Capítulo VI

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Chega ao porto da cidade de Angra a fragata Princesa Real, com o novo general Henrique de Sousa Prego, cujo governo é rejeitado em assembleia pública. Continua o governo interino, a ponto de se desfazer pela vergonhosa cabala, maquinada contra ele, e pusilanimidade do comandante militar, que pretende evacuar-se da ilha com o Batalhão 5.º de Caçadores. Meios empregados para obstar ao seu embarque.

Em uma terça-feira, 15 de Julho de 1828, chegou ao porto da cidade de Angra a fragata Princesa Real, e lançou em terra o comandante com ofícios para o governo, afim de que aceitasse e desse posse ao almirante Henrique de Sousa Prego, que se achava a bordo da mesma fragata, e vinha despachado capitão-general destas ilhas dos Açores.

Para se deliberar como convinha sobre negócio de tanta importância, convocou o presidente da Câmara uma sessão extraordinária, em que concorreram as pessoas principais dos três estados do povo; e bem assim todos os comandantes militares e os governadores das fortalezas, os quais unanimemente votaram1 que não deviam ser cumpridas as tais cartas régias ali apresentadas, e que serviam de diploma ao referido almirante, nomeado capitão-general destas ilhas: porque, além de lhes faltar a fórmula prescrita no artigo 98.º da Carta Constitucional, eram de si inexequíveis, na conformidade do Decreto da infanta regente, datado em 26 de Fevereiro daquele mesmo ano, no qual mui positivamente ordenava se observasse aquela, e segundo esta, deviam os diplomas ser passados em nome d’el-rei, e referendados pelo respectivo ministro; e como tudo isto lhes faltava, foram rejeitados.

Passaram-se nesta assembleia coisas mui dignas de comemorar-se, discorrendo cada um na abundância das opiniões que lhe subministrava a matéria. Com muito discernimento votou o presidente da Câmara, Alexandre Martins Pamplona, e o corregedor interino, José Jacinto Valente Farinho, que aduziu num largo discurso muitas razões de direito, mostrando a nulidade dos diplomas, e convencendo finalmente alguns argumentos em contrário. Conta-se também por mui decisivo o voto do tenente de artilharia António Homem da Costa Noronha, o qual, com muita graça, pronunciou, alto e bom som, estas palavras — do general Prego nem a sombra. — Em tudo o mais foi o emissário tratado com o devido respeito, e bem diferentemente na verdade do que a semelhante respeito se praticou, em tempo do Prior do Crato, com o deputado do governador Ambrósio de Aguiar Coutinho, o qual teve muito a contar para se evadir às mãos do povo da cidade.

No dia imediato, 16 de Julho, sustentando os mesmos princípios, deu parte o governo interino ao Secretário de Estado, enviando-lhe uma cópia do auto da consulta exarado em Câmara; e desculpando-se por não haver lei que obrigasse ao cumprimento e execução das mencionadas Cartas Régias, que pelas notadas faltas e outras irregularidades inculcavam coacção na vontade do infante regente D. Miguel, a quem também escreveu na mesma data, e que por consequência não se devia conferir a posse ao governador nomeado (Documento R).

Escreveu a mesma Câmara a el-rei D. Pedro, narrando-lhe o que se passara no infausto dia 18 de Maio, demonstrando-lhe a sua fidelidade e pedindo-lhe alguns socorros (Documento S). Participou-lhe, outrossim, como fora instalada, relatando-lhe os factos criminosos que tiveram lugar em Angra desde o dia 18 de Maio, em que fora aclamado rei absoluto o mesmo infante, atropelando-se a Carta Constitucional, e ofendendo-se os direitos do legítimo rei; e como no dia 22 de Junho foram restaurados, ficando preso o ex-general Touvar e sepultados no esquecimento os tristes dias passados em luto e amargura pelos fiéis súbditos do mesmo rei D. Pedro IV.

Sem embargo de que o comandante da fragata recebera ofícios com o desengano de que na ilha Terceira não era aceite o novo general, nem por isso retirou destes mares, antes pelo contrário, sendo com o mau tempo levado à ilha de S. Miguel, onde lançou o dito general que nela foi bem recebido e reconhecido, já sem ele, tornou no dia 26 de Julho a aparecer defronte do porto de Angra, pairando até o dia 29; então vendo que nada tinha a esperar dos que na ilha governavam, nem dos muitos que nela se davam por ofendidos, fez-se à vela2 e não tornou mais a avistar-se com a terra.

