que a Duvida é o mais seguro meio de attingir a Verdade, de que é preferivel mil vezes a agonia que os dilacera á quietação, á estagnada immobilidade dos indifferentes, não será levar um pouco de tranquilidade a tantas almas que padecem?.. Justificar as ousadias do pensamento moderno, pela sua ancia tão meritoria de sciencia e de luz, não será apresentar sob um aspecto misericordioso e justo tanto esforço que a ignorancia condemna, tanto arrojo que a intolerancia maldiz? Oh! como é largo este campo, e que beneficio não seria desbraval-o, e fazer com que na sua terra esteril as arvores desabrochassem, crescessem, se enchessem de fructos e de flores, dessem sombra, e abrigo aos que procurassem cançados a sua rama protectora!
Ninguem poderia, melhor de que o orador em quem todos os prestigios da Palavra se alliam a todos os calmos esplendores do Pensamento, fazer uma realidade d'esta esperança que a tantos se affigurará talvez chymerica e pueril, mas que eu, pobre mulher, ignorante e sonhadora, me não arrependo de haver formulado aqui.