Ano de 1771

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Por alvará de 23 de Fevereiro passaram as ilhas dos Açores à categoria de província de Portugal: por “alguns anos firam tratadas como tais, depois passaram, pela degradação arbitrária dos secretários de estado, a serem indicadas pelo infame título de colónias em todos os diplomas” (Corografia Açórica, III). “O governo político, (continua o mesmo autor) pelos anos de 1796 a 1800, tomou o carácter puramente militar; todas as ordens, todas as deliberações, eram dirigidas em ofícios marciais. A mesma secretaria do governo era denominada Secretaria da Guerra! Finalmente estes povos, agrícolas e pacíficos, foram então governados, como um exército em campanha!”

Determinou-se outrossim no mesmo alvará, que nestas ilhas fosse livre a exportação dos cereais para o reino; mas que no caso de necessidade, para sustentação dos povos e sementeiras, poderiam as Câmaras reservar a terça parte. Por esta lei se lhes incumbiu este cuidado, fazendo-as restritamente obrigadas pelos abusos neste género de administração, conforme o preceito da Ordenação L.º 5.º t.º 76, provisão de 15 de Novembro de 1687, carta régia do 10 de Novembro de 1709, e outras. Resolveram-se as dúvidas que haviam na vila de S. Sebastião a respeito da jurisdição extensiva do juiz de fora da cidade de Angra a esta vila, sobre o que se passou o alvará (— Documento H —) determinando-se mui positivamente ao corregedor, em 12 de Outubro, o fizesse executar, e desde então ficou aquele juiz despachando os feitos definitivamente, e só quando ele se achava impedido, os despachava o vereador mais velho, por assessor letrado. Pelo que no dia 22 de Dezembro apresentou o juiz de fora José Street Arriaga Brum outro alvará pelo qual lhe ficava anexa esta vila; então os vereadores o houveram por apresentado, mandando se registasse o mesmo alvará. Contudo achamos que até o ano de 1806 os juízes de fora tiveram na maior sujeição este auditório, não consentindo corressem ante os juízes ordinários os processos de maior importância, antes é certo, que apenas se autuavam, os avocavam a si, pelo direito da força; em que se constituíram, sem excepção alguma, até ao ano de 1785.

De muito tempo a esta parte girava nos Açores grande quantidade de moeda vil, uma por mui antiga e cerceada, outra por ser fabricada de novo, de forma que era uma inquietação interminável nos mercados públicos com que se desafiavam os povos, passando muitas vezes a efeitos graves uns contra os outros. Para ocorrer a isto fez o capitão-general proceder a devassa, dando parte ao governo, acusando a necessidade de dinheiro português, por ser mui pouco o que nas ilhas girava, e ser espanhol quase todo, que seriam, dizia ele, uns trinta mil cruzados.

Tudo isto fez a requerimento dos homens de negócios como se lê no acórdão de 27 de Setembro, ao qual assistiram o juiz de fora, cabido da sé, os prelados das religiões franciscana e graciana, nobreza e povo, adoptando finalmente a providência interina de circular em toda a província, em atenção à necessidade pública, todo o dinheiro que se encontrasse não ser adulterino, ou de falso metal; andava então espalhado nesta ilha imensidade de dinheiro cerceado e de outro que se tinha notoriamente por fabricado nela ou metido na do Faial pelos ingleses e contrabandistas.

E reconhecendo a falta de ministros das mesmas ilhas, quando nesta se ajuntavam para as causas da junta criminal, propôs que devia haver um juiz privativo do crime e órfãos, pois assim se evitariam faltas irremediáveis, por mui diversos motivos. Lembrava que este novo juiz devia votar e que desta forma se evitava o muito trabalho do juiz de fora, tão sobrecarregado com o cível e crime, que era quase impossível o poder satisfazer a tudo.

No entretanto inquietava o regimento, por causa de uma moléstia contínua de tísica e escrófulas, que já se tinha por contagiosa, pelo que assentou enviar para o reino parte dos soldados, a ver se com os ares pátrios obtinham saúde, e dando a cada um 4$400 réis os despediu do serviço. Procedendo no intento de fortificar a ilha pediu ao governo 12 peças de campanha, que prontamente lhe foram enviadas, com seus aprestos.

