Na mesma quarta-feira santa, 27 de Março, já quase de noite, chegou à cidade a companhia de S. Bento e Vale de Linhares, comandada pelo sargento Álvaro Martins da Maia. Chegou também a da Ribeirinha, de que era capitão Manuel Jacques de Oliveira, e ambas incorporadas marcharam em reforço da gente que andava ocupada na factura das trincheiras à boca das ruas, no quartel da Boa Nova, para impedir que o inimigo investisse a cidade. O que vendo o governador não cessava de a bombardear com muita e mui grossa artilharia, assim naquela tarde como em toda a noite de quinta-feira santa; e pela manhã destacou duzentos homens bem armados, com o fim de impedir a fortificação.

Já nesse tempo havia chegado o capitão-mor da Praia, Francisco de Ornelas, com cinco companhias excedentes a oitocentos soldados de peleja, comandados pelos capitães Melchior Machado de Lemos, Baltasar Mendes de Vasconcelos, Manuel do Canto Teixeira, Manuel do Canto Vieira, e Manuel de Ornelas da Câmara. Haviam também chegado as duas companhias da vila de S. Sebastião, de que eram capitães Henrique Fernandes Pacheco e João Pacheco Machado; assim como a do Porto Judeu, com seu capitão Gaspar Gonçalves Vieira. No entretanto chegaram mais seis companhias do termo da cidade, a saber: de Santa Bárbara onde serviam de capitães Pedro Lourenço Machado, Francisco João e Simão Fernandes Rodovalho; e a de S. Bartolomeu, de que era capitão Bartolomeu Gonçalves Rodovalho. Todas estas companhias chegaram com os referidos capitães e mais cabos, boas armas e munições; e assim preparados e postos em ordem investiram logo às trincheiras com tal ímpeto e valor que mataram vários castelhanos, achados ainda no conflito, e a quantos apareceram sobre a muralha do castelo derribaram os insignes atiradores da Praia, em quanto sobre eles e sobre a cidade não cessava de chover artilharia, com a qual pretendiam os castelhanos derribar os melhores edifícios e os moinhos situados junto do pequeno castelo do marquês, o qual também queriam arrasar, para dele se não servirem os nossos.

Os lugares opostos onde se deu este combate foram os chamados ainda hoje — Quatro Cantos — em que estava o valente capitão João de Ávila; o posto onde era o antigo colégio da Companhia de Jesus, em que pelejava o capitão Baltazar da Costa Pereira, e o lugar junto da ermida da Boa Nova, que era o mais patente ao castelo, e onde batalhava o capitão João Teixeira de Carvalho. Porém o que mais depressa decidiu este combate foi o bom sucesso com que o sobredito capitão João de Ávila disparou uma peça de artilharia; e com ela fez tal estrago nos castelhanos, que logo se retiraram com vários feridos e mortos; e dos nossos ficaram no campo seis, e quinze feridos.

Na mesma quinta-feira santa, pela manhã, foram alguns portugueses sobre a fortaleza de S. Sebastião, para a tomarem por assalto; mas o capitão que nela estava, por sobrenome Respeño, com 25 soldados do seu comando, vigorosamente defendeu a entrada; todavia, às 3 horas da tarde do mesmo dia, saiu o capitão Manuel Jacques de Oliveira, com a sua companhia da Ribeirinha, disposta em ordem, com outra gente que lá estava , e cometeu a fortaleza, dando sobre ela tal e tão repentino assalto, que logo a entraram , e feridos alguns soldados, prenderam o capitão castelhano, que não só deixara uma mina de pólvora a que não pôde lançar fogo, mas ainda encravadas as 14 peças que ali haviam, conhecendo que as não podia retirar. Alguns castelhanos fugiram pela abóbada abaixo para o mar, acolhendo-se ao castelo principal: e o capitão Manuel Jacques ficou senhor da fortaleza que rendera, e a governou por algum tempo em prémio deste serviço, até que se deu a Luiz Cardoso Machado, que a teve por mercê régia.

Logo depois foi saqueado pelos nossos soldados o quartel dos castelhanos casados, que estava à Boa Nova, e à vista do castelo, o qual com a sua artilharia o acabou de arrasar; e continuando a fúria dos soldados, saquearam também as casas de D. Pedro Ortiz, de Cristóvão de Lemos e a de João Espínola, que todos se haviam recolhido ao castelo. Não cessou o castelão D. Álvaro durante os dias da semana santa de varejar inumeráveis balas sobre a cidade, sobre a Sé Catedral, e sobre as mais igrejas, sendo por isto causa de se não celebrarem os ofícios divinos dentro delas; e no enquanto não desistiam os nossos de preparar e defender as trincheiras.

