IV.

 

Annunciára-se Thadeu de Albuquerque na portaria de Monchique, ao dia seguinte dos anteriores successos.

Sua prima, primeira senhora que lhe sahiu ao locutorio, vinha enxugando lagrimas de alegria.

— Não cuide que eu choro de afflicta, meu primo — disse ella — O nosso anjo, se Deus quizer, pode salvar-se. Logo de manhã a vi a passear por seu pé nos dormitorios. Que differença de semblante ella tem hoje! Isto, meu primo, é milagre de duas santas, que temos inteiras na claustra, e com as quaes algumas perfeitas creaturas d’esta casa se apegaram. Se as melhoras continuarem assim, temos Thereza; o ceu consente que esteja entre nós aquelle anjo mais alguns annos...

— Muito folgo com o que me diz, minha boa prima — atalhou o fidalgo — A minha resolução é leval-a já para Vizeu, e lá se restabelecerá com os ares patrios, que são muito mais sadios que os do Porto.

— É ainda cêdo para tão longa e custosa jornada, meu primo. Não vá o senhor cuidar que ella está capaz de se metter ao caminho. Lembre-se que ainda hontem pensamos em encontral-a hoje morta. Deixe-a estar mais alguns mezes; e depois não digo que a não leve; mas por em quanto não consinto semelhante imprudencia.

— Maior imprudencia — replicou o velho — é conserval-a no Porto, onde a estas horas deve estar o malvado matador de meu sobrinho. Talvez não saiba a prima?... Pois é verdade: o patife do corregedor sahiu a campo em defeza d’elle, e conseguiu que o tribunal da Relação lhe aceitasse a appellação da sentença, passado o prazo da lei; e, não contente com isto, fez que o filho fosse removido para as cadêas do Porto. Eu agora trabalho para que a sentença seja confirmada, e espero conseguil-o; mas, em quanto o assassino aqui estiver, não quero que minha filha esteja no Porto.

— O primo é pae, e eu sou apenas uma parenta — -disse a abbadessa — cumpra-se a sua vontade. Quer vêr a menina, não é assim?

— Quero, se é possível.

— Pois bem, em quanto eu vou chamal-a, queira entrar na primeira grade á sua mão direita, que Thereza lá vai ter.

Avisada Thereza de que seu pae a esperava, instantaneamente a côr sadia, que alegrava as senhoras religiosas, se demudou na lividez costumada. Quiz a tia, vendo-a assim, que ella não sahisse do seu quarto, e encarregava-se de espaçar a visita do pae.

— Tem de ser — disse Thereza — Eu vou, minha tia.

O pae, ao vêl-a, estremeceu e enfiou. Esperava mudança, mas não tamanha. Pensou que a não conheceria, sem o prevenirem de que ia vêr sua filha.

— Como eu te encontro, Thereza! — exclamou elle commovido — Por que me não disseste ha mais tempo o teu estado?

Thereza sorriu-se, e disse:

— Eu não estou tão mal como as minhas amigas imaginam.

— Terás tu forças para ir comigo para Vizeu?

— Não, meu pae; não tenho mesmo forças para lhe dizer em poucas palavras que não torno a Vizeu.

— Porque não?! Se a tua saude depender d’isso!...

— A minha saude depende do contrario. Aqui viverei ou morrerei.

— Não é tanto assim, Thereza — replicou Thadeu com simulada brandura — Se eu entender que estes ares são nocivos á tua saude, has de ir, porque é obrigação minha conduzir e corrigir a tua má sina.

— Está corrigida, meu pae. A morte emenda todos os erros da vida.

— Bem sei: mas eu quero-te viva, e portanto recobra forças para o caminho. Logo que tiveres meio dia de jornada, verás como a saude volta como por milagre.

— Não vou, meu pae.

— Não vaes?! — exclamou irritado o velho, lançando ás grades as mãos trementes de ira.

— Separam-nos esses ferros a que meu pae se encosta, e para sempre nos separam.

