II


Era verdade. A Pillarsita havia uns tempos — depois d’uma pleurezia que a tivera entre a vida e a morte — puzera-se n’um esmorecimento de flôr que se estiola.

Não se queixava, que a doença não lhe pedia remedios nem desejos de melhorar — só os que ainda teem esperança de felicidade se apegam á vida e querem convencer-se de que o queixar-se lhes traz allivio.

A pequena, dantes tão alegre, d’uma vivacidade gárrula d’avesinha amorosa, entristecêra subitamente, e, taciturna, aborrecida, ninguem diria que era a mesma. De bondosa e tolerante que era, tornára-se impertinente e irritavel, como se os nervos lhe andassem desorientados sob a pressão d’um grande mal.

Essa mesma susceptibilidade morbida, que transformára a rapariga d’outr’ora, alegre, boa e egual, n’uma nevrotica, minada de desejos e caprichos que logo se convertiam em saciamentos de vontade doente, dava-lhe por vezes tambem dias de tanta meiguice e passividade que o seu espirito não parecia ter mais energia do que o d’uma criança recemnascida.

O noivo, o Emygdio Vilhegas, tinha para desculpar estes caprichos e phases, discursos e theorias sobre as doenças nervosas, que deixavam os paes, senão satisfeitos, ao menos mais socegados sobre a gravidade do estranho mal.

Elle e a prima da Pillar, a Candida, que fôra a sua companheira e amiga intima desde a infancia, não podiam comprehender a quasi aversão com que a enferma os olhava e por vezes até repellia.

No principio da doença, quando a pleurezia se apresentára dupla e d’uma violencia mortal, elles arvoraram-se em enfermeiros solícitos e era impossivel exigir aos seus affectos maior vigilancia e cuidados. Mas desde que a febre cedêra e a doente começára a reconhecê-los, affastára-os systhematicamente, com uma friesa de maneiras que mais se evidenciava pelo contraste com a mãe, a quem desejava sempre ao pé do leito, sem uma hora de repouso que não fosse substituida pela velha Engracia.

— «Porquê?!...» os dois, no vão d’uma janella, n’um fugitivo momento de solidão, olhavam-se apavorados e trocavam rapidamente essa pergunta.

— «Porquê?! — dizia o Emygdio — terá acaso desconfiado alguma coisa?

— «Parece!...

— «E se diz aos paes?!

— «Que importa? Não o devem saber mais dia menos dia?... — murmurou a Candida, fitando os seus olhos carregados de duvidas nos olhos que o Emygdio desviava intencionalmente, ao mesmo tempo que respondia: — «Ah, mas por emquanto não... Bem vês!... Devemos-lhes tanto!... É urgente saber, custe o que custar, o que ella sabe de nós.

A conversa, cheia de reticencias e sub-entendidos, foi interrompida pelo arrastar de passos trôpegos no soalho do corredor. Era a Engracia que entrava para levar um caldo á doente, que no quarto ao lado se ia finando. Olhou os dois com severa desconfiança, emquanto o medico n’uma voz de perfeito socego fingia dar as ultimas recommendações á inferma:

— «Logo que venha o remedio da pharmacia dê-lho d’hora a hora, até que eu volte.

A Candida affastou-se silenciosamente, emquanto o rapaz a ficava olhando embevecido. Era na verdade linda, mulher de fascinar e não d’encantar, talvez, de uma belleza cheia, fria, e esculptural, que se impunha.

Branca como um lirio e tão branca que o seu busto triumphal mais parecia talhado no marmore de que se fizeram as maravilhas da estatuaria grega. Cabeça alta e pequena levemente inclinada para traz, como que vergando ao peso dos fartos cabellos d’um castanho que á luz toma reflexos d’oiro; a bocca delgada, sempre aberta n’um sorriso frouxo de contemplação propria; e nos olhos negros, velados d’uma placidez funda d’abysmo, nada se poderia lêr do que lhe ia na alma. Muito alta e direita, nobremente lançadas todas as linhas do seu corpo — era uma verdadeira maravilha da carne.

Nada parecida com a Pillar, que fôra sempre d’uma graciosidade fina de intellectual; alta apenas para ser elegante; magra, sem o aspecto quebradiço dos doentes; d’uma pallidez moreno-perola: era em tudo o contraste da prima.

Criadas juntas, mas desemelhantes, tanto physica como moralmente, tinham-se feito mulheres e seguiam os seus gostos e inclinações, que os paes da Pillar não contrariavam na filha, que adoravam, e menos ainda na sobrinha orphã e pobre, que a bondade d’elles agasalhára e criára como egual aos seus.

Antonio de Mello, o pae da Pillar, fôra uma criança ainda para o Brazil, chamado por um tio que, como elle, partira havia muitos annos, deixando com lagrimas d’amarga saudade os amigos e companheiros de jogos e romarias, o seu rebanho, a terra amada, que era a sua patria.