Na sexta-feira, 29 de Março, convocou-se um conselho de guerra, composto dos seguintes vogais: Sebastião Cardoso Machado, tenente do exército; António do Canto de Castro, sargento-mor do terço; Manuel de Barcelos Evangelho, sargento-mor da Praia; Francisco de Carvalhal, almirante da esquadra; João do Canto, ouvidor da cidade; e Tomé Correia da Costa, loco-tenente do donatário em toda a ilha. Neste conselho se determinaram os postos em que cada um dos capitães devia vigiar. Deliberou-se também o continuar corpo de guarda na praça, onde o capitão-mor da Praia se alojou; e dali saíam de vinte e quatro em vinte e quatro horas os destacamentos para os diferentes postos, e trincheiras que se faziam, desde o Portinho Novo à Boa Nova em volta das Hortas, e Rua de S. Pedro, até ao Fanal, onde os portugueses se achavam com os castelhanos em continuada bateria.

Além destas estâncias e novos fortins ou baluartes, haviam outros, como foi o que fez Galaor Borges da Costa junto da alfândega, lugar este bem arriscado por ter fronteiro pelo mar o grande castelo; assim mais outro fortim que se fez por cima da igreja de Santa Luzia, com três pecas, e se deu ao alcaide da cidade Bartolomeu Gomes de Oeiras, que dele fazia grande dano ao castelo. Outro fortim edificou Afonso Comes Peres no posto acima de Santa Catarina, no qual destacou 20 soldados e alguma artilharia, tudo à sua custa, e dali impedia a comunicação com a Ponta do Zimbreiro. Ainda outro baluarte fizeram os contratadores ingleses no sobredito lugar acima de Santa Luzia, e nele, afora outras peças, colocaram duas de bronze muito grandes, com que varejavam muitas balas ao castelo, com grande prejuízo dos sitiados.

Em todo este tempo tinham os portugueses na fronteira do castelo dez companhias, continuamente pelejando com os muitos que o governador tinha fora das muralhas a peito descoberto.

Assim passaram os dias da semana santa do ano de 1641, e a 31 de Março, que foi dia da Páscoa da Ressurreição, ajuntaram-se na Sé os capitães-mores e os da ordenança com a Câmara, e com toda a nobreza da cidade, comunidades dos religiosos da Companhia de Jesus, de Santo Agostinho e de S. Francisco; o cabido da Sé e mais clerezia e povo: e depois de celebrada a procissão da Ressurreição, postos novamente em ordem, saíram da mesma igreja catedral até à praça, onde pegando o capitão-mor João de Bettencourt de Vasconcelos na bandeira real, a alevantou bem alto aclamando com grandes vozes “o invicto rei D. João IV do nome”, seguindo-se insuperáveis aplausos e vivas de todas as pessoas que em grande número, e de toda a ilha, tinham concorrido para verem esta solenidade. Cantando-se depois um solene Te Deum, deu-se por findo o auto, que por mandado dos oficiais da Câmara exarou o tabelião Jorge Cardoso no livro do registo em que todos assinaram, como tudo bem se evidencia da cópia (Documento F).

O mesmo pregão se lançou em todos os lugares públicos da cidade e com feliz sucesso, porque suposto o castelo não cessasse de bombardear a cidade, não lhe fez dano considerável. A este respeito conclui Mr. de Lacled, na História de Portugal: “Diziam os portugueses que os tiros de artilharia que os castelhanos davam eram salvas em honra do festejo e cerimónia da aclamação do novo rei; e até tiveram a paciência de ajuntar as balas para se servirem delas contra os castelhanos”.

