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O Desembargador Osório Pereira de Góis dava o seu dedo de con­versa na roda que todas as tardes costumavam fazer na Botica da Feira Nova. Ali falavam sobre tudo e sobre todos, jogavam gamão e fumavam o cigarro do café do jantar.

A Fortaleza não tinha aristocracia, nem classes, e não sei se hoje tem; por modos que a florescente cidade poderia comparar-se a um or­ganismo em formação, a uma semente fermentando, onde só o olho do sábio divisa o que terá de ser caule, folha, raiz.

Conquanto homem de observação, era o Dr. Osório corredio em leis feitas e contrafeitas pelos homens, trovejando contra esse nivelamento social da capital dos cearenses, que ele chamava o "Caos". Talvez ti­vesse razão, se conhecesse bem o sentido daquela palavra.

Isto havia de provir do querer-se avaliar uma população ainda não caracterizada, tomando por termo de comparação a civilização de ultra­mar, demorado produto de séculos sobre séculos.

O menino que exigir, daquele solo ardente e inclinado, que o Jaguaribe sustentasse as suas águas, ou que a lagoa Porangaba gelasse para se patinar e ir de trenó.

E pois, o Dr. Osório vivia meio desquitado da sociedade fortense.

Porém, como quem tem língua é preciso sempre dar um pouco à tarmela, cifrava por esse tempo as suas relações à estreita convivência da roda da botica.

A par disto, sabiam-no político dos que o povo chama pé-de-boi, ser­vindo cegamente ao grupo liberal moderado.

Quando se calculava pelos dedos uma decisão disputada pelas goe­las famintas dos partidos, o seu nome era logo o dedo mindinho.

Casado com uma volumosa senhora, D. Maria Fabiana, dos Castros da Vargem da Onça, havia uma filha: a gentil menina Maria das Dores.

Poupão, metódico, temente a Deus, o casal Góis

Tinha, Deus louvado, bem segura
Esta vida presente e a futura.

Fabiana de Góis aspirava, entretanto, participando das aversões do esposo à democracia cabeça-chata, um nome nobiliar na sua família. Sertaneja dos antigos tempos em que os meninos hábeis, os curiosos, eram dedicados, não à lavoura ou ao livro, sim ao maçarico de ourives ou ao seminário; em que a hospitalidade era um dever, mas a vingança um di­reito; sertaneja da era dos senhores territoriais que dispunham dos ho­mens, das mulheres, dos bois e dos campos; hoje em dia, ambicionava apenas casar a filha com um titular.

Meu Jesus! quanta arenga não teve ela com o marido por amor disso! No partido, o mais que havia eram comendadores, e estes, casa­dos. Nem um barão, nem um visconde!

— Fica tu certa, Fabinha, que nossa filha não pode fazer o casa­mento que desejas — dizia-lhe o homem, alta noite, ambos deitados. De­cididamente eu não me passo para os conservadores!

— Mas então hás de casá-la aí com um bacharelete?

— E tu com quem casaste?

— Os tempos eram outros. E daí sabes com quem é que a menina simpatiza? — acentuava o filósofo.

— Isto de simpatia nasce com a continuação... Quando me casa­ram contigo eu te enjoava demais.

— E quem sabe lá se não aparecerá um negociante rico que fique caidinho por ela?

Com esta última interrogação, Maria Fabiana largava uma cotove­lada no marido e virava-se para o outro lado.

Balbuciou consigo entre zangada e chorosa:

— Fala-se em gente nobre e este idiota vem agora com o dinheiro pra frente! Diz que é preciso a simpatia, que é preciso amor, amizade e o diabo! E você sabe ou não se ela gostará do Visconde?

— Oh! Fabinha, dorme, deixa isso para amanhã que hei de decidir como for de direito.

E dormiram.

Nesse rojão o desembargador ia adiando o propósito de virar casaca.

O caráter político, efetivamente, estava em sustentar a idéia do par­tido; ora, nem uma das facções arvorava idéias: logo, estar num ou nou­tro era o mesmo. Aparecia, porém, uma forte objeção — as suas intrigas pessoais e a sua birra com a popularidade do grupo chefado pelo dese­jado genro. Em todo caso, esperava pelo ditame dos fatos.

Habituou-se a resingar com a consorte, empregando agora o raciocínio, agora a frase brutal, agora a risada, até que, por fim, apesar das disputas, da divergência aparente, respiravam ambos as mesmas con­vicções.

Tinham invencível confiança nos dotes da menina.

Muito gabada pelas Irmãs de Caridade, Maria das Dores deixara o colégio com intenção de voltar. Continuava a ser confessada do padre reitor e ia fazer lá a sua comunhão. Passava esse dia com as outras, e à tarde, o Dr. Osório, no seu modesto carro, ia buscá-la todo embebido nas inefáveis palpitações de pai. A rapariga, tendo ficado moça no colé­gio, e sendo, como em geral as crianças, muito afeiçoada ao que a cer­cava, encontrava ali na vaga delícia daquelas amizades coloridas de recordações, daqueles corredores, daquelas salas, daqueles pátios ajardi­nados, e daquela capelinha catita e incensada, bastantes ninhos onde adormecessem as revoadas do amor não definido ainda.

Continuava em estudos clássicos com professores que vinham le­cionar em casa, e os conhecidos possuíam-se de um certo respeito pela sua simplicidade, riqueza, formosura, instrução. Espalhavam que ela sa­bia como um doutor, e exageravam os possuídos do pai, que não eram lá essas coisas.

— Podese mesmo afirmar, sem susto, que em verdade o Dr. Osório era pobre; um arremediado; e que o saber da filha não passava de umas lambugens variadas, muito à flor.

Para Maria das Dores, quando ia ao colégio, a palavra ungida do padre reitor, se aconselhando, dispunha para a contrição; se gracejando, fazia abrir-se sutil o riso, como as bobinas com a fresca da noite; ralhando, apertava o coração, como a rama da malícia. Ela estremecia de íntima saudade quando, entre as antigas companheiras, pregava nos ombros os alfinetes que seguravam a fita azul das filhas de Maria, cuja medalha caía no regaço, por sobre o vestido afogado, na altura onde se cochicha­vam apertados pelo corpinho os dois seios adormecidos na noite aluarada da virgindade; aspirava, como um aroma antinevrálgico o ar da capeli­nha, cuja influição especial agora é que ela sentia, acidulado pelas ema­nações das carnes inocentes, amornentado pelas chamas das velas, pe­numbreado pela vidraçaria gótica à luz do sol oblíquo.

Sentia um quê de estranho, de comovente, dessas impressões que nos trazem silenciosamente o pranto num riso, quando passavam as irmãs para os seus genuflexórios, metidas em grosso burel, as mãos desapa­recidas nas mangas encruzadas, e da carne só aparecendo o rosto com os olhos para a terra, o cérebro circundado pelo chapeirão alvo, gelando as ruminações das bocas mundanas e batendo pausadamente as duas abas em ponta, como a marcar vôo para o alto céu. E quando por detrás das duas colunas do santuário, douradinhas e leves, o padre reitor vinha subindo da sacristia, na capa de asperges, e lançava um manso olhar pela capela, o sol, que batia em caprichos do alto da parede, alumiava mais, e parecia que até a lâmpada estremecia. Depois o padre subia para o tapete onde roçava o frontal e abria o sacrário. Nossa Senhora estava lá em cima, com o manto azul, a coroa de rainha, e as mãos abertas em graças para o globo celeste que ela pisava adornado de estrelas. As flo­res artificiais do altar orvalhavam-se e tinham seiva e aroma, com as fra­ses do Tantum ergo, cantadads pelas órfãs, ao gemido da serafina. E ao Genitore genitoque, quando o acólito apresentava o turíbulo e a naveta, e o incenso caindo nas brasas subia em palpitantes nuvenzinhas, a hóstia, no meio da custódia, que se abria num sol de prata, parecia ir também subindo e levando as almas das criaturas.

Depois do Tantum ergo o padre reitor ajoelhava, recebia o véu d'ombros, a capela num silêncio espectante.

Abatiam-se diante dele todas as frontes. Era a benção do Santíssimo Sacramento.

Suspirações, quantas naquele momento! Quantos segredos que as meninas contavam suplicativas ao bom Jesus Sacramentado!

Maria das Dores não dizia coisa nenhuma. Sentia lágrimas nos olhos, prostrada, e, mãos abertas no coração, em asa de borboleta que repousa. Adorável. Via-se-lhe o colo, metido no espartilho (que começara a usar depois que saíra do colégio), agitado como se fora exalar o último suspiro, e um suorzinho umedecer os cabelos das têmporas. As tranças presas deixavam o cangote a descoberto, cheio de umas pilosidades que deviam cheirar brando e sempre.

E tinha-se vontade de encostar a face eternamente naquele ombro como o discípulo amado para com o Mestre puríssimo.

Ao Laudate, esse canto que alivia o coração e parece reboar pela face da natureza, pausado, crescente, ondulado, estabelecia-se o equi­líbrio entre céu e terra, e Maria, sentada no meio das outras, patenteava agora a sua fisionomia limpa e sorridente, de um moreno às vezes pálido, às vezes corado, segundo o que lhe ia no físico.

Viveu assim aquela boa criatura durante mais de ano; o seu prazer circunscrito ao colégio. Verdade é que sentia um tal ou qual pendor pelos rapazes, e não deixou de ser tentada pelo demônio, mas era senhora deste sujeito e olhava-o com desdém, pela grande confiança que depositava em Nossa Senhora. Algumas pessoas diziam-na antipática, e outras or­gulhosa pela sua reserva ou acanhamento.

Entretanto, ia-lhe, sobrevindo o mesmo tédio de que sofreu no úl­timo ano de classe. Passou, finalmente, a novidade dos passeios ao colégio, e das lições do professor que vinha a casa. Quando o pai mandava aprontar o carro, e dizia-lhe que se vestisse, ela surpreendia-se agora de não sentir a mesma agitação, o mesmo sustozinho grato.

Uma semana que foi passar com as Irmãs, ao Meireles, tempo de caju, admirou-se de não sentir o mesmo arrepio delicioso quando chegou lá. Descia ao banho de mar, um tanto afastada da gritaria das outras, bus­cando antes a companhia dassuas antigas mestras. Vestia a camisola de banho, muito empuxada pelo vento, que queria à fina força levar-lhe a roupa e os cabelos; mas os seus lábios, em lugar do riso, que enflora, tinham uma pontinha de meditação que enubla. Corria para a maré, ba­tendo com os pés nus na areia luzente da água, meio curvada para diante e prendendo a camisola entre as mãos. Mergulhava na onda com um pra­zer que antes não sentia, e aquilo sim, era bom. Gritava também, queria enovelar-se com a espuma e boiar naquela cama de água, naquele col­chão vivo que parecia possuir mil segredos. Vinha ao seco e voltava num rodopio como um poldrinho espantado. Sumia-se no mar e a onda abai­xando, reaparecia o busto com os cabelos tapando o rosto, os quais, num gesto rápido, ela sacudia para as costas. Passava a mão pelas feições e atirava-se de novo ao cóncavo despenhante da onda. Os quadris muito desenvolvidos na água pareciam ter molas ocultas, eles que na hora do tédio e dos bocejos, pesavam a dobrar sobre os pezinhos de cabocla.

Deixava constrangida o mar. A última a sair, e depois da Irmã cha­mar por três vezes. Então vinha correndo, possuída de um pudor súbito, com a camisola pregadinha ao corpo, as mãos apertando o seio.

Uma tarde largaram-se até pertinho do Mucuripe. Uma légua pouco menos. Iam descalças, de chinelos na mão, com a mais sedutora liber­dade deste mundo. Os vestidinhos de chita contra o vento. O sol que se estendia quase horizontalmente por detrás delas, recebia-as de longe,adiante, pondo luminárias no mar e nos coqueiros dos sítios.

— O céu, com uns tons de faiança, para o Oriente, ganhava um esbatido róseo no azul esmaecido. Umas, como cãezinhos festeiros, iam a corrupiar com as alternativas da maré; aquelas três, abraçadas pelo ombro, esta isolada; outras pela areia frouxa.

O vento, eriçando pela cútis das areias, traçava ligeiras sombras de uma alvura de flor de cáctus. O vasto corpo arenoso, encrespadinho como a epiderme, apresentava empolamentos de seios, fundos recônditos setinosos de sovacos e grossa macieza de ventres.

Subiam à Maria das Dores desejos de largar-se por ali fora, curio­samente, como se p-r trás de cada morro se preparassem novas paisa­gens, como se novas praias beirassem outros mares e regiões de outra natureza. Arrancharia nas povoações plantadas de coqueiros, nos arrai­ais de pescadores, nas palhoças metidas na areia como no gelo a cova dos esquimós; espraiar-se-ia como aquelas ondas de mar, de vento, de céu, de poeira nevada.

A terra parecia findar-se na duna enorme da ponta do Mucuripe,de onde descia uma alvura vagamente corada pelos tons das nuvens.

Sob o fundo de coqueiros da povoação, via-se branquejarem as velas das jangadas empoleiradas no seco e saídas da pesca: um acampamento de alvas barracas pontudas no poeiramento do crepúsculo. A praia vinha acompanhada, longe, de uma linha escura de matos e de sítios, aqui fugindo para trás de um morro de pó, ali aparecendo como os ca‑

belos de uma calva incompleta. E uma duna, de cimácio quase reto, encostando no escuro anil do Sul, era como o dorso de um oceano de leite.

Da areia porejava uma frescura confortativa. Porém, as educandas não chegaram à povoação. A Irmã disse que já estavam muito afastadas do Meireles, e que era preciso voltar. Descansaram nuns botes, janga­dinhas a remo para um só tripulante. Maria das Dores, com a Irmã, sentaram-se no banco do remeiro. Veio-lhe de súbito um desejo de ir-se naquela jangadinha pelo mar adentro, e puxou a sua ex-preceptora a con­versar sobre viagens. A francesa tomou bondosamente a palavra.

Maria nem enxergava um peixeiro que passava para a cidade, ao acostumado trotezinho, de calão carregado ao ombro, e passou-lhe despercebida a vaia que as outras deram num menino muito sujo que ia com uma carga de cocos, escanchado entre os caçuás penosamente supor­tados por um mísero cavalo que procurava instintivamente a areia endu­recida pelo malho das ondas.