Aquela inesperada e estranha resolução tornada na Câmara da cidade por tão poucos, e sem audiência dos outros municípios, deu muito que falar e sentir aos inimigos da causa constitucional, que por qualquer coisa pretextavam motivos de desconfiança e desafecto às novas instituições; nem outra coisa era de esperar; e porque, já naquele tempo, os chefes e principais deles sabiam que de Portugal saíra uma esquadra a subjugar a ilha da Madeira, que se tinha subtraído à obediência do novo rei. Conceberam então lisonjeiras esperanças de se desfazer quanto antes a restauração do dia 22 de Junho e de serem punidos os seus autores, aos quais consideravam incursos no crime de rebelião pelos factos praticados no dito dia 22 de Junho e, subsequentemente, reiterados a 1 de Julho com a repulsa do general Prego. Ao mesmo tempo que o governo interino havia recebido participações e ofícios da mencionada ilha, em que se lhe davam os parabéns de tão heróica resolução e se lhe prometiam os socorros possíveis, como fiéis irmãos de armas, aderentes aos mesmos princípios.

Considerou então mui seriamente o governo interino em se prevenir contra os inimigos internos e externos; e por consequência, achando-se destacado na Vila da Praia o capitão João Ernesto Cabral de Teive, o mandou recolher, por não ser pessoa de sua confiança. E por convir guardar e defender com a maior vigilância aquele posto, foi destacado para ele o capitão de artilharia Luís Manuel de Morais Rego, tornando a substitui-lo no comando da fortaleza de S. Sebastião o tenente Joaquim Martins Pamplona.

Instando igualmente a necessidade de se entender na fortificação da costa, que se achava desguarnecida, ou melhor dizendo, abandonada, nomeou-se uma comissão composta do ex-governador do Castelo de S. João Baptista, Caetano Paulo Xavier, presidente, e dos vogais ditos Luís Manuel, João Ernesto, José Quintino Dias, actual governador do castelo, do tenente António Homem da Costa Noronha, ajudante Francisco José da Cunha, e do 2.º tenente Luís de Barcelos Merens.

Em seguida mandou o governo desarmar as milícias e as ordenanças em todos os distritos: e é de observar que deste modo de proceder houve na ilha um geral sentimento, pelo rigor e exactidão com que se praticou3, e pela posse em que se achavam os seus habitantes, conservando armas para os alardos públicos e defesa de suas casas; não esperando que em tempo algum lhes fossem tiradas a todos eles indistintamente, com prejuízo e perigo de pessoas e fazendas; pois é certo que ainda mesmo alguns ferros, que serviam para outros usos, lhes foram tirados nesta ocasião.

Não houve contudo resistência alguma para se verificar a entrega deste género de armas, como era de esperar, e em poucos dias deram entrada no castelo muitos milhares de armas, assim de fogo como brancas e de outros usos: umas próprias do Estado e que apareciam nos alardos, outras, e a maior parte, do uso das famílias. No que tudo se houveram os cabos encarregados desta diligência com demasiado zelo e ardor, como tive ocasião de observar, achando-me presente a estes actos dentro da Vila da Praia.

Vendo alguns que as proscrições por medidas de cautela se aumentavam de dia em dia, e temendo pelos resultados da devassa a que se procedia, solicitaram e obtiveram licença para mudar de domicílio, a título de saúde, como foram: o major de milícias da Praia, António Moniz Barreto do Couto, Joaquim Zeferino de Sequeira, e o major José Veles Cardoso, que todos passaram à ilha de S. Miguel. Com estes movimentos e proscrições militares, e outras muitas que se faziam, não deixava de ressentir-se a causa da Liberdade: cada um dia que sobrevinha parecia trazer um novo motivo de desconfiança, diminuindo a força moral na oficialidade do Batalhão e deserção de soldados; cada vez mais engrossava o número dos descontentes; e sobretudo ignorava-se qual seria o partido que tomaria a Corte no caso de ficar a ilha Terceira somente4 proclamando o sistema constitucional: pois que, desamparada dos necessários socorros, provavelmente a consideravam suplantada por si mesma.

Quais seriam portanto as esperanças, entretenimentos, conversações e juízos dos inimigos da causa pública, a sua inquietação, e o desassossego do governo interino é mui fácil acreditar!

Com todas as referidas proscrições e cautelas, mui pouco ganhava o novo sistema. No dia 4 de Agosto chegou ao porto de Angra um brigue de guerra, e depois de fazer cinco tiros de peça, como lhe não fora visita a bordo, nem alguma outra embarcação, deixou de fundear; porém sabendo por um barco de pesca a repulsa do general Prego, negou-se a entregar-lhe a mala que trazia, e dando ao mestre uma guia para o livrar do castigo em que incorrera por ter atracado ao navio sem licença do governo da ilha, que o proibira: partiu em direitura de S. Miguel, deixando a todos os da cidade em grande cuidado sobre as notícias que uns e outros esperavam.