Voltára annos depois — quando a morte do tio lhe déra liberdade para liquidar a fortuna — um pouco abatido pela nostalgia, mas ainda vigoroso de corpo e são d’alma, como fôra. Um bom coração de rapaz que adormecêra na trabalheira mercantil, acordando já quando os outros, os que passam a mocidade em folgança, se sentem sem energia para amar sã e nobremente.

Como viera bastante rico e tinha uma finura natural, de temperamento delicado, na maneira de apresentar-se, conseguiu captar as boas graças d’um velho fidalgo da terra, que tinha ao tempo uma filha para casar. Tinha a filha, o velho original, e uma pequena mas solida fortuna ajuizadamente administrada, e uma e outra, as paixões dos ultimos annos, elle queria entregar em mãos de homem capaz de asestimar.

— «Emquanto a fidalguia — dizia a quem fallava na humildade do nascimento do Antonio de Mello — era coisa de que nunca lográra comer...

Era bonita a joven Josephina, bonita e sadia de corpo e d’alma, como quem fôra criada nas serras e com a natureza aprendêra a bondade natural e humana dos fortes.

Mal que a viu alegre e moça, como arbustosinho agreste que em seu tempo proprio se reveste de perfumadas flores, sem complicações de tracto, nem agasalhos de estufa, amou a Antonio de Mello apaixonadamente. Doía-lhe no entanto recebê-la acompanhada d’um valioso dote, elle que a amava com a simplicidade primitiva d’uma alma e d’um corpo que se dão em troca de outro corpo e de outra alma por egual amante.

O homem que sahira do povo mais humilde, que arrastára uma vida trabalhosa luctando pela fortuna, encontrava ainda, no seu coração de trinta e oito annos, um crepitar de paixão e um desinteresse verdadeiramente juvenis.

Confessára-lho; e tão simples, tão honestamente, que a rapariga o ficára amando toda a vida.

Foram felizes como o podem ser dois espiritos que se ligam sem se absorver, que se estimam e comprehendem, desculpando-se mutuamente.

Com a felicidade inesperada do coração, Antonio de Mello tornára-se alegre, quasi criança; era a phantasia alada que doira a existencia e que um bom casal não pode dispensar, sob pena de cahir na realidade banal que mata o amôr.

Josephina, a boa e resignada alma, com a sua maneira serena e pacificante de encarar a vida, trazia áquella felicidade um não sei quê de intimamente religioso, que infundia respeito ainda aos mais familiares.

D’essa união tão completa nasceram dois filhos. Primeiro, o João, que fôra sempre uma bella e forte criança de boas côres e moderada phantasia, como a mãe. Alegre, prompto a defender os mais fracos, o seu espirito não se perdia nas nebulosidades dos sonhos, que atormentam as crianças precocemente, doentiamente emotivas.

Oito annos depois, quando o pequeno já bocejava sobre os livros das primeiras letras, nasceu a Pillar, de uma finura, de uma graça de estatueta. O irmãosito adorava-a e ria perdidamente, quando a via nos braços da mãe procurando o seio como um animalsinho voraz, e de farta deixá-lo depois e adormecer como um anjo. Mal entrava em casa, lá ia elle, pé ante pé, se a criança estava a dormir no bercinho, afogada em rendas e cambraias, contemplá-la com um affecto que mais parecia d’uma pequena mamã. E já quando maiorsinha, João servia-lhe de protector e amigo, de promotor de todos os festejos e brincadeiras que distrahissem a irmã. E assim, ella criou-se sob o affecto carinhoso dos que a rodeavam, como avesita fragil que um nada pode matar.

Talvez mesmo por isso, desde pequenina que os nervos lhe vibravam intensamente todas as alegrias e tristezas da alma. Intelligente e com uma grande vivacidade, a imaginação, como a do pae, viajava sempre pelos caprichosos trilhos do ideal. Não sendo positivamente bella, as suas feições eram tão finamente desenhadas, que o perfil esbatido em sombra sob a cabelleira revolta fazia-lhe uma verdadeira cabeça de modelo. Depois, quando fallava e ria, os olhos castanhos irradiavam um tal fulgor de intelligencia que, incondicionalmente, a diziam bonita.

Um dia, quando ella era ainda muito criança, o pae levára-a, e ao João, a uma quinta arredada onde deixava viver um irmão, que viera encontrar na miseria, apezar do muito que do Brazil lhe mandára. Um mandrião, um vicioso, que para alli ia morrendo aos encontrões da mulher e dos filhos que o não estimavam. Só o irmão não se esquecia do desgraçado, visitando-o amiúdadamente e dando-lhe tudo que elle necessitava.

