À PORTA DA MERCEARIA defronte, felizmente estava um galego que às vezes lhe fazia recados - muitas vezes para a casa do sogro. Entregou-lhe a carta, recomendando-lhe que a entregasse em mão própria, que não esperasse a resposta. E, como conhecia a probidade daquele galego, encanecido no serviço do bairro, acrescentou:
— Tem cuidado, em mão própria, vai dinheiro, uma nota.
O velho guardou a carta nas profundidades do seio, pôr baixo da camisa.
E então, de longe, Godofredo pôs-se a seguir aquela carta.
Viu o homem entrar no prédio do sogro, um prédio de quatro andares, enxovalhado, com uma loja de trastes velhos pôr baixo. Neto morava lá no alto, onde havia um vaso na varanda. E durante uma eternidade esteve de longe vigiando a porta; o galego não descia. Então veio-lhe um terror que o sogro não estivesse em casa. Se só recolhesse à noite, se jantasse fora, não daria sinal de si senão, tarde, à noite! E ele, que havia de fazer? Errar, pelas ruas, à espera que sua mulher saísse? E isto dava-lhe uma sensação terrível de abandono, de desordem, como se para sempre tivesse acabado a regularidade das coisas. De repente, viu o galego. Tinha entregado a carta ao senhor Neto. E descera logo, não esperara mais nada. Então, Godofredo, aliviado, continuou caminhando ao acaso, e pouco a pouco os seus passos, instintivamente, fizeram o caminho de todas as manhãs, o caminho do escritório. Desceu o Chiado. Na rua do Ouro parou um momento a olhar uma pistola, na vitrine do Lebreton. E a idéia da morte atravessou-o. Mas não queria pensar nisso, agora, nem no seu duelo.Logo às sete horas, quando se recolhesse, achasse a casa vazia, então pensaria no duelo, em ajustar contas com o outro. E foi andando ao acaso. Um momento pensou em ir ao Passeio Público; mas receou encontrar o Machado. E foi pelo Terreiro do Paço, pelo Aterro, quase até Alcântara. Ia como um sonâmbulo, sem reparar na gente que acotovelava, nem na beleza da tarde de verão, que morria num esplendor de ouro vivo. E não pensava em coisa alguma: era uma ondulação de idéias, em que passavam toda a sorte de coisas, as recordações do seu namoro com Ludovina, dias de passeio que tinha feito com ela, depois a maneira como ela estava recostada no braço do outro, e com o vinho do Porto defronte: e a cada momento voltavam-lhe fragmentos das cartas dela. "Meu anjo, por que não hei-de eu Ter um filho teu?" Era a mesma coisa que ela lhe dissera com os lábios unidos ao dele, de noite, no calor do leito... E regozijava-se agora de não ter um filho daquela infame.
Ia escurecendo, ele pensava em voltar: uma grande fadiga tomava-o, de todas aquelas emoções, aquela grande caminhada, no ar mole daquele dia de julho. Entrou um momento num café, bebeu um grande copo de água: e ficou sentado, com a cabeça apoiada à parede, abandonando-se, no prazer daquele curto repouso. O café estava numa penumbra. Um crepúsculo quente envolvia a cidade: todas as janelas abertas respiravam, depois da grande calma do dia: uma ou outra luz ia-se acendendo, e via-se passar gente encalmada, com o chapéu na mão. E ele sentia um prazer, naquela penumbra, e naquele repouso: parecia que a sua dor se dissipava, se dissolvia, naquela inação do corpo, entre as sombras do anoitecer. E vinha-lhe um desejo de ficar ali para sempre, sem jamais se acenderem as luzes, sem que ele jamais tivesse de mover um passo na vida. E a idéia da morte invadiu-o, dum modo sereno e insinuante, como o sopro duma carícia. Desejou verdadeiramente morrer. Naquele abatimento em que o seu corpo caíra, todas as amarguras que ainda tinha a passar, as coisas cruéis que tinha a penar, a volta à casa solitária, o encontro com o Machado, os passos a dar para procurar testemunhas - lhe pareciam outros tantos esforços, intoleráveis como penedos, que as suas pobres mãos jamais poderiam erguer: e seria delicioso encostar a cabeça ao muro, e ficar ali, naquele banco, morto, liberto, fora de toda a dor, tendo saído da vida, com a silenciosa tranqüilidade da luz que finda. Um momento pensou no suicídio. E não o aterrava, nem o fazia estremecer a idéia de se matar. Somente o procurar uma arma, o dar um passo, para se atirar ao rio, eram ainda esforços, que lhe repugnavam, naquele desfalecimento de toda a vontade. Quereria morrer ali, sem se mover. Se uma palavra bastasse, uma ordem dada baixo ao seu coração para que parasse e arrefecesse, diria essa palavra, tranqüilamente... E talvez ela chorasse, e lhe sentisse a falta. Mas o outro?
