XIII
Os azedumes e as rivalidades accentuaram-se depois do baile, onde, parece, se tinham querido reunir n’uma ultima revista de forças os dois campos que a politica, com todo o seu cortejo de baixas vinganças e mesquinhas ambições, conseguira levantar na pequena e socegada villa sertaneja.
Em tal lucta ia de vencida o grupo do visconde porque elle, apesar do seu elegante cynismo e da obliteração quasi completa do senso moral no sentido rigoroso da palavra, que lhe fizera o habito de viver no mundo e n’uma sociedade que a custo se sugeita ao direito commum, julgando-se crédora de isempções e privilegios, era todavia incapaz de uma vileza ou de uma flagrante injustiça para alcançar os seus fins. Tanto mais que não fazendo da politica modo de vida, não disputava com desesperos de esfomeado o direito de trepar.
Depois, a seu lado, usando ainda assim de processos que á viscondessa não pareciam bons no seu grande e puro ideal da reformadora, mas n’esses mesmos processos conservando uma certa dignidade e limpesa, agrupavam-se os mais honestos, os mais sinceros, os que menos culpas tinham a exprobar-se.
O exame directo imparcialmente feito pelo dr. Ramalho no Cabral, de S. Mamede, ferido na romaria da Senhora do Monte pelo Manuel Duarte, da Povoa, em desforço de rixa velha em questões d’aguas, diziam algumas testemunhas, levantára descontentamentos entre os partidarios e alguns já diziam pelas tavernas — que se passariam para o Maximiano nas primeiras eleições, visto o dr. Ramalho não ter coragem de salvar um amigo da cadeia lá porque n’uma romaria bebêra uma pinga e dera umas pancadas.
É certo que o Cabral morrera, mas o Vilhegas affirmava a todos, confidencialmente, que a morte não resultára da pancada mas da deficiencia do tratamento que deixára sobrevir uma meningite.
Debalde o medico se esforçava por conservar o sangue frio e explicar a sua attitude, não como acusador nem desejoso de ver um homem condemnado, n’uma iniqua lei de Tallião que a sociedade arbitrariamente se arrogou, soffrendo porque fez soffrer, mas porque acima de tudo estava a verdade e o seu dever de perito era dize la completa e inteira sobre o caso que sujeitavam ao seu julgamento. O juiz que fizesse o que entendesse, mas que por um interesse politico não fossem condemnar ou absolver, fiados n’uma mentira.
Mas feriam-no aquellas luctas traiçoeiras, magoavam-no muito mais do que as floreadas correspondencias do Telles para um jornal de Lisboa, em que tinha phrases de sapiencia e de effeito como aquella de citar Diogo Arias — o celebre valido de D. João de Castella que no mundo só desejava ter um prego com o qual podesse pregar a roda da fortuna — isto para insinuar que o Dr. era um malvado que não acudira ao Cabral para fazer mal á infeliz victima da politica, o Manuel Duarte, curtindo na enxovia a sua innocencia...
O Ramalho contava a Bella, que muito se indignava com tal meada de embustes, que o Manuel Duarte era o primeiro a rir-se d’elles porque dizia a quem o queria ouvir — que bem se ralava de que o mandassem para a Penitenciaria, pois já lá estivera dois annos e como tinha empenhos sahia á cidade e até trouxera dinheiro ganho a vender chapéos de sol. Que para tudo se queria sorte e o sr. Conselheiro o protegeria, porque eram o pae e os dois cunhados marchantes todos por elle na eleição dos quarenta.
— «Já vê, minha senhora — dizia-lhe n’uma tarde de quinta feira nos ultimos dias de setembro, na varanda do palacio dos viscondes — que não vale a pena explicar. Descobrem-se bem os grosseiros manejos do padre cura. Primeiro quiz requerer novo exame para que o Vilhegas dissesse que o caso não era perigoso; mas como o homem morreu, fui eu que o matei...
— «Oh, mas é indecente, uma lucta assim feita de mentiras!
— «Pois é; mas que fazer? A não se querer usar dos mesmos processos, mais vale não lhes ligar importancia.
— «O dr. hade confessar — dizia lhe o João indignadissimo — que tanta porcaria, tal esterquilinio d’almas desperta o desejo de caminharmos para o futuro varrendo todo esse lixo sem dó nem piedade...