Teve grandes dissabores com o corregedor da ilha de S. Miguel, por se arrogar o título de intendente da polícia, que correspondia ao de general da Corte.

Ano de 1772

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Passando o bispo desta diocese D. António Caetano da Rocha a visitar a ilha de S. Miguel, para sob este especioso pretexto se livrar das inquietações que andavam em Angra, lá se demorou por espaço de seis anos; em cujo tempo a sua catedral sofreu muito, por deixar de ter aquela consideração, que lhe era própria, e não poderem os capitulares prover imediatamente às faltas mais urgentes, sendo uma deitas o concurso das dignidades, conesias e mais benefícios, que o bispo mandava fazer ante si; o que sendo por extremo de grande prejuízo inconveniência pública, deu lugar ao cabido se queixar, resultando da justa queixa o mandar el-rei, em 11 de Abril de 1772, que o bispo se recolhesse a Angra, para se pôr termo a tamanho vexame. O que tudo se vê do — Documento I —.

Porém, agravando-se as suas enfermidades, ou por esta notícia, ou pela força do mal que padecia, faleceu na mesma ilha a 21 de Junho imediato, e foi sepultado na igreja principal de Ponta Delgada. Parece que visitara algumas paróquias nestas ilhas, e que o seu governo foi pacífico. Era assaz jocoso e de boa presença.

Mui satisfeitos se achavam os povos destas ilhas, por lhes ter el-rei enviado para os reger o primeiro capitão-general D. Antão de Almada, cujo governo se estendera com mãos assaz benéficas sobre todos os ramos da pública administração. Sabendo a Câmara de Angra que ele solicitava retirar-se ao reino, assim para descansar da lida governativa em que andava, como para acudir aos negócios de sua grande casa, tratou de congregar a maior parte das pessoas nobres e da governança da cidade, os prelados das religiões, e todos os mais cidadãos que espontaneamente quiseram concorrer e com eles todos agradecer a el-rei, em termos da maior submissão e respeito, o favor que lhes fizera; dando ao mesmo tempo estes nobres terceirenses um público testemunho ao conde, do quanto prezavam suas virtudes e merecimentos pela justiça que tão imparcialmente lhes fazia: o que se efectuou no dia 6 de Maio, como se vê do auto que vai sob a letra — Documento J —.

Registou-se nos livros das Câmaras destas ilhas e mais repartições convenientes, a lei e regimento das escolas de ensino primário e secundário, datada a 6 de Novembro deste ano; e por ora nada mais achámos se fizesse sobre este mui grave assunto.

Na mesma data se expediu alvará para o concurso às dignidades da Sé, às prebendas e a várias igrejas e benefícios — Documento K—.

Em observância das ordens recebidas pelo corregedor da comarca, Henrique José da Silva Quintanilha, no primeiro de Março de 1770, como se disse, cuidou ele de fazer os sequestros nos bens pertencentes aos corpos de mão morta seculares e eclesiásticos, excepto nos das irmandades e confrarias do Santíssimo Sacramento, que vinham isentos; porém não achou menor dificuldade a vencer do que tinham encontrado os corregedores do reino e da ilha da Madeira.

A longitude dos caminhos, os embaraços da estação, e a repugnância dos corpos administrativos e comunidades, em lhe apresentarem os títulos, tombos, licenças, e mais papéis por onde possuíam os bens, foi uma luta quase absolutamente impossível de vencer, e que lhe deu em extremo bastante que sentir, por se reputarem os administradores como abismados em uma horrorosa tempestade, donde não podiam surgir. Entendiam que o fim de tudo poderia ser o de perderem seus bens, e eles ficarem reduzidos a uma extrema pobreza; mas certamente que ainda não era chegada essa reforma, tão respeitada e temida, que temos visto em nossos dias! Neste conflito levantou-se por toda a parte um clamor público; atulharam-se os cartórios de reclamações, e grossas demandas, autos e protestos, com que poderíamos dizer gemeu o foro, e o mesmo corregedor vacilou na execução das ordens, temendo por si.