Apesar de entretidos com o cerco, festejaram os terceirenses com grandes mostras de alegria esta aclamação: no que muito se distinguiu o capitão Tomás da Costa Franco, e o tenente do terço Sebastião Cardoso Machado. Houveram no espaço de três dias luminárias e fogos artificiais de uma nova exibição, o que el-rei lhes agradeceu muito, escrevendo-lhes cartas concebidas em termos bem lisonjeiros. Já neste tempo havia el-rei Filipe enviado de Sevilha uma embarcação a dar parte ao governador D. Álvaro do que se passava em Portugal: e com ordem de conservar as ilhas dos Açores na sua obediência; para o que lhe mandava algumas munições de guerra e soldados; mas esta embarcação, sendo forçada a arribar à ilha da Madeira, caiu nas mãos dos portugueses com três outras embarcações carregadas de especiarias. Em consequência de alguns avisos que o governador mandara a Sevilha e à Corunha, como dissemos no capítulo I, determinou el-rei católico enviar-lhe prontamente um bom socorro: e recebendo as cartas da Câmara de Angra e de muitas pessoas principais da ilha, que lhe asseguravam fidelidade e obediência às suas ordens (engenhosa dissimulação para dilatar o socorro da fortaleza), julgou a propósito e sem hesitação, os devia fornecer e mesmo confiar-se daqueles que ainda supunha seus vassalos. Para isto, elegeu por comandante de três navios, que mandava com infantaria, munições e bastimentos a Manuel do Canto de Castro, que andava militando nas guerras de Castela, e que achando-se então em Madrid, se lhe fora oferecer para vir compor os tumultos da ilha, donde era natural e aparentado com as pessoas de maior reputação .

Propôs-se-lhe o negócio, e gostosamente o aceitou, vendo aberto o caminho da sua liberdade. Partiu enfim numa das três embarcações, que era uma formosa nau com piloto e capitão português. Chegou à ilha, com próspera viagem, em 9 de Abril de 1641, surgindo defronte do Porto Judeu, onde o mandaram reconhecer os oficiais da Câmara da vila de S. Sebastião, por um barco de pescaria, no qual foi o capitão Diogo Álvares Machado, o moço, de quem muito em segredo soube Manuel do Canto estar a ilha em guerra com o castelo de S. Filipe. Prevalecendo então no seu ânimo, contra todas as dúvidas, o amor da pátria , já de antemão tinha ele ordenado aos capitães das duas fragatas da sua conserva que ao largo esperassem as suas ordens: e logo que soube o estado da terra, tomando por pretexto ser-lhe o vento contrário, lançou ferro defronte do porto da freguesia do Porto Judeu, e por ali desembarcou em companhia de um religioso de S. Domingos, que vinha por capelão da nau, deixando ordem aos mais, que no dia seguinte desembarcassem, também pelo mesmo porto.

Saíram logo para a cidade o capitão André Gato Coelho, e o dito Diogo Alvares Machado com o religioso, a participar aos governadores da guerra aquele tão inesperado acontecimento e pelas seis horas da tarde chegou também Manuel do Canto de Castro, que foi recebido, e visitado de todos seus parentes e amigos, assim como dos governadores da guerra, com a maior satisfação e alegria; e este lhes deu conta de como vinham em sua conserva duas fragatas, das quais haviam dois dias, por causa dos tempos, se apartara, para que eles as mandassem vigiar; e que em Sevilha, ou na Corunha, se preparavam 300 homens para virem à ilha com um corregedor português, em uma nau que trazia por capitão D. Luiz Peres de Viveiros, irmão do governador D. Álvaro.

No dia imediato, 10 de Abril, saiu o capitão-mor Francisco de Ornelas para o lugar do Porto Judeu, onde o esperava um dos oficiais da Câmara de S. Sebastião, e com simulado aviso do capitão Manuel do Canto de Castro, desembarcaram os castelhanos, ao mesmo tempo que os prendeu o dito capitão-mor: e a bordo da nau meteu soldados portugueses, com ordem de esperarem as duas fragatas, sendo nomeado comandante dela Francisco de Carvalhal, filho de Estêvão Silveira Borges, um dos prisioneiros que se achavam no castelo.

A 11 de Abril apareceram fronteiras ao porto de Angra duas embarcações grandes, e para as reconhecer lhes mandou o capitão-mor da cidade um barco, o qual vendo serem inimigas, e sem dúvida as que esperavam, retirou ao porto; o que motivou uma grande inquietação na ilha temendo-se viessem em socorro do castelo, e a bombardeassem.