— «João, João, cautella, não te mettas a regenerar o mundo, olha que se estes são o que vês, a canalha sem eira nem beira ainda se lhes avantaja em atrevimento... — respondia o visconde sybariticamente deitado n’uma cadeira de baloiço, soprando para o azul hilariante do céo o fumo leve do charuto.
— «Mas suppondo mesmo que a canalha, como o primo diz, seja mais exigente nas suas reclamações, tem direito a faze-las tendo arrastado seculos de captiveiro, tendo a vingar rios de sangue e de lagrimas...
— «Deixa lá, João, — acudiu a viscondessa para terminar uma discussão que sempre a irritava entre o egoismo do visconde e o ardente enthusiasmo do primo, que trouxera da Belgica, a par de uma grande instrucção, uma fé sem limites n’um melhor futuro para os despresados de hoje — O dr. soffre o castigo de ser honesto e ter entrado em politiquices de campanario.
— «Queres então dizer que eu não sou honesto, não é verdade? — sorriu com indifferença o visconde.
— «Não é isso, mas tu como chefe tens tido sempre melhor posição e menos responsabilidades locaes...
A conversa terminou, felizmente, pela entrada da Candida que vinha convidar a viscondessa para madrinha do casamento.
Apesar da indiferença que aparentava, o dr. Ramalho soffria com tal campanha; demasiado honesto para usar de processos identicos e pagar diffamação com diffamação, sentia-se adoentar n’uma crise de desânimo que o deixava impotente para a lucta.
Só o dr. Pinto sustentava a retirada desembestando ironias a torto e a direito e conseguindo ridicularisar o Maximiano e a sua malta a ponto de obstar a que todo o partido do visconde, por um resto de pudor, se passasse com armas e bagagens para o campo inimigo.
Mas, contra esta influencia, mais paralysadora do que militante, alevantava-se a do padre Mathias carreando descontentes e ambiciosos que pediam empregos e ganhos, que não se regateavam no partido aos bons serviços politicos.
A sua bilis de atrabiliario extravasava em doestos e arremetidas que visavam todos os contrarios e em particular o abbade a quem odiava e invejava.
O velho padre, que era um bom e um humilde, sem sombra de maldade nem ambições gananciosas, fechava os olhos e desattendia-se para evitar questões, que se lhe afiguravam pouco em harmonia com os deveres da posição de ambos.
Bastas vezes fingira não saber dos desregramentos do cura, que a pretexto de ter sido feito padre pela violencia da vontade paterna não olhava a conveniencias que o mais simples homem livre tem o dever de attender. Mas porque o bom abbade não podera calar um dia a murmuração do povo pela escandalosa vida do novo cura e o admoestou em palavras mansas de caritativo pastor, o outro embezerrou e d’alli lhe veio odio terrivel, d’estes odios sem mercê que crescem na fria sombra das sacristias e se erguem como floração insalubre a ligar e a prender os movimentos até á suffocação dos miseros que n’elles pozeram um pé em falso.
Com um desejo de vingança e uma ambição a satisfazer, entrara para o serviço do Maximiano, tornando-se em breve o principal agente e o seu mais util auxiliar.
A conselheira é que, mal se annunciara o outomno, fixara a sua partida, para ainda poder gosar uns dias de praia elegante, em Cascaes ou Estoril. Era sempre contrariada que vinha para a villa e só se mostrava alegre e amavel no dia em que marcava o regresso ao mundo civilisado, segundo a sua expressão.
Irritava-a alli a preponderancia e real superioridade da viscondessa que era estimada pelo povo miseravel, que a ella recorria como a fonte inexgotavel de soccorros.
Eram noivas a quem dava dotes e enxoval, casas que deixava habitar de graça pelos mais pobres, crianças e velhos que era preciso vestir e metter em asylos e hospitaes a não ser que a familia recebesse alguma coisa para os tratar... Ella satisfazia todos os pedidos, feliz por se tornar util, não pensando sequer na gratidão, que afinal lhe tributavam todos.
Ora estas e outras superioridades de riqueza e de espirito eram um continuo manancial de sensaborias para o orgulho da conselheira que recebia n’essa noite, pela ultima vez antes de partir, os frequentadores das suas quintas feiras.
