POTYRA


Os Tamoyos, entre outras presas que fizeram, levaram esta india, a qual pretendeu o capitão da empreza violar: resistia valorosamente dizendo era lingua brasilica: «Eu sou christã e casada; não heide fazer traição a Deus e a meu marido; bem pódes matar-me e fazer de mim o que quizeres.» Deu-se por affrontado o barbaro, e em vingança lhe acabou a vida com grande crueldade.

Vasc. Chr. da Companhia de Jesus, liv. 3º


POTYRA[1]


Se, poi ch'a morte il corpo le percosse.
Desse almen vita alla memoria d'ella.
Ariosto, Orl. Fur. c. xxix, est. xxxi.



I


Moça christã das solidões antigas,
Em que aurea folha reviveu teu nome?
Nem o echo das mattas seculares,
Nem a voz das sonoras cachoeiras,
O transmittiu aos seculos futuros.
Assim da tarde estiva ás auras frouxas

Tenue fumo do colmo no ar se perde;
Nem de outra sorte em moribundos labios
A humana voz expira. O horror e o sangue
Da miseranda scena em que, de envolta
Co'os longos, magoadissimos suspiros,
Christã Lucrecia, abriu tua alma o voo
Para subir ás regiões celestes,
Mal deixada memoria aos homens lembra.
Isso apenas; não mais; teu nome obscuro,
Nem tua campa o brazileiro os sabe.



II


Ja da férvida luta os ais e os gritos
Extinctos eram. Nos baixeis ligeiros
Os tamoyos incolumes embarcam;
Ferem co'os remos as serenas ondas
Até surgirem na remota aldêa.
Atrás ficava, luctuosa e triste,
A nascente cidade brazileira,[2]
Do inopinado assalto espavorida,
Ao ceu mandando em côro inuteis vozes.
Vinha ja perto rareando a noite,
Alva aurora, que á vida accorda as selvas,
Quando a aldêa surgiu aos olhos torvos

Da expedição nocturna. Á praia saltam
Os vencedores em tropel; transportam
Ás cabanas despojos e vencidos,
E, da vigilia fatigados, buscam
Na curva, leve rede amigo somno,
Excepto o chefe. Oh! esse não dormira
Longas noites, se a trôco da Victoria
Precisas fossem. Traz comsigo o premio,
O desejado premio. Desmaiada
Conduz nos braços tremulos a moça
Que renegou Tupan[3], e as velhas crenças
Lavou nas aguas do baptismo santo.
Na rede ornada de amarellas pennas
Brandamente a depõe. Leve tecido
Da captiva gentil as fórmas cobre;
Veste-as de mais a sombra do crepusculo,
Sombra que a tibia luz da alva nascente
De todo não rompeu. Inquieto sangue
Nas veias ferve do indio. Os olhos luzem
De concentrada raiva triumphante.
Amor talvez lhes lança um leve toque
De ternura, ou ja soffrego desejo;
Amor, como elle, asperrimo e selvagem,
Que outro não sente o heroe.



III


                  Heroe lhe chamam
Quantos o hão visto no fervor da guerra
Medo e morte espalhar entre os contrarios
E avantajar-se nos certeiros golpes
Aos mais fortes da tribu. O arco e a flecha
Desde a infancia os meneia ousado e affouto;
Cedo aprendeu nas solitarias brenhas
A pleitear ás feras o caminho.
A fôrça oppõe á fôrça, a astucia á astucia.
Qual se da onça e da serpente houvera
Colhido as armas. Traz ao collo os dentes

Dos contrarios vencidos. Nem dos annos
O número supera o das victórias;
Tem no espaçoso rosto a flor da vida,
A juventude, e goza entre os mais bellos
De real primazia. A cinta e a fronte
Azues, vermelhas plumas alardeam,
Ingenuas galas do gentio inculto.



