OLINDA A ALZIRA


Alzira, sou feliz!... Quanto te devo!...
Das tuas instrucções é tal o fructo.
Quanto encarava em torno era a meus olhos
De lúgubres idéas feio quadro:

Tudo o vejo agora alegres, vivas,
Imagens prazenteiras, me suscita.
Os ternos sentimentos, que provava,
Mil vezes combinado com dictames
Que desde a infancia sempre m′inspiraram:
Mil vezes reflectia que dos homens,
Ou de um tyranno Deus era ludibrio:
Conceber não podia que existisse
Para experimentar continua lucta
Entre impressões da propria natureza,
E princípios chamados da virtude.

No pélago de embates tão terriveis
Fluctuando implorei o teu auxilio;
Meu coração te abri: e tu leste n′elle
O que eu nem mesma deslindar sabia.
Tu me ensinaste a vêr quanto fingidos
Os homens são, nas vozes, e nos gestos:
Rasgaste aos olhos meus mascara infame
Com que teem de uso todos encobrir-se;
Das bordas me salvaste de um abysmo,
Onde a infeliz Olinda ia arrojar-se.

Perdoa, Deus immenso! Eu blasphemava
Contra a tua justiça; eu te suppunha
Auctor do mal, que os homens machinavam:
Cria-te inconsequente e despiedado,
Pois sentimentos me imprimiras n′alma
Que ás tuas leis contrarias me pintavam!...
Tu foste, Alzira, foste a que lançaste
Um brilhante clarão ante os meus passos...
Finalmente apr′endi que a singeleza

Do mundo era banida, e o seu imperio
Os homens tinham dado á hypocrisia,
Ruins!... Amor por crime affiguraram,
E nem um só de amor vivia isento!...
Para elles não é crime um crime occulto,
Porque a simulação reina em sua alma,
Porque o remorso abafam era seu peito.
Amor um crime!... Os gostos mais completos,
E os mais puros deleites o acompanham:
Se a ventura maior se une ao delicto,
Quem ha que se não diga delinquente?
D′entre as delicias que gosei, querida,
Com as tuas lições fugiu o crime.
Eu não senti no coração bradar-me
A voz d′esse pezar, sequaz da culpa:
No meio dos prazeres, que gostava,
Graças rendi a um Deus que m′os concede:
Se elle troveja sobre os criminosos,
Nunca os seus raios menos me assustaram!...

Um amante acabou o que encetaste:
Elle cujo olhar meigo me assegura
As doces qualidades, que o adornam,
Afastou-me do espirito receios.
Que de mau grado combatia ainda.
Reinava em seus discursos a franqueza,
E o fogo que brilhava nos seus olhos.
Que o rosto lhe incendia, em seus transportes
Que eram nascidos d′alma, me dizia:
O labéo da impostura o não denigre;
Não é como o dos outros seu caracter;

Ingenuo, affavel, ah! prezada Alzira!
Se tão amavel é o teu Alcino,
Ninguem como eu e tu é tão ditoso!...

Pouco preciso foi para vencer-me:
Não teve que impugnar loucos caprichos,
Com que ufanas amantes difficultam
O mutuo galardão, que amor exige:
Se amor ambos int'ressa, e ambos colhemos
Seus mimosos favores, porque causa
Havia de indiff'rença dar indicios.
Quando o meu peito, ancioso, palpitava?
Se eu o levava da ventura ao cume.
Não me dava elle a mão para seguil-o?
Sim; nos seus braços me arrojei sem custo
E se o pudor as faces me tingia,
Inda as chammas d′amor mais me abrazavam.
Eu nadava em desejos indisiveis;
E quantos beijos recebia, tantos
Cheios de igual fervor lhe compensava:
Seus labios inflammados ateavam
As doces labaredas, em que ardia;
E meus labios, aos labios seus unidos,
Sensações recebiam deleitosas.
Que me filtravam pelo corpo todo...
Tão grandes emoções exp′rimentava,
Que a tanto gosto eu mesma succumbia!
Preza a voz na garganta, não sabendo
Nem já podendo articular palavra,
Respirando anciada, e com vehemencia,
Os meus sentidos todos confundidos,

Sem nada ouvir, nem vêr, apenas dando
Signaes de vida, de prazer morria.
Excepto o meu amante, em taes momentos
Longe da idéa tinha o mundo inteiro:
O mundo inteiro então forças não tinha
Para do meu amante desprender-me.
Debalde ante meus passos furibundo
Monstro espantoso vira: em vão lançára
Do aberto seio a terra ondas de fogo;
Em vão coriscos mil o céo vibrára;
Dos braços do amante em taes momentos
Nada, nada podia arrebatar-me.
Oh quem podera, Alzira, descrever-te
Que extasi divinal veio pôr termo
A taes instantes de suaves gostos!...
Isto pôde sentir-se, e não dizer-se...

Agora, e só agora me parece
Que começo a existir: reproduziu-se
Uma total mudança na minha alma.
O mundo para mim já tem encantos;
Sob outras côres vejo mil objectos,
Que a phantasia me pintam tristonhos:
Propicio Amor abriu-me os seus thesouros,
A Natureza seus thesouros me abre:
Tudo te devo, amiga; em todo o tempo
A teus doces conselhos serei grata:
Oxalá ditas tantas saboreies
Quantas por ti, queiida, eu propria góso!
Oxalá sintas com Alcino os gostos.
Que exp′rimento, de um amante ao lado!

Nem ventura maior posso augurar-te,
Porque maior ventura haver não póde.