Quando n’essa tarde chegaram á quinta encontraram a familia em gritaria confusa, porque o homem, n’um phrenesi de bebedo, cahira do patamar da escada de pedra e o sangue sahia-lhe ás golphadas pela bocca.

Assim morreu, sem dar mais accordo de si, apezar de todos os remedios ordenados pelo medico, que o irmão mandára buscar immediatamente.

A Pillar sentiu uma impressão tão forte, que os seus frageis nervos de precoce e feminil sentir conservaram eternamente a lembrança de aquella espantosa scena. Chorou muito, abraçada á primita, a Candida, que era a mais nova dos filhos do morto, mas apezar d’isso tres annos mais velha do que ella.

D’uma friesa quasi hostil, a pequena torcia na bocca a ponta do bibe de riscado, contemplando, com admiração inconsciente de pequena selvagem, o vestido bordado, d’alvura deslumbrante, que a Pillar trazia com a indifferença do habito.

Não querendo prolongar o espectaculo doloroso, que o acaso dera ás crianças, Antonio de Mello quiz mandá-las na carruagem, emquanto elle ficava até ao fim, mas a filha, muito enthusiasta e affectiva, é que já não quiz partir sem levar a prima.

E foi desde essa hora amargurada que as duas ficaram inseparaveis — mais do que duas amigas, irmãs.

Os sobrinhos, empregados; a cunhada e uma filha mais velha partiram para a terra, deixando-lhe naturalmente, sem quasi o agradecer, o cuidado da pequena Candida, que era um estorvo para todos, sendo na verdade «formosa de mais para pobre», como dizia a mãe.

Ficaram juntas, dormindo no mesmo quarto, tendo os mesmos professores e criados, os mesmos brinquedos e alegrias.

Diziam-nas as melhores amigas, apezar da profunda desemelhança dos caracteres; mas se da parte da Pillar havia sinceridade no affecto, o mesmo não succedia á Candida, que invejava a prima por tudo em que lhe era inferior.

A vaidade enchera-lhe a alma d’ambições e ruins invejas e a belleza physica não correspondia ao desenvolvimento das faculdades intellectuaes.

D’uma passividade infermiça para tudo quanto não fosse o seu prazer, desde criança que o tempo que a prima levava a lêr e a estudar o passava ella a contemplar-se ao espelho, a ataviar-se, ou a entregar-se a pensamentos de que ninguem podéra nunca conhecer o fito.

Orgulhosa, d’uma susceptibilidade irritante, filha d’esse mesmo orgulho que a dilacerava, supportava mal a posição que a sorte lhe destinára.

Se os primos e os tios a tratavam com a confiança que dá a amizade, ella lia nas suas maneiras sómente o dó. Soffria porque os criados, que adoravam os filhos dos patrões, tinham sorrisos e ápartes de despreso pelos seus modos de rainha de emprestimo; soffria porque a Pillar tinha a graça e o espirito, que traz a intelligencia cultivada; mas soffria principalmente e desesperadoramente pela falta de fortuna que a punha n’aquella dependencia.

E calava-se, comprimindo sob a frialdade do sorriso um fundo de entranhadas cobiças. Incapaz de procurar a independencia pelo trabalho, incapaz mesmo de considerá-lo uma coisa possivel para naturezas excepcionaes como a si mesma se considerava, ia continuando a receber tudo d’aquelles que no seu intimo odiava, por isso mesmo que tudo lhes devia.

Não tendo sido nunca uma criança ingenua, porque o convivio d’uma familia em que o pae era bebedo e a mãe e os irmãos mal educados lhe tinha feito muito cedo conhecer da vida tudo quanto ella tem de inferior e baixo; foi muito precoce no desejo de agradar e no convencimento de que só um marido rico lhe daria a superioridade que ambicionava sobre todas, a do luxo e dos faceis triumphos que o dinheiro traz a uma mulher bella.

Por isso, ainda de vestidos curtos e tranças cahidas, começára a olhar para o João, já então um rapaz que entrava na vida com todo o enthusiasmo dos vinte annos.

Mas elle, ou porque realmente não gostasse da prima, ou porque a achasse criança, ou talvez por ter a cabeça cheia d’outros sonhos, o que é certo é que a tratava com mais indiferença do que affecto.

A Candida soffria com isso, tanto mais que os rapazes ricos não abundavam por alli e aos pobres não queria dar nem sequer a sombra d’uma esperança; consentia-lhes apenas que a admirassem, de longe...

A Pillar, é que parecia querer fazer-lhe esquecer, á força de bondades e delicadezas, a desegualdade das suas fortunas. Enchia a prima de presentes, queria-a sempre egualmente bem vestida, e muitas vezes puzera de parte joias de valor para não maguar a amiga. E dizia-lhe ingenuamente, não vendo que irritava uma ferida que o despeito fizera: — que seria o seu maior prazer vê-la casada com o irmão.