IV



Da captiva gentil cerrados olhos
Não se entreabrem á luz. Morta parece.
Uma so contracção lhe não perturba
A paz serena do mimoso rosto.
Junto della, cruzados sobre o peito
Os braços, Anagê contempla e espera;
Soffrego espera, em quanto ideias negras
Estão a revoar-lhe em torno e a encher-lhe
A mente de projectos tenebrosos.
Tal no cimo do velho Corcovado
Proxima tempestade engloba as nuvens.
Subito ao seio turgido e macio

Anciosas mãos estende; inda palpita
O coração, com desusada fôrça,
Como se a vida toda alli buscasse
Refúgio certo e último. Impetuoso
O vestido christão lhe despedaça,
E á luz ja viva da manhã recente
Contempla as nuas fórmas. Era acaso
A syncope chegada ao termo proprio,
Ou, no pejo offendida, ás mãos entranhas
A desmaiada moça despertára.
Potyra accorda, os olhos lança em tôrno,
Fita, ve, comprehende, e inquieta busca
Fugir do vencedor ás mãos e ao crime...
Misera! oppõe-se-lhe o irritado gesto
Do asperrimo guerreiro; um ai lhe sobe
Angustioso e triste aos labios tremulos,
Sobe, murmura e suffocado expira.
Na rede envolve o corpo, e, desviando
Do terrivel tamoyo os lindos olhos,
Entrecortada prece aos ceus envia,
E as faces banha de serenas lagrymas.



V



Longo tempo corrêra. Amplo silêncio
Reinou entre ambos. Do tamoyo a fronte
Pouco a pouco despira o torvo aspecto.
Ao trabalhado espirito, revôlto
De mil sinistros pensamentos, volve
Benigna calma. Tal de um rio engrossa
O volume extensissimo das aguas
Que vão enchendo de pavor os echos,
Vencendo no arruido o vento e o raio,
E pouco a pouco attenuando as vozes,
Adelgaçando as ondas, tornam mansas
Ao primitivo leito. Ei-lo se inclina,

Para tomar nos braços a formosa
Por cujo amor incendiára a aldêa
Daquellas gentes pallidas de Europa.
Sente-lhe a moça as mãos, e erguendo o rosto,
O rosto inda de lagrymas molhado,
Do coração éstas palavras sólta:
«— La entre os meus, suave e amiga morte,
Ah! porque me não deste? Houvera ao menos
Quem escutasse de meus labios frios
A prece derradeira; e a santa benção
Levaria minha alma aos pes do Eterno...
Não, não te peço a vida; é tua, extingue-a;
Um so allivio imploro. Não receies
Embeber no meu sangue a ervada setta;
Mata-me, sim; mas leva-me onde eu possa
Ter em sagrado leito o último somno!»
Disse, e fitando no indio avidos olhos,
Esperou. Anagê sacode a fronte,
Como se lhe pesara ideia triste;
Crava os olhos no chão; lentas lhe sahem
Éstas vozes do peito.
               «Oh! nunca os padres
Pisado houvessem estas plagas virgens!
Nunca de um deus estranho as leis ignotas
Viessem perturbar as tribus, como

Perturba o vento as aguas! Rosto a rosto
Os guerreiros pelejam; matam, morrem.
Ante o fulgor das armas inimigas
Não descora o tamoyo. Assaz lhe pulsa
Valor nativo e raro em peito livre.
Armas, deu-lh'as Tupan novas e eternas
Nestas mattas vastissimas. De sangue
Estranhos rios hão de, ao mar correndo,
Tristes novas levar á patria delles,
Primeiro que o tamoyo a frente incline
Aos inimigos peitos. Outra fôrça,
Outra e maior nos move a guerra crua;
São elles, são os padres. Esses mostram
Cheia de riso a boca e o mel nas vozes,
Sereno o rosto e as brancas mãos inermes
Ordens não trazem de cacique estranho,
Tudo nos levam, tudo. Uma por uma
As filhas de Tupan correm trás elles,
Com ellas os guerreiros, e com todos
A nossa antiga fe. Vem perto o dia
Em que, na immensidão destes desertos,
Ha de ao frio luar das longas noites
O pagé suspirar sozinho e triste
Sem povo nem Tupan!»