No dia 5 de Agosto desembarcaram em Angra o coronel Cândido de Meneses e José Joaquim Teixeira, os quais logo foram presos à ordem do governo, dando-se ao primeiro por homenagem a sua casa, em rasgo de se achar doente, e ao segundo o Castelo de S. Sebastião, para nele estar recluso. Conhecendo-se pela chegada destas personagens ser pouco vantajoso à causa d’el-rei D. Pedro o estado de Portugal: antes pelo contrário logo se espalhou, ainda que mui cautelosamente, a notícia de que se preparava uma expedição contra a ilha da Madeira, e com o destino de reduzir à obediência do infante D. Miguel, então proclamado rei de Portugal, todas as possessões que se achassem em oposição do seu governo.

Acresceu chegar poucos dias depois a esta ilha o dr. António Silveira que o governo interino havia enviado à cidade do Porto, a trazer a triste nova de ser desfeita a divisão do general Pizarro, que depois de alguns sucessos favoráveis à causa da liberdade, evacuara o reino passando Galiza, e depois à Inglaterra.

Com estas notícias, na verdade as mais assustadoras, tomou um tal corpo a causa dos realistas (apelido que não deixaram os partidários do infante D. Miguel) que desde logo contaram com o seu triunfo. Neste conflito de coisas, vacilando os ânimos da maior parte dos membros do governo interino e dos soldados do Batalhão 5.º de Caçadores, aumentou-se extremamente a cobardia do seu comandante, José Quintino Dias, de tal forma que o novo sistema adoptado chegou a ponto de sucumbir inteiramente; porquanto até o dia 21 de Agosto não se tendo aumentado, como se esperava, o número dos seus aderentes, nem se verificando certas medidas de prevenção a respeito da defesa da ilha, acrescendo as referidas notícias do estado de Portugal, tinha aquele comandante sustentado nas conferências com o governo, que a ilha se não podia conservar em tais circunstâncias; sendo isto bem diferente e contra o que dantes havia positivamente afirmado. E foi ele quem, sem dar parte ao governo, no dia 23 de Agosto, fez aprontar os navios para se embarcar o batalhão para fora da ilha no dia imediato de tarde; e de facto já às 10 horas da manhã se achava pronto a este fim, não sem grande clamor e lágrimas da maior parte deste e de suas famílias, que atroavam o Castelo na lembrança de perder uma ilha, onde se lhes proporcionavam tão bons meios de viver; e considerando os incómodos que passariam, em razão de se terem declarado tão abertamente contra o governo estabelecido na capital do reino, no que tinham cometido o crime de primeira cabeça, que não poderia ficar impune.

O mesmo sentimento lavrava na cidade, onde igual pranto se ouvia nas ruas e praças públicas; assim como nas casas dos liberais não se ouviam mais que gritos e declamações, considerando-se já todos, quando menos, lançados em estreitas prisões, e escapados ao primeiro furor de alguns mal-intencionados realistas, que não deixariam de romper em grandes desatinos e prometidos massacres. Nem, volvendo os olhos por toda a ilha, achavam lugar seguro onde pudessem viver sossegados; nem, finalmente, haviam embarcações e meios indispensáveis para tão inopinadamente se transportarem da ilha para fora, atendendo-se, além disto, que mesmo nos domínios portugueses não poderiam considerar-se em perfeita segurança.

Havia dois dias que durava a sessão do governo interino, sem se poder convencer a recondução do Batalhão 5.º de Caçadores, ainda assim preparavam vantajosamente os meios de resistir à esquadra e o último recurso recolhendo ao Castelo de S. João Baptista, onde se poderia conservar até lhe vir o socorro necessário. Nem aproveitavam os argumentos de que, ausente o mesmo batalhão, ficaria exposta a ilha a uma anarquia formal, do que sobejavam exemplos na história antiga e moderna; e mesmo naqueles dias, por meio de insultos e vozes aterradoras, que se tinham soltado contra alguns homens de bem, aderentes à Constituição. Tudo era em vão porque um terror pânico se havia apossado da maior parte do governo e da guarnição.