Quando voltavam, entretanto, a Das Dores, como lhe chamavam no colégio, quase chorou de dó, ao encontrar com uns pequenos que vi­nham da lenha.

As fêmeas com o cabelinho embaraçado e um pedaço de cober­ta encardida ao ombro, e os meninos, em camisão, com as canelinhas ao vento. Atrás, uma já moça, com um enorme feixe de garranchos, que inclinou propositalmente para cima dos olhos. Via-se que a rapa­riga trazia a saia em cima da pele, e que o pudor dos peitos era ape­nas aquecido por um cabeção de algodãozinho. Maria teve um desses ímpetos que se encontram na vida dos Santos, de perguntar pe­los pais daquela gente, de arrimá-los, de dar o seu dote aos pobres e ficar pobre também. Entretanto os pobres passaram, ela se comprazendo nessas delícias de imaginação, e nem reparou que em todas aquelas feições acentuadas pelos revezes pousava sossegada a doce resignação da ignorância.

Adiante as colegiais encontraram uma preta, sumida num molho de ramos com que ia remendar as paredes da sua tapera; a preta olhou para uma das meninas, de quem tinha sido escrava, com uma frase de satis­fação, mostrando sua dentadura de hiena. Quando a pupila subia, porque o peso forçava o corpo a curvar para diante, clareava muito o branco dos olhos. Aquela rigidez de homem fazia medo, e a maneira com que a ne­gra mudava as pernas, e a tensão dos braços estendidos para trás. E fez bater o coraçãozinho das Das Dores, como o peito de uma rolinha inex­perta.

Em frente, pelo conjunto de morros, de coqueirais, de matos, donde sobressaíam longinquamente as duas grossas torres da Sé, e as mastre­ações distantes no oceano aplanado, abriam-se os derradeiros raios ex­pirantes do sol, que apontavam para o infinito azul indiferente. A Irmã pu­xou o relógio. Tinham dado seis horas. Avistava-se o sítio, com a sua flo­resta de cajueiros embaçada por um adorável efeito de luz. As meninas iam gostosamente com os pés na água, sem se lembrar de cansaço. A maré estava enchendo, e lamberia até as areias frouxas.

A Das Dores, quando enfrentaram com a altura da porteira, largou-se adiante sozinha. Não encontrava mais a satisfação que dantes sentia na privança com a mestra. Que pena já não ser menina, para passar todo o tempo a gritar e a pular, estirando a língua pelas costas da Irmã, cho­rando por birra, inventando saudades de mamãe para não perder um dia de saída, e fazendo caretas ao São Vicente do recreio! Como era bom esse tempo, cujas imunidades agora é que ela reconhecia!

Obrigavam-na hoje em dia a ser pessoa de modos, a pautar a sua conduta, os seus movimentos, a sua voz, a estar com o espírito sempre de vigia, a dar direção obrigada aos olhos como ao leme de um barco.

A princípio lhe dava um secreto gozo o já não ser menina. Por outro lado, à medida que os pais foram se aborrecendo, um tanto enciumados pela preferência que a filha dava ao colégio, ela foi se impregnando dos atrativos do lar, foi querendo bem à sua camarinha, à sala, aos corredores, aos móveis, ao quintal, aos fâmulos da casa paterna.

No momento em que, sozinha, rumava para a porteira do sítio em que as pensionistas estavam hospedadas por conselhos médicos, a sua alma ia como a vela da jangada quando o vento bambeia. Era preciso virar de bordo. Decididamente reconhecia não ter vocação para Irmã de Caridade.

No dia seguinte o pai ainda não viria buscá-la.

Quando o padre reitor entrou de manhãzinha montado no seu ca­valo, estava ela no terraço esfregando os dentes. Admirou-se de achar muito feio agora aquele homem metido naquela coisa preta. Que triste impressão!

Aos seus ouvidos chegava, porém, o coro de uns sabiás nos melões do cercado. O mar, de um azul precioso, adiante dela, enchia o horizonte. O dia vinha forte por detrás dos cajueiros. Maria achava-se pertencendo àquele ar, àquelas árvores, àquele pó, Aqueles pássaros, e queria ser botão, ser flor, ser fruto; e depois ressuscitar em átomos daquela natu­reza que a gerara. Foi quando viu-se melhor. E foi para a missa adorando muito ao autor da Criação.

Assistiu à cerimônia, que antes lhe era um fim, como a um simples episódio da existência diária.

No banho de mar, no rebuliço da onda, pôsse a meditar de vez em quando. Que diferença!

E durante o dia preferia andar pelos cajueiros, a ficar debruçada sobre o bastidor do bordado. A tarde fez-lhe muito bem contemplar o cur­ral, cujas emanações a confortavam, e guardou na memória a poesia bu­cólica de uma vaca azeitã que de pescoço estirado se deixava lamberpela bezerra já crescida, de formas carnudas e virginais, douradinha de sol, e com uns grandes olhos de filha.

Gostava de avistar os caminhantes, lá por longe, pela beira da praia, meio ocultos pela ribanceira do areal, e fitava agudamente o ponto branco das jangadas na risca azul do mar. O grito dos maçaricos produzia-lhe arrepiamentos, quando à noite ela tinha insônias e punha-se a olhar para os buraquinhos luminosos do telhado, ouvindo a ventania arrastar, a luz da lua, por sobre o arvoredo como que um vestido de sedas. O rolo do mar lhe despertava na imaginação um canhoneio longínquo.

Rezava-se o Angelus ali mesmo no terraço, depois da ceia, que ainda era com dia. Era esta a última noitinha que a Das Dores assistia no Mei­reles. Quis chorar, proferindo aquela oração tão simples, que principiava dizendo: O Anjo do Senhor anunciou à Maria. O sussurro quase hilariante da voz das meninas respondendo em coro parecia um ruflo de asas que iam em bando no amortecimento do sol, que não aparecia mais.

A areia foi a pouco e pouco empardecendo, e as folhas das árvores unindo-se na sombra. Apenas o extremo das palhas dos coqueiros balan­çavam, quando por entre eles, com o mesmo alaranjado que ainda retocava as nuvens, subia a lua, de um ninho de vapores indecisos, ligeira, grande, gorducha como um recém-nascido de boas carnes. Pestanejando apressadamente acendia-se o farol do Mucuripe, uma enorme estrela aver­melhada, e foi abrandando, até que entrou a desaparecer e reaparecer vagarosamente e por medida.

As meninas ficaram no terraço até bater a campainha para a oração da noite. Ali mesmo fizeram o recreio. Delas, um grupo numeroso, sen­tadas em círculo no solo, brincava o limão, e cantavam compassadamente para a do meio: lesa, menina, lesa... A claridade da lua projetava sombras densas, e vinha já descendo meia parede. Os recortes da bandeirola, na porta do lado, iam desenhar-se no tijolo da saleta escura.

Isolada no parapeito a Das Dores cochichava as frescas ave-marias e os longos padre-nossos do seu terço de marfim, e o ar frio, branda­mente agitado, fazia aparecer de vez em quando entre os seus lábios a pontinha da língua para umedecê-los.

A claridade, a princípio muito forte por debaixo das árvores, por modos a luzirem as folhas caídas, penetrava deslumbrantemente nas copas e ramadas, e em breve o disco da lua foi sobranceiro à tona do arvoredo. Por fora do cercado, para o mar, as pequenas dunas salpicadas de moi­tas de capim, na encosta interior, mostravam o lombo nitente, ou a cava escura dos pequenos vales, e em frente à porteira estendia-se um ala­gado em cuja face trêmula boiava em i brilhantíssimo, de margem a mar­gem, a luz da lua.

O areal da praia aparecia como umas camadas de algodão, e a espuma da onda, refervia com uma alvura excessiva. A direita da porteira as salsas estendidas na irregularidade do terreno abriam os seus cálices roxos, inúmeros pavilhões de cornetins, de onde parecia arrebentar a gri­taria dos insetos, e o verde verniz das folhas argentava e incrustava-se de brilhantes.

A areia do caminho, trilhada pelos pés, traçava uma zona estreita, esbatida, irregular. De uma jaqueira isolada via-se deliciosamente a copa florida, nas menores minudências de volume, desde a linha acesa até a parte indecisa que se enxergava através da sombra. E era belo aquele jogo de sombras diversamente graduadas, sem a monótona igualdade das do sol.

Umas impenetráveis, outras que eram a modo de um ar apenas mais espesso. O tronco brutal de uma cajazeira era todo repinicadinho na face iluminada. E as copas dos coqueiros, enormes crustáceos aéreos, pro­duziam uma música de cintilações e de chiados, como se nelas fervilhasse a luz em forma de insetos. A maré parecia branda, apenas de quando em quando o estouro de uma onda mais carregada. Até a risada rouca e fúnebre da coruja repassava-se da sagrada melancolia que pairava no ar. A esgalhada, sem folhas, do ateiral, não lembrava espectros, mas na­quela claridade infiltrada do reflexo branco das areias, despertava paisa­gens hiberninas da Europa, que tinham se visto em estampas. O senti­mento povoava de duendes os recessos de sombra, e os pontos da viva claridade. As lágrimas da Maria das Dores esconderam-se no coração. As meninas continuavam no recreio, ao passo que ela prosseguia debu­lhando as contas do seu terço. O luar lavava amplamente o terraço.

O pó entrava a fazer-se luz. A imaginação fazia-se realidade no mundo interior.

Da altura do parapeito a Das Dores, a sonhar acordada, como que se debruçava de um castelo fortificado, a desoras, para um cavaleiro de capa e largo sombreiro desabado. Brincara muito com uma figura assim, da tampa de um bocetão oblongo onde mamãe guardava a chapelina. O bigode e a pera do conversado, que parecia ter entrado pela porteira como o padre reitor, eram ver o tipo do primo Vicente. A Das Dores es­queceu desta vez de esconjurar a tentação de Satã. Chegou ao fim do terço e recomeçou. Proferia as santas palavras suspirando. Era com efeito o primo Vicente, um oficial de artilharia, que a imaginação fizera entrar, a cavalo, no russinho do padre reitor. A Das Dores admirava-se de ter guardado tão bem as feições dele, por modos a sentir-lhe até a respiração, a ouvir-lhe o timbre da fala, e a sofrer no rosto uma forte impressão de choro, de saudade, de amor, talvez!

Ali, no impalpável do ideal, na fantasmagoria, da natureza, ao aroma penetrante das árvores, pensara coisas, de que, no dia seguinte, quando a brutalidade do sol com a sua grande risada universal de luz e de calor penetrasse tudo, ela pasmaria e teria vergonha. Pois a Das Dores era lá rapariga para apertar um mancebo a dizer-lhe — Eu te amo? Eu te amo?

Entretanto era tão inocente aquela paixão pelo primo! Ela não procurara, não fizera cavilações. Viu-o, gostou de olhar. Um moço de estu­dos. Tornou a ver, e ambos gostaram de olhar-se. Mais nada. Sonhou. E veio logo a idéia natural, o casamento, com todo o adorável cortejo das encantadoras ingenuidades do primeiro amor.

Como era esperado, de manhãzinha o pai veio buscá-la. Acordou mais cedo porque era preciso fazer um ramilhete de flores silvestres para pôr num jarrozinho de búzios que ela fizera para presentear a mamãe no dia de seus anos. O carro parou lá fora, no chão duro. Depois da missa, o pai foi cumprimentar ao padre reitor, com quem trocou uma pitada, e beijar a mão às irmãs. Das Dores abraçou as companheiras, tomou café, e desceu muito alegre os degraus do terraço, abrindo a sua sombrinha de seda, e de vez em quando deitando para trás um riso de amorosa con-fraternidade, como quem diz: — Vou ali e já volto.

E a sua antiga preceptora, de pé, no último degrau da escadaria exterior, ainda a olhava, quando ela pisou no estribo; e pelo movimento das asas da cornette via-se que a boa senhora balançara a cabeça como afugentando a mosca importuna de um pensamento mau ou de desgosto. O sol batia fortemente na caixa azul do carro, ao arranco da parelha, e ouvia-se o estalo do chicote agitado no ar. O veículo navegava mansa­mente procurando a areia menos frouxa, até desaparecer por detrás de uma ribanceira. A Irmã teve uma forte recordação da lenda do rei de Thule, cuja taça, jogada ao mar, virou e revirou e desapareceu.

Entrou, apertando os beiços.

C'en est fait, mon père — disse ela tristemente ao reitor que ia atra­vessando a sala. E voltou-se para a Irmã Superiora, com um gesto chistoso, como arrancando uma coisa da boca e deixando cair: — Ma Mère,... babau!

Com toda certeza a Das Dores não podia ser Irmã de Caridade. En­trava pelos olhos. As provas mentiram. O seu amor pelo Colégio viera desmaiando até dar num esbatido que fazia transição para outro género de afeições. Por isso é que a Irmã dizia penalizada ao reitor: — Mon père, c'en est fait. Acabou-se.

O padre era um homem sábio nisso de vocações. Incumbido da acer­bissima e delicada missão de preparar os moços para as ordens sacras, quanta desilusão não tinha sofrido! Acontecera muito o seminarista ser um predestinado, e o padre um réprobo. Assim, o seu proceder cifrava-se em uma negativa constante. Salvo rarissimos casos em que dizia ao or­denando:

— Tem vocação, mas peça a Deus que o ilumine. Se achar em si uma partícula mundana, fuja, fuja do sacrilégio!

Quanto à Das Dores, disse-lhe francamente:

— Pense noutra coisa.

Estas palavras a menina recebeu-as de peito cheio. Um alívio. Estremeceu toda. E daí julgou-se habilitada para o concurso da vida.

Ao lado do pai, ao corredio deslizar das rodas por sobre o tapete luzente das areias batidas pelo mar, o corpo, desaparecido na seda preta, agitava-se de molécula em molécula, como se a faculdade imaginativa estivesse nele todo, desde as veiazinhas invisíveis da unha até aos ig­notos do espírito. O dia cerrava-lhe as pálpebras a meio. Pendia para o fundo do carro. A odorante carnadura dos seios pulsava levemente. No regaço, entre os joelhos, pousava, ou antes boiava, o jarrozinho de con­chas, feito pelas suas bentas mãos, tripulado por umas flores silvestres amarelas, violetas e azuis, com umas folhinhas muito verdes, agitadas de manso pelo ferver daquelas artérias extravasantes de sensação e de sentimento. As mãozinhas gorduchas, metidas na luva de retrós, caíam sobre as dobras do vestido. A seus pés sumia-se uma cestinha de vime. Na boléia, ao lado do cocheiro, faiscava ao sol matutino um pequeno baú de folhas. A direita, o mar, e à esquerda, a praia, avançavam. O pai fazia eternamente algumas perguntas, que ela respondia mais com o sorriso do que com as palavras. Era preciso falar alto, por causa do vento. "Se ia contente, se ainda tinha precisão dos banhos de mar, se tivera sau­dades deles, isto é, dos pais..."