E a esta idéia, do outro a resolução voltara-lhe, uma energia, vaga, ainda bastante para que se erguesse, continuasse o seu caminho... Sim , o outro ficaria bem contente, se ele desaparecesse essa noite. Sentiria um completo alívio. Um ou dois dias mostrar-se-ía pesaroso, talvez se sentisse realmente perturbado. Mas depois continuaria a vida: a firma seria Machado & Cia,; ele continuaria a Ter amantes, a ir ao teatro, a pôr cera moustache no bigode. Isto não era justo. Fora o outro que causara a ruína duma bela felicidade, era ele que devia morrer. Era o Machado que devia desaparecer; era ele que devia matar. Isso seria mais justo. E as coisas seriam o contrário: a firma continuaria a ser Alves & Cia., e ele poderia mais tarde reconciliar-se com sua mulher, e a vida seguiria, resignada e calma. Era assim que devia ser. Deus, olhando para um, olhando para o outro, medindo os méritos e as culpas de cada um, devia fazer desaparecer o Machado, inspirar-lhe a ele a idéia do suicídio.
E então, destas duas absurdas imaginações que se balançavam no espírito perturbado - o seu suicídio, o suicídio do outro - , uma idéia surgiu, como faísca viva de entre duas nuvens pesadas, uma idéia nítida em todos os seus detalhes, que lhe pareceu justa, realizável, a mais conveniente, a única digna...
Mas nesse momento, alguma coisa de familiar, nas casas junto das quais caminhava, fez-lhe sentir que estava junto da sua porta. Parou, todo tomado pela idéia de Ludovina, olhou a casa. Com o seu bico de gás defronte, ela punha entre os dois altos prédios, a decência da sua fachada asseada, e pintada de azul, com persianas verdes. No seu andar não havia luz alguma: o porão estava cerrado. Estaria ela ainda lá? Teria o pai vindo buscá-la? E uma angústia terrível fazia-lhe bater o coração. Um momento desejou que ela lá estivesse, pensou em perdoar, tanto aquela casa vazia o aterrava. Mas depois sentiu, que diante dela daí por diante, seria frio, constrangido; não, melhor que nunca mais se vissem. Então uma curiosidade levou-o à casa do sogro, ao fim da rua. Aí era um alto prédio, desleixado, sujo. No terceiro andar do sogro, as janelas abertas respiravam a frescura da noite, e também não havia luz. Nenhuma daquelas fachadas lhe respondia, o tirava de inquietação.
Então voltou à casa, empurrou o portão. A escada tapetada dormia na luz quente do bico de gás: e o som abafado dos seus passos parecia-lhe repercutir-se num lugar deserto e côncavo. Do segundo andar vinha, como vago e religioso, um som de piano, uma coisa do Fausto. A gente de cima era feliz, tocava piano.
A cozinheira veio abrir - e o quer que fosse no seu modo revelou logo ao Godofredo que Ludovina partira.
Na sala de jantar, sobre o oleado da mesa ardia uma vela. Ele tomou-a, entrou no quarto de dormir - viu logo duas malas fechadas e um baú.
Mas havia ainda objetos dela: junto da cama estavam as suas chinelinhas, sobre a chaise-longue o chambre branco que ela trazia essa manhã. E outras coisas tinham sido já guardadas - os frascos de cristal do toucador que eram dela, e uma Nossa Senhora de madeira, em que ela tinha devoção Ele pousou a vela sobre o toucador - e o seu rosto apareceu-lhe pálido, envelhecido, olhando para ele com um ar de ruína e de abandono.
Tomou a vela, foi à sala de visitas. Aí ficara um ar de catástrofe. A pele de raposa estava enrolada para um lado, sobre a mesa junto do sofá, ainda estava a garrafa de vinho do Porto, e à borda uma ponta apagada do charuto do outro. E diante daquela ponta do charuto, uma raiva surda invadiu-o, pareceu-lhe sentir-se esbofeteado pôr uma mão de ferro, teve o estremecimento dum insulto maior, e jurou ser de bronze, nunca mais perdoar, mandar-lhe ele mesmo as malas embora, e ver o outro morto aos seus pés, ou morrer ele também.