Já nesse tempo muitas corporações seculares e eclesiásticas tinham vendido parte de seus bens, à condição de pacto e retro, e se lhes pagava o juro de cinco por cento sobre o preço da venda; outras haviam aforado as terras, e alienado o domínio útil por certas quantias; porém o corregedor entendeu que tudo isto era nulo: e tomando assento em 16 de Dezembro, com os devidos vogais da primeira junta de 30 de Junho de 1769, declarou se deviam rescindir semelhantes contractos, para não sortirem efeito algum, procedendo novamente a sequestro em todos aqueles bens; e que se fizessem novos instrumentos de aforamento, obrigados os tabeliães para que não exarassem escrituras de vendas, ou de aforamento, senão em presença de licenças régias ou declarações com o seu visto.

O mesmo procedimento houve com alguns administradores de capelas e bens que andavam onerados com missas e outros legados pios; mas a maior parte dos administradores não sofreram coisa alguma, ou por contemplação a suas pessoas e qualidades, ou por algum justo receio do magistrado na execução das ordens: o certo é que houveram muitas excepções ficando baldado o fim da lei.

Achando-se então de posse os foreiros, e outros novos rendeiros possuindo os bens que tinha comprado simultaneamente, negou-se a maior parte deles a estipular outros contractos; e por isso cansados já os administradores de tantos pleitos e enredos, incomodados com tantos gastos e inquietações, cederam ao engano, acomodando-se, e aceitando o que se lhe quis dar, ficando por isso muitas pessoas com vários corpos de terras que pouco ou nada lhes custaram, outros pagando um diminutíssimo canon, por dinheiros que nunca deram; e outros finalmente pagando insignificantes foros de propriedades que valiam o quádruplo.

Daqui procedeu o aumento rápido de muitos lavradores, que até ali nada podiam contar de seu, e por consequência o melhoramento de terrenos aforados, que aliás nem favor recebiam dos antigos colonos; sendo certo que do engano praticado na primeira alienação resultou ao público o não esperado interesse, bem semelhante ao terrível amargo, que sendo tão ingrato ao beber, em pouco tempo difundiu pelas veias do enfermo um novo alento da vida, com que já não contava. Em o número de prejudicados contaram-se especialmente as religiosas do mosteiro de Jesus da Vila da Praia, e as de nossa Senhora da Esperança da cidade. Mas enfim, por efeito desta piedosa lei, todas as corporações religiosas de um e outro sexo, confrarias, irmandades, casas de misericórdia, hospitais, gafarias e albergarias alienaram, e por quantias módicas, os seus fundos, de tal forma que vieram espalhar na sociedade um proveito incalculável, com que se animou a agricultura.

Ano de 1773

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Por alvará de 8 de Março mandaram-se pôr a concurso as dignidades, conezias, e benefícios vagos, por exames feitos ante o ordinário, à condição de serem preferidos em iguais circunstancias os naturais das ilhas, devendo excluir-se os autores jesuítas; e que todavia fossem os concorrentes examinados na moral mais pura. Já no ano de 1579, por alvará de 19 de Junho, a que se referia o de 29 de Agosto de 1766, se haviam determinado que os benefícios e dignidades que não tivessem cargo de pregar, e assim os curados, como os símplices se pusessem dali em diante por oposição, e nos eclesiásticos mais dignos com preferência dos naturais do bispado; mas de que serviam tantas recomendações e leis promulgadas?! Tudo se iludia e calcava aos pés, e eram os altos funcionários da igreja os que pareciam ostentar com tais exemplos (— Documentos L e M —)!

Em favor da agricultura e comércio destas ilhas, publicou-se a 4 de Fevereiro, uma lei para que os frutos naturais e industriais que sobejavam em alguns lugares, e neles constituíam um cabedal inútil e morto, pudessem recrescer e fazer-se lucrativos pela exportação àqueles países que deles carecessem.

Pretendeu el-rei por todos os modos felicitar estas ilhas, ressuscitando nelas também a cultura do pastel, ordenou ao general que lhe enviasse algum para o ver e se fazer a necessária experiência. Pediu-lhe então as instruções para reduzir esta planta ao devido préstimo, visto “que os lavradores já tinham perdido todas as espécies do seu benefício”, e não existia pessoa do tempo em que nestas ilhas havia o tal comércio. Apesar de todos os bons desejos, nada se pôs em execução, porquanto as amostras que se remeteram não produziram o efeito esperado: ainda que o general fizera a possível diligência, como dissemos no ano de 1767.