Como de costume, a maior animação era em volta das mezas de jogo.
Só a baroneza da Amieira se affastara com o D. Manuel Pereira — porque, dizia ella, era o jogo o unico vicio que nunca lhe dera prazer. Se perdesse, não se encommodaria, porque o dinheiro pouco valor tinha aos olhos da viuva que aos deseseis annos comprara, com o inestimavel preço do seu corpo juvenil e bello, uma fortuna quasi ingastavel. Se ganhasse, de que lhe serviria o dinheiro, que aos outros fazia tanta falta?!...
Não seriam positivamente essas considerações altruistas a causa da sua abstenção, mas como era divertimento de que não gostava, sabia com ellas tornar se sympathica. Chegava mesmo a sê-lo, apezar de todas as loucuras que os annos não tinham ainda interrompido. Intelligente, de uma saúde vigorosa, activa e com muito espirito, ousára fazer sempre o que a vontade e o capricho lhe aconselhavam sem sombra de respeito pela sociedade que conhecia cheia de tolerancias para as que, como ella, se escudam na fortuna, e tão austera soe sêr para as pobres que prevaricam.
No intimo da sua alma leviana havia um fundo de instinctiva justiça que a fazia prodiga com os miseraveis e sem maledicencia que ennodoasse as outras, como quem se quer desculpar com o exemplo alheio.
Se não era honesta e não dava grande valor a essa virtude que só lhe parecia bôa para pobres usarem, tambem não era hypocrita; e chegava a ser ingenua á força de impudencia na phylosophia adquirida no longo convivio de pessôas que se habituara a julgar o typo commum.
Pelo braço do D. Manuel Pereira affastara-se para a sala de bilhar onde, a um canto, a Hortensia languidamente recostada n’uma commoda mas feia cadeira inglesa, conversava com o Vilhegas, em requebros, retorcimentos de pescoço e gritinhos de cãosito de regaço. Ao fundo da sala, a meia voz, o conselheiro conferenciava com o juiz.
— «Então o que lhe dizia eu, D. Manuel? Onde menos gente houvesse é que era mais certo encontrar os noivos — dizia a baroneza alegremente.
— «Procuravam-nos? — perguntou M.ᵉˡˡᵉ Hortense voltando meio corpo, como manequim de uma só peça.
— «Não, precisamente, mas procuravamos alguem que não estando a jogar podesse dizer alguma coisa que distrahisse.
— «Viemos bater a má porta; estes senhores estavam tão absorvidos na sua felicidade que chega a ser um crime distrahi-los.
— «Pelo contrario, D. Manuel, dão-nos muito prazer. Estavamos fazendo un petit bout de causerie intime, mas temos para isso tanto tempo!
— «Faço ideia! Vão-lhes parecer seculos estes mêses. Quando casam?
— «Lá para o fim da primavera, para se sahir para Cintra ou para o Bussaco. A mamã queria que fôsse já, mas eu prefiro noivar durante o inverno, é mais chic e não corro perigo de me privar dos bailes... — sublinhou com impudor. — Já mandamos fazer participações de fiançailles, qui est du dernier chic.
A baroneza riu francamente e respondeu a meia voz qualquer coisa a que outra replicou n’um esgare de enjoada:
— «Tem suas conveniencias le rôle de madame mas é d’uma falta de chic assomante ser mamã. Oh! les petites bêtes! uff!...
D’ahi a conversa foi derivando entre risos e anedoctas em que a rapariga representava o primeiro papel, com um despreso soberbo de todas essas velharias a que se chama pudor e ingenuidade. O Vilhegas, um pouco compromettido porque aquillo bulia-lhe ainda com todos os preconceitos provincianos, de que tentava limpar o espirito, contava tambem as suas graçolas, dizia historias de Coimbra.
— «Olhe, doutor — disse por fim a baroneza, sempre procurando novas distracções — parece-me que entrou agora o seu amigo Telles e esse é que nos vae entreter recitando alguma coisa. Chame-o e peça-lhe.
— «Da melhor vontade, mas se fôsse V. Ex.ᵃ a pedir teria muito mais valor.
— «Olha, parece-me que se anima a soirée. Lá entraram as Souzas e as Cunhas. Onde estaria toda esta gente mettida?