               Silenciosas
Lagrymas lhe espremeu dos olhos negros
Ésta lembrança de futuros males.
«— Escuta!» diz Potyra. O indio estende
Imperioso as mãos e assim prosegue:
«— Também com elles foste, e foi comtigo
Da minha vida a flor! Teu pai mandara,
E com elle mandou Tupan que eu fosse
Teu espôso; vedou-m'o a voz dos padres,
Que me perdeu, levando-te comsigo.
Não morri; vivi so para ésta aífronta;

Vivi para ésta insolita tristeza
De maldizer teu nome e as graças tuas,
Chorar-te a vidae desejar-te a morte.
Ai! nos rudes combates em que a tribu
Rega de sangue o chão da virgem terra
Ou tinge a flor do mar, nunca a meu lado
Teu nobre vulto esteve. A aldêa toda,
Mais que o teu coração, ficou deserta.
Duas vezes, mimosas rebentaram
Do lacrymoso cajueiro as flores,
Desde o dia funesto em que deixaste
A cabana paterna. O extremo lume
Expirou de teu pai nos olhos tristes;
Piedosa chamma consumiu seus restos
E a aldêa toda o lastimou com prantos.
Não de todo se foi da nossa vida;
Parte ficou para sentir teus males.
Antes que o último sol á melindrosa
Flor do maracujá cerrasse as folhas
Um sonho tive. Merencorio vulto,
Triste como uma fronte de vencido,
Côr da lua os cabellos venerandos,
O vulto de teu pae: «Guerreiro (disse),
«Corre avizinha habitação dos brancos,
«Vai, arranca Potyra á lei funesta

«Dos pallidos pagés; Tupan t′o ordena;
«Nos braços traze a fugitiva corça;
«Vincula o teu destino ao della; é tua.»
— «Impossivel! Que vale um vago sonho?
Sou espôsa e christã. Impio, respeita
O amor que Deus protege e sanctifica:
Mata-me; a minha vida te pertence:
Ou, se tepeza derramar o sangue
Daquella a quem amaste, e por quem foste
Lançar entre os christãos a dor e o susto,
Faze-me escrava; servirei contente
Emquanto a vida allumiar meus olhos.
Toma, entrego-te o sangue e a liberdade;
Ordena ou fere. Tua espôsa, nunca!»
Calou-se, e reclinada sôbre a rede,
Potyra murmurava ignota prece,
Olhos fitos no proximo arvoredo,
Olhos não ermos de profunda magua.



VII



O' Christo, em que alma penetrou teu nome
Que lhe não desse o balsamo da vida?
Pelo vento dos seculos levado,
Vidente e cego, o maximo dos seres,
Que fôra do homem nesta escassa terra,
Se ao mysterio da vida lhe não désses,
O' Christo, a eterna chave da esperança?
Philosophia stoica, ardua virtude,
Creação de homem, tudo passa e expira.
Tu so, filha de Deus, palavra amiga,
Tu, suavissima voz da eternidade,

Tu perduras, tu vales, tu confortas.
Neste sonho iriado de outros sonhos,
Varios como as feições da natureza,
Nesta confusa agitação da vida,
Que alma transpõe a derradeira edade
Farta de algumas passageiras glorias?
Torvo é o ar do sepulchro; alli não viçam
Essas cansadas rosas da existencia
Que ás vezes tantas lagrymas nos custam,
E tantas mais antes do occaso expiram.
Flor do Evangelho, nuncia de alvos dias,
Esperança christã, não te ha murchado
O vento arido e sêcco; és tu viçosa
Quando as da terra languidas inclinam
O seio, e a vida lentamente exhalam.
Ésta a consolação última e doce
Da espôsa indiana foi. Captiva ou morta,
Antevia a celeste recompensa
Que aos humildes reserva a mão do Eterno.
Naquelle rude coração das brenhas
A semente evangelica brotára