— Muita, papai, você bem sabe disso — soltava ela na sua voz pro­longada e rica de nuanças de timbre, olhando a cidade que ia aparecendo na sinuosidade da costa, detrás dos morros e do coqueiral.

O bom homem sentia-se bem, com aquela preciosidade a seu lado, que não cederia por todas as riquezas de mar e terra. Caidinho pela filha. Bastante feliz para distinguir, avaliar, e prezar a nova espécie de sensações que lhe nasceram desde que foi pai, era de uma grande avidez por estes haustos inefáveis que sofre uma pessoa quando sentese ao pé de outra a quem adora. Entretanto acontecia ser um tanto parvo e desastrado diante da filha.

O cocheiro não quis passar por debaixo do trapiche, cujo conjunto roxo-terra aninhava-se na areia e metia pelo mar uma ponte suspensa por grossa e longa estacada, muito nua e alta com aquela maré tão seca. Subia um frescor salgado dos poços que a maré deixara, e o arrecife, com uma parte no seco, abrolhava negro e áspero entre espumas e ver­des ondas.

Chegando próximo ao trapiche o carro fez-se logo para a Alfândega, conquando houvesse de vencer um pedaço de areia muito frouxa, prin­cípio de uma duna; era inconveniente ir mais adiante, porque, àquela hora, o comércio aproveitava a maré para fazer a descarga e o embarque, e havia grande tropelia.

A Dorzinha avisou mesmo ao cocheiro que não fosse por lá. Os tra­balhadores que entravam mar adentro com fardos para os lanchões an­davam como o pai Adão, apenas com uma guisa de tanga em vez de folha de parreira.

Os telhados gigantescos dos armazéns que formavam a ala avan­çada das edificações da cidade, sobre as frentes caiadas de ocre, iam-se praia além, presidindo àquela balbúrdia afastada, a que a Das Dores era indiferente, e de que apenas conservou na lembrança uns montes de sa­cas de algodão, loirejando ao sol. Entraram na Praça da Alfândega, des­campada para a parte do mar. Das Dores estremeceu, e empertigou-se, com o primeiro abalo do carro no calçamento, onde as rodas produziam um ruído áspero, que mudou-lhe a natureza das impressões. Teve de ir reparando para fora, desencostada do coxim, por causa daqueles saltos a que a irregularidade das pedras obrigava o veículo. No tope de uma ladeira que apareceu logo ali, assomava a capela da Prainha, com as suas torrezinhas pontudas, e a singela cruz do frontispício, e as janelinhas do coro de onde tantas vezes, pelas novenas da Conceição, Maria das Do­res assistira missa cantada, com muitos foguetes e repiques.

A Alfândega inda estava fechada, e o trilho, que sobre um estreito viaduto de madeira, corta o pântano coberto de salsedo, que forma a área da praça, tinha apenas um vagão, e vazio, como à espera que se abrisse a grande porta da entrada. No canto, um pé de mongubeira sacudiu para dentro do carro um punhado do aroma doce das suas grandes flores, e o sol acendia uma fita de alvíssima luz no sabre calado da sentinela. Na passagem das sarjetas era preciso prevenir contra o balanço violento. O jarrozinho de búzios, levava-o ela agora seguro contra o peito, como se quisesse salvar de um naufrágio uma lembrança querida. A Rua do Cha­fariz foi a melhor, porque o calçamento estava muito coberto de capim e de terra molhada, e era pitoresco ir-se beirando uma série de sítios por trás dos quais ia-se avistando a encosta barrenta e arenosa do bairro do Outeiro entreaparecendo aqui e acolá o topete das casinhas de palha, e a gente sentindo-se como próximo a coisas que nunca viu.

Maria conhecia bem a cidade, porém passava muito tempo sem ir a certas paragens, e achava-lhes sempre um sabor de coisas novas, uma alegria, uma juventude, que lhe faziam muito bem. O pai não era cearense, paraibano. A mãe, sertaneja. Tosavam a Fortaleza, quando podiam. Ela defendia sempre a terra, os objetos, os habitantes, a natureza que assistiam-lhe desde que nascera.

Aquele olhar amoroso via amor em tudo.

A nuvem branca, de verão, no céu claro e profundamente azul; mesmo o sol terrível estorricando, a ventania, curvando a cerviz dos co­queiros e arrepelando os telhados, excitar-lhe-iam a morna saudade, e acenderiam, pelo torpor físico, a candeia mágica dos sonhos. A tarde, vermelha; os cirros altíssimos sarapitando de neve o forro já menos ani­lado do firmamento; os vapores escuros a estreitar o espaço; a bulha pe­netrante dos aguaceiros, a luz meio argêntea dos dias de inverno, deve­riam trazer-lhe a comoção à flux, a necessidade do trabalho, por um se­creto impulso primaveril. E uma grande frescura iria regar-lhe o canteiro dos afetos.

Assim, de um modo ou de outro, aquela criatura que desejava muito e satisfazia-se com o que havia, estava sempre em equilíbrio com o que a cercava. Nisto é que os pais a distinguiam.

O carro deu um vascolejo muito forte, que o velho pendeu um tanto sobre a moça, ao dobrar para a Rua de Baixo. Havia um atropelo de car­roças que desciam pejadas de fardos de algodão, de couros, de sacas de café, e de outras que subiam com bagagens de pouco desembarca­das. Em conseqüência, apesar da largura da rua, o cocheiro teve de botar mais pelo brando. Parecia, à donzela, que em vez do pai, quem ia ali era o marido. E isto não era um disparate para a sua índole. Alma simples, não compreendia senão afetos santificados pelo dever. Marido, pai, irmão, filho, amores igualmente sagrados pela natureza e pela religião.

Ia experimentando o consolo suave de uma criança cujo choro desaparece no seio da mãe. Para bem dizer, não via a fresca arborização que transformava a rua numa avenida de parque, a corporatura cinzenta da fortaleza à direita, com os seus antigos canhões negros, e a alegre fachada do quartel, dominando uma eminência relvada onde pastavam animais, nem um fundo de cidade que ia subindo pelo manso à medida que as rodas se moviam; nem as bojudas torres da Sé, topando no azul, quase escondidas pelas árvores, e cujas cúpulas apareciam como cheias de ar, semelhantes a dois balões a desprender-se e nem ouvia mesmo o sino grande, que estava a tocar Nosso Pai. O renque de mongubas à esquerda era uma verde muralha gigantesca e suspensa. A direta, no sopé da eminência do Quartel, a arborização menos alimentada pintava no pó incertos círculos de sombra, e a projeção da copa dos tamaringos depau­perados pela carga de frutos eram frouxas cabeleiras estendidas no gra­mado. Muito ao fundo, como um anão com um chapéu armado despro­posital, aparecia o Palácio do Governo, sob um rolo de nuvens de verão.

Chegados à Praça da Sé, de onde se desfrutava uma bela vista para a banda de Leste, pararam ao pé do Santo Cruzeiro, porque o Santíssimo ia saindo. Apearam, e abateram-se ante os homens de opa encarnada, três dos quais, iam na frente com a cruz e os lampiões prateados. Quem dera que fosse ali de opa o primo Vicente! Maria, protegida pela sombrada sege, espalmava as duas mãos sobre o peito, e pedia ao bom Jesus proteção para o seu ferido peito. O velho ajoelhava com os olhos na pe­dra, segurando com as duas mãos adiante o seu chapéu alto. O cocheiro dobrava a perna militarmente, além da sarjeta, e puxava a opa do rapa­zito que ia atroando a campainha, bem na avançada e perguntava-lhe para donde era.

— Eu sei que é pro Outeiro, respondia o acólito.

— Mas pra quem?

O rapazinho, que ia caminhando, não podia responder mais. Repe­tiu-se a pergunta ao sacristão, que vinha com o turíbulo, uma bolsa de baeta e uma toalha a tiracolo:

— Mas pra quem é?

— É pro diabo que o carregue, rosnou o homem, que ia bem con­sigo e mal com os outros.

Das Dores que ouviu isso ficou escandalizada como se lhe fizesse uma desfeita.

E disfarçou a contemplar a modesta procissão.

O pálio descia os degraus do patamar, e passou, da vasta sombra que a igreja projetava envolvendo os altos braços do Cruzeiro, para o sol do meio da rua. Fazia um belo efeito aquela fieira de opas escarlates. O brocado amarelecido do pálio abria e encolhia com a marcha, fazendo tremer as compridas franjas cadentes, especado pelos seis varais pratea­dos. Iam depressa, na consciência de quem leva a água de salvação para acudir a última devastação do incêndio da vida transitória.

O sol, uma hóstia ardente, arregalava. Sacudia os seus tentáculos de fogo por entre nuvens acumuladas. Chupava, com os desesperados calores da estação seca, a pouquinha de frescura do romper do dia. O Santíssimo dobrou para o Outeiro, cuja ampla subida, a leste, moldada entre dois muros, ia perder-se no confuso daquele bairro original e pau­pérrimo. Ao longe repontavam as torres agudas da Prainha, muito bem casadas, mimosas, forradinhas de azulejo.

Uma população rareada, de gente pobre, transitava ali na subida, a mor parte recolhendo da feira. Passavam quase todos pelo patamar da Sé, com os seus urus manteúdos, pés descalços, peito ao vento, xale traspassado, satisfeitos como eles mesmos.

Uma pintura fresca aqueles tons brancos da camisa e ceroula, do lençol das mulheres, e do camisão sujo dos meninos de canela à mostra. Pedreiros e carpinteiros, que iam almoçar, de botas velhas ou de chinelões, alguns de paletó cheirando a cedro, ou salpicado de cal. Um bodegueiro vestindo brim branco engomado. Pelo meio desses caminhantes carac­terísticos, via-se lá uma ou outra senhora de capa, aureolada pela som­brinha molemente bordada e forrada a cetim; raro cavalheiro grave, alguma rapariga de vestido na moda, meninos de calção curto e meia alta; vindos da capela da Prainha.

E a claridade ardia por cima das edificações.

A Rua de Baixo, vista do patamar, para o interior da cidade, des­cambava para o sul com uma largura de praça; atapeçada aqui e ali por grandes manchas de capim rasteiro.

No ponto onde a rua desaparecia em cotovelo, apresentava-se o terraço exterior do paço da Presidência, um bastião encimado por um gra­deamento, em cuja rechã forrada pela relva madura esboçava-se uma arborização, magra e insuficiente para ocultar de todo a fachada. O teto do velho palácio era para a frente assim como uma fronte gigantesca e avermelhada, sobre uma carita miúda e alvaçã; um velho casarão de péssimo efeito, segundo a opinião do Osório. Sobreapareciam a torre ama­rela do Rosário, e a platibanda enegrecida da Assembléia; e pairando por cima, dentre os telhados, como uma nuvem descida, o cimo das árvores da Feira.

O desembargador havia entrado na igreja, acompanhando a filha, que ia fazer oração.

Cá fora, da alvenaria do templo se despegava pelo patamar e pelo empedramento uma enorme sombra.

Uma sinfonia de sol, de sombra, e de ruídos.

O adro se estendia em plataforma, beirado por um anteparo de so­fás de alvenaria, e na frente agigantava-se a árvore do Santo Cruzeiro, a sair de um elevado gradeamento de ferro.

Às portas da igreja, escuras, percebiam-se as velas acesas, na pe­numbra que se fazia lá dentro, coradas e inquietas como estrelas ao cre­púsculo.

As ventoinhas das grossas torres apontavam para as pequeninas nuvens que iam azul em fora.

O cocheiro, enquanto o velho e a sinhazinha demoravam na igreja passeava no adro, pernóstico, fumando o seu cigarro. Dirigiu-se de súbito a uma mulher maltrapilha, que pedia esmola:

— Você sabe se o Santíssimo foi para a mulher do cego João de Paula?

— Foi, inhó sim — respondeu a mendiga. Desna dont que ele não aparece por aqui.

— E a corna da Antônia nem se lembra dele!

— Que Antônia? A Toinha que está em casa de Siá Dona Fabiana? Não senhor, abaixo de Deus, foi quem mandou de comer para onte e pra hoje. Porém a Chiquinha está morre não morre. Deus me salve tal lugar, mas está co'a barriga por aqueles mundos, de inchada — e arqueava lar­gamente os braços sobre o ventre.

Deu à taramela, até achar ensejo de dizer em voz comprida e con­fidenciosa "que lhe desse a sua esmolinha".

Aí o cocheiro, fazendo um ar de grande senhor na cara retinta, ati­rou-lhe com um vintém.

Continuava a dar à língua com a mendiga, de cigarro entre os de­dos, espevitado e grande coisa.

O Santo Cruzeiro ia a pouco e pouco emergindo ao sol. Um peixeiro que passava carregado para a Feira, parou em frente ao gradil sagrado, de chapéu na mão, aproximou-se, beijou uma das cruzes de ferro cra­vadas no meio de um círculo no ponto donde sai cada lampião, meteu a mão no uru, tirou um vintém e sacudiu para dentro. O disco de cobre foi tinir no ladrilho, junto à enorme peanha adornada de assuntos religio­sos em meio-relevo de barro nas faces do prisma.

As cercanias, à distância, por trás do templo, alçavam os seus co­queiros, as suas mangueiras e plantações, uma povoação de folhagens por trás da de casarias. Para além desses blocos unidos de verdura, adivinhava-se o aspecto desolador do extenso bairro do Outeiro. Uma zona irregular e caprichosa de alegrias da vegetação, entre o mundo da cidade e o vasto aldeamento dos pescadores, dos lancheiros, dos trabalhadores da praia, dos homens do ganho, dos operários, e de uma numerosa população decaída, uns habitando cabanas, verdadeiras covas de palha desses esquimós do areal ardente. Através dos ruídos ouvia-se o cantar do galo ao longe.