— «E o Móttasinho tambem, esse póde dizer charadas, dizem que tem geito.
— «É melhor chama-los todos para aqui, se os deixam ir para o jogo, então acabou se!... Faz falta o visconde d’Alvora, — commentou a baroneza.
— «Ah, esse agora é todo viscondes — começou o Telles que se adeantára a saudar.
— «Desde a noite do baile que lá está e nem ao menos uma visita!... C’est incroyable!
— «Ha muitos annos que é amigo intimo de sir William Burns e deve-lhe mesmo grandes favores — defendeu o D. Manuel.
— «É muito louvavel o seu procedimento, descendo á liça por um amigo ausente, sim senhor! Bem se vê que é descendente de Nun’alvares, o cavalleiro sem macula. Mas olhe que o visconde não merece defesa porque é um transfuga — riu a baroneza.
— «Elle quer chegar á sobrinha pendurando-se no braço do tio — retorquiu o Telles com azedume.
— «Vae mal por esse caminho, porque sei, e agora já não ha inconfidencia porque toda a gente o sabe, que Bella está pedida por seu primo, creio que é seu primo o João de Mello, não é, sr. Vilhegas? — respondeu e perguntou a um tempo a baroneza.
— «É meu primo affastado...
— «O quê, Isabella Burns vae casar com o Mello?
— «Parece que se admira, Hortensia?! Pois não é para isso; é até casamento bem igual. Ambos novos e bonitos, educados e ricos, é um verdadeiro casamento d’amôr, coisa rara n’estes tempos de brutal utilitarismo.
— «Ora adeus! O João de Mello é um sensaborão — une vrai bête fauve.
— «Por não ter o seu espirito perfeitamente gaulez, não se segue que não seja muito interesante. Ha pessoas intelligentes, que não gostam de conversar. Eu não o conheço a fundo, mas parece-me sympathico e muito instruido.
— «A sr.ᵃ baroneza está sempre disposta a defender.
— «É para me vingar dos que me accusam, meu caro dr. — respondeu para o Vilhegas.
— «Além d’isso, a Bella é galantinha, mas a baroneza sabe o que foi o pae... — tornou Hortense com gesto desdenhoso.
— «Não pense em tal, minha querida; bem sabe que para a sociedade essas coisas dos paes só lembram quando não ha tios ricos. E, aqui para nós, com toda a imparcialidade, quem não tiver um parente cujo procedimento o faça corar, que lhe atire a primeira pedra.
— «Oh, mas o pae deu um escandalo medonho!... Foi um verdadeiro ladrão!...
— «A Hortensia é muito nova para julgar, um facto que tem a sua explicação, como tudo no mundo. O pae de Bella era um perfeito homem da sociedade, fez o que outros têm feito impunemente, foi infeliz...
— «A baroneza conheceu-o?
— «Conheci-o admiravelmente, era das minhas intimas relações. Tinha deffeitos que mais ou menos todos nós temos, mas, a par d’elles, quanta bôa qualidade tambem!...
— «Pois sim, mas se não fôsse o tio rico talvez o João de Mello, que sempre passou por tão serio e esquisito, não achasse muito merecimento n’uma menina que vae para uma romaria só com um rapaz... — insinuou a mais velha das Souzas que tinha vindo com as outras juntar-se ao grupo sem interromper a conversa.
Já percebera que a assiduidade do Telles a devia ao despeito que lhe causava a indifferença de Bella e isso enraivecia-a, não poupando doéstos á inglesa, como por escarneo a tratavam.
— «Decerto que um homem honesto não poderia já acceita-la para esposa — frisou ainda o pharmaceutico.
— «É que o sr. Telles não sabe, talvez, que Isabella Burns foi educada em Inglaterra. O que n’uma terra pequena de provincia portuguesa lhes parece escandaloso é perfeitamente natural e correcto em todos os paizes onde as mulheres são mais respeitadas. O senhor, que é homem, sabe perfeitamente que só é deshonesto quem o quer ser...
— «Sim, nós sabemos que a educação e os costumes ingleses são outros, mas temos obrigação de respeitar os costumes da sociedade em que vivemos — acudiu o Vilhegas em defeza do amigo.