VIII


Das duas condições deu-lhe o guerreiro
A peor, — fel-a escrava; e eil-a apparece
Da sua aldea aos olhos espantados
Qual fôra em dias de melhor ventura.
Despida vem das roupas que lhe ha posto
Sôbre as polidas fórmas uso extranho,
Não sabido jamais daquelles povos
Que a natureza ingenua doutrinára.
Vence na gentileza ás mais da tribu,
E tem de sobra um sentimento novo,

Pudor de espôsa e de christã, — realce
Que ao indio accende a natural volupia.
Simulada alegria lhe descerra
Os labios; riso á flor, escasso e dubio,
Que mal lhe encobre as vergonhosas maguas.
Á voz do seu senhor accorre humilde;
Não a assusta o labor; nem dos perigos
Conhece os medos. Nas ruidosas festas,
Quando ferve o cauim[4], e o ar atrôa
Pocema de alegria ou de combate,
Como que se lhe fecha a flor do rosto.
Ja lhe descae então no seio oppresso
A graciosa fronte; os olhos fecha,
E ao ceu voltando o pensamento puro,
Menos por si, que pelos outros pede.
Nem so o ardor da fe lhe abraza o peito;
Lacera-lh′o tambem agra saudade;
Chora a separação do amado espôso,
Que, ou cedo a esquece, ou solitario geme.
Si, alguma vez, fugindo a extranhos olhos,
Não ja crueis, mas cubiçosos della,
Entra desatinada o bosque antigo,
Co′o doce nome accorda ao longe os echos,
E a dor expande em lobregos soluços,
Farta de amor e pródiga de vida,

Ouve-as a selva, e não lhe entende as maguas.
Outras vezes pisando a ruiva areia
Das praias, ou galgando a penedia
Cujos pes orla o mar de nivea espuma,
As ondas murmurantes interroga:
Conta ao vento da noite as dores suas;
Mas... fieis ao destino e á lei que as rege,
As preguiçosas ondas vão caminho,
Crespas do vento que sussurra e passa.



IX


Quando, ao sol da manhã, partem ás vezes,
Com seus arcos, os destros caçadores,
E alguns da rija estaca desatando
Os nós de embira ás rapidas igaras,
A' pesca vão pelas ribeiras proximas,
Das espôsas, das mães que os lares velam,
Grata alegria os corações innunda,
Menos o della, que suspira e geme,
E não aguarda doce espôso ou filho.
Triste os ve na partida e no regresso,
E nessa melancholica postura,
Simelha a acacia langue e esmorecida,
Que ja de orvalho ou sol não pede os beijos.

As outras... — Raro em labios de felizes
Alheias maguas travam. Não se pejam
De seus olhos azues e alegres pennas
Os sahis sôbre as arvores pousados,
Se ao perto voa na campina verde
De anuns luctuoso bando; nem os trillos
Das andorinhas interrompe a nota.
Que a jurity suspira. — As outras folgam
Pelo arraial dispersas; vão-se á terra
Arrancar as raizes nutritivas,
E fazem os preparos do banquete
A que hão de vir mais tarde os destemidos
Senhores do arco, alegres vencedores
De quanto vive na agua e na floresta.
Da captiva nenhuma inquire as maguas.
Comtudo, algumas vezes, curiosas
Virgens lhe dizem, apiedando o gesto:
— «Pois que á taba voltaste, em que teus olhos
Primeiro viram luz, que magua funda
Lhes distilla tão longo e amargo pranto,
Amargo mais do que esse que não busca
Recatado silêncio?» — E ás doces vozes
A christã desterrada assim responde:
— «Potyra é como aquella flor que chora
Lagrymas de alvo leite, se do galho

Mão cruel a cortou. Oh! não permitta
O ceu que ímpia fortuna vos separe
Daquelle que escolherdes. Dor é essa
Maior que um pobre coração de espôsa.
Esperanças... Deixei-as nessas aguas
Que me trouxeram, complices do crime,
A' taba de Tupan, não allumiada
Da palavra celeste. Algumas vezes,
Raras, alveja em minha noite escura
Não sei que tibia aurora, e penso: Acaso
O sol que vem me guarda um raio amigo,
Que hade accender nestes cansados olhos
Ventura que ja foi. As azas colhe
Guanumby, e o aguçado bico embebe
No tronco, onde repousa adormecido
Até que volte uma estação de flores.[5]
Ventura imita o guanumby dos campos:
Accordará co'as flores de outros dias.
Doce illusão que rapido se escoa,
Gomo o pingo de orvalho mal fechado
Numa folha que o vento agita e entorna.»
E as virgens dizem, apiedando o gesto:
— «Potyra é como aquella flor que chora
«Lagrymas de alvo leite, se do galho
«Mão cruel a cortou!»