Um caso notável, entre outros que deste género sucederam, e que muito deram que sentir ao capitão-general, foi o rapto da donzela D. Mariana Estácia, filha de Manuel Jacinto de Lacerda e de D. Mariana Paula, que se achava no mosteiro da Conceição, donde fugiu para o cadete do Regimento do Porto Jacinto Martins. O general afligiu-se com isto por extremo; mas como o cadete não violara a clausura, intercedeu por ele ao governo, exigindo lhe dissesse qual a forma de processo que se devia instaurar.

No entretanto lavrava entre a oficialidade do mesmo regimento e o comandante uma grande desavença sobre preeminências; nem se podia obter a menor conciliação; temendo-se todos os dias algum desacordado movimento, que bem poderia servir de pretexto aos povos para algumas desavenças com aquela gente estranha e querendo informar-se de mais perto quais os motivos que ocasionavam estas desinteligências, oficiou ao chefe do Regimento, o qual somente depois de um ano lhe respondeu em termos de pouca obediência.

Além disto “provou-se que o comandante era parte favorável ao raptor da donzela dita D. Mariana Estácia”. Nestas circunstâncias, a presença de um tal corpo militar, “que se achara contaminado na parte principal”, não podia deixar ao general em perfeita tranquilidade; nem afiançar o sossego dos povos da ilha, que certamente careciam de exemplos bem diferentes: muito mais quando, com a chegada destes estrangeiros muitas pessoas do sexo feminino “se tinham entregado nos seus braços, namoradas dos encantos aparentes” , que sempre figuram semelhantes empregados, e geralmente os estrangeiros. É o que nos mostra a experiência e por toda a parte a leitura da história. “Não há ânimo tão destemido, ou coração tão invencível”, — dizia César —, “a quem uma novidade não perturbe”; e Cícero afirmava: — “que as nações forasteiras tem maior ousadia nas terras alheias para se arrojarem aos atrevimentos, do que nas suas próprias”. E assim parece, deveríamos estabelecer como princípio invariável, que esta novidade também era uma tentação. Não pese a muitas e mui nobres famílias das ilhas o contarem por seus ascendentes a alguns daqueles militares, que não eram de inferior qualidade às pessoas com que legitimamente se aliaram.

Ano de 1774

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Apareciam de quando em quando na ilha de S. Miguel novos acontecimentos, e perturbações de pessoas da mesma ilha, que muito desgostavam ao general; um deles foi o injusto procedimento judicial que houve contra o bacharel Francisco Frazão Godim, assaz maculado em seu crédito ; e por isso obteve do desembargo do paço uma provisão para que, dentro de um ano, se não se pudesse denunciar ou querelar dele, senão ante o corregedor da dita ilha. Foram tais os excessos que mereceram que o general desse conta a el-rei em favor “daquele homem de bem”...

Mandaram-se recrutar nestas ilhas 600 homens para os regimentos das capitanias do Rio de Janeiro, e já de antemão tinha o general alistado 111 voluntários. Embarcou-se toda esta gente na ilha de S. Miguel, a bordo da corveta Nossa Senhora da Conceição.

Crescia o estado de perturbação da ilha Terceira; e considerando el-rei o muito perigo que nisto havia, mandou por Aviso de 15 de Julho se embarcasse o Regimento do Porto, até ao dia 23 de Julho, em 5 navios de transporte, e em direitura à ilha de Santa Catarina, onde tínhamos guerra contra os espanhóis. Ficaram-se preparando 220 recrutas para embarcarem em as naus Nossa Senhora da Ajuda e S. Pedro de Alcântara, de que era capitão-mor José dos Santos Ferreira; mas o certo é que toda esta gente ainda a 14 de Novembro não tinha embarcado, e por felicidade se contou, pois se livrou de naufragar na grande tempestade que nesse dia começou, e continuou até ao dia 23 daquele mês: foi tão furiosa, como de igual não havia memória nas pessoas mais antigas da ilha: o mar subindo com o maior ímpeto fez naufragar 4 navios, dos 5 que no porto da cidade estavam carregados, “isto em um abrir e fechar de olhos”; dos 3 primeiros nada mais se viu; mas o 4.º foi encalhar sobre os calhaus; continuando a tempestade sem interpolação alguma. Logo que sossegou, arribou a Angra o navio Princesa do Brasil com os 200 recrutas, que havia tempo se tinham embarcado sofrendo muitos trabalhos e padecimentos entre os canais destas ilhas; e assim estes como outros 245 recrutas foram brevemente enviados a completar o Regimento do Porto, que mal sucedido foi na campanha com o seu comandante António Freire de Andrade, o qual, segundo se contou, ficou no desagrado de el-rei, acabando de passar o resto da vida em um ofício mecânico.