Enquanto no palácio se combatia a oposição contrária à causa da liberdade, achava-se toda a cidade em perfeita expectação; e na praça pública (hoje chamada da Restauração) por ser domingo, havia um grande ajuntamento de povo de todas as partes da ilha, assim como vários cidadãos afectos à mesma causa; então lamentando-se alguns do estado deplorável e anárquico em que ficava a ilha, apenas o Batalhão 5.º se embarcasse, levantou-se no meio deles Cipriano da Costa Pessoa, um dos moradores da cidade, e em alta voz faltou neste sentido: — “que nas actuais circunstâncias mais valia morrer com as armas na mão, do que sofrer os insultos dos satélites do usurpador, pois que não tardaria o massacre de todos quantos liberais eles pudessem colher às mãos; que para desviar este mal tão eminente, poupar a si e a suas famílias, amigos e parentes, convinha que logo logo os amantes da pátria, e da boa ordem fossem oferecer-se ao governo, alistando-se voluntariamente para servir debaixo das armas; e que enfim não havia tempo algum a perder, e todos aqueles que quisessem seguir tão brioso partido o seguissem a ele (dando alguns passos à frente), porquanto naquele momento, e desde já não cuidava mais doutros negócios, nem entendia haver ocasião mais conveniente de prestar melhor serviço à sua pátria, e a tantas famílias: serviço que todos deviam fazer a todo o custo, sob pena de serem reputados como pusilânimes e ingratos, porquanto, com indiferença, e como a sangue frio, os via concorrer para tantas infelicidades, quantas ainda se não tinham presenciado nas diferentes cenas políticas e violentas crises porque mais de uma vez passara a ilha Terceira”. —

A estas enérgicas palavras ajuntou o orador algumas lágrimas, que as entrecortaram, impedindo-lhe o mais que pretendia dizer. Também quando os romanos, depois do incêndio de Roma, quiseram abandonar sua pátria para se transportar a Vicos, a este pernicioso desígnio se opõe Camilo; tomando a palavra, ofereceu um gostoso espectáculo de todas as esperanças que engrandeceram as virtudes dos romanos: aqui ganharam eles o império do Mundo, e Roma saiu de suas ruínas para dominar.

Então, um grande murmúrio do povo se ouviu em aplauso daquela razoável e justíssima proposição, que por todos os liberais foi aceite e louvada: e em continente quarenta cidadãos dos mais distintos, que neste lugar se achavam, saíram à frente, dirigindo-se ao palácio do governo interino, que estava em sessão plena; e sabendo estarem na sala aqueles cidadãos para se alistar, logo mandou ao ajudante de ordens que os recebesse, e da sua parte lhes agradecesse o mui singular serviço e apoio que ião dar à justa causa da liberdade. Ainda ali mesmo, o referido Cipriano da Costa fez valer a razão de se alistar com aqueles seus compatriotas, apesar de sua avançada idade e moléstias; e no mesmo sentido falou outro negociante, o cidadão João António Bacelar.

A necessidade e aperto das coisas ditavam os mais expressivos termos da retórica; o mais fraco orador poderia nesta ocasião conseguir tanto como em Atenas um Demóstenes: e assim podemos dizer aconteceu na cidade de Angra. O ajudante de ordens com efeito, nos termos mais expressivos, agradeceu a todos a briosa resolução tomada em favor das instituições proclamadas e o bom desempenho com que acreditavam o bem merecido título de leais cidadãos e terceirenses5.

Foi naquela mesma hora que se decidiu da vida e fazenda de todos, e que estes quarenta nobres cidadãos, reunidos a um único fim, puderam suspender a impetuosa corrente de infortúnios que ameaçavam tanto de perto a ilha inteira; cessava ela de ser o baluarte da fidelidade para ver levantar em suas praças os medonhos cadafalsos dos antigos tempos!!

Imediatamente começou a sentir-se entre os mais desanimados membros do governo um espírito de vida, e prevalecendo-se desta ocasião José Inácio Barcelos da Silveira6, que já se tinha alistado voluntariamente, entrou no conselho militar, e de tal forma falou e se houve com ânimo deliberado, que se disse, fora ele quem obrigou o governo a sustentar o que tinha proclamado no dia 22 de Junho. No mesmo sentido faltou Teotónio de Ornelas, o secretário Manuel Joaquim Nogueira, o tenente Lobão e o dr. António Silveira, os quais todos se opuseram ao embarque do batalhão. Então os do governo, com o comandante José Quintino Dias, tomaram sério acordo de sustentar os princípios proclamados e defender a Terceira de qualquer invasão ou hostilidade interna ou externa.