X


               Era chegado
O fatal prazo, o desenlace triste.
Tudo morre, — a tristeza como o gozo;
Rosas de amor ou lyrios de saudade,
Tarde ou cedo os esfolha a mão do tempo.
Costeando as longas praias, ou transpondo
Extensos valles e montanhas, correm
Mensageiros que ás tabas mais vizinhas
Vão convidar á festa as gentes todas.
Era a festa da morte. Indio guerreiro,
Trez luas ha captivo, o instante aguarda

Em que ás mãos de inimigos vencedores,
Caia expirante, e os vinculos rompendo
Da vida, a alma remonte além dos Andes.
Corre de boca em boca e de echo em echo
A alegre nova. Vem descendo os montes,
Ou abicando ás povoadas praias
Gente da raça illustre. A onda immensa
Pelo arraial se estende pressurosa.
De quantas cores natureza fertil
Tinge as proprias feições, copiam elles
Engraçadas, vistosas louçanias.
Varios na edade são, varios no aspeito,
Todos eguaes e irmãos no herdado brio.
Dado o amplexo de amigo, acompanhado
De suspiros e pesames sinceros
Pelas fadigas da viagem longa,
Rompem ruidosas dansas. Ao tamoyo
Deu o Ibake os segredos da poesia;
Cantos festivos, moduladas vozes,
Enchem os ares, celebrando a festa
Do sacrificio proximo. Ah! não cubra
Veu de nojo ou tristeza o rosto aos filhos
Destes polidos tempos! Rudes eram
Aquelles homens de asperos costumes,
Que ante o sangue de irmãos folgavam livres,

E nós, soberbos filhos de outra edade,
Que a voz falLamos da razão severa
E na luz nos banhamos do Calvario,
Que somos nós mais que elles? Raça triste
De Cains, raça eterna...



XI



                   Os cantos cessam.
Calou-se o maracá. As roucas vozes
Dos férvidos guerreiros ja reclamam
O brutal sacrifício. Ás mãos das servas
A taça do cauim passára exhausta.
Inquieto aguarda o prisioneiro a morte.
Da nação guayanaz nos rudes campos
Nasceu. Nos campos da saudosa patria
Industriosa mão não sabe ainda
Alevantar as tabas. Cova funda
Da terra, mãe commum[6], no seio aberta,

Os acolhe e protege. O chão lhes forra
A pelle do tapir; continua chamma
Lhes suppre a luz do sol. É uso antigo
Do guayanaz que chega a extrema edade,
Ou de mortal doença accomettido,
Não expirar aos olhos de outros homens;
Vivo o guardam no bojo da igaçaba,
E á fria terra o dão, como se fora
Pasto melhor (melhor!) aos frios vermes.
Do almo, doce licor que extrahe das flores
Mãe do mel, iramaya, larga cópia
Pelos robustos membros lhe coaram
Seis anciãs datribu. Rubras pennas
Na vasta fronte e nos nervosos braços
Garridamente o enfeitam. Longa e forte
A mussuranna os rins lhe cinge e aperta.
Entra na praça o funebre cortejo.
Olhar tranquillo, inda que fero, espalha
O indomado captivo. Em pe, defronte,
Grave, silencioso, ao sol mostrando
De feias cores e vistosas plumas
Singular harmonia, aguarda a víctima
O executor. Nas mãos lhe pende a enorme
Tagapema enfeitada, arma certeira,
Arma triumphal de morte e de exterminio.

