CANTIGA DO ROSTO BRANCO[1]
Rico era o rosto branco; armas trazia,
E o licor que devora e as finas telas;
Na gentil Tibehyma os olhos pousa,
E amou a flor das bellas.
«Quero-te!» disse á cortezã da aldeã;
«Quando, juncto de ti, teus olhos miro,
A vista se me turva, as fôrças perco,
E quasi, e quasi expiro.»
E responde a morena requebrando
Um olhar doce, de cobiça cheio:
«Deixa em teus labios imprimir meu nome
Aperta-me em teu seio!»
Uma cabana levantaram ambos,
O rosto branco e a amada flor das bellas...
Mas as riquezas foram-se co′o tempo,
E as illusões com ellas.
Quando elle empobreceu, a amada moça
Noutros labios pousou seus labios frios,
E foi ouvir de coração extranho
Alheios desvarios.
Desta infidelidade o rosto branco
Triste nova colheu; mas elle amava,
Inda infieis, aquelles labios doces,
E tudo perdoava.
Perdoava-lhe tudo, e inda corria
A mendigar o grão de porta em porta,
Com que a moça nutrisse, em cujo peito
Jazia a affeição morta.
E para si, para afogar a magua,
Se um pouco havia do licor ardente,
A dor que o devorava e renascia
Matava lentamente.
Sempre trahido, mas amando sempre,
Elle a razão perdeu; foje á cabana,
E vae correr na solidão do bosque
Uma carreira insana.
O famoso Sachem, ancião da tribu,
Vendo aquella traição e aquella pena,
Á ingrata filha duramente falia,
E rispido a condemna.
Em vão! É duro o fructo da papaya,
Que o labio do homem acha doce e puro
Coração de mulher que já não ama
Esse é inda mais duro.
Nu, qual sahíra do materno ventre,
Olhos cavos, a barba emmaranhada,
O misero tornou, e ao proprio tecto
Veiu pedir pousada.
Volvido se cuidava á flor da infancia
(Tão escuro trazia o pensamento!)
«Mãe!» exclamava contemplando a moça,
«Acolhe-me um momento!»
Vinha faminto. Tibehyma, entanto,
Que ja de outro guerreiro os dons houvera,
Sentiu asco daquelle que outro tempo
As riquezas lhe dera.
Fôra o lançou; e elle expirou gemendo
Sôbre folhas deitado junto á porta;
Annos volveram; co′ os volvidos annos,
Tibehyma era morta.
Quem alli passa, contemplando os restos
Da cabana, que a herva toda esconde,
Que ruinas são essas interroga
E ninguem lhe responde.
Notas
editar- ↑ Não é original ésta composição; o original é propriamente
indigena. Pertence á tribu dos Mulcogulges, e foi traduzida da
lingua delles por Chateaubriand (Voy. dans l′Amer.). Tinham
aquelles selvagens fama de poetas e músicos, como os nossos Tamoyos.
«Na terceira noite da festa do milho, lê-se no livro
de Chateaubriaud, reunem-se no logar do conselho; e disputam
o premio do canto. O premio é conferido pelo chefe e por
maioria de votos: ó um ramo de carvalho verde. Concorrem
as mulheres tambem, e algumas têem sahido vencedoras;
uma de suas odes ficou celebre.»
A ode celebre é a composição que trasladei, para a nossa língua. O titulo na traducção em prosa de Chateaubriand é — Chanson de la chair blanche.
Sôbre o talento das mulheres para a poesia, tambem o tivemos em tribus nossas. Veja Fernão Cardim, Narrativa de uma viagem e missão.