Saindo então os do conselho militar com os membros do governo interino, subiram ao Castelo de S. João Baptista, e na praça deste, postada a tropa e os voluntários novamente alistados, tomou a palavra o secretário do governo, que em um enérgico discurso fez ver a todos os circunstantes — “em como o governo estava decidido a sustentar a todo o custo a legitimidade d’el-rei D. Pedro IV e de sua filha D. Maria II, desculpando-o de algumas faltas que tinham dado motivo a suspeitar-se de alguns intentos sinistros, e ao descontentamento do batalhão, principalmente pelo vagar com que se municiava aquela praça; que o governo em nome d’el-rei D. Pedro agradecia muito a boa vontade com que todos os presentes se portavam com tamanha dedicação à causa da justiça e da liberdade; que, sem dúvida, eram brios herdados de seus antepassados, neste país Sempre Nobre e Leal; que além de confiar sumamente na fidelidade dos cidadãos alistados e no Batalhão 5.º de Caçadores, esperava os socorros que lhe haviam de ser enviados por el-rei, a quem já tinha dado parte e de quem não poderia tardar a resposta; que a Terceira não era a única a sustentar os mesmos princípios constitucionais, mas antes a maior parte de Portugal, e a ilha da Madeira, como se lhe fizera saber, os abraçavam com todo o empenho; que eles no caso de invasão tinham aquela praça em que se fariam fortes, quando vencidos à borda de água, e que bem seguros estariam até chegar o necessário socorro”. —

A tudo isto respondeu o comandante José Quintino Dias em poucas, mas decididas palavras, concluindo por elas: que tão bem ele e a tropa do seu comando estavam prestes a derramar até a última gota de sangue por tão santa e justa causa, e que em todos esperava o mesmo cordial sentimento quaisquer que fossem os sucessos da campanha.

Cena foi esta na verdade assaz tocante, pelo que, no meio de um vivo transporte de alegria, se entoaram os competentes vivas, a saber: à religião católica romana, a el-rei D. Pedro IV e à Carta Constitucional. Arvorou-se no mesmo acto a bandeira bicolor sobre a muralha do Castelo, e em seguida deu-se uma salva de artilharia, que foi ouvida em toda a ilha, inteligenciando-a de que o sistema constitucional continuava a ser defendido pelo Batalhão 5.º de Caçadores, e mais tropa submissa às ordens do governo interino.

Foi então inexplicável o júbilo das famílias e dos defensores da liberdade neste país. Fizeram-se nos três dias imediatos luminárias na cidade e nas vilas da Terceira, com todas as possíveis demonstrações de afecto às instituições juradas: e a companhia dos voluntários, que a toda a pressa se acabou de inteirar, começou a prestar valiosos serviços dentro e fora da praça do castelo principal, sendo comandante deste corpo Teotónio de Ornelas, escolhida a mais oficialidade à pluralidade de votos, cuidando-se com a maior actividade em o disciplinar para os fins convenientes.

Em consequência desta nova deliberação cuidou o governo incessantemente de municiar o Castelo de S. João Baptista, fazendo conduzir para dentro dele, no mesmo dia, grande quantidade de trigo, carne, vinho, azeite, lenhas e tudo o mais necessário à sustentação da tropa e gente que se quisesse recolher e ali se conservar por algum tempo7. E todas estas coisas se tiraram do poder de seus donos; uns que as tinham para seu gasto e de suas famílias, ou para remeter para fora da ilha a troco de outras mercadorias; outros que as tinham à venda em seus armazéns.

O tempo e as apertadas circunstâncias em que laborava o governo impedia a escolha dos víveres, e a prática da igualdade, peso e medida dos géneros importados dentro da praça. Cometeram-se portanto, naqueles dias, muitas injustiças, não sendo poucas as cautelas que faltaram para garantir a dívida aos proprietários e donos daquelas coisas de que alguns bem tarde, e outros nunca, viram o resultado do seu valor. A Fernando Joaquim da Rocha levaram-se 15 moios de trigo, e outra porção considerável a João Marcelino, e foram estes os primeiros que sofreram a multa, seguindo-se outros muitos conforme os seus teres.

No dia 25 de Agosto nomeou o governo uma comissão composta dos oficiais militares José Espínola, João Manuel de Torres e Francisco António de Sequeira, para fazerem conduzir mais alguns víveres ao castelo. Neste mesmo dia foram deportados para as ilhas debaixo o brigadeiro D. Inácio de Castil, o ajudante Bento José da Silva, o alferes José António de Oliveira e o cirurgião Manuel Joaquim de Araújo.