Medem-se rosto a rosto os dous contrarios
C′um sorriso feroz. Confusas vozes
Enchem subito o espaço. Não lhe é dado
Ao vencido guerreiro haver a morte
Silenciosa e triste em que se passa
Da curva rede á fria sepultura.
Meigas aves que vão de um clima a outro
Abrem placidamente as azas leves,
Não tu, guerreiro, que encaraste a morte,
Tu combate! Vencido e vencedores
Derradeiros escarneos se. arremessam;
Gritos, injúrias, convulsões de raiva,
Vivo clamor accorda os longos echos
Das penedias proximas. A clava
Do executor gyrou no ar tres vezes
E de leve cahiu na grossa espadua
Do arquejante captivo. Ja na boca,
Que o desprezo e o furor n′um riso entreabrem.
Orla de espuma alveja. Avança, corre,
Estaca... Não lhe dá mais amplo espaço
A mussurana, cujas pontas tiram
Dous mancebos robustos. Nas cavernas
Do longo peito lhe murmura o odio,
Surdo, como o rumor da terra inquieta,
Pejada de vulcões. Os labios morde,

E, como derrudeira injúria, á face
Do executor lhe cospe espuma e sangue.
Não vibra o arco mais veloz o tiro,
Nem mais segura no aterrado cervo
Feroz succuriuba os nós enrosca,
Do que a pesada, enorme tagapema
A cabeça de um golpe lhe esmigalha.
Cae fulminada a víctima na terra,
E alegre o povo longamente applaude.



XII


Na voz universal perdeu-se um grito
De piedade e terror: tão fundo entrára
Naquella alma roubada á noite escura
Raio de sol christão! Potyra foge,
Pelos bosques atonita se entranha
E pára á margem de um pequeno rio;
Pousa na relva os tremulos joelhos
E nas mimosas mãos esconde o rosto.
Não de lagrymas era aquelle sítio
Ou so de doces lagrymas choradas
De olhos que amor venceu: — macia relva,

Leito de sesta a amores fugitivos.
Da verde, rara abobada de folhas
Tepida e doce a luz coava a frouxo
Do sol, que além das arvores tranquillo,
Metade da jornada ia transpondo.
Longe era ainda a hora melancholica
Em que a geremma cerra a miuda folha,
E o lume azul o pyrilampo accende.
De pe, a um velho tronco descoroado
Da copada ramagem, resto apenas,
Vestigio do tufão, a indiana moça
Languidamente encosta o esbelto corpo.
Neste ameno recesso tudo é triste,
Porque é alegre tudo. Não mui longe
Um desfolhado ipê conserva e guarda
Flores que lhe ficaram de outro estio,
Como esperança de folhagem nova,
Flores que a desventura lhe ha negado,
A ella, alma esquecida nesta terra,
Que nada espera da estação vindoura.
Olha, e de inveja o coração lhe estalla;
Pelo tronco das árvores se enroscam
Parasitas, espôsas do arvoredo,
Mais fieis não, mais venturosas que ella.
Morrer? Descanço fôra ás maguas suas,

Mais que descanço, perduravel gozo,
Que a nossa eterna patria aos infelizes
Deste destêrro, guarda alvas capellas
De não-murchandas e cheirosas flores.
Tal lhe fallava no íntimo do peito
Desespêro cruel. Alguns instantes
Pela cansada mente lhe vagaram
De voluntaria, abreviada morte
Luctuosas ideias. Mal comprehende
Esses desmaios da creatura humana
Quem não sentiu no coração rasgado
Abatimento e enojo; ou, do mais que isto.
Esse contraste immenso e irreparavel
Do amor interno e a solidão da vida.
Rápido espaço foi. Prompto lhe volve
Doce resignação, christã virtude,
Que desafia e que assoberba os males.
As debeis mãos levanta. Ja dos labios
Sólta nas azas de oração singella
Lástimas suas... Na folhagem sêcca
Ouve de cautos pes rumor sumido
Volve a cabeça...