Para a cidade, os tetos se destendiam esquentando sol. Na Rua de Baixo, ali pertinho, o Mercado, com as suas paredes cor de sangue de boi, produzia uma zoada alegre, e era assim a modo de uma grande col­méia de gente. Defronte dele, ao meio da rua, estacionavam animais de­volutos, quase a dormir em pé, sob as cangalhas. Nos armazéns, carroaças carregavam açúcar. Espalhava-se um odor de aguardente, da desti­lação próxima, de par com o assobio da máquina a vapor.

A Rua das Flores abria diante da igreja. A população se movia, na labutação diária. De quando em vez brilhava a nota rubra de um xale no meio dos transeuntes afastados, que pareciam pisar em veludo.

Maria desce o patamar, e a sua fascinação continua a esperar de cada canto a imagem do primo. A rua, passando os castanheiros da praça, estendia-se ao olhar, com a sua casaria térrea, indo fenecer num hori­zonte longínquo, de alvo, de verde, de cinzento e de vermelho. O carro não podia partir imediatamente, porque um comboio de algodão nublava, com a sua onda loira, a largura do arruado e avançava como a cabeça-d'água de uma enchente, com um passo dançado e medido. Sobressaía ao lume da onda um vulto, a cavalo, e os gritos dos comboeiros e a sonarina dos chocalhos. Enfrentando com o Santo Cruzeiro os matutos se descobriam, e depois de ter dobrado para a praia, ainda iam olhando re­ligiosamente para trás.

Então foi que o carro teve o empedramento por seu. Das Dores ia atordoada com aquele tumultuamento rueiro do tempo de safra.

O primo não partirá para o Rio Madeira, naquela maldita comissão de engenharia! Mas que lembrança agora!... Pois seria possível que ele abandonasse uma terra assim tão boa como a Fortaleza, onde tudo ama e ri? Que pretensão extravagante a de ir meter-se pelos pântanos infin­dos da Amazônia! E morrer! A procura de quê? De fama? Ora a fama va­lia muito menos que o amor que ela sentia rebentar com todo o esplendor e franqueza do sol e do céu da sua terra. E depois... Devia esperar que fossem ambos, casadinhos, porque ela por si era bastante para salvá-lo do Inferno, quanto mais de doença e de flecha do índio! Se os ingleses ainda não haviam conquistado o Pólo do Norte, era porque não se haviam lembrado ainda de ir com as suas mulheres.

Quer em caminho para a Relação, onde ia desobrigar-se da pape­lada dos processos, quer jogando gamão na roda da botica, ou dando seu girozinho pelos arrabaldes na companhia seleta de uns três íntimos; quer à noite, de papo para o ar, cruciado pela insônia, Osório, a seu pesar, malucava no casório inventado pela mulher. Que diabo! Um destem­pero! Isso de amor será um fenómeno de afinidades naturais? Assentaria bem aos pais armar casamento para os filhos, ou o direito seria esperar pelo que desse e viesse?

Uma tarde, ainda palitando os dentes, ia calçada acima, em demanda da Feira Nova, com as mãos para trás segurando a bengala ao meio, o rosto para o ar, o sobrecasaco desabotoado como para receber no estô­mago a frescura vespertina, as costas das mãos aderindo sobre o roliço das nádegas, indo para um lado e para o outro as abas da vestimenta ao impulso das passadas, quando, na esquina, quase abalroou no guapo oficial sobrinho da sua mulher. Fez uma cara fechara para aquele sujeito que não previra que o seu dever seria tomar imediatamente para o cordão do passeio. Ambos, porém, buscaram desvio pelo mesmo lado, uma vez para dentro e outra para fora, terminando pelo oficial, que ia à paisana, safar-se rapidamente pela coxia, e seguir caminho.

Contrariadíssimo ficou o pobre do Centu, porque sentiu-se tão abestalhado com a súbita aparição do pai de sua prima! Porém o velho, depois de dar algumas passadas, voltou-se como chamado por um íman, e per­guntava a si mesmo quem seria aquele indivíduo cuja aparência o estava agora impressionando. Os olhos daquele mancebo haviam-no picado como dois marimbondos; e mentalizados no cérebro tardio e ronceiro do juiz,desafiavam-no, aguçavam-no, dançavam diante dele. Colocasse-os agora na respectiva fisionomia!

Continuando a demanda a botica, o apetecido provável sogro pu­nha na pontinha de um silogismo a sua seguinte frase habitual: — Isto é um indício de afinidade qualquer.

E acrescentava:

— Incontestavelmente.

Principiara a ler Física, depois de maduro, com o açodamento que por último havia por essas leituras; e o seu tiquinho de Química e Biolo­gia, e outros saberes frescais no país, tudo por junto e atacado.

Cavaqueava com o boticário acerca dos preparados e dava-lhe boas caceteações assistindo-o a trabalhar no modesto laboratório:

Por que não decompunha tais e tais substâncias? Por que não analisa­va o caju e seus produtos, que poderiam dar uma riqueza para a província?

O boticário respondia-lhe com o seguinte rasgo, saído como das suas barbas impregnadas de cheiro típico da farmácia:

— Senhor desembargador dos trezentos diabos! Cuide nas suas leis artificiais, que as da natureza só serão descobertas a seu tempo; e inda mesmo desconhecidas agem sempre, quer a ciência queira, quer não.

Ficava de queixo caído. Disfarçava, — com o riso emocionado de quando se abarca subitamente uma idéia —, o efeito que aquilo produzia na solução do problema levantado pela Fabiana. Absolutamente não, fa­zer a pequena conquistar o amor do Afrodísio, simplesmente por este se­nhor ser hoje em dia o Visconde de São Galo, absolutamente não. E mais, a nobreza dele seria um fenômeno natural? Era ele de fato um nobre, se­gundo os seus nervos, segundo o seu coração, segundo o seu cérebro?

E gramaticava:

— Nobre vem do gnobil, isto é, digno de ser conhecido. A análise biológica escalpelando, e a sociológica descobrirá em todas as suas moléculas compleição que satisfaça aos requisitos?

O desembargador de si já era uma dúvida. Que fora magro, alto e envergado, poderia apelidar-se — ponto de interrogação.

Deixando o azougado boticário, vinha para a roda da calçada, onde as discussões ebuliam e a tesoura das murmurações tosava, e trabalhava à catana no lombo alheio, os dados se desatando constantemente pelo tabuleiro do gamão ao esfuziar das pedras de ponto em ponto, ao destro manusear dos parceiros.

A praça, fechada dos quatro lados por casas de comércio, tinha o ar agitado sempre, nas folhas da alta, frondosa, e clara arborização. A casaria era pintada variegadamente, com as cores reclames das lojas de molhado, letreiros espaventosos.

Ao longo da Rua da Palma, espalhava-se uma alegria vespertina, des­de a sombra que bordava a fronte, inda tinta de sol, das casas do nascente, até à meninada a rodopiar nas calçadas, e ao homem do ganho, cami­nhando meio ébrio, com a biquara ou pedaços de miúdos pendurados ao dedo, com o molho de coentro. Mas, o próprio asno chagado pelos arreios, arrastando a carroça, o próprio cavalo ossudo com a dura cangalha a con­duzir a carga de lenha, o mendigo mesmo, a chorar o eterno refrão de "esmola pelo amor de Deus", não tinham a pungência que se notava agora na expressão fisionômica, acerbamente achacada, do desembargador.

Coitado, as suas deduções filosóficas, de encontro à tirana decre­tação da sua velha, podiam valer-lhe duros tratos.

A botica, situada ao poente, era muito afreguesada. Também, a Feira Nova era a bem dizer o centro da cidade, e quase todo mundo cruzava-a diariamente, quer em diagonal para abreviar caminho, quer pelo abaulado empedramento que lhe era como um caixilho gigante. Alcantilada de so­brados, cedo ficava aquela face do largo metida em fresca umbria.

Pensativo, o Osório, as mãos no castão da bengala, caído para o espaldar da cadeira, contemplava.

Por entre a arborização, as outras faces da praça, esmaeciam ao sol. Ao pé dos troncos, alteavam-se os feixes do marcado de capim.

Os moleques e as crioulas agrupavam-se em torno ao liso cacimbão de pedra lioz, no meio da área, e enchiam os potes e canecões no cha­fariz da Water Company, um quiosque de ferro, miudinho e bem acabado. Algumas cavalgaduras cochilavam, presas pelo cabresto aos frades de pedra, no perímetro. E mais uma porção de minuciosidades na harmonia do quadro, que o bom homem soía destacar, como geralmente acontece, somente naqueles instantes de atribulação íntima, quando os nervos se tornam aptos acidentalmente para mil variadas sugestões.

Nessa noite queixou-se de nevralgia. Menos verdade; queria evitar dialogações com a mulher, é o que era, convencido de que a sua cara-me­tade fosse vítima de um quer que seja de doentio na cachola, e por ser um tanto chegado a frouxidão, que outros chamavam bondade, ele, que se tinha a si por cabeça que regula, ia no recavém como o boi cansado, e ela no varal. Resolvido a contemporizar na batalha. O tal nobre sujeito que Fabiana queria incrustar na família era do partido contrário e seria o que se chama uma vileza um integro magistrado virar casaca. A filha não havia de desposar um inimigo político, bem se vê. A velha objetava, porém:

— E o que é que um pai não deve fazer por amor da sua filha? Você deve se passar para os conservadores!

— Por amor da sua filha, é uma grandíssima peta. É preciso esperar a manifestação das afinidades, ver qual é o amor que lhe vem.

— Qual afinidade, nem Mané afinidade! De onde este homem ar­rancou agora este palavrão, meu Santo Deus!

Mas a ignorância alheia é útil à gente hábil. O finório concluía: — Afinidades.., quer dizer... quer dizer que tu deves confiar em mim; pois ainda não dei lá essas provas de mau sujeito...

No sábado seguinte foi-lhe apresentado aquele mancebo do encon­trão, que o deixara impressionado. Fabiana é que pedia ao sobrinho que fosse lá, ele bem sabia que abaixo de Deus era ela quem mais o prezava neste mundo. O Centu, porém, não era um rapaz influído para certas coi­sas. Chegado de pouco à sua província, para convalescer de uma pneu­monia, de volta da conclusão de seus estudos, evitou sobretudo ir à casa da tia, ele que já não tinha mãe nem pai. Fatalmente inclinado para a prima, receava que a assoberbação de um mal de amores viesse atropelar-lhe, ou antes, cortar-lhe o veio das suas justíssimas ambições. Deveria ser um herói para a humanidade, ou uma vítima, assim pensava ele na sua ingenuidade acadêmica.

Queria fugir do amor.

Estava o gás aceso na sala, quando ele entrou com Lucas Pinto, uma espécie de ave de arribação, cultor antigo da afeição dos Góis de Oliveira. Era este Lucas um velho de boca funda, magricela, baixinho, profuso em ademanes e rapapés, e ao subir os três degraus da entrada ia logo exclamando:

— Boas noites, gente daqui! Venho fazer-lhes uma agradável sur­presa...

Mas encontrando a sala vazia:

— Você é parente, disse para o oficial. Sou mais de casa do que você. Sentese que vou ver a sua tia D. Fabiana, o velho, a Maria das Dores, sua prima, e tudo o mais.

E sumiu-se lá para dentro. O mancebo ficou a sós.

Acima do sofá inclinavam-se os retratos do casal Góis de Oliveira,em grandes molduras, e as bolas de torçal verde caíam de cada quadro,nos ângulos superiores, como duas melenas. O papel cor-de-rosa com floreios de veludo e avivamentos doirados, na parede, ia bem com as sensações de um amante. As bandeirolas e as portas, muito alvinhas, coma indiferença da matéria inerte, e o botão azul dos trincos, pareciam prestes a dar entrada a alguém, e esse alguém o oficial temia que fosse a prima.

O assoalho ocultava-se aqui pelo tapete, e ali aplainava-se com asua alternativa aurinegra de tábuas de pau-cetim e de acapu. Um soprozinho de ar fazia tinirem ao de leve os pingentes do candelabro que descia do florão do estuque. Encaixilhados em jacarandá subiam dois espelhos rente à parede, bilateralmente à porta do corredor, reproduzindo porções da quadra. Uma mesa octogonal aparava a luz cheia, dos bicos de gás, no centro, e por sobre os bordados a lã, da coberta que a forrava,

diversas preciosidades jaziam, como fossem o álbum de retratos, uma corbelha de cartões, duas brochuras, e, bem de frente para o oficial, que se empertigava no sofá, o retrato de Maria das Dores, num quadrozinho de metal. O boné ele o havia posto ao pé de si; mas começou a entender que isto era matutice. Depó-lo sobre a mesa. De pé, no meio da sala, estava mais senhor de si, e podia passar os minutos menos tolamente, per­correndo o álbum, folheando as brochuras, ou coisa que o valha. Estas eram romances.

— Frivolidades, murmurou no seu peso de ciência.

Antes de abrir o fecho do álbum pegou no quadrinho da fotografia que alevantava-se quase à beira da mesa.

Quase o leva aos lábios. A Maninha, como ele a chamava, estava ali encarando-o, com a expressão firme do desenho fotográfico; a mão profana do retratista, com a deturpação dos retoques, não conseguira arrancar-lhe às feições o timbre francamente simpático; dos cabelos, pu­xados para cima, caía um lacinho, à banda, da fita que os prendia; uma rosa abria-se no peito esquerdo e pelo gosto da gola do vestido calcula­va-se que ela trajava à moda, sinal de que já não trazia o casaco e a saia de ascética simplicidade detestável das colegiais do Outeiro, e a fita azul das Filhas de Maria...

O primeiro encontro deles, pois quando embarcou para o Rio ela "ainda não era nada", havia cerca de dous meses. Foi logo ao chegar. De carruagem ela, e ele puxando a guarda da Cadeia, no ordinário, ao berro da corneta. Olharam-se forte, de longe, fito.

Depois que ela voltou do Meireles, encontrou-a na Sé. Estava Ma­riinha em uma tribuna. Tentaram-se à vontade com o demo dos olhos. Ao sair, não pôde se dominar, e foi beijar a mão da tia, — pela primeira vez desde que chegou! Aí foi que a matrona instou para que aparecesse, que não fosse esquisitão como o pai, que ele precisava de distrair-se em família, que se afastasse mesmo de rapaziadas.

Logo nessa tarde passou pela janela da prima.

Três dias depois é que lá foi, acoroçoado pelo guenzo do Lucas.