— E as leis? cuidas tu que eu não tenho direitos legitimos para te obrigar a sahir do convento? Não sabes que tens apenas dezoito annos?

— Sei que tenho dezoito annos; as leis não sei quaes são, nem me incommoda a minha ignorancia. Se póde ser que mão violenta venha arrancar-me d’aqui, convença-se meu pae de que essa mão ha de encontrar um cadaver. Depois o que quizerem de mim. Em quanto, porém, eu podér dizer que não vou, juro-lhe que não vou, meu pae.

— Sei o que é! — bramiu o velho — Já sabes que o assassino está no Porto?

— Sei, sim, senhor.

— Ainda o dizes sem vergonha, nem horror de ti mesma! Ainda...

— Meu pae — interrompeu Thereza — não posso continuar a ouvil-o, porque me sinto mal. Dê-me licença... e vingue-se como podér. A minha gloria n’este longo martyrio seria uma forca levantada a par da do assassino.

Thereza sahiu da grade, deu alguns passos na direcção da sua cella, e encostou-se esvaída á parede. Correram a amparal-a sua tia e criada; mas ella, afastando-as suavemente de si, murmurou:

— Não é preciso... Estou boa... Estes golpes dão vida, minha tia.

E caminhou sósinha a passos vacillantes.

Thadeu batia á porta do mosteiro com irrisorio enfurecimento pancadas, umas após outras, com grande mêdo da porteira e outras madres, espantadas do insolito desproposito.

— Que é isso, primo? — disse a prelada com severidade.

— Quero cá fóra Thereza.

— Como fóra? Quem ha de lançal-a fóra?!

— A senhora, que não póde aqui reter uma filha contra a vontade de seu pae.

— Isso assim é; mas tenha prudencia, primo.

— Não ha prudencia, nem meia prudencia. Quero minha filha cá fóra.

— Pois ella não quer ir?

— Não, senhora.

— Então espere que por bons modos a convençamos a sahir, porque não havemos trazer-lh’a a rastos.

— Eu vou buscal-a, sendo preciso — redarguiu em crescente furia. — Abram-me estas portas, que eu a trarei!

— Estas portas não se abrem assim, meu primo, sem licença superior. A Regra do mosteiro não póde ser quebrantada para servir uma paixão rancorosa. Tranquillise-se, senhor! Vá descançar d’esse frenesi, e venha n’outra hora combinar comigo o que fôr digno de todos nós.

— Tenho entendido! — exclamou o velho, gesticulando contra o ralo do locutorio — Conspiram todas contra mim! Ora descancem, que eu lhes darei uma boa lição. Fique a senhora abbadessa sabendo que eu não quero que minha filha receba mais cartas do matador, percebeu?

— Eu creio que Thereza nunca recebeu cartas de matadores, nem supponho que as receba d’ora em diante.

— Não sei se sabe, nem senão. Eu vigiarei o convento. A criada, que está com ella, ponham-na fóra, percebeu?

— Porquê? — redarguiu a prelada com enfado.

— Porque a encarreguei de me avisar de tudo, e ella nada me tem contado.

— Se não tinha que lhe dizer, senhor!

— Não me conte historias, prima! A criada quero vêl-a sahir do convento, e já!

— Eu não lhe posso fazer a vontade, porque não faço injustiças. Se v. s.^a quizer que sua filha tenha outra criada, mande-lh’a; mas a que ella tem, logo que deixe de a servir, ha muitas senhoras n’esta casa que a desejam, e ella mesma deseja aqui ficar.

— Tenho entendido! — -bradou elle — querem-me matar! Pois não matam; primeiro ha de o diabo dar um estoiro!

Thadeu de Albuquerque sahiu em corcovos do atrio do mosteiro. Era hedionda aquella raiva que lhe contrahia as faces incorreadas, revendo suor e sangue aos olhos acovados.

Apresentou-se ao intendente da policia, pedindo providencias para que se lhe entregasse sua filha. O intendente respondeu que não solicitava competentemente taes providencias. Instou para que o carcereiro da cadêa não deixasse sahir alguma carta de um assassino, vindo da comarca de Vizeu, por nome Simão Botelho. O intendente disse que não podia, sem motivos concernentes a devassas, obstar a que o prêso escrevesse a quem quer que fosse.