XIII



                    Trêmulo, calado,
Anagê crava n′ella os olhos turvos
Dos vapores da festa. As mãos inermes
Lhe pendem; mas o peito — ó misera! — esse,
Esse de mal contido amor transborda.
Longo instante, passou. Alfim: «Deixaste
A festa nossa (o barbaro murmura);
Mysteriosa vieste. Dos guerreiros
Nenhum te viu; mas eu senti teus passos,
E vim contigo ao ermo. Ave mesquinha,
Inutil foges; gavião te espreita,[7]

Minha te fez Tupan.» Em pe, sorrindo
Escutava Potyra a voz severa
De Anagê. Breve espaço abria entre ambos
Alcatifado chão. A fatal hora
Chegára alfim? Não o prescruta a moça;
Tudo acceita das mãos do seu destino, -
Tudo, excepto... No proximo arvoredo
Ouve de uma ave o pio melancholico;
Era a voz de seu pae? a voz do espôso?
De ambos talvez. No ânimo da escrava
Restos havia d′essa crença antiga,
Antiga e sempre nova: o peito humano
Raro de obscuros elos se liberta.



XIV



— «Nasceste para ser senhora e dona:
Anagê não te veda a liberdade;
Quebra tu mesma os nós do captiveiro.
Faze-te espôsa. Vem coroar meus dias;
Vem, tudo esqueço. A fronte do guerreiro,
Adornada por ti, sera mais nobre;
Mais forte o braço em que pousar teu rosto.
Sou menos bello que esse espôso ausente?
Rudes feições compensa amor sobejo.
Vem; ser-me-has companheira nos combates,
E, se inimiga frecha entrar meu seio,

Morrerei a teus pes. Tens medo aos padres?
Outro destino escolhe. Cauteloso,
Tece o japú nos elevados ramos
Das elevadas árvores o ninho,
Onde o inimigo lhe não roube a prole.
Ninho ha na serra ao nosso amor propício;
Viveremos alli. Troveje em baixo
A inubia convidando á guerra os povos;
Leva de arcos transforme estas aldêas
Em campos de combate, — ou ja dispersas
As fugitivas tribus vão buscando
Longes sertões para chorar seus males,
Viveremos alli. Talvez um dia
Quando eu passar á mysteriosa estância
Das delícias eternas, me pergunte
Meu velho pai: — «Teu arco de guerreiro
Em que deserta praia o abandonaste?»
Salvar-me-ha teu amor do eterno pêjo.»



XV



Doce era a voz e triste. Rasos d′água
Os olhos. Foi desmaio de tristeza
Que o gesto dissipou da esquiva moça.
Volve ao Tamoyo vingativa ideia.
— «Minha (diz elle) ou morres!» Estremece
Potyra, como quando a brisa passa
Ao de leve na folha da palmeira,
E logo fria ao barbaro responde:
— «Jaz esquecida em nossas velhas tabas
O respeito da espôsa? Acaso é digna
Do sangue do Tamojo ésta ameaça?

Que desvalia aos olhos teus me coube,
Se a outro me ligaram natureza,
Religião, destino? A liberdade
Nas tuas mãos depuz; com ella a vida.
É tudo, quasi tudo. Honra de espôsa,
Oh! essa deves respeital-a! Vai-te!
Ceva teu odio nas sangrentas carnes
Do prostrado captivo. Aqui chorando,
Na soidão d′estes bosques mal fechados,
A's maviosas brisas meus suspiros
Entregarei; leval-os-hão nas azas
La onde geme solitario espôso.
Vai-te!» E as mimosas mãos colhendo ao rosto,
Alçou a Deus o pensamento amante,
Como a scentelha viva que a fogueira
Extincta aos ares sobe. Immovel, muda,
Longo tempo ficou. Diante d′ella,
Como ella immovel, o tamoyo estava.
Amor, odio, ciume, orgulho, pena,
Oppostos sentimentos se combatem
No attribulado peito. Generoso
Era, mas não domado amor lhe dava
Inspiração de crimes. Não mais prompto
Cae sobre a triste corça fugitiva
Jaguar de longa fome esporeado,

Do que elle as mãos lançou ao collo e á fronte
Da misera Potyra. Ai! não, não diga
A minha voz o lamentoso instante
Em que ella, ao seu algoz volvendo anciosa
Turvos olhos: «Perdoo-te!» murmura,
Os labios cerra e immaculada expira!