— Decerto, os que vivem d’ella e para ella. Mas Isabella é bastante independente para despresar commentarios malevolos de quem em tudo lhe é inferior. Terminou seccamente, quasi agressiva e n’aquelle tom que não admittia replicas, porque Isabella era uma das suas grandes sympathias, e a baroneza, quando gostava d’alguem, não queria mesmo averiguar se era retribuida a sua affeição para francamente se pôr em campo pelos que lhe agradavam.
O Vilhegas porêm não desistiu e com o gesto largo e o tom emphatico de quem sonha bancadas parlamentares ainda accrescentou:
— «Oh senhora baroneza, mas isso é negar toda a virtude e condemnar sem remissão uma sociedade de que V. Ex.ᵃ faz parte.
— «É por isso que fallo com conhecimento de causa, o que se requer é hypocrisia e dinheiro, bem sei, sentimentos intimos e nobres são frioleiras... Pois se ha pessoa que esteja acima de todos os egoismos e mentiras é Isabella, pode crêr! Se casa com João é porque decerto muito o ama.
— «Oh, dizem que sim, — atreveu-se a dizer a Aurora Cunha, que havia algum tempo estava morta por fallar, retrahindo-se logo com acanhamento — um amôr assim nunca se viu. Andam ambos tão felizes, tão contentes, que até dá gosto vê-los.
— «A menina vae lá? — perguntou a baroneza com interesse.
— «Eu era amiga da Pillar, que me tratava com muito agrado. Agora vou lá menos, mas a Engracia, que é muito amiga da minha avó, foi hontem fazer-lhe uma visita e contou isto. Lá em casa gostam tanto da noiva, que até ella, que d’antes só fallava na sua Pillarsinha, agora já diz que esta é um anjo do céo que Deus lhes mandou para pagar o roubo que lhes fez...
O Vilhegas torcia-se nervoso desde que a conversa tomara aquelle rumo, e Hortensia desviava a cabeça com enjôo, contando, por disfarce, os berloques que trazia no cordão de oiro ao pescoço. O Telles quiz desviar a conversa, mas a baroneza perguntou ainda com interesse.
— «A menina sabe quando elles casam?
— «Á Engracia disse que era depois de janeiro, porque faz um anno que morreu a Pillar. A Candida é que casa primeiro.
Novo estremecer do Vilhegas trocando olhares de intelligencia com o Telles.
— «Sim? Com quem casa essa? É uma formosura, não é, D. Manuel? Olhe que em Lisboa, convenientemente emoldurada em luxo, e n’uma frisa de S. Carlos, era d’um soberbo effeito — disse com a convicção de quem se não julga prejudicada pela mocidade nem pela belleza, forte no seu reducto de oiro.
— «É realmente perfeita! Faz pena ver escondida entre serras uma tão rara planta — respondeu o Pereira, que ás vezes se mettia em floreados de phrase recordando tempos de Coimbra.
— «Em casando já ella vae para Lisboa viver — tornou a menina Aurora, que estava tendo um verdadeiro successo com tanto saber de vidas alheias.
— «Quem é esse marido ideal?
— «É o Braga, v. ex.ᵃ não conhece? Cá chamam-lhe o Braga usurario, porque empresta dinheiro a noventa por cento. É muito rico. No baile da viscondessa estava sempre ao pé d’ella, não viram? — voltou-se a pedir confirmação ao dito, ás irmãs e ás meninas Souzas, que abanaram a cabeça affirmativamente e começaram todas a fallar ao mesmo tempo, querendo ser interessantes com o saber muito d’esse casamento, que era o escandalo da terra.
— «Dizem que o velho está doido pela Candida.
— «Até já fallou aos pedreiros para deitarem abaixo a casa do Bernabé, que o visconde sempre fez com que a camara expropriasse por utilidade publica...
— «É um verdadeiro escandalo, uma arbitrariedade sem nome, uma d’estas coisas que só se fazem n’uma terra de cafres como esta!... — apostrophava o Telles pensando já na correspondencia para o jornal de Lisboa.
E uma das meninas ainda elucidava:
— «Dizem que para o anno já hade ter um chalet como nunca se viu outro cá!...
— «O tio comprou-lhe um enxoval que nem que fosse para uma rainha — disse ainda outra com inveja.
— «Diz se que casam já para o mez que vem...
— «Ora ahi está un vrai mariage d’amour!... — casquinou a Hortencia.