Reduplicada a furia, foi d’ali ao corregedor do Porto, com os mesmos requerimentos em tom arrogante. O corregedor, particular amigo de Domingos Botelho, despediu com enfado o importuno, dizendo-lhe que a velhice sem juizo era coisa tão de riso como de lastima. Esteve então a pique de perder-se a cabeça de Thadeu de Albuquerque. Andava e desandava as ruas do Porto, sem atinar com uma sahida digna da sua prosapia e vingança. No dia seguinte bateu á porta d’alguns desembargadores, e achava-os mais inclinados á clemencia, que á justiça, a respeito de Simão Botelho. Um d’elles, amigo de infancia de D. Rita Preciosa, e implorado por ella, fallou assim ao sanhudo fidalgo:

— Em pouco está o ser homicida, senhor Albuquerque. Quantas mortes teria v. s.^a hoje feito, se alguns adversarios se oppozessem á sua cólera? Esse infeliz moço, contra quem o senhor solicita desvariadas violencias, conserva a honra na altura da sua immensa desgraça. Abandonou-o o pae, deixando-o condemnar á forca; e elle da sua extrema degradação nunca fez sahir um grito supplicante de misericordia. Um estranho lhe esmolou a subsistencia de oito mezes de carcere, e elle aceitou a esmola, que era honra para si e para quem lh’a dava. Hoje fui eu vêr esse desgraçado filho de uma senhora que conheci no paço, sentada ao lado dos reis. Achei-o vestido de baetão e panno pedrez. Perguntei-lhe se assim estava desprovido de fato. Respondeu-me que se vestira á proporção dos seus meios, e que devia á caridade d’um ferrador aquellas calças e jaqueta. Repliquei-lhe eu que escrevesse a seu pae para o vestir decentemente. Disse-me que não pedia nada a quem consentiu que os delictos de seu coração e da sua dignidade e do pundonor do seu nome fossem expiados n’um patibulo. Ha grandeza n’este homem de dezoito annos, senhor Albuquerque. Se v. s.^a tivesse consentido que sua filha amasse Simão Botelho Castello-Branco, teria poupado a vida ao homem sem honra que se lhe atravessou com insultos e offensas corporaes de tal affronta, que deshonrado ficaria Simão se as não repellisse como homem de alma e brios. Se v. s.^a se não tivesse opposto ás honestissimas e innocentes affeições de sua filha, a justiça não teria mandado arvorar uma forca, nem a vida de seu sobrinho teria sido immolada aos seus caprichos de mau pae. E se sua filha casasse com o filho do corregedor de Vizeu, pensa acaso v. s.^a que os seus brasões soffriam desdouro? Não sei de que seculo data a nobreza do senhor Thadeu de Albuquerque; mas do brasão de D. Rita Thereza Margarida Preciosa Caldeirão Castello-Branco posso dar-lhe informações sobre as paginas das mais veridicas e illustres genealogias do reino. Por parte de seu pae, Simão Botelho tem do melhor sangue de Traz-os-Montes, e não se temerá de entrar em competencias com o dos Albuquerques de Vizeu, que não é de certo o dos Albuquerques terriveis de que resa Luiz de Camões...

Offendido até ao amago pela derradeira ironia, Thadeu ergueu-se de impeto, tomou o chapéo e a enorme bengala de castão d’ouro, e fez a cortezia da despedida.

— São amargas as verdades, não é assim? — disse-lhe, sorrindo, o desembargador Mourão Mosqueira.

— V. ex.^a lá sabe o que diz, e eu cá sei no que hei de ficar — respondeu com tom ironico o fidalgo, alanceado na sua honra, e na dos seus quinze avós.

O desembargador retorquiu:

— Fique no que quizer; mas vá na certeza, se isso lhe serve d’alguma coisa, que Simão Botelho não vai á forca.

— Veremos... — resmoneou o velho.