Para se preencher aquele regimento, e acudir à guerra que tínhamos então nos estados do Brasil, foram tão repetidos os recrutamentos, e o general procedeu com tanto rigor, que estiveram estas ilhas a ponto de se despovoar. Quanto aos soldados e oficialidade do mesmo Regimento, como todos eles eram causa de muitas desordens, ainda que já se achavam muitos deles casados e relacionados com várias famílias da ilha, houve geralmente grande satisfação, em que se ausentassem para longe: o mesmo general não mostrou sentimento algum por isto, antes via que el-rei aceitava de bom grado tudo o que ele nas suas participações lhe comunicava, fazendo-lhe saber quanto convinha retirar daqui o referido regimento.

Alguns sujeitos da cidade que tinham motivos de se vigiar dos comandantes, ou por interesse dos postos, ou por motivos particulares, influíram a população da cidade, para que celebrasse aquela retirada com ditos engenhosos, versos, cantigas e chacotas: e por este motivo muitos anos duraram, transmitidos de pais a filhos, esses hinos burlescos em que se cantavam os seus modos de viver; a devassidão e indisciplina da maior parte dos soldados, do sempre memorando Regimento do Porto. Na sua ausência ficaram os auxiliares fazendo o serviço do castelo e das guardas: e algumas vezes foram chamadas as ordenanças. Mas porque a oficialidade destes corpos era isenta dos cargos municipais, segundo as disposições de diversos alvarás, e o corregedor os não queria executar, mandou o general se cumprissem: o que todavia pouca duração teve, por não haverem nas vilas e cidades, tantas pessoas, quantas se careciam para sustentarem uma semelhante independência.

Quanto ao capitão general D. Antão de Almada houve-se el-rei por mui bem servido dele, honrando-o e engrandecendo-o por isso, como quem se tinha portado no cargo com toda a dignidade e ciência. Viveu com fausto de sua pessoa e família, servido de carruagens, formosas bestas, pajens e criados. Era muito afável, cortesão e esmoler: sobretudo muito delicado, no ouvir as partes atencioso e justiceiro; por extremo amigo de se não intrometer em jurisdição alheia; e como vinha em uma época de reformas, nem por isso ostentou a força de sua autoridade; nem mesmo consta lhe fosse necessário empregar meios violentos para obter os fins propostos. Tanto era o respeito que se lhe tributava que ainda hoje o seu nome é venerado nestas ilhas, e pronunciado com verdadeiro acatamento.

Ignora-se perfeitamente em que dia se ausentou da ilha; mas sabemos por tradição, que esse dia fora em toda a extensão da palavra, de grande sentimento; porquanto os terceirenses de todas as classes se manifestaram pública e particularmente ressentidos na ausência de tão digno chefe que sem dúvida viera abrir-lhes mais a carreira da civilização, e dar a necessária importância política às ilhas dos Açores, segundo o famoso plano do ilustrado governo que nesse tempo regia os destinos da nação portuguesa.