Estava recordando esses antecedentes, quando o retrato, vai, e cai-lhe da mão, de repente, com uma pancadinha frouxa no mármore da mesa, amortecida pela coberta de lã. Simultaneamente fazia-se um ruído de porta que se abre. Era Maninha que aparecia...

Aproximou-se para o cortejar... O Centu preferia agora não ter tido aquele ensejo de tocar a sua mão na dela... Sofria no braço uma dor física somente em lembrar-se que ia tocar naquela pilha voltaica...

A delgada mãozinha estendia-se para ele. E quando as carnes se apertaram, o abalo foi tão grande que fremiu na alma de ambos. Anela­riam que se não desligassem nunca! Amor! Es isto? Fruíram, naquele relâmpago, um gozo sobrenatural, sublime unificação, paladar não ex­perimentado. Tormentoso e grato suorzinho atraente do cóncavo das pal­mas, emborcadas uma sobre a outra. O espaço entre elas, um vácuo, chupava as duas epidermes para aproximá-las, para fundi-las, para que se ajustassem hermeticamente, geometricamente, em delicioso arrocho. Que universo num átomo de tempo! Levar à face, ao lábio, aos olhos, ao nariz, abafar o rosto, cada um com a mão do outro! Ao soltarem-se, foi um alívio. A menina disse uma banalidade para afugentar com a voz a súbita aceleração sangüínea.

Ocorreu-lhe o incidente do retrato, que não fazia minuto e parecia ter sido ontem, e disse que todos achavam muito parecido.

Isto, porém, era uma frase, que não traduzia idéia alguma. O ver­dadeiro era aquelas duas criaturas ficarem mudas uma para a outra, por­que estavam sob esses pensamentos que se não traduzem. A conversa deles foi meramente física, um simples funcionamento dos órgãos vocais. Naquele pé, a corrente das palavras estava para a corrente das idéias como dois nos que rolam simultaneamente, paralelamente, as suas águas, mas um para o norte e outro para o sul. Não era fácil encher assim os minutos.

O papai não tardava, tinha ido visitar o conselheiro Sucupira, que chegara do Rio. A mamãe estava no oratório acabando uma promessa. E dizendo, ela puxava uma cadeira para a mesa do centro, fazendo por estar muito familiarizada. As mulheres! Ele afastara-se para o sofá.

Maninha lançava um olhar para a rua deserta. Os lampiões não se­riam acesos senão ao pôr da lua, e um nevoeiro desde pela tardinha fe­chava o alto firmamento. Um desejo romanesco atormentava-a para que fosse debruçar na janela, e de lá chamasse a atenção do moço para al­guma nonada, e que este fosse a aproximar-se dela, e ambos conversassem de seu. De feito, emoldurados pelo vão da parede, de pé, juntinhos, e recostados, parece que o sentimento se tornaria mais franco e seria natural, pelo pinturesco, uma efusão.

A luz do candelabro deveria estar mais à surdina... A fina claridade do gás não frisava com a nublada sensação que eles sofriam.

E a menina, com o cotovelo à beira da mesa, recostada na mão a face direita, como alheada. O mancebo poisava-lhe no todo o seu olhar de sol. Coitados! Separados, tinham um livro inteiro a dizer-se; aproxi­mados, o anjo com a espada de fogo, fria na sua incandescência cruel, cortava-lhes não a volta, mas a entrada para o paraíso entre real e ideal dos assuntos de amor.

De repente a donzela feriu o silêncio com um estouvamento de ave:

— É exato que tem gostado muito da minha terra?

— Da nossa, minha prima...

Ela riu do timbre com que ele respondeu.

— E a que propósito vem isso? prosseguiu o oficial depois de uma demora. Sempre dei provas de querer bem à província!

Ela não soube o que replicar.

— Disseram-me que ia para uma comissão do Alto Amazonas... ti­tubeou.

— Pode ser, poder ser, verdade é que me empenhei...

— Empenhou-se?

E calaram-se.

— A vida é esta, minha prima. Vou, irei, Deus sabe como.

— Os homens deviam ser mais companheiros das mulheres, isto sim.

— Em que sentido?

— Com elas em tudo, no repouso ou no perigo.

— Elas não resistiriam, sorriu.

A menina arrepiou carreira no assunto, porque receou denunciar-se mais, com a exaltação do momento. Aquelas palavras seriam sementes bastantes para plantar no cérebro de Centu mais um pezinho de cogi­tações. Estava entrançado o fio daquela inclinação recíproca. Ambos ve­rificaram que se queriam por um ímpeto orgânico. Tiveram por felicíssi­mos aqueles instantes, bem pode que os pode ser os melhores da sua vida.

Mudando prodigiosamente de tom, a moça indicou as duas brochu­ras que jaziam próximas do retrato, e com um disfarce admirável pediu friamente ao oficial que desse a sua opinião a respeito.

Ele não tinha ouvido ainda tanta riqueza de expressão, nem presen­ciado tanta graça, nem tamanho domínio sobre o seu ser insubmisso.

E folheando os livros, aguardava a entrada da tia. A menina fez-se toda silêncio, a pretexto de o deixar examinar o livro. Espiava profunda­mente para o mancebo. A respiração tornava-se intensa.

Como fugindo não sei a que, ela precipitou-se para a cadeira de ba­lanço.

Horrível para ele, horrivelmente atormentadores aqueles dois pés que apareciam agora na fimbria da saia, ora tocando no tapete, ora suspensos no ar, metidos num sapatinho de fivelas e em meias tão macias como a cútis daquele pescoço de rola. Os babados da saia calam capi­tosamente, pesadamente, apenas arrepelando-se à leve agitação do ar. E toda a vez que o movimento era ascendente, os pés estiravam-se como a ave morta; e descendente, vinham trazendo adiante o coração do moço, de rojão, e com a pontinha do sapato esmagavam-no sobre o tapete.

A barulhar com a sua prodigiosidade de língua, veio o Lucas, e espantou as duas pombinhas do amor que espiritualmente abicaravam-se ali.

As brochuras eram O Guarani, de José de Alencar, e O Seminarista, de Bernardo Guimarães.

O engenheiro, positivamente, não podia deitar opiniões, devido à sua ignorância e animadversão por isso de letras e artes. O nome de Alen­car lhe soava mal. Havia a fama deste eminente escritor em conta de ca­vilosidades dos brasileiros. Diga-se o certo: o Centu falou menos verdade quando assegurou à Das Dores que amava o Ceará. Como escrupuloso, todavia, em questões intelectuais, e não querendo passar pela vergonha de dizer que ainda não lera aqueles livros, pronunciou um juízo, fiado na reputação popular e universal dos dous escritores brasileiros. E para se tornar agradável à prima:

— Eu gosto tanto dessas obras que desejo lé-Ias de novo.

— Leve-as!

— Ah! meu caro amigo — interrompeu o abundante Lucas, vendo o que se passava — você cuidava que isto aqui era o Rio de Janeiro? Há de topar serviço! Isto está um país adiantadíssimo!... Além do calça­mento, do encanamento de água, da iluminação a gás, — contava nos dedos — do palácio da Assembléia, do novo sistema de carroças, das casas pela marca da Câmara, temos pianos em todas as salas, e a instrução do belo sexo! Você pega uma dessas flores do paraíso terrestre, principalmente se tiver sido educada pelas Irmãs de Caridade, corta a língua que nem maracanã, canta que nem sabiá, lê como um doutor, e sabe que nem vigário! Que pensa? — findava ele, de mãos nos quadris, refratário ao arzinho de riso do Centu e a franca risada da menina.

Foram interrompidos por uma voz da porta da rua:

— Ó seu Lucas, já você pega a dizer as suas barbaridades! — vinha dizendo o desembargador, que ao entrar na sala, onde não esperava pessoa estranha, estacou diante do oficial.

— Este é o Centu, papai, o primo, do Rio...

— Ah! é este? Com efeito, desculpe não reconhecê-lo "a prima facíe". Mudou tanto!... Vi-o pequenito, como este mocho do piano. E abraçaram-se.

— Não calcula o prazer que sinto! E a Fabiana, por que não vem para cá?

— Já vou!

— Ela está acabando uma promessa, explicou a menina.

— Esta promessa, esta promessa! — rosnou o Osório, em aparte, mordendo os beiços.

Agora sim, o primo estava de dentro. Expandiu-se com o velho, que era homem lido. Casaram as simpatias. Fabiana veio com a sua volu­mosa corporatura de barco ronceiro. Trazia vestido com decote, à antiga, pulseiras, colares e transelins de um ouro brutalmente precioso e traba­lhado, e um grande e cravejado pente, no cocó grisalho, que parecia um astro nascendo detrás da cabeça, dentre as névoas do cabelo idoso. O rosto, ainda liso. A dentadura imprimia na voz um sotaque esquisito, como se tivesse uma coisa no céu da boca. Excelentes maneiras, linguagem muitíssimo pinturesca e errada, onde cada palavra ela soltava como se

estivera saboreando frutas. Uns quadris enormes, e uma barriga idem, que pareciam ser a preocupação das funções nutritivas. O olhar não era bambo; firme e doce. A gesticulação, parca.

No meio da conversa, como era hábito seu adquirido, trazia sempre o Visconde de São Galo. Conhecia-o? O chefe da nobreza da província. Não? Digno dos nossos antepasados! O desembargador ou concordava, ou não tugia. Mas o engenheiro é que ficou embatucado.

Senhor, que nobreza era aquela no Ceará moleque?! Enfim, como não conhecia aquilo bem...

O velho obrigou a filha a ir para o piano, o que foi para esta uma doce violência. Estava desafinado, pretextava a menina. E depois, era um piano tão ruim...

— Prima, não faz mal. Faça justiça em me ter por discreto; e so­bretudo.., ora, eu não sei música... deixese de cerimônias... Mariinha foi como que arrastada.

Aprumada no tamborete, a cintura da donzela vinculava-se nitida­mente disfarçando para o suave piramidal do tronco jungido no esparti­lho; as duas tranças negras, desprendendo-se pelo piloso e pelo nu do cangote, escorregavam pelo dorso e beijavam finalmente o alcantil das ancas luxuosas. Cantou:

Quis embalde varrer-te da memória

em voz pouco forte, ressoante, e timbrada. Nem uma vez a altura da nota foi mais do que a do sentimento. Quando dizia:

E teu nome arrancar do coração

acolchoava o som, como se tapasse as válvulas da alma. Arrancar do coração o teu nome! Nem por morte! E se às vezes gemia, ou se cantava, não é certo.

As nove horas o Centu quis retirar-se, porém o tio afim obrigou-o a demorar dois minutos para o chá. O Lucas dispensava teimosia seme­Ihante, mesmo porque não se despedia sem irem para a mesa.

O engenheiro, em alívio da forte carga de sensações que pejava-Ihe o organismo, dirigira-se à prima, efusivamente. Que o piano era excelente sob as suas mãos, que não ouvira ainda magias assim, que até aquele momento desconhecia que o som tivesse tamanhos poderes...

— Conforme o instrumento, explicava o metediço do Lucas, e o tocador.

O estudioso mancebo começava, conquanto longinquamente, a acre­ditar na Arte, e na sua necessidade. Imaginava agora o homem uma ave — a que a ciência era asas, e a arte o meio aéreo. Dormiu mal naquela noite. A Mariinha lhe atravessava os sonhos pertinazmente. E de manhã ele sentia que ela, como um espírito tangível, andava diante dele, tocava nele, e os seus cabelos passavam-lhe em cócegas pelo rosto, e as suas mãos o acarinhavam, e os seus olhos entravam pelos dele como duas abelhas.

Chovia, quando entrou em casa. Por coincidência, habitava uma re­pública, ao lado da botica da Feira Nova, cuja roda entendeu útil freqüen­tar dali por diante.

Não tornou no dia seguinte à casa da tia; ao contrário, ia raramente, o que não obstava que visse muito a Mariinha. O que receava, como homem não feito ao trato diário com o sexo oposto, era estar juntinho dela, principalmente a sós, porque julgava então apoucar-se, parecer seco, sem espírito, desmantelado, e feio. Vê-la, bastava. Na igreja, no teatro, nas reuniões, na janela. Quando ia lá, trocavam flores, não muito às claras. Os pais tinham os olhos vendados; e depois, havia a confiança do paren­tesco.

Mãe Zefa, uma preta alforriada que vivia do seu tabuleiro de arroz à noite, e de hortaliças pela manhã, servia-lhes para certas embaixadas, e contava a cada um, coisas do outro. Entrava sem cerimônia na repú­blica, chalaçando com os companheiros de Centu que lhe batiam nas ná­degas e faziam-na dizer palavrões, e semelhantemente, furava pela residência do desembargador até a cozinha, onde prosava com os escra­vos, e até às camarinhas, onde recebia recados de Siá Dona Fabiana.

Maria das Dores tinha notícia dos lugares por onde o Centu andava, e sabia quando estava de serviço, a que horas tomava banho e lia os jor­nais e estudava. De uma às duas da tarde era certo ele passar do quartel fazendo o caminho mais longe; e ela, se acontecia não aparecer, havia motivo; pelo menos, via-o pela rótula. Deu para trabalhar na sala todos os dias àquela hora. Era morta e viva ali.

Uma tarde por outra, o oficial tomava assento na roda da botica. Assuntos políticos ele mal entendia; o boticário, todavia, o desembarga­dor e uns dois mais, elevavam, por amor dele, a conversação para questões de ciência, e sobretudo de filosofia positiva. O desembargador já não pre­lecionava tanto, e parecia ter sempre agora dentro de si alguma coisa a digerir, meio concentrado, como se todos os dias fossem véspera de um grande acontecimento que o envolvesse. O Centu fazia o seu gamão passavelmente. la-se habituando ao arzinho da farmácia, cujo cheiro de drogas a princípio o enjoou; afez-se àquelas vidraças encaixilhadas em madeira preta por trás das quais perfilava-se a frascaria nitidamente rotulada; acostumou-se a ver as cobras afogadas em álcool, que antes lhe metiam um certo frio álgido pela vista; e a pequena escuridade do inte­rior, em complemento ao jogo de sol e de ensombrações da praça, descan­sava-lhe a visão. Além da grade, no meio do xadrez de pedras alvas e

negras que eram o ladrilho, assentava um ligeiro armário cujo mostrador expunha preparados estrangeiros encapotados em lindo papel pomposa­mente impresso; quando se abria este móvel, espalhava-se um capitoso aroma de toucador e de especiarias. Nestas ocasiões o desembargador levantava a questão de ser necessário ou não o luxo nos remédios. O boticário acabava a contenda por dizer-lhe uma aspereza. O oficial achava que sim, que era preciso iludir os delicados sentidos de uma moça, dis­farçar a brutalidade do medicamento puro, enganar, como se faz aos be­bês. E então o boticário, curvado no seu paletó de seda cor de palha, continuava a triturar, no almofariz, e batendo com o pé em sinal de apoio, dizia encolhendo os ombros:

— A mulher é criança toda a vida, senhor desembargador.