Então imediatamente resolveu resistir àquele estado de perturbação e inquietação. Quis que no seu espírito reinasse a ordem; que tudo na casa retomasse o seu ar regular e calmo. Ela partira, as suas malas partiriam nessa noite. Daí pôr diante era um viúvo: mas o andamento da casa continuaria, com ordem e serenamente.
Gritou logo pôr Margarida.
— Então hoje não se janta nesta casa. São estas horas, e a mesa não está posta?
A criatura olhou para ele, como espantada de que ele quisesse jantar, ou de que se tornasse a jantar naquela casa. Ia decerto dizer alguma coisa: mas ele olhou-a dum modo tão firme, que ela saiu de esguelha - e daí a um momento punha a mesa, apressando-se, mostrando zelo, como se quisesse fazer-se perdoar a sua vaga cumplicidade. E pôs na mesa tudo o que continha o cesto - o empadão, o fiambre, a torta de fruta.
Godofredo no entanto fora para o seu gabinete. Agora aquela idéia que o atravessara bruscamente ao recolher do passeio, a solução que lhe parecia ser a única possível, voltava, estabelecendo-se-lhe no espírito, tornando-se agora o centro de toda a sua atividade interior. E era isto, tirarem à sorte, ele e o outro, qual deles se devia matar!
E isto não lhe parecia excessivo, nem trágico, nem despropositado: pelo contrário era a coisa racional, digna, e de mais, a única possível. E parecia-lhe que estava raciocinando muito friamente. Um duelo à espada, dois negociantes em mangas de camisa, atirando-se cutiladas gochas, vãs, até que um se feria no braço, parecia-lhe ridículo: e não era menos trocarem duas balas de pistola, falharem-se, e cada um entre os seus padrinhos voltar a meter-se na carruagem de aluguel. Não. Para uma ofensa daquelas, só a morte: uma só pistola carregada, tirada ao acaso entre dois, disparada à distância dum lenço. Mas isto não era realizável. Onde encontrariam eles testemunhas que consentissem, quisessem partilhar a responsabilidade desta tragédia? Debalde se lhes explicaria a ofensa: o adultério é uma coisa grave, para o marido, os outros consideram-no um fracasso que não pede estes excessos de sangue. Além disso, se ele fosse o morto, bem, acabava-se: mas se visse cair o outro seus pés, qual seria depois a sua existência? Teria de fugir, abandonar o seus negócios, recomeçar a fortuna, numa terra estranha. Onde? E depois a grande dificuldade permanecia: onde haveria padrinhos para isso? Seria então o escândalo, o falatório, a verdade que se saberia. Enquanto do outro modo, tudo era fácil, secreto, decente ,sem incomodar ninguém. Tiravam à sorte: aquele que pudesse, matava-se dentro dum ano. Se ele perdesse não hesitaria um momento, matar-se-ia logo. E não duvidava um momento que o Machado aceitasse!... Como poderia recusar? Desonrara-o, devia pagar com o seu sangue. E no mesmo tempo tinha um vago pressentimento que seria ele que perderia... Acabou-se, tanto melhor. Que gozos lhe poderia trazer a vida, agora, naquela casa só, sempre só, e não tendo mesmo o gosto do trabalho, desde que não tinha prazer em gastar? E não hesitou um momento mais, escreveu logo um bilhete seco ao Machado, pedindo-lhe para comparecer, no dia seguinte, Domingo, às onze horas da manhã, no escritório... Fechava a carta quando a Margarida veio dizer que estava o jantar na mesa. Pôs rapidamente o chapéu, desceu à rua, deitou a carta na caixa da mercearia, entrou na sala de jantar - quando a cozinheira e a Margarida, diante da terrina de sopa que arrefecia, pasmavam daqueles modos do senhor. A presença da Margarida incomodava-o: sentia-a cúmplice, na confidência daquela infâmia. Um momento pensara em a despedir. Mas era como soltar, através doutras casas, e pelas casas das inculcadoras aquela língua de sopeira, contando e comentando a sua desgraça. Preferiu conservá-la, aturar-lhe a presença, manter-lhe o silêncio pelo receio de ser despedida...
Tinha desdobrado o guardanapo, levantando a terrina da sopa, quando a campainha retiniu com força.
Margarida foi à porta, e ele ficou com o coração aos pulos. A rapariga voltou correndo, dizendo com o tom com que anunciaria a aparição da Providência - castigadora e reparadora:
— Meu Senhor, é o sr. Neto!