OS ORISES[1]
Nunca as armas christans, nem do Evangelho
O lume creador, nem frecha extranha
O valle penetraram dos guerreiros
Que, entre serros altissimos sentado,
Orgulhoso descança. Unico o vento,
Quando as azas desprega impetuoso,
Os campos varre e as selvas estremece,
Um pouco leva, ao recatado asylo,
Da poeira da terra. Acaso o raio
Alguma vez nos asperos penedos,
Com fogo escreve a assolação e o susto.
Mas olhos de homem, não; mas braço affeito
A pleitear na guerra, a abrir ousado
Caminho entre a espessura da floresta,
Não affrontára nunca os atrevidos
Muros que a natureza a pino erguêra
Como eterna atalaia.
Um povo indocil
Nessas brenhas achou ditosa patria,
Livre, como o rebelde pensamento
Que ímpia fôrça não doma, e airoso volve
Inteiro á eternidade. Guerra longa
E porfiosa os adestrou nas armas;
Rudes são nos costumes mais que quantos
Ha criado este sol, quantos na guerra
O tacape meneiam vigoroso.
So nas festas de plumas se ataviam
Ou na pelle do tigre o corpo envolvem,
Que o sol queimou, que a rispidez do inverno
Endureceu como os robustos troncos
Que so verga tufão. Tecer não usam
A preguiçosa rede em que se embale
O corpo fatigado do guerreiro,
Nem as tabas erguer como outros povos;
Mas á sombra das árvores antigas,
Ou nas medonhas cavas dos rochedos,
No duro chão, sôbre mofinas hervas,
Acham somno de paz, jamais tolhido
De ambições, de remorsos. Indomavel
Essa terra não é; prompto lhes volve
O semeado pão; vecejam flores
Com que a rudez tempera a extensa inatta,
E o fructo pende dos curvados ramos
Do arvoredo. Harta messe do homem rude,
Que tem na ponta da farpada setta
O pesado tapir, que lhes não foge,
Nhandu, que à flor de terra inquieta voa,
Sobejo pasto, e deleitoso e puro
Da selvagem nação. Nunca vaidade
De seu nome souberam, mas a fôrça,
Mas a destreza do provado braço
Os foros são do imperio a que hão sugeito
Todo aquelle sertão. Murmuram longe,
Contra elles, as gentes debelladas
Vingança e odio. Os echos repetiram
Muita vez a pocema de combate;
Nuvens e nuvens de afiadas settas
Todo o ar cobriram; mas o extremo grito
Da victoria final so delles fôra.
Despem armas de guerra; a paz os chama
E o seu barbaro rito. Alveja perto
O dia em que primeiro a voz levante
A ave sagrada, o nume de seus bosques,
Que de agouro chamamos, Cupuaba
Melancholica e feia, mas ditosa
E benefica entre elles.[2] Não se curvam
Ao nome de Tupan, que a noite e o dia
No ceu reparte, e ao rispido guerreiro
Guarda os sonhos do Ybake e eternas dansas.
Seu deus unico é ella, a bemfaseja
Ave amada, que os campos despovoá
Das venenosas serpes,— viva imagem
Do tempo vingador, lento e seguro,
Que as calumnias, a inveja e o odio apagam,
E ao conspurcado nome o alvor primeiro
Restitue. Uso é deites celebrar-lhe
Com festas o primeiro e o extremo canto.
Terminára o cruento sacrificio.
Ensopa o chão da dilatada selva
Sangue de caitetus, que o pio intento
Largos mezes cevou; barbara usança
Tambem de alheios climas. As donzellas,
Mal sahidas da infancia, inda embebidas
Nos ledos jogos de primeira edade,
Ao brutal sacrificio... Oh! cala, esconde,
Labio christão, mais barbaro costume.
Agora a dansa, agora alegres vinhos,
Trez dias ha que de inimigos povos
Esquecidos os trazem. Sôbre um tronco
Sentado o chefe, carregado o rosto,
Inquieto o olhar, o gesto pensativo,
Como alheio ao praser, de quando em quando
Á multidão dos seus a vista alonga,
E um rugido no peito lhe murmura.
Quem a fronte enrugara do guerreiro?
Inimigo não foi, que o medo nunca
O sangue lhe esfriou, nem vão receio
Da batalha futura o desenlace
Lhe fez incerto. Intrépidos como elle
Poucos vira este ceu. Seu forte braço,
Quando vibra o tacape nas pelejas,
De rasgados cadaveres o campo
Inteiro alastra, e ao peito» do inimigo,
Como um grito de morte a voz lhe soa.
Nem so nas gentes o terror infunde;
É fama que em seus olhos còr da noite,
Inda creança, um genio lhe deixara
Mysteriosa luz, que as fôrças quebra
Da onça e do jaguar. Certo é que um dia
(A tribu o conta, e seus pagés o juram)
Um dia em que, do filho acompanhado,
Ia costeando a orla da floresta,
Um possante jaguar, escancarando
A bocca, em frente do famoso chefe
Estacara. De longe um grito surdo
Solta o joven guerreiro; logo a setta
Embebe no arco, e o tiro sibilante
Ia ja disparar, quando de assombro
A mão lhe afrouxa a distendida corda.
A fera o collo timida abatêra,
Sem ousar despregar os fulvos olhos
Dos olhos do inimigo. Ureth ousado
Arco e frechas atira para longe,
A massa empunha, e lento, e lento avança;
Tres vezes volteando a arma terrivel,
Enfim despede o golpe; um grito apenas.
Unico atroa o solitario campo
E a fera jaz, e o vencedor sôbre ella.
Notas
editar- ↑ Tinha planeado uma composição de dimensões maiores, e
não a levei a cabo, por intervirem outros trabalhos, que de
todo me divertiram a attenção. Foi o nosso eminente poeta e
litterato Parto Alegre, hoje barão de Santo Angelo, quem, ha
cerca de 4 annos, me chamou a attenção para a relação de
Menterroyo Mascarenhas, Os Orizes conquistados, que vem na
Rev. do Inst. Hist., t. VIII.
A asperesa dos costumes daquelle povo, habitante do sertão da Bahia, cerca de duzentas legoas da capital, sua rara energia, as circuiastancias singulares da conquista e conversão da tribu, eram certamente um quadro excellente para uma composição poetica. Ficou em fragmento, que ainda assim não quiz excluir do livro. - ↑ «Lastimosamente cegos de discurso, reconhecem e adoram
por deus a coruja, chamada na sua linguagem Oitipô-cupuaaba;e o motivo de sua adoração consiste no beneficio que recebem
desta ave, que, naturalmente inimiga das cobras, numerosissimas
naquelle paiz, as espia nos mattos, e lhes tira a vida.»
(J. F. Monterroyo Mascarenhas, Os Orizes conquistados).