E depois de uma pausa triunfante, levando a palavra com a espá­tula às ventas dos circunstantes:

— Até nas formas, até nas formas! que não se acentuam como as do homem!

— Teorias, dizia o magistrado recuando. Palavreado.

Era este o meio óbvio de Osório se descartar.

— São teorias, são modos de ver, são opiniões; o mundo para nós não é o que é, é o que nós vemos e o que entendemos ser.

Entretanto essas boas cenas eram raras hoje em dia, depois da tal história do Visconde. Não sei que frieza ia pelo desembargador. O boti­cário, que o prezava imenso, proferia encolhendo os ombros:

— Não sei que diabo de burrice lhe pegou agora.

Foram escasseando, com efeito, na botica liberal os passeios do Desembargador Osório de Góis. Ora, isto era justamente quando o Centu acabava de ter entrada em tão escolhido círculo. Seria que o velho des­confiasse da coisa? Pegaria o magistrado algum indício veemente do crime d'amor por parte de alguns dos co-réus? E começava o coitado de notar diversas passagens. Em tal dia deu-se isto assim, assim, e ele fez isto, quando devia fazer aquilo. Deixou de cumprimentá-lo tantas vezes, não respondeu a tantas perguntas, falou áspero com a filha em sua presença...

Não havia dúvida! E oprimido, cresceu mais o seu amor.

Voltava de um baile no Clube, onde valsou com a prima. Dera-lhe a mão para subir ao carro, que viu desaparecer no escuro da primeira esquina como um pirilampo gigantesco. Ainda esteve a bebericar com uma troça, por meia hora, os outros gargalhando da sua taciturnidade de coração ferido, e ele sem fazer conta. Pretextou qualquer coisa, mor­deu a ponta de um charuto, e saiu, com um forçado ar de riso.

Seguia pelas calçadas desertas. A sua sombra estampava-se nítida na parede, ia crescendo, duplicava, obscurecia, apagava-se na eqüi­distância dos lampiões, renascia tênue, desdobrando, pintava-se outra vez ao vivo, e tornava a repetir o mesmo, por aquela atonia das desoras,rua acima, onde só as suas passadas feriam o soturno da noite. Cami­nhava pelo brando, mão no bolso, tanto pela fadiga, como pela dormên­cia do pensamento. la feliz, la de todo entregue ao seu maior inimigo, o amor; porém o amor imediato, o amor de rabo-desaia, que estiola como a sombra e descolora como a luz.

Na entrada da Feira Nova sai-lhe ao encontro um vulto enfronhado em véstia de vaqueiro. Trazia esporas de grande roseta e um par de peias como rebenque. O largo chapéu de couro cobria-o pacatamente como um sombreiro de aldeão que tange o seu burreco; as alpercatas batiam-lhe contra a sola dos pés; o gibão vinha apenas abotoado em cima, e a ca­misa oculta pelo guarda-peito. Saía-lhe do canto da boca um cachimbo de sertanejo. Pronúncia um tanto arrastada e aspirada por amor desse corpo estranho. Corta o caminho ao mancebo e estirando a mão, como quem vai dar um tiro de revólver, tira o chapéu:

— Deus dê boas noites — e entrega uma carta.

Palavra em como o oficial estivera pronto a fazer uma proeza. E ainda atarantado, rompia o envoltório, sempre com o rabo do olho no desco­nhecido, cujos cabelos cacheados se mostravam ao gás, e cujo olhar ingênuo punha-se curiosamente no moço.

O Centu leu. E dobrando o papel:

— Mas então há rolo?

— Adonde? Em Butrité? Inhô sim. Está tudo muito açulerado. Nestas inleições sai macaco chumbado...

— Diga-lhe que sim, que eu vou.

— Seu Visconde me dixe que eu dixesse que Vossa Senhoria ras­gasse a carta.

— Pronto.

E voaram os pedacinhos da breve epístola, à luz do combustor, como um enxame de mariposas. O mensageiro repetiu:

— Deus dé boas noites, e rumou para a casa do desembargador, estalando as suas alpercatas no silêncio das ruas.

— Magnífico! exclamava consigo o tenente. Esplêndido! Enorme! Absolutamente ele não esperava por uma daquelas.

O pai da sua Maninha empenhar-se para que ele fosse o coman­dante do destacamento que ia para as eleições de Baturité, a pedido do Visconde de São Galo!

Dizia a carta:

"Os governistas, por não terem mais no batalhão, senão ofi­ciais desafetos, indicaram o seu nome ao Presidente, porque ao me­nos você é de todo alheio às intrigas locais. Disse-nos o major fiscal que não lhe cabe destacamento e que você é adido, e que é de ar­tilharia, e que poderia dar parte de doente, pois que realmente está. Não faça isto. Peço-lhe encarecidamente, como amigo e como parente, que vá. O Visconde, que encontrei em nossa casa, agora mesmo ao voltar do baile, com alguns amigos, também lhe pede por minha in­tercessão.”
"Garanto-lhe, meu caro doutor, que não se há de arrepender."

O palavreado ia mais adiante.

Era exato que o Visconde, à meia-noite, fora com alguns amigos, bater à porta do desembargador, e que a Fabiana, que estava desperta, fé-los entrar, oferecendo-lhes do bom café, e dos bons alcoólicos na li­coreira, e esteve a fazer-lhe sala, até virem do Clube, pai e filha.

Como a Fabiana estava orgulhosa por ter alcançado a sua promessa! Agora ia cumpri-la. Seis libras de velas à Senhora de Lourdes.

Nem antes nem depois de chegar o dono da casa, as portas esta­vam abertas. Cerradas, como se houvera alguém adoecido. Era aquilo a graça da maçonaria política, no que a Fabiana sentia um prazer de raça, inato, indígena, dos seus sertões. Quando saiu o portador com a carta para o sobrinho, foi ela quem o trouxe à porta da rua, e quem segredou que o Visconde mandava que rasgasse-a depois de ler.

Mariinha fingia-se despercebida. Quando, porém, de lá do quarto ouviu pronunciar o nome do primo, estremeceu. Parte? Vai fazer eleições?... O seu ímpeto era largar-se na carreira e atirar-se aos braços do pai implorando que por vida de seus olhos não deixasse o Centu destacar, que poderia morrer de facadas, morrer a cacete, ser varado por um tiro de bacamarte! Pelo amor de Deus, papai! pensava ela no seu co­ração, de pé, no meio do quarto, como uma Senhora Das Dores, as mãos postas, aflitivamente, o seu lindíssimo olhar para o teto. Ajoelhou, rezou a São Vicente de Paulo, o santo velhinho do Colégio, todo caridade e ternura. O coração batia, vascolejava desapiedadamente. Prostrava-se diante do retrato do São Vicente, e sua fronte abaixava-se tão profundamente para o chão, que o pescoço, caídos os cabelos para os lados, evidencia­va-se, como se fora ser degolada, esperando o corte certeiro do alfanje. E seria melhor. Decapitá-la, e suspender pelos cabelos a sua cabeça morta, porque imaginava também o Centu banhado em sangue e espezinhado pelo cabroeiro. Ah! mas se enganavam! Ele podia morrer, mas depois que matassem mais de cem! E via-o de espada em punho, entre o fumo da pólvora, ao fervilhar dos cacetes e das parnaíbas... Eram talhadas de cego. Mas... escuta um tiro, foi bruto, um clarão que ofuscou o sol, a boca do bacamarte era como um sino, e tinha-o um cabra de topete infernal... As balas caíram sobre o valente guerreiro, abriu-se-lhe no peito uma enorme rosa de sangue...

Antônia entrou sorrindo, no quarto, com muitas momices, seca por achar companhia. Uma sagita, como lhe gritava a madrinha Fabiana, que passava o dia a ralhar com ela por mor dos trejeitos, correrias e cavilações.

— Que é isso, Bem Bem? fez ela correndo a confundir-se com a outra. 'Stá rezando? 'stá chorando? 'stará doente?

A outra caiu-lhe profusamente no seio, ela sentada na esteira. Soluçava sentida como a criança que desafoga em sua mãe um choro lon­gamente retido.

Bem Bem, fale!

— Não posso, Tonha, não posso... murmurava a Das Dores esmo­recidamente, como Cristo que diz: Pai, se é possível, retirai este cálice!

Maria se entregava completamente àquela descarga de humores. As idéias ruins, os desesperos, os sentimentos venenosos, saíram, entre­tanto, pela mor parte, com as lágrimas profusas, como arrasta aos cardumes de peixe o grosso da água de um açude que arrombou. O pior é que a Antônia entrou a fazer duo. Choravam ambas e assoavam à sur­dina, para que não as ouvisse a velha, que então seria um Deus nos acuda.

— Eu não disse? Tonha, não disse?!

— O quê? Ele vai embarcar?

— Antes fosse! Vão mandá-lo para as eleições.

— Ora é isso? Não é nada. O padrinho inda hoje dizia que nessas coisas só morre quem é pequeno.

— Mas ele não é alto! abugalhou a ingenuidade da Mariinha, na sua cegueira de amor.

— Não é de alto nem baixo! Bem, Bem. Em barulho só morre é gente pobre, os cabras, a gente de pé-no-chão! É isto.

— E por quê?

— Eu sei lá! Quem estava dizendo era o seu pai mesmo, à madri­nha. Pergunte a eles.

A vela, no castiçal de latão, assente no mármore do toucador, duplicava-se ao espelho, semelhante a umas lágrimas.

O pavio estava mourrão, e a pouca luz fazia errarem na camarinha umas idéias tristes. Amônia ergueu-se e espevitou, sacudindo ao chão a pontinha do pavio esbraseado preso à tesoura; e a Bem Bem, como se chamava adoravelmente em casa a Maria das Dores, correu a esma­gar com o pé a niquinha de fogo caída na palha da esteira, cujas qua­drículas de encarnado, azul e amarelo, pintavam grande parte do chão.

Antônia invejava o seu coração não tê-la obrigado ainda a sofrimen­tos daquela ordem. Com o seu belo donaire de rapariga loira, com uns olhos verdes e uns lábios de carne viva, era toda um desejo. Quase não acreditava que aquilo da Mariinha fosse deveras! Mas a curiosidade a fa­zia cada vez mais confidenciosa para com a sua morena amiga.

Estava de luto, a madrasta era falecida, no Outeiro, onde habitava mísero casebre. la-lhe bem lindo o vestido preto, que lhe dava uma apa­rência mais adelgaçada, punha-lhe mais oval o rosto, tornava-a mais sé­ria, acentuava as linhas, e gerava uns fluidos simpáticos. O ouro dos cabelos ondeava no negrume do dorso, e se usasse corpinho decotado, o colo e espádua desbrochariam como pétalas de magnólia, ou como nívea flor do cardeiro no denso da noite. Ansias tinha ela disto! Mas a condição inferior, de filha de um pobre cego, mantinha ainda sua alma deserta das ambições a que lhe dava direito a sua carne. Um alçapão sem engodo e sem chama. Queriam-se, ela e Maria das Dores. Tinha uns arrancos de estupidez, denominado — mau gênio —, que desgostava a amiga; ver­dadeiras crises de danação, em que maldizia dos padrinhos, dos pais e de tudo que lhe era afeto. Uma idéia vaga assaltava-lhe às vezes, de ob­ter um namorado, ver diante de si um homem, um desses leões cujo corpo parece pedra, derretido ante ela como no sol um prato de banha. Achava certo quezinho no Centu, e gostava de ter a outra pelo beiço, de confi­denciar com ela. Como certas pessoas que se fossem milionárias com­prariam casas para ter o prazer selvagem de incendiá-las, num espetá­culo neroniano, assim, gozava imensamente, como expectadora daquele inextinguível incêndio de amor da Maria das Dores.

Ambas sentadas na rede, mãos sobre os ombros, balançavam de manso, com o ouvido atento aos ruídos da sala. Conversavam homens lá fora: a fala, elas desconheciam. Sabiam que estava ali o Afrodísio, Vis­conde de São Galo, com outras personagens. Maria esperava que o Centu viesse logo ao chamado da carta.

Uma idéia! teve a capeta da Antônia: passarem para o outro quarto, e treparem na porta, espiar pelas bandeirolas.

— Bota-se o pé nas costas da cama, e segura-se no armador. Maria vacilou.

Que o Centu estivesse aí, isso sim!

Quem sabe se ele vinha?...

Era tão esquisito e incompreensível!

Eram tão imprevistos os seus atos, que não davam ensejo a que se calculasse havia de proceder assim ou assado.

A Tonha instava:

— Não seja mole, Bem Bem! Vamos embora. Parece que tem uma porção de moços lá.

— Que importam agora os moços, mulher?

— Pode vir o seu!

— Ora...

O corpo lhe pedia, à morena apaixonada, quietação, como exaurido, como surrado. Vinha-lhe uma prostração, e ceder a este convite da na­tureza, e ao sono, para uma cabeça repleta de imaginárias, era viver. Dê-se que o Centu viesse; inda bem, um moço como ele não havia de aprovar que, àquela hora, uma donzela estivesse trepada pelas portas a espiar os homens na sala. Aprova a minha conduta, comungou a Das Dores consigo. E decidiu:

— Não vou, Tonha. Vai tu só.

— Pois fiquese...

Largou-se a estabanada, num rodopio de saias.

O corredor, apenas alumiado por um bico de gás, e a grade do vestíbulo, meio aberta, deixavam passar a mulata Ângela para a sala de vi­sitas, com uma bandeja onde reluziam facetas de copos e o bojo de gar­rafas. Antônia pegou-a, deu-lhe um beliscão, e segredou-lhe ao ouvido não sei o quê. A mulatinha deu um ai surdo, a rir. Da sala de visitas, o gás vinha abrir no chão do vestíbulo um pano de claridade, onde Ângela pisou; e viu-se-lhe a estatura frescal, vestida de americano, com um aven­tal preto que prendia-se nas costas; e a carapinha mal penteada; e a tez, cor de chocolate esmaecido com uma pontinha de leite.