— «Não se ria, minha querida, — respondeu a baroneza, que tinha o gosto particular de contrariar a filha do Maximiano — elle gosta sinceramente, e n’este genero de negocios um quasi sempre é enganado, quando não são os dois!... — sorriu com finura.
— «Oh Vilhegas — chamou do fundo da sala o conselheiro.
O Emygdio correu com interesse de subordinado humilde a perguntar o que lhe queria o patrão.
— «Venha cá, meu amigo. O sr. juiz pode ter algumas duvidas e quero que lhe diga com a mão na consciencia se o Cabral morreu assassinado pela pancada ou em resultado da doença que lhe deixaram sobrevir.
— «Não tenho duvida nenhuma em affirmar que foi da doença...
— «Deixem-me dizer-lhes — continuou o esperto politico — que o meu interesse pelo Manuel Duarte é apenas filho da revolta que toda a injustiça me causa, notem que nem é meu partidario... Mas o dr. Vilhegas, que em breve será meu filho, faça o mesmo que eu, feche os olhos a resentimentos e diga sempre o que a sua probidade mandar.
— «Sr. Conselheiro — começou o medico, dando um passo atraz e pondo a mão no peito n’um gesto de comediante sentimental — eu respeito v. ex.ᵃ mais do que ao meu próprio pae — e n’isto era sincero porque não fazia grande caso do barbeiro d’aldeia que lhe dera o ser... — mas acima dos affectos humanos está a justiça e a consciencia. Eu farei sempre o que uma e outra me ordenarem; se v. ex.ᵃ me pedisse o contrario teria muita e sincera magua, mas não cederia...
Isto é que já soava como bilha rachada, mas o conselheiro bateu-lhe no hombro e disse com enthusiasmo:
— «Bravo, meu rapaz! Assim é que eu aprecio o caracter d’um homem! É com toda a confiança que lhe porei nas mãos os meus negocios e sei que não usará da minha influencia senão para o bem d’este desgraçado paiz que caminha para o abysmo!... Dê cá um abraço, homem! — abraçaram-se com gravidade.
— «O sr. dr. Vilhegas — começou o juiz, arrastando a phrase como arrastava a perna gottosa — é um rapaz a entrar na vida com nobre caracter e agúda intelligencia. Abre-se aos seus passos um largo caminho que não hade querer manchar com uma injustiça inspirada pela má paixão da politica, como usam alguns seus collegas; fico pois com a minha consciencia tranquilla.
— «Agradeço o conceito que v. ex.ᵃ forma do meu caracter e tenho a vaidade de o julgar justo.
— «Mas não o prendâmos por mais tempo, aliás a Hortencia ficará zangada... — disse o conselheiro empurrando-o com amavel sombra. Depois continuou n’aquelle ar de indifferença bem calculada que todos os politicos conhecem para despertar a curiosidade que desejam espicaçar: — Sabe que é definitiva a aposentação do dr. Saavedra? Escrevi ao ministro para não dispor do logar sem me ouvir...
— «O que respondeu?!... — perguntou o outro arregalando os pequenos olhos de porco, n’um esfusear de curiosidade.
Interrompeu-os o padre Mathias, fulo com o Neves que se lhe fôra pôr ao lado e o fizera perder todos os cobres, — porque engallinhava com aquelle typo... dizia, bufando.
— «Ora — respondia-lhe o conselheiro sorrindo — vocês não sabem jogar, perdem logo a cabeça! Vae-se tenteando emquanto se perde com pouco dinheiro; depois, quando a sorte vem, é só uma cartada bastante para a desforra.
— «Isso era bom se todos soubessem e tivessem a felicidade de v. ex.ᵃ — «Então hoje está o caso muito feio; hein? Vamos lá ver.
Dirigiram-se para a outra sala emquanto o juiz rodeava, arrastando a perna e trauteando o estribilho favorito, até ao grupo das senhoras ás quaes costumava dirigir grosserias que imaginava deviam tomar por amabilidades.
— «Oh sr. Telles — dizia a baroneza, para terminar a conversa das vidas alheias que já a enfadava — eu tinha pedido aqui ao seu amigo para interceder por nós junto de v. ex.ᵃ.
— «Que valor tenho para merecer um pedido de v. ex.ᵃˢ?!...