Foram estes os acontecimentos memoráveis do dia 24 de Agosto de 1828, pelos quais se deu um segundo impulso à causa da liberdade nesta ilha. As pessoas que neles mais serviços prestaram não esqueceram ao presidente do governo, o dr. provisor João José da Cunha Ferraz8. Mas não devemos deixar em silêncio os serviços deste respeitável septuagenário, que teve a modéstia de os ocultar, sendo eles tão relevantes. Foi certamente o principal móvel de tudo quanto se fez, pois que a sua dedicação pela causa da liberdade era sobejamente conhecida em toda a ilha Terceira; e foi ele mesmo quem, valendo-se de todos os meios, empregava as pessoas mais influentes com os soldados para chegar a conseguir os seus intentos, e sendo em tudo o mais naturalmente volúvel e inconstante, como todos o conheciam, poderemos seguramente e sem pejo assegurar, que só tivera na sua vida uma verdadeira resolução e consistência para encabeçar, como autor, em toda esta arriscada e temerária empresa, que por vezes esteve a sucumbir sem que esse velho Nestor arredasse pé, nem mostrasse um pequeno sinal de cobardia.

A todos desejava adiantar nos cargos; a todos queria engrandecer, e para si nada solicitava, dizendo que a sua idade nada requeria, nem ele ambicionava mais honras; porquanto já tinha gozado as que não merecia, nem já podia achar-se à frente de grandes empresas quem se achava com os pés sobre a sepultura como ele pela sua provecta idade e moléstias inseparáveis.

Informando ao governo sobre o merecimento das pessoas influentes na restauração das mencionadas épocas, dizia que duas existiam remarcáveis na história, e nas quais haviam quase os mesmos representantes; porém, que não sabia entre ambas, qual era a mais distinta, explicando-se nestes termos: “promoveu contra os sagrados direitos da soberania uma facção perjura, rebelde e tumultuosa, e de rotos, é o espírito do mais abjecto servilismo; pelo contrário, distinguir qual deva prevalecer entre a acção de sacudir este servilismo, ou pôr os últimos esforços, e conseguir que o servilismo não torne a brotar, é o que eu não sei distinguir. É a primeira época, dia que deve servir de fausto na história da ilha, o de 21 de Junho: neste dia é que o pérfido general Touvar anuiu às vozes dos satélites da rebelião, contra os direitos d’el-rei D. Pedro IV, usurpados pela facção desenvolvida nos dias 17 e 18 de Maio, e ainda no dia 22 de Junho. A segunda época foi o sustentar este acto tão heróico que estava a sucumbir absolutamente pelos factos praticados no dia 24 de Agosto. Em Junho, sacudiu-se o jugo do usurpador; em Agosto, quando já estava no último paroxismo esta restauração, sustentada reviveu por factos de um prodígio imaginável”.

Mas, parece que eu me distraía, sem o pensar, entretendo o leitor com a menção das duas épocas memoráveis da historia terceirense e dos seus autores, esquecendo-me dos factos subsequentes que passo a registrar aqui, para não interromper por mais tempo a narração.

Não esquecendo ao governo tomar sérias medidas para desarmar as milícias, ordenanças e oficialidade suspeita, o que fez debaixo de especiosos pretextos, e assim demitiu os oficiais de ordenanças que se achavam sem patente9, a saber: o capitão Mateus Borges do Canto, o alferes Joaquim Sebastião, Vicente Reinaldo Machado, Francisco Álvares Pereira, João Pedro Coelho, Luís Gomes Pamplona, o capitão da Ribeirinha, Joaquim Machado de Ormonde, capitão de S. Mateus da Calheta, o da freguesia de Santa Bárbara, Bento Coelho da Costa, o do Raminho, Luís Jacinto Tavares, o do Porto Judeu, António Ferreira de Ormonde, e o alferes José Machado Fialho, por incapaz. Para suprir a falta destes fez-se uma nova promoção, com pena de se reputarem rebeldes os que se subtraíssem ao serviço10: e assim foram nomeados para capitão da freguesia da Sé, Francisco de Meneses Lemos e Carvalho, da Conceição, Egas Moniz Barreto do Couto, para a de S. Pedro, Mateus de Meneses Lemos e Carvalho, para Santa Luzia, António Lúcio Duarte dos Reis, para S. Mateus, Bernardo de Bettencourt de Vasconcelos, para S. Bartolomeu, Custódio Borges de Ataíde, para as Nove Ribeiras, Agostinho de Lemos Machado, para as Doze Ribeiras, Mateus Machado de Sousa, para S. Bento, António Martins Coelho, para a Ribeirinha, Francisco Vaz Pereira. No distrito da Vila de S. Sebastião foram nomeados capitães, na Vila, Manuel de Carvalhal, e no Porto Judeu, José Ferreira Drummond. Demitidos, foram os seguintes: o capitão-mor de Angra, João Pereira de Lacerda, que logo saiu para Lisboa com seus filhos Diogo Pereira, João Pereira e mais família; o capitão das Doze Ribeiras, Mateus Machado de Sousa; o capitão da Vila de S. Sebastião, José Machado Homem da Costa; e o alferes da mesma companhia José Machado Homem Enes. Além destes, foram demitidos na capitania da Praia, o capitão João José Alvares, o alferes Francisco Borges do Rego, António Machado Mouro, Manuel João de Barcelos, Custódio Borges Machado11, Francisco Inácio Mendes, Domingos Coelho Godinho e João Martins Marques.