Antônia escorregou para o quarto dos padrinhos; uma peça folgada, cheia daquele ressonar de carnes já sem aroma e sem brilho. O guar­da-roupa alteava-se de um lado, e de outro avultava a cama do casal, aberta ao ar, sem cortinados, com os cobertores estendidinhos e com um montão de travesseiros. A rapariga estribou na cabeceira da cama, de madeira enflorada, alta cerca de um metro, e segurando a corda que pen­dia do armador, onde enfiava o punho de uma rede, içou-se até botar o rosto na altura dos entalhes da bandeirola.

Aconteceu bater com um joelho na porta, o que a fez estática um momento, espreitando se ouviram a pancada; precisou morder o vestido para não rir, que aquilo achava graça em tudo. Ouvia o ganir quase im­percebido dos armadores da rede em que a Bem Bem ficara embalan­çando. O gritito do ferro ia a menos, degradativamente, sinal de que a morena adormecia, porque mesmo ela ficara muito pesada de sono. Me­xiam em louças na sala de jantar, havia de ser a Honorata lavando as xícaras da ceia, para aproveitar tempo, — que a senhora fazia naquela noite em casa um revirado, desde que entraram aqueles homens!...

Da sala ninguém via a espiona. À mesa do centro, com umas gar­rafas de cerveja e copos cheios, sentavam-se o Lucas, que se julgava a si mesmo de um tino político admirável; o Capitão Desidério, da Guarda Nacional, chefe de uma localidade próxima, que viria votar na Sé à frente de um enorme cabroeiro; e o João Batista, caixeiro de escritório da casa Afrodísio Pimenta & Cia., a escrever cartas, por ordem do patrão — de combinata com o desembargador. Estes dois, no sofá, serviam-se do vi­nho do Porto que Angela trazia na bandeja de charão, discutindo assun­tos de que Antônia não entendia pitada.

Lá num ponto, o desembargador estava dizendo:

— Mas é preciso dinheiro...

— Não seja por isso, obtemperou o Visconde. A fisionomia serena deste, com um grande bigode, e o seu corpo fornido e alto, a pele trigueira semelhavam-no a um árabe, a um turco que Antônia vira vendendo miçangas pela rua. Disse aquele — não seja por isto — e ergueu-se de mão no bolso. O Lucas olhava-o como entendido, com as pupilas confundidas no brilho dos óculos.

Faltavam ali muitas pessoas do estado maior do generalíssimo. O advogado Cunegundes, eloqüente e coraçudo, redator d'A Oportunidade, rábula; vários negociantes, coronéis e comendadores; o cura da Sé; o vigário-geral; uns professores do Liceu; uns juízes de diversas varas; uns chefes de repartição, etc. Donde se vê, pelo número e qualidade, que a honra política do Dr. Osório estava da cor das tábuas do teto, alva.

Continuava, como toda a gente, a militar nas fileiras liberais; adido, porém, aos conservadores; que era preferível pedir pão aos inimigos a dar o beijo de paz nos irmãos. Neste quanto, conversassem com a Fa­biana, que aquilo sim, era pessoa de opinião. Quando esta senhora sol­tava de viés a palavra canalha, era com a limpeza de um asno que sa­code um coice para a banda. A gente deve procurar sempre as pessoas de representação.

O conciliábulo não foi muito longe. Era questão de arranjar o oficial para Baturité, que iria ao mesmo tempo revestido das funções de dele­gado policial.

Desde que voltou o portador que fora ao Centu, era meio caminho andado. O Lucas, pela manhãzinha, daria destino ao maço de missivas para as cabalas matutas, fora as que iriam pelo Capitão Desidério.

Nada mais havendo a tratar, retiraram-se todos. A Fabiana, que se­gundo as praxes da sua educação, fora para dentro uma vez que os ho­mens iam discutir os seus negócios, que ao menos em aparência não têm que ver com mulheres, compareceu à saída do Visconde, prazenteira, apresentada, ancha.

Sua Excelência continuasse a visitar aquela pobre choupana, que era pobre, mas o coração muito. Se quisesse vir um dia passar mal, assim... almoçar, ou jantar...

— Pobre sou eu, minha senhora, respondia o homem, sem saber o que pronunciar sobre o convite que a matrona lhe atirava com aquele garbo e prosápia dos Castro da Vargem da Onça.

O desembargador nisto era zero. O principiozinho de admiração que lhe ia nascendo pela arguta inteligência do titular, acanhava-o; e tinha que não saberia haver-se em civilidades de mesa, com um homem via­jado, e de hábitos, com devia ser aquele. Todavia, fez coro com a mulher.

— Hei de aparecer, com muito gosto todas as vezes que puder, di­zia o titular, apertando a mão em despedida.

E até dobrarem eles na esquina, o casal Góis ficou na porta.

Mas diz que amor é uma coisa que faz uma pessoa pensar constantemente noutra. Ora, só uma coisa havia que fizesse o Visconde ma­tutar — o seu negócio. Assim, nem por longe percebia o fluido que o ca­sal Góis lhe projetava.

Introduzido naquela casa, todas as vezes que a Antônia vinha à sua presença, achava-se ele confortado, feliz, pelo que, entrou a desconfiar que viria a querê-la, e muito.

Dado a mulheres, isso o era. Segredos virginais não lhe eram novidade. Bateu mão à prática no ofício de lidar com o animal do outro sexo. Avançadas e retiradas, guerrilha, em vez de batalha campal. Certamente, receava cair nalguma asneira romantica. Em vez de pensar, conseguin­temente, em levantar Antônia do pó, calculava descer até lá. Depois, su­bir ileso, escoteiro, triunfante. Aplicar-lhe-ia o beijo escariótico, e entre­gá-la-ia às turbas.

Quanto ao seu negócio, o Visconde voltava-se novamente para a luta política.

Como dizia o Osório, convencendo-se a si mesmo que deveria po­liticar em regra, a política havia rendido muito ao Visconde. Tornara-o nobre. Se ele não se tivesse encarapitado no trono de uma facção, não teria passado de um burguês apenas rico e obscuro. Assim, a tudo dominava. Agora, porém, que já era conhecido na Corte pelos a pedidos do Jornal do Comércio, queria uma luta clara, de idéias, bonita, que satisfizesse a sua momentânea e intermitente aspiração para o bem. Entretanto, me­ditava ainda o Osório, arrastavam o homem a combater o outro ramo do partido, para o que, era preciso fazer uma liga incongruente com uma facção contrária!!! Ingratos cearenses, não deixarem o Afrodísio subir a grande homem!

— Eu, no seu caso, disse-lhe uma vez o desembargador, fazia-me chefe republicano, e reagia contra o Rio de Janeiro.

— Bem sei, respondeu o Visconde na sua sabedoria, mas a gente é como o queijo, cuja figura depende é da fôrma. Se esta é quadrada, por mais que o queijo queira, não ficará redondo.

— Mas, Vossa Excelência, isto é, seu espírito, deveria buscar os horizontes largos, uma coisa que frizasse com o amplo fôlego das suas aspirações!

Uma coisa era ver o Osório dantes, e outra vê-lo agora. O que olhos não vêem, o coração não sente. Longe do magnata, era como os liberais republicanizados quando os conservadores estão no poder. Uma vez que Sua Excelência dignou-se a respirar o mesmo ar que ele, servir-se da sua cerveja e do seu café, o Osório sentiu-se mais alto. O homem, também, não era tão ruim. Que força de argúcia, de inteligência, que senso admirável! E o mundo é esse, minha gente. Deste pão não comerei, nem desta água beberei? Pudera!

E viu logo todas as possibilidades de chegar a Senador do Império.

Naquela noite a velhusca Senhora Góis de Oliveira voltou aos bons tempos em que a Maninha, em embrião, crepusculava para o dia da vida. A camarinha aromatizou-se de flores de laranjeira. Aquela cama, onde pousara pouco antes o pé sensual da Antônia que deixara ali como que o rastro dos seus doidos pensamentos, rejuvenescia, como se a loira ti­vera soltado um demônio dos muitos que turbilhonavam nas suas saias. Não abriu-se o oratório, fizeram as orações da noite à beira do leito, num pelo-sinal garatujado e numas ave-marias aferventadas. Contentaram-se com a luz mortiça da lamparina, que através do copo espargia na toalha um círculo cor de rosa. A Fabiana deitou-se primeiro. E entrou numa con­fusão de amor e de sonhos. Transportava-se aos seus dias do sertão. A modo que ouvia o chorar do carro ao longe, a vida dos currais, e o sussuro da mata próxima. Lembrava-se do formoso touro, orgulhoso e bravo, a rondar e a gemer; e da fresca enfieira dos sapos na lagoa, a coaxar; e dos beija-flores, velozes, com o biquito fino e as asas tremendo espas­modicamente no ósculo das corolas, despedindo ao sol faíscas da sua penugem catita, incrustação de variadíssimas pedras preciosas geradàs no ninho suspenso das árvores. Enxergava o lume da água do açude, por onde o vento se esfregava encrespando a esteira líquida, e donde saí­am as flechas dos juncos, e, como caudas de castor, as folhas da bana­neira brava; as associações do pacaviral; as jaçanãs, galinhas-d'água, marrecas, pacaparas, e potriões; nos cercados, os gaviões a pegar no pé o uruá; o pica-peixe caindo como seta; e o sol devassando a paisa­gem, enchendo o azul e rastejando pelo campo, a clarear a epiderme nua das raparigas que se atiravam ao banho sem as cavilações do pejo. Entre as folhagens da gigântea gameleira ribeirinha saltava agachado, de vestimenta vermelha e azul, o pica-pau atrevido; e o férreo bico dos bem-te-vis acossava os negros urubus nos ares. A areia,aqui branca e ali corada dos caminhos ia; e os cargueiros sumiam-se nas descidas e nas voltas; galopavam os magotes de éguas, e os poldros de cauda alevantada; as vacas pastavam lentamente. O sol adormentava as pupilas, e pesavam as sobrancelhas. As folhas tenras pendiam, à sesta.

Acontecia sempre, à Fabiana, nos momentos felizes, sentir uma forte ressurreição dos seus dias de moça, e ao Osório uma certa fixidez pensativa no olhar. Para Fabiana o real era o passado, que deveria reconstruir-se; para o marido o amanhã. Foram encerradas as discussões acerca do casamento da Maria das Dores. Estavam de relações travadas com o titular, e agora iam de vento em popa. O Osório não tinha fé. A ação deste homem era não agir. A sua filosofia prática, e a sua religião cifravam-se no dogma dos ociosos — a esperança. E a mulher, no querer.

A habitação do casal Góis mudou, como o ar quando o inverno fecha. Rebenta a babugem, o grão de areia sente a pressão da água e da raiz, o pêlo do gado aveluda-se, as borboletas ressuscitam, os anfíbios se desenterram; passou a grande síncope da seca, a estiação da natureza.

É verdade que o desembargador continuava a pôr-se de pé às cinco e meia, vestir a calça, às vezes sem botar de todo a camisa para dentro, e em seguida ir para o gabinete ler os jornais que achava metidos pela rótula. Era entretanto nova a impressão que lhe fazia agora a leitura. Gostava de A Oportunidade, cujo tino, que dantes ele chamava estradeirice, produzia-lhe prazeres não contados, imprevistos, de jogador pixote que aperua uma partida de mestres.

Daí, Angela trazia-lhe o café, ele virava a xícara, devagarzinho, fun­gava uma pitada, e ia estudar o seu pouco. Banhava o rosto, ou banha­va-se todo, perto do almoço. A amofinação dos trabalhos do cargo era para as onze, ou para a noite. As tardes continuavam para a prosa.

Tinha-se reformado um bocadinho o Passeio Público, senão criado, porque dantes ninguém lá ia. A sua aversão pela populaça crescia, à me­dida que a tendência democrática dos cearenses crescia também. Insula­va-se num grupo de estudiosos, certo nos bancos do terraço de cima, sob a esgalhada em dossel dos castanheiros de grandes folhas verdes e coralinas; todos como ele, sentindo esmorecer em si o caráter político.

Com a mulher, ainda rezava, quando não podia pretextar sono. Dizia-se católico, porém os outros o tinham por livre-pensador.

A Fabiana ficou muito maçada porque o sobrinho não veio tomar-lhe a benção antes de partir para o Baturité. Perguntou ao marido a razão, este respondeu que, naturalmente, a pressa da viagem. Maria das Dores, porém, não admitia isto. Sentiu-se muito, mas não deu mostras. O que pareceu é que Centu estava esfriando. Já havia deixado de passar de tarde, a horas certas. Ora, ela não fizera coisa alguma que motivasse esse desprezo. Mãe Zefa, pelo seu lado, jurava que o rapaz não tinha namoros por aí. Mas a menina duvidava ainda, afiançando que onde quer que fosse existia alguma tipa que o estava a seduzir. Tinha raiva dele, muita, e desejava a morte a si. E o espírito feminino, nessa angústia, comprimido, elevava-se a um ponto sublime, onde não alcança coração de homem; fazia consigo a jura de amor eterno apesar de tudo. Com esta deliberação, achou-se com vida e energia para sufocar a ingratidão dele, e com uma fé indestrutível, aguardava o dia em que o houvesse de ter a seus pés, para todo o sempre.

Uma dificuldade surgiu desde o princípio, o disfarce. Conhecia o gênio. da mãe, e teve de inventar quanta doençazinha galante existe, quando, estando ela sob o domínio de tredas impressões ou de brandas cismas, a carnuda senhora inquiria:

— Que é que tu tens, Maria?

Não gostava de sair tanto. Para ver o quê? Em casa figurava-se num convento. Fazia de conta que tinha ido ser Irmã de Caridade, como desejou em menina. Lia tudo que dizia com amores, que quase sempre aca­bava em desgraça. E um certo quê de imaterial que as mulheres costu­mam ter levava-a a conceber o amor infinito, a idéia de noivado no se­pulcro, de casamentos no céu. A beleza, que se lhe viera desabrochando pelo manso e progressivamente, parou o seu curso, e a par de uma de­liciosa expressão dolorida nos olhos negros, a face era menos acentuada, como se todos os dias se lhe pisassem as feições com o choro.