— «Tem o valor de ser poeta, acha que é pequeno? Nós queriamos ouvir recitar alguma das suas poesias.
— «Oh, sr.ᵃ baroneza, os meus pobres versos são pedaços d’alma angustiada que não podem interessar aos felizes da terra!...
— «As obras d’arte, quando sinceras, são comprehendidas por todos e commovem as almas menos sensiveis, não é verdade, sr.ᵃ baroneza?!... — disse o Vilhegas querendo que o amigo figurasse.
— «Decerto — respondeu ella.
— «Não se faça rogado, sr. Telles, j’aime beaucoup vos poésies!... — acrescentou Hortencia languidamente cerrando os olhos e apertando os beiços com denguice.
Um coro de insistentes pedidos rodeou o Telles, que se fazia grave, mettia os dedos nos cabellos, fechava os olhos, dizia não se lembrar nada do seu livro Verde-mar... Por fim, como que victimado, mas radiante de vaidade, levantou-se, pôz a mão sobre as costas da cadeira, levou a outra ao coração, fez ainda um gesto vago de quem se lhe tinha varrido tudo da memoria, o que impacientava os ouvintes, e começou com voz sibilando entre sorrisos de superioridade.
— «Dedicatoria: Á Doce e Pura que a minha alma espera para entrar na Turris eburnia da Perfeição.
Mas a palavra foi-lhe cortada violentamente pela explosiva apparição da conselheira n’um desmanchamento de modos de quem precisa desabafar arrelía séria.
Offegante, rubra de indignação, dirigiu se á baroneza como se quizesse toma-la para testemunha da justiça que lhe assistia.
— «Veja isto, veja isto! — e mostrava-lhe uma grande folha de papel escarlate por aparar, com uma enorme corôa de visconde ao centro encimando floreado brazão — aquelle pelintra que já desdenha assistir ás nossas partidas!... Não ha maior desaforo!
— «Mas o que é afinal? — perguntou a baroneza, que apreciava pouco scenas tragicas no seu epicurismo de pessoa que quer tirar da vida só o fructo saboroso e leve.
— «Leiam, vejam isto, desde que veio o inglês para lá está assoldado... Não se lembra o pobretana que veio para ahi sem roupa; até foi preciso emprestar-lhe camisas do Maximiano!... Ainda hontem a costureira me veio mostrar um par de meias d’elle que não tem por onde se lhe dê um ponto!... Agora, o figurão já não perde tempo a vir aqui... — voltando-se indistinctamente para quem tinha mais perto e calhou ser o Telles — leia o senhor o que manda por um lacaio. Só visto!...
O discurso ameaçava não deixar occasião para se ler a carta, porque a conselheira, vendo-se benevolamente escutada, não tinha mão nos improperios. Interrompeu-a a baroneza benevolamente:
— «Deixe que o sr. Telles leia a carta, aliás não percebemos nada.
— «Pois que leia, para verem quem é aquella bisca!... Só a chicote!...
O Telles pegou na carta traçada com larga calligraphia inglesa propria de sportman e de pessôas de poucos dizeres, e leu:
— «Minha ex.ᵐᵃ e querida senhora. Venho humildemente a seus pés depôr a minha homenagem e pedir desculpa pela falta que hoje darei na sua quinta-feira. Não poço. — O sr. Visconde escreveu posso com ç, não sei se quer dizer o mesmo, commentou o Telles com litteratica ironia.
— «Deixe lá os erros e diga para deante — apressou a baroneza.
— «Não póde deixar a partida de mr. Burns, a quem acompanhará n’uma caçada á serra ás tres da manhã — resumiu o Vilhegas, que acabou de ler por cima do hombro do amigo.
— «Ora então, coitado do rapaz, tambem tem alguma razão — desculpou a baroneza.
A conselheira ia sair-se talvez com nova ladainha de injurias e improperios, se o Jorge Cabreira a não chamasse da porta, n’um gesto desesperado. Estava pallido; o bigode, que enrolava furiosamente entre os dedos, mostrava bem a excitação nervosa que o tomava.
O conselheiro tinha-lhe limpado todo o dinheiro n’um baccarat rijamente sustentado, e elle vinha pedir á mulher que lhe emprestasse mais para tirar a desforra do marido...