Ano de 1775

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Em 15 de Agosto chegou a esta ilha o seu vigésimo segundo bispo D. João Marcelino dos Santos Homem Aparício, freire conventual da ordem militar de S. Tiago. Achou a diocese mal regida pelos capitulares, que parecia haverem estudado na ausência, e morte do bispo antecedente, o desprezo de seus mais sagrados deveres; a postergação das leis e regulamentos, que bem pouco antes acabavam de repreender ao mesmo prelado. Um dos seus maiores abusos, e para satisfazer a caprichos, foi o admitir exames sinodais sem os cometer aos religiosos doutorados, que segundo as leis canónicas deviam servir de examinadores; não lhes importando também a escolha dos autores clássicos, onde se deviam estudar e decidir as matérias; deixando outrossim de preferir os clérigos naturais do bispado aos estrangeiros, como convinha ao cumprimento dos antigos usos e leis observadas até ali com todo o rigor. Por tudo isso já se passara alvará repreensivo em 8 de Março de 1773; e em termos bem expressivos se expediu outro a 16 de Janeiro de 1774, estranhando-lhe ter procedido daquela forma a concursos das igrejas então vagas na ilha de S. Jorge, havendo-os por nulos, e mandando proceder a outros legalmente. Sempre que faltava o bispo, ou por ausência ou por morte, acontecia o fatal interregno do cabido, onde os ódios e as mais feias intrigas dominavam: de forma que a história antiga e moderna deste corpo colectivo não apresenta outra coisa mais notável e saliente. E que admirar a desmoralização religiosa em que el-rei D. João IV considerava os povos das ilhas dos Açores, já nesse tempo, pelo mau exemplo dos eclesiásticos?

Escrevendo ao cabido a carta régia datada a 14 de Janeiro de 1648, recomenda-lhe faça as diligências necessárias para evitar aqueles danos de “que por vezes fora informado” . Se não era com o mesmo cabido que esta linguagem se entendia, era com muitos eclesiásticos das ilhas, do que ainda no ano de 1697 se achavam não poucos vestígios, quando, retirando-se da ilha do Faial o bispo D. António Vieira Leitão, por efeito da visita que nas suas igrejas fez, lá deixou presos no castelo velho seis eclesiásticos, alguns dos quais eram párocos; e achámos que para doutrinar os povos mandara buscar a Lisboa quatro missionários capuchos, os quais lá se conservaram alguns anos em missão.

Não se limitaram as repreensões de el-rei D. João IV àquela carta régia de que falámos, ainda fez expedir uma repreensão ao clero que nos púlpitos indigitava os delinquentes, fulminava vinganças pessoais e castigos, invertendo o santo fim do alto ministério. Passados mais de 70 anos, ainda, infelizmente, encontrámos o nosso cabido angrense possuído de iguais sentimentos, vergando ao peso de seus arbítrios e afeições, em menoscabo de sua profissão, e das leis que só lhe deveriam servir de norma: o que nos decide a lhe imputarmos alguns desvarios nos da sua classe.

Ano de 1776

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Para servir o posto do capitão-general destas ilhas foi despachado Diniz Gregório de Melo Castro e Mendonça, o qual sem perder tempo saiu de Lisboa, e chegando à Terceira no dia 15 de Abril, tomou posse a 21 desse mês. Era homem velho, de altura prócera, resoluto e um tanto áspero no falar; o que lhe provinha da continua ocupação dos consideráveis postos militares e campanhas em que se achara ao serviço de Portugal; foi um dos que esteve na batalha do Roussilon, e noutras, com distinto valor. Começou os actos do seu governo por uma dolorosa operação, que foi o recrutamento de 1000 homens, mandado fazer nestas ilhas, e no qual se houve com a maior actividade, até com efeito prontificar 600 recrutas, empregando nisto um tal rigorismo e exactidão, que deu lugar a supor-se muito mal do seu futuro governo, por começar com tantas lágrimas dos povos deste arquipélago, já então mui cansados de tais recrutamentos e opressões militares. Conta-se por certo que este recrutamento fora o mais violento a que se tinha procedido; porquanto não só o general se tornou inexorável para os chefes de família, senão ainda com o seu ajudante Manuel Correia Branco (por alcunha — o Cabeleira Branca —) se fazia insensível, e por assim dizer, desumano, sem exceptuar pessoa, uma vez que lhe parecia capaz de manejar as armas.

A 13 de Novembro do ano em que vamos, proveu o bispo com muito acerto, por uma sua pastoral, o uso das palestras, conferências sempre de reconhecida utilidade à igreja nascente.