Conforme o plano de fortificação, ordenou-se que logo fosse guarnecido o forte de Santo António do Porto Judeu e o da Ponta de S. Diogo; determinou-se também quais os fortes que na capitania da Praia se haviam de guarnecer, a saber: na baía do Espírito Santo, Porto, e Santa Catarina. No distrito de S. Mateus, linha de leste e o forte grande. Determinaram-se vigias para outros muitos fortes ao sul e norte da ilha, a saber: no 1.º distrito — S. Fernando, no 2.º — Santa Catarina das Mós, e no 3.º — o reduto de S. Mateus. Que nos Biscoitos e Vila Nova haveriam vigias nos sítios mais próprios ao desembarque. E as freguesias dos Biscoitos, Quatro Ribeiras, Agualva e Vila Nova formariam o distrito da costa do norte, de que seria comandante o capitão de caçadores João Moniz de Sá. Na linha do oeste nomearam comandante Agapito Pamplona Rodovalho, devendo estender o seu comando até à freguesia de Santa Bárbara, e que este distrito se denominaria — da cidade — com os castelos de S. João Baptista e de S. Sebastião. Desta forma se deu por findo o plano da fortificação da ilha.

Municiaram as peças dos fortes guarnecidas com oito cartuxos, metade de bala rasa e metade de metralha, e que os fortes vigiados teriam três soldados, que, com os artilheiros respectivos de cada forte, se exercitariam na milícia. Foram, outrossim, nomeados capitães das ordenanças da capitania da Praia os seguintes: Mateus Homem de Meneses, do Cabo da Praia; para a Casa da Ribeira, José Diniz Coelho; para a 3.ª companhia, que era das Pedreiras, João de Vasconcelos Meneses; para as Fontinhas, José Borges Linhares; para os Biscoitos, José Ferreira Cota; e para os Altares, Manuel Pereira Cota. E, para ajudante do comandante militar, foi nomeado o tenente do Batalhão 5.º de Caçadores, Francisco Eleutério Lobão. Ajudante de ordens do governo interino foi nomeado o major João Silveira Machado.

Desta forma entendeu o governo havia acautelado quanto lhe era possível o sossego da ilha Terceira e a obediência à causa constitucional; porém, não era este o pensar da maior parte dos nomeados para os sobreditos cargos: porque, certamente, só o medo os continha na obediência, e faria aceitar, desconfiando sempre do bom êxito da mesma causa, e ainda que, aparentemente, se mostravam satisfeitos, em se dando a menor ocasião de combater não havia que fiar deles. Todavia, ainda que mui devagar e sempre marchando por muitos obstáculos, se foi pondo em movimento alguma parte das ordens do governo, até que apareceram manifestas as causas do descontentamento que andava manobrando às ocultas.

Outra promoção se fez ainda, e que não teve um mais favorável resultado. Nomeou-se inspector dos fortes da linha de leste, com patente de capitão de ordenanças, a João Borges Pamplona, da Vila da Praia; tenente do forte do Espírito Santo, Joaquim Coelho; de Santa Cruz, António Leonardo Parreira; da Luz, a José de Ornelas; de Santo Antão, a José Borges Linhares; de Santa Catarina, a José Diniz de Ormonde; de S. Bento, a Felicíssimo Ferreira de Melo; de São Fernando, a Manuel Inácio; e de S. Francisco, Vicente Cardoso Coelho (ordem do dia de 28 de Agosto). Proveu-se o comando dos mais fortes da costa, e acho que, para o de Santo António do Porto Judeu, foi nomeado o capitão Manuel Leal do Couto, para o da Salga, com patente de alferes, José Vieira de Melo, para o de Santa Catarina das Mós, com patente de alferes, Francisco de Paula Borges, e, finalmente, para o de S. Sebastião, Elias Ferreira de Ormonde.

Notas:

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1. Por consultar a brevidade não relato aqui vários argumentos de que se fundavam os fautores do novo capitão-general, apoiando o seu direito; mas por fim tiveram que ceder.

2. Conservo uma relação exacta dos movimentos da fragata, e de tudo o mais que foi acontecendo escrita por uma pessoa insuspeita.