XVI



Estro maior teu nome obscuro cante,
Moça christã das solidões antigas,
E eterno o cinja de virentes flores,
Que as mereces. De não sabido bardo
Estes gemidos são[8]. Languidas brisas
No taquaral á noite sussurrando,
Ou enrugando o molle dorso ás vagas,
Não tem a voz com que domina os echos
Despenhada cachoeira. São, comtudo,

Mas que debeis e tristes, no concerto
Da orchestra universal cabidas notas.
Alveja a nebulosa entre as estrêllas,
E abre ao pe do rosal a flor da murta.



  1.     Simão de Vasconcellos não declara o nome da india, cuja acção refere em sua Chronica.
        Achei que não foi o caso desta, tamoya o unico em que tão galhardamente se manifestou a fidelidade conjugal e christã.
        O padre Anchieta, na carta escripta ao padre-mestre Laynez, a 16 de Abril de 1563, menciona o exemplo de uma india, mulher de um colono, a qual, depois de lh′o matarem os indios, cahiu em poder destes, cujo Principal a quiz violentar. Ella. resistiu e desapareceu. Os indios fizeram correr a voz de que se matára; Anchieta suppõe que elles mesmos lhe tiraram a vida. Caso analogo é referido pelo padre João Daniel (Thesouro descoberto no Amazonas, p. 2ª, cap. III); essa chamava-se Esperança e era da aldêa de Cabu.
  2.     A villa de S. Vicente.
  3.     Tinham os indios a religião monotheista que a tradicção lhes attribue? Nega-o positivamente o Sr. Dr. Couto de Magalhães em seu excellente estudo acerca dos selvagens, asseverando nunca ter encontrado a palavra Tupan nas tribus que frequentou, e ser inadmissivel a ideia de tal deus, no estado rudimentario dos nossos aborigenes.
        O Sr. Dr. Magalhães restitue aos selvagens a theogonia verdadeira. Não integralmente, mas so em relação ao sol e á lua (Coaracy e Jacy), acho noticia della no Thesouro do padre João Daniel (citado na nota A); e o que então faziam os indios, quando apparecia a lua nova, me serviu á composição que vae incluída neste livro (pag. 155).
        Sem embargo das razões allegadas pelo Sr. Dr. Magalhães, que todas são de incontestavel procedencia, conservei Tupan nos versos que ora dou a lume; fil-o por ir com as tradicções litterarias que-achei, tradicções que nada valem no terreno da investigação scientifica, mas que tem por si o serem acceitas e haverem adquirido um como direito de cidade.
  4.     É ocioso explicar em notas o sentido desta palavra e de outras, como pocema, mussurana, tangapema, kanitar, com as quaestodo o leitor brasileiro está ja familiarisado, graças ao uso que dellas teem feito poetas e prosadores. É também desnecessario fundamentar com trechos das chronicas a scena do sacrifício do prisioneiro, na estancia XI; são cousas comesinhas.
  5. Simão de Vasconcellos (Not. do Bras. liv. 2.°) citando Maregraff e outros autores, conta, como verdadeira, a fabula a que alludem estes versos. Aproveitou-se d′ali uma comparação poetica: nada mais.
  6. Veja G. Dias, Ult. cant. pag. 159:
                    Quando o meu corpo
    Á terra, mãe commum...
  7.     Anagê, na lingua geral, quer dizer gavião.
  8.     Não sabido, ainda hoje o digo sem armar à contestação dos benévolos. Mas havia uma razão mais para escrever aquellas palavras quando compuz este pequeno poema; destinava-o á publicação anonyma, o que se verificou nas columnas do Jornal do Commercio em Junho e Agosto de 1870, tendo por assignatura um simples Y.