Ano de 1777

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Participou o general às Câmaras da ilha, em 10 de Junho, a infausta notícia do falecimento de el-rei D. José I na noite de 24 de Maio, ordenando-lhes “concorressem para as demonstrações do justo ressentimento de uma tão grande perda”, fazendo que se executassem as possíveis honras fúnebres, praticadas em semelhantes ocasiões: de forma que ninguém deixasse de trazer o luto que lhe competisse; advertindo-lhes que as exéquias se haviam de celebrar primeiro na catedral, e depois nas outras igrejas. Fizeram-se portanto na Sé mui pomposos ofícios e sufrágios por sua alma; e deram-se na fortaleza principal as salvas do estilo, praticando-se as cerimónias do luto e pranto, e quebrando-se os escudos nos três lugares mais públicos da cidade.

Assistiram aos ofícios religiosos as colegiadas, e as diferentes comunidades, e corporações da cidade, com inumerável concurso de povo; mas não sabemos em que dia isto se fez. Na vila da Praia somente houve o quebramento dos escudos; e na vila de S. Sebastião publicou-se o luto — Documento N —; e ainda que a Câmara recusava por falta de meios pecuniários, vieram a efectuar-se as exéquias já no mês de Novembro, celebrando-se na igreja matriz um ofício de música, com missa cantada e oração fúnebre, para cujo gasto concorreu a fazenda real. Destacou-se na praça desta vila uma companhia de auxiliares, que deu as competentes descargas, sendo a oficialidade apatroada pelas casas mais distintas, em cumprimento de uma ordem do general, datada a 7 do dito mês de Novembros. Ali se acha também declarado o tempo que devia durar o luto.

O acórdão da Câmara da cidade, em 27 de Janeiro, contém o indeferimento de vários requerimentos pedindo o aforamento de algumas porções de terreno baldio, onde se achavam já construídas algumas casinhas e queriam viver famílias agrícolas; porém dizia a Câmara — não lhes podia deferir, pela proibição da lei; não obstante o conhecer a justiça e pobreza dos requerentes.

Na mesma vereação propuseram os da governança representar a el-rei lhes fizesse entregar as imposições dos líquidos, que o capitão general D. Antão de Almada, como presidente da junta da fazenda, tirara ao concelho, sem que esse imposto se pudesse dizer da real coroa; e que contudo se lhe permitira aquela extinção, por se não mover alguma disputa que causasse maior embaraço.

E em 3 de Outubro acordaram pedir também algumas providências a respeito do provimento das aulas públicas, para educação da mocidade, a cujo fim estava determinada a contribuição ou subsídio dos vinhos.

A 21 de Fevereiro determinaram que os enjeitados falecidos fossem sepultados na Sé, e os párocos exarassem termo de óbito para se evitar o dolo que, havia, e que era causa da delapidação das rendas, pagando-se de muitos que já eram falecidos; e para que cessasse o costume ímpio e prejudicial de os sepultarem fora da igreja e lançarem nos pórticos que em fim se achava a Câmara tratada com os reitores da mesma Sé a fazerem o acompanhamento e escreverem o termo do óbito de cada um enjeitado por $260 réis e não $320 réis como queriam os padres de outras igrejas, e era estilo. Também achámos no Livro das Contas de outras Câmaras que se pagava aos párocos a oferta do baptizado pelos bens delas.

Sucedeu no reinado a filha do defunto rei, D. Maria I, que no ano de 1760 havia casado com seu tio o infante D. Pedro.

A notícia do casamento do príncipe da Beira com a infanta D. Francisca Benedita foi comunicada às Câmaras desta ilha em 2 de Julho do ano em que vamos.

Tendo entrado de vice-vigário da matriz de S. Sebastião em 24 de Agosto de 1772 o Dr. Domingos José Antunes, por suspensão do vigário próprio António Cardoso de Castro, em razão das faltas e crimes que se lhe imputaram, como deixámos escrito no ano de 1756, procedeu com o maior escrúpulo às indagações necessárias; e finalmente, com sumo trabalho, só pôde concluir uma relação nominal dos fregueses que ali tinham casado e falecido; e emendar nos livros de natalibus alguns dos poucos termos escritos por aquele vigário com muitas imperfeições e erros essenciais; mas porque já ele se achava absolvido do processo que se lhe fizera, e com regresso à sua igreja, tomou posse dos 38 livros do baptistério, e começou a servir em 21 de Julho de 1775.