Quanto mais estas embarcações se aproximavam da costa, tanto mais se aumentavam os gritos, e alaridos do povo na cidade, o que vendo o esforçado capitão Roque de Figueiredo, sargento-mor que tinha sido na capitania da Praia , para aquietar o tumulto, se resolveu sair e acometeu uma das fragatas, que pela parte do sul vinha demandando o castelo. E com efeito, com alguns soldados, que por valentes o quiseram acompanhar, se meteu em um barco e se fez ao mar, no rumo da fragata. Ao mesmo tempo saiu o capitão Mateus de Távora Valadão com outro barco pela costa adiante a chamar a nau, de que era comandante Francisco de Carvalhal, que andava nos mares da Praia, e que não tinha avistado as fragatas; porém, antes que lhe chegasse este aviso, descobriu-as; e conhecendo serem as mesmas de que se apartara, largou sobre elas, e o mesmo fez a fragata que lhe estava mais próxima, e que ia demandando a embarcação do capitão Figueiredo. Apenas chegaram à fala, mandou-lhe Francisco de Carvalhal, comandante da nau, que da parte de el-rei D. João IV amainasse e se rendesse: e demorando-se ela em obedecer, e soltando as velas para se retirar, lhe deu a nau uma descarga cerrada, que além de outros danos, lhe matou dois soldados, e levou um braço ao piloto que mandava ao leme. Levou também uma perna de um castelhano, que pouco tempo depois faleceu em terra.

Então o capitão Roque do Figueiredo abalroou a fragata com o seu barco, e sustendo em uma mão a espada, e em outra a rodela, saltou sobre o convés, gritando aos defensores que se rendessem; e que não o fazendo, nenhum deles ficaria ali com vida . A esta voz, sem perder tempo, baquearam os castelhanos as armas: e o capitão da fragata lhe entregou as chaves dos paióis da pólvora, e mais dispensas, ficando o mesmo capitão Figueiredo senhor desta embarcação.

A outra fragata que pela parte de oeste vinha demandando o castelo, por onde chamam o Zimbreiro, não viu o que se passava, por estar encoberta com a montanha, nem pôde lançar gente por ali, como intentava, por ser rebatida com muita e grossa artilharia do reduto feito pelo hebreu Afonso Gomes Peres, e amarou-se logo. Todavia apenas descobriu a outra fragata e a nau velejou para elas, julgando-as ainda por amigas; e indo reciprocamente procurar-se todas, deram-lhe as duas lugar pelo meio, ao mesmo tempo que abatendo as portinholas, lhe intimaram se entregasse. Ao que ela obedeceu sem disparar uma só bala e abatendo as velas se entregou, ficando por seu capitão Mateus de Távora, por ter acudido ali com o seu barco artilhado. Desta forma, apreendidas a nau e as duas fragatas, ficaram guarnecidas de soldados portugueses, servindo de armada, e para seu capitão-mor Francisco de Carvalhal.

Desgraça foi esta que viram os sitiados com grande mágoa, e o castelão D. Álvaro a sentiu tanto mais, quanto esperava punir os portugueses pela sua rebelião. Ainda ele experimentou outra perda bem considerável, e foi: a fragata que lhe enviou o infante de Espanha D. Fernando, fez-se na volta, quando soube que os terceirenses sitiavam, e punham no maior aperto o castelo S. Filipe .

Foram os soldados castelhanos postos na cadeia da cidade, e as fragatas providas de gente portuguesa; e as cartas que vinham para o governador foram entregues aos capitães da guerra, que as leram: e de nada soube, por ora, o mesmo governador .

Acharam-se também as cartas que El-Rei Católico escrevia aos magistrados, Câmaras, e capitães-mores da ilha, dando-lhes parte de ser aclamado rei de Portugal D. João, duque de Bragança, a quem ainda ele chamava seu vassalo. Exortava a que eles o seguissem com amor e fidelidade, e fizessem que os moradores da ilha se conservassem na obediência, que lhe deviam, como seu rei e senhor natural.

Anunciava-lhes outrossim que tratava de meter suas armas em Portugal, para castigar a ambição e atrevimento dos traidores. Destas cartas somente encontrei a que vinha dirigida ao capitão-mor Francisco de Ornelas, em data de 30 de Março de 1641, cuja cópia vai no Documento E. Por ela vemos perfeitamente que El-Rei Católico ignorava ainda achar-se o castelo sitiado. Destas correspondências mandaram os capitães-mores cópia a el-rei D. João IV, que muito prazer teve em as ler: e sobre o seu conteúdo escreveu copiosamente uma carta a qual hei-de transcrever no competente lugar.