3. Notaram-se em várias partes casos dignos de memória e no Cabo da Praia, indo tirar-se a espingarda a um Mateus Francisco, que servia de sargento de milícias, abraçou-se com ela e debulhado em lágrimas a não queria largar, chamando-lhe sua fiel companheira, e que antes queria morrer com ela na mão do que perdê-la, e desta classe houveram muitos; tal é o império do costume entre os homens.

4. Única proclamando o sistema constitucional a consideravam todos, porque suposto a ilha da Madeira haver proclamado os direitos d’el-rei D. Pedro, em razão de não poder conservar-se em bloqueio facilmente baquearia.

5. Os nomes destes cidadãos alistados naquele dia constam do livro em que logo se inscreveram; mas para que se não perca a memória de alguns de que me lembro, aqui os descrevo: Lucas José Chaves — Francisco José Teixeira — Francisco de Paula da Costa — José Narciso — António José Caldo-Quente e seu filho do mesmo nome — Francisco José Baleeiro e seu irmão Luciano Baleeiro, Luís de Melo, &c., &c. e da Praia, Francisco Ferreira Drummond, e Simplício Eusébio Nogueira, professor de latinidade.

6. Fez imprimir uma Memória que ofereceu aos Pares do Reino e aos Deputados, na qual sustentou que o governo Interino se rebelara no referido dia 24 de Agosto, e entre outros compreendia o comandante do Batalhão 5.º de Caçadores, José Quintino Dias.

7. Por espaço de 6 meses era o plano do governo.

8. Nos Manuscritos que se acharam por sua morte, encontrei a cópia da informação dada por ele ao chefe militar, segundo a qual se fez uma nova promoção e diz assim: José Inácio Silveira, voluntário real da Senhora D. Maria II: este militar foi incomparável no dia 24 de Agosto, opondo-se até à morte, se acaso se verificasse o embarque. // V. Ex.ª já sabe, e é publico, ninguém ignora os serviços prestados pela pessoa de Teotónio de Ornelas, capitão de milicianos, e hoje dos voluntários reais, com a sua pessoa, com os seus bens, com o seu navio prestado gratuitamente, e com as muitas despesas feitas em amor da legitimidade do Sr. D. Pedro IV, sendo gratuitamente ajudante de ordens, tendo passado depois a membro do governo, em ambas as épocas não se tem apartado uma só meta dos seus devidos sentimentos. // O capitão José Quintino Dias, comandante dos caçadores que então era do Batalhão n.º 5.º anuiu à causa da restauração no dia 22 de Junho. Teve nobres sentimentos, desanimou nas sessões que teve o governo e sustentou que a ilha se não podia sustentar, contra o que dantes tinha dito, e foi quem, sem dar parte ao governo, fez apenar os navios para a condução do batalhão para fora da ilha, no dia 24 de Agosto. // Antes de passar à segunda ordem de serviços devo também fazer recomendáveis, ainda na primeira ordem, o bacharel Manuel Joaquim Nogueira, que foi militar, eleito pela Câmara secretário do governo. Foi a primeira coluna em ambas as épocas, e em ambas restaurador; pelo que se faz muito digno da alta contemplação de S. Majestade. // O tenente de caçadores Francisco Eleutério Lobão, este muito digno oficial foi como promovedor da restauração de 22 de Junho, quem com 30 soldados se arrostou até ao fogo, fazendo fugir mais de 4:000 homens milicianos e paisanos armados de munições de guerra; foi quem, no dia 24 de Agosto se opôs ao embarque do batalhão, promovendo com o secretário do governo, e sargentos de quem se serviu para se oporem ao dito embarque, do qual se seguiria com toda a certeza, o massacre dos amantes da legitimidade, e a entrega da ilha aos rebeldes. // O paisano António Silveira, em ambas as épocas muito servidor, foi com ofícios ao Porto, arriscou a sua vida e para o dia 24 de Agosto trabalhou incomparavelmente com seu irmão. // O sargento Veríssimo José Gonçalves, mandado no dia 21 de Junho pelo pérfido Touvar para o Faial, fez toda a diligência para se escapulir, e não pôde. Voltando para a ilha depois da restauração fez muitos serviços; e ele foi a grande coluna no dia 21 de Agosto, que se opôs ao embarque do batalhão com o seu, companheiro o 2.º sargento Miguel de Sousa, o qual com outros no dia 21 de Junho também fez os maiores serviços aos quais acresceram os de 24 de Agosto. Destes dois sargentos foi de quem me servi para destruir a facção de 24 de Agosto, a quem tinha sucumbido o capitão Quintino.

9. Ordem do dia de 30 de Julho.

10. Todas estas medidas de prevenção constam do livro respectivo, nas ordens do dia.

11. Foi alistar-se voluntário, e todavia não teve imitadores.