— «Porque razão não gostam vocês um do outro? Seria tão bom sermos irmãs a valer!...

— «Não é preciso, querida! Pois não somos nós irmãs pela amizade?... — respondia-lhe a Candida sorridente e beijando-a.

Como Antonio de Mello era muito bom para a familia, os parentes, ainda os mais arredados, vinham sollicitar-lhe os maiores e mais abusivos favores. Foi assim que o pequeno Emygdio, companheiro de João em instrucção primaria, se valêra d’um affastado parentesco para pedir o seu auxilio e continuar a estudar.

Conhecendo-lhe sagacidade e uma grande e tenaz vontade de subir, sympathisou com o rapaz e mandou-o para o collegio onde o filho fazia os preparatorios na mais alegre despreoccupações.

Quando vinham a férias, João apresentava o companheiro como modelo dos estudantes, não lhe regateando elogios, apesar de lhe não seguir o exemplo.

Macambuzio como um aldeão espantado, humilde, mal vestido, não despertava senão despreso á Candida. Emquanto a prima o tratava com a affabilidade que merece o companheiro e amigo d’um irmão, ella olhava-o desdenhosa, com o despreso com que tratava os inferiores em posição, vingando-se n’elles da sua propria inferioridade.

Mas o Emygdio não ligava importancia a tal coisa; tinha, como ella, um só desejo, um unico horizonte se abria á sua pesada imaginativa de ambicioso vulgar — subir, ser alguem. Para isso estudava, que não para saber. Agarrara-se aos livros com a persistencia estreita e contumaz d’um homem que por aquelle caminho intentou trepar para o futuro de gosos e de vaidades satisfeitas de que a pobresa e a humildade de posição o tinham affastado até ahi. Com os olhos fitos na futura grandeza pouco se lhe dava com as humilhações da hora presente.

Assim, que lhe importava o despreso da Candida, tão rica como elle? O que o tentava, o que o fazia rojar-se no pó para um dia se poder erguer triumphante, era o dote da Pillar.

Teimosamente, com a paciencia d’um colleccionador, sem descançar nem se desviar do seu fim, começára, desde os primeiros annos de intimidade com João, um cerco muito habil á meiga criatura que lhe levaria a posição e a fortuna almejadas.

Ella que primeiro o estimára como a um bom rapaz, companheiro do irmão e a quem este fazia os mais rasgados elogios, que o admirára depois pela fama de talento que a applicação persistente ás aulas lhe trouxe, n’um paiz em que os rapazes geralmente pouca energia de vontade dispensam ao estudo, começára por fim a enlear-se na rede invisivel que elle lhe tecêra e ia armando, com a sua calculada timidez de caracter probo, mal encobrindo um irresistivel affecto, que a ingenua acreditou muito puro.

Amou-o então, sinceramente, cegamente, com tudo quanto na sua alma havia de enthusiastico e nobre.

Era tão feliz na embriaguez d’aquelle primeiro amôr, que desabrochava n’um esbanjamento de força e perfume como na primavera as flores nascem e crescem espontaneamente, que não soube occultar de ninguem o absorvente anseio em que toda a sua pessoa se prendia.

Os paes, sabedores do desejo da filha, annuiram logo ao casamento — para quando o Vilhegas acabasse a formatura em medicina e ella completasse os vinte e um annos.

Porque não? Se a filha o amava tanto, e elle parecia tão bom, tão sincero, tão intelligente; porque razão se opporiam?

— Ser pobre não era motivo para recusas, pois que a pequena tinha, graças a Deus, o bastante para os dois... — dizia o pae satisfeito por ver na escolha da filha uma sinceridade e desinteresse que toda lhe transmittira com o seu sangue salubre de generoso plebeu.

De maneira que a Pillar passára do desejo á realidade, n’um deslumbramento de sonho, que a tornava a mais ditosa das mulheres.

A alegria radiosa d’um grande amôr que se julga correspondido e não tem preoccupação que lhe empane o fulgor, fazia d’ella a noiva mais adoravel que um homem de espirito e de coração poderia desejar. O Emygdio mostrava-se d’uma correcção e d’um enthusiasmo, que talvez fossem sinceros, no seu papel de noivo feliz e enamorado.

Porque, se era verdade que intimamente não sentia a paixão que aparentava, tambem lhe não era indifferente a rapariga, que alem de rica e bem educada tinha a intelligencia e a graça que conveem á mulher d’um grande politico, que ambicionava vir a ser.

Não sentia por ella impetos de paixão, como ainda os não sentira por outra qualquer. A ambição de subir, aspiração exclusivista e absorvente, parecia ter-lhe embotado toda a affectividade do seu ser.