Tendo sido também excluído de irmão da Misericórdia da mesma vila, pelas indecorosas razões constantes do auto que se lhe fez em 27 de Janeiro de 1771 , achámos fora reintegrado e novamente admitido no dia 1 de Setembro de 1776, e por despacho do capitão general, não pelos mesmos que o excluíram; o que tudo nos deixa perplexos e indecisos para julgarmos sobre o merecimento de uns e outros actores nesta figurada tragédia. Tendo em fim o nosso vigário passado uma vida atribulada, e cheia de privações, em razão da franqueza ou prodigalidade com que aos pobres dava quanto adquiria em prejuízo de duas inválidas irmãs que tinha, veio a falecer a 19 de Outubro do ano em que vamos de 1777, com idade de 58 anos. Talvez que a paciência com que se afirma sofrera as perseguições; e a sua indiscreta liberalidade concorressem para a completa canonização de santidade e milagres que o vulgo lhe atribui. Porém não pertence ao domínio da história o classificar, aprovar ou refutar essa opinião.

Visitando o bispo D. João Marcelino algumas ilhas deste bispado achamos que na do Faial proibiu se repicasse no ingresso e regresso da Câmara municipal, quando obrigada a assistir a certas funções na igreja principal da vila da Horta, entendendo que essa distinção só era privativa “das mui altas e mui poderosas pessoas reais, e bispos, como príncipes das igreja”; e sobre isto passou mandado a 6 de Dezembro de 1777: nada mais consta a este respeito, sendo provável que esta medida, por nova e desconhecida, não deixaria de trazer consigo alguns desgostos ao reverendo prelado, o qual em todo o bispado proveu muitas coisas convenientes ao bom regímen das paróquias e criou alguns curatos.

Ano de 1778

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Continuavam a servir na Câmara da cidade os mesmos oficiais do ano de 1769, que eram José de Bettencourt de Vasconcelos e Lemos, João de Carvalhal da Silveira e João Borges; procurador Jerónimo Nunes de Miranda. O livro dos acórdãos desta Câmara nada oferece digno de memória; porém o do registo, pela maior parte, acha-se ocupado com os brasões de armas e títulos de nobreza dos fidalgos da mesma cidade, que era a moda daquele tempo. Havia vários anos que não tinham vindo de Lisboa as pautas dos oficiais da vila da Praia e de S. Sebastião; porém chegam neste ano, sem que à sua execução se opusessem embargos, como acontecia quase sempre (veja-se o ano de 1779): o que parecia devido à nova organização judiciária.

Pelas 3 horas da tarde do dia 24 de Junho houve um grande eclipse, que durou espaço de uma hora; escureceram os ares sobremaneira e saíram as estrelas, com extremo sobressalto dos povos, que invocavam a misericórdia divina.

Ano de 1779

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Tomou posse de corregedor desta comarca, em 23 de Março, o Dr. Joaquim Gomes Teixeira. Teve rijas preferências com o bispo D. João Marcelino, por exigir que o meirinho do eclesiástico lhe apresentasse o privilégio para usar, como usava, de vara branca; entendendo o corregedor que este privilégio lhe não era extensivo. Ouvido sobre isto, o bispo alegou o passe e diuturníssimo espaço de muito mais de dois séculos com que se acreditava por “um legítimo título, privilégio, ou concessão precisa”, o qual, dizia, não poder mostrar documentadamente, em razão de se haverem estragado os cartórios públicos “com as humidades a que são sujeitas estas ilhas, e mesmo com o tempo”.

Veio portanto o bispo a obter no recurso que interpôs do corregedor, como se lê na provisão de 23 de Setembro, registada nos cartórios da Câmara da cidade, e no da Sé. Já a semelhante respeito se tinha passado provisão declaratória em 21 de Julho de 1785 aos juízes de fora e vereadores da vila da Ribeira Grande, que duvidava do privilégio por que usavam de vara branca os meirinhos dos ouvidores deste bispado: determinando-se ao corregedor os deixasse fazer uso dela — nas terras principais da jurisdição do bispo — não levando mais emolumentos do que os taxados nos regimentos seculares, ficando sujeitos às mesmas penas, no caso de contravenção.

Em 4 de Abril teve lugar a abertura da segunda pauta dos oficiais das Câmaras das vilas desta ilha, também como a primeira sem oposição alguma.

Ano de 1780

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Do ano de 1780 nada consta digno de memória.