Logo naquele tempo, haviam de os pais introduzir pessoas estra­nhas em casa, e forçavam-na a comparecer! De quando em vez estava por lá o Senhor Visconde, um bichão, como ela dizia, sem jeito para nada, que parecia primo do bodegueiro da esquina. A menina olhava admirada para a mãe, quando esta disparava, em quanto elogio há, para com ele:

— Aquilo sim, minha filha, é um fidalgo, digno do nosso sangue! Vês como ele se porta? Não é como os outros. Não faz caso de nada! Responde a tudo com uma sabedoria de Salomão!

O Lucas entoava pela mesma cartilha. Maria comparecia, de pro­pósito, mal penteada, à mesa, e com uma cara de enjôo. Queria ter o prazer de desagradar. Ao piano é que não podia resistir, nem fingir; mesmo que fosse tocar para o maldito Visconde e sua comitiva. Não podia: o sen­timento fervilhava nas teclas, daqueles dedos que tantas vezes retorciam-se no desespero, e o som das cordas, de dentro, só falavam no Centu, da­quele rapaz franzino que lhe parecia forte como um gigante, da sua fala virgulada, do seu riso parco e caçoador, e do seu coração rico de segre­dos e de surpresas. Também, pensava ela, mal ou perfeitamente que tocasse, equivalia, para aquele troço de homens sensaborões.

Passou a idéia de que o oficial morresse em peleja. Visionava-o sem­pre de preparos para voltar, mandando tocar a corneta e avançando presto e risonho pelo caminho da capital. Isto, vezes por dia. Estava sempre a vir. Um dia havia de chegar.

E então, ajustaremos conta! ameaçava ela como se fora de fato sua mulher.

Uma tarde, no quintal, colhendo ela umas rosas para os santos, che­ga-lhe a Antônia devagar, quebrando uma folha entre os dedos:

— Sabes? O Afrodísio está apaixonado por mim...

Esfregava as mãos, de contentamento. Maria fez um ar de escan­dalizada. Havia algumas semanas que aquele homem entrara ali. Pela insistência da mãe, percebera que desejavam-na para noiva dele, e mais ainda, que ele é que queria casar com ela, que uma poderosa paixão o fizera angariar a difícil amizade do pai. Havia estudado até a resposta a dar à mãe: que se decidira a morrer solteira.

— Apaixonado por ti! franziu ela.

— Ah! está!

— Mas como conheceste?

— Não se diz. Isto agora é só com a baita.

— Ele te disse?

— É segredo! Não pergunte mais nada.

E largou a rir irresistivelmente.

— Eu digo a papai. Vê lá se me contas!

— Vá dizer logo, o caminho está aberto. Você pensa que só você é que pode ter namorado? Vá contar, Maninha, vá Bem Bem! Eu até lhe pago. Mas é você ir por um caminho e eu por outro. Conte o meu que eu conto o seu. E ficamos de conta justa, sabe?

Maria calou-se. Olhava para o sol espalhando-se por cima dos te­Ihados do quarteirão. Tocaram na corda sensível. Entretanto, artificiosa e vingativa quando ferida, a vaidade natural do sexo comungou consigo um — Tu me pagas — que deslizou como um áspide por cima de sua alma em flores. Em todo caso, era filha da Fabiana. A seu ver, na casa de seu pai, onde ela era princesa, somente ela teria direito de ser amada.

Ângela atravessava o quintal, carregando água, com o pote apru­mado na cabeça. Ouvia-se a ralhação biliosa da Fabiana, com a crioula Honorata. Maria lembrou-se de interrogar a cabrocha, e foi. Entraram pela sombra do tamarindeiro, por cuja folhagem renascida, miudinha e basta, não era fácil descer o sol, tendo sido preciso, até, mutilar uma linda ra­mada para a luz ter franquia com o seu cortejo de ar e de aromas até as profundezas da cacimba, ao pé da árvore, por modos que quando a crioula Honorata vinha puxar água a desoras via lá dentro os olhos arre­galados das estrelas. Ali o chão era fresco, entulhado para o pé do muro do fundo, e no canto do galinheiro, por fora, entre as brechas de um montão de caliça antiga, nasciam urtigas e camapuns, entressachados por uma primavera.

— Ângela, tu viste o Visconde dar alguma coisa a Antônia?

— Inhora não.

— E... nem falou com ela?

— Falou sim, a mode que trocou o nome dela, chamou Rosa.

— Deu a mão a ela?

— Deu, inhora sim.

— E o que mais?

— Eu não sei de mais nada, mas parece que beliscou.

— Pois olha, tu reparas, o que tu vires me dirás. Eu te pago. Já ou­viste?

— Inhora sim.

E a cabrocha, com os seus braços ainda não recheados pela pu­berdade, puxava a corda, ao ganir intermitente do carretel. As abelhas zuniam no tamarindeiro em flores, que exalavam um perfume ácido.

Mãe Zefa trouxe nesse mesmo dia às escondidas uma carta do

Centu. A concordata fora ele endereçar para um amigo da república, e este entregar à preta velha.

Que alegria! Antes do romper o envoltório, Maria cheirou, beijou,apertou contra o peito uma porção de vezes. Abriu com todo o mimo como se doesse no papel, com um alfinete que despregou do seio. Foi ler na camarinha, fechada por dentro.

Uma réstia, pela telha de vidro, rolava-lhe por cima a sua muda cas­cata de sol; e com a lentidão do ponteiro das horas umas pequeninas ovais incandescentes estampavam-se pela esteira. As mãos da menina tremiam, como o pestanejamento das estrelas em véspera de chuva. Sombra de uma ave que passa, fendia o cimo da carta a seguinte invocação:

"Minha adorada prima"

Como no engenho a cana, que uma vez apontando entre os cilin­dros, vai-se toda, ela não pôde parar na leitura, e no espírito, pela calha invisível das sensações, derramava-se o sumo das palavras, que havia de fermentar. Deslizavam, as linhas, palavra por palavra, e vírgula por vírgula, tudo, vividas, animadas, fonógrafo a repetir a voz cativadora do namorado, que as pronunciara, que as sentira, que as escrevera. O papel cheirava a mais! Era cor de rosa. Dobrava em cruz; e no canto superior, em caprichoso monograma um V e um M, Vicente Moura, que a menina lia — Vida Minha, Vinde Maria, Vencerás Maria —, naquelas gostosas puerilidades do amor primeiro. Chegando ao fim, tornou ao princípio. A compreensão estava difícil e demorada; os pensamentos a modo que se não mostravam por inteiro, e sim pela perspectiva das palavras mais fri­santes com o sentimento que a dominava e absorvia. Pela quinta vez é que alcançou destacar como que o volume de cada idéia. E relia com pausa:

"Primeiro que tudo peço-lhe desculpa de uma grande falta, que espero você me há de perdoar no seu coração. Eu sei o que se passa em mim, só eu sei o que sofro. Se nãd fosse para fazer os gostos a seu pai, eu tinha recusado o serviço deste destacamento. Não me aconteceria nada, porque vim para o Ceará por doente, e qualquer doutor me dava um atestado.
"A minha vontade, querida Maria, era implorar-te que te esque­cesses de mim para todo sempre, porque... Ora, enfim perdoa-me isto, que a minha cabeça não está regulando.
"Abri os livros e não pude estudar; aborreci a meticulosa calma, o processo fatigante e absortivo dos estudos; aquilo que era o meu maior prazer neste mundo! Desde que afastei-me daí, o meu amor cresceu desbragadamente. Só acho graça, só compreendo mesmo os livros que me emprestaste; O Guarani e O Seminarista. Que incom­patibilidade haverá entre o amor e o estudo, entre a arte e a ciência? Estas questões não estarão talvez ao alcance da tua feliz organizaçãode mulher, eu escrevo-as, todavia, porque não posso escrever senão isto. Eu vivo numa tristeza, num "spleen", macambúzio, que já me envergonho. Felizmente o meu sargento é muito brioso e inteligente, e me supre em presença dos soldados. Ah, minha pobre vida, eu que me supunha votado ao sacerdócio da ciência, como os Newton, os Galileu, os Lavoisier, me achar agora cego de espírito! Será possível, Maria, que sejas tu um sol, um relâmpago, que me paralisasse as funções da vida intelectual? Pelo amor de Deus, esquece-me! O meu caminho é diverso. Fica, o amor não é dado a mim, porque aniquila-me; o amor me é morte!
"Eppure si muove. Entretanto eu te amo! Ah eu te amo ainda e sempre!
Teu

V.”

A menina ficava perplexa.

Mas como se entendia aquilo? Ele a amava; ele não queria o seu amor, pedia que o esquecesse, e amava eternamente! Então, só ele que­ria ter o direito de amar? Não quer ser compensado? Ah!? Era bonzinho, meu caro, havia de ser amado, grandíssimo canalha; quer quisesse, quer não!

— Vou responder severamente a todos estes desaforos. Mas vaci­lou. Papai estará aí? Ela não estaria alterada? Vamos ao espelho.

Foi ao toucador, que ficava por baixo da imagem do bom velho São Vicente de Paulo, no seu eterno sorriso bem-aventurado. Passou o pente no cabelo, assoou-se, imaginou um defluxo nasal para disfarçar os ressaibos do choro, tomou fôlego, suspirou, sacudiu-se como para verificar se ainda tinha sangue nas veias, proferiu palavras em voz alta, correu o trinco, abriu a porta, e saiu do quarto, la cantarolando e saltando pelo corredor.

Entrou no gabinete, estava deserto, era meio-dia, papai estava na Relação.

O relógio cosia-se com a parede, com a estatura de uma pessoa, e na altura do abdome abria-se no verniz uma vidraça redonda por onde vagarosamente passava e repassava o plenilúnio dourado do péndulo. Maria entrou na pontinha dos pés, porém primeiro foi à sala de visitas, correu a mão pelo piano, e tossiu para que a supusessem aí.

O gabinete do pai era uma pequena peça forrada de papel cor de tabaco, imitando certas fazendas de seda, com uma janela de rótula e vidraça para a rua. Ao pés da escrivaninha deitava-se um couro de can­guçu, sob as pernas dianteiras da cadeira de braço, que girava como os tamboretes de piano. A estante subia, parede acima, da casimira verde que formava como um gramado no tabuleiro da mesa; e a pasta, gorda de papelada, adiante da meia lua onde encaixava o corpo do escrevente, abria-se em ostra. Maninha enxergava, pela força do medo, o pai a folhear nos livros, a passear no estreito aposento, a rabiscar.

A imaginação, de braço dado com o amor, açudava-Ihe no coração os rios do sangue. Pegou na pena e escreveu no alto de uma folha de papel amizade:

"Ilmo Sr. Tenente Vicente."D.

Não pode mais. Os caracteres saíam tremidos como sombras de varas na água corrente. Indignada consigo, passou o dedo, e borrou. Ficou inerte, debruçada sobre a pasta, julgando-se muito estúpida a si mesma. Queria desabusá-lo, mostrar para quanto presta a filha do Desembargador Osó­rio! Figurava ter o primo junto a si, em uma daquelas cadeiras onde assentavam as partes que vinham falar ao pai; e dirigia-lhe, com atitude de prima-dona, queixumes e increpações. Acabava, com os olhos para o céu, lacrimosa. Não, ia escrever, isto não era possível! Pois então, o que havia de ser de si?

E tornava, em outro papel:

"IImo Sr. Meu Primo Vic..."

Agora a pena cortava à guisa de bisturi, e a linha saía da pauta. Com certeza era aquele irônico IP'° Sr. que estava fazendo mal. Venha mais papel.

Meteu a mão na pasta, e veio uma folha tarjada. Luto? Mas que agouro, meu Deus! Teria ele morrido!?

Ouvia-se da rua o ruído timpanoso da carroça d'água, que produzia um efeito estonteante no cérebro, e o árido calor do sol a pino abafava. Não passava quase ninguém, ao soturno daquela grande luz meridiana. O sino de São Bernardo, magro e desafinado, batia o Ângelus, e em se­guida a voz de estentor do campanário da Sé. A idéia de morte pegou-a, como o cascavel ao magnetizado batráquio. A razão trucidada, e a ima­ginação, ruim piloto, iam-lhe com a mente aos escolhos da alucinação. Sentia-se inflamada, e parecia que o seu coração era uma postema!

As duas tranças, como duas cobras negras, amornentavam-se nas suas espáduas ofegantes, mordendo o cerebelo; e os lindos braços morenos faziam coxim à fronte pendida! O pés, nas sandálias de marroquim, cruzavam, apertavam-se no pano sala, debaixo da cadeira. Um cálido aroma de carnes virgens subia com a umidade daquele suor de agonia e de salvação.

Mansamente veio-lhe o receio de que o pai entrasse, e, disfarçando quanto podia, tornou à camarinha. Fez o que fazem as mulheres em caso semelhante — vasou-se em lágrimas. Levava no peito as folhas de papel borradas de tinta, menos a de luto, que introduziu cautelosamente na pasta. A hora do jantar, dormia; acordaram-na; desculpou-se com o defluxo.

— Defluxo novo incomoda muito, não é filhinha? dizia-lhe o pai, num afago desajeitado, tomando lugar à cabeceira da mesa.

— É, papai. É horrível.

— Mas devias ter dito, que eu mandava um chá, repreendeu a mãe. Vocês moças não aprendem nunca a ter juízo.

Em caso parelho, se algum namorado escrevesse à Antônia decla­rando que agradecia o seu amor; que o esquecesse; apesar de ele con­servar o dito amor pela sua parte eternamente, ela dava uma rabanada de traíra, deixando, ao lume da água, numa borbulha, a seguinte expressão canalha e brejeira:

— Seu caju azedo, quando se quiser levanta-se o dedo!

Mas com esta sujeita acontecia justamente o contrário.

O João Batista, caixeiro da casa Afrodísio Pimenta & Cia, apaixo­nou-se por ela. Um namorado sem ventura.

Naquela noite em que ela trepou por detrás da porta a fim de espiar os homens que estavam na sala, foi a primeira vez que ele a viu. Antes sentiu-a, realmente, do que viu-a, por entre os bordados da bandeirola. Babou-se logo por aqueles olhos de gata ruiva. Alcançou uma formosura imensa no corpo a que deviam pertencer uns olhos assim.

A parelha de luzios de esmeralda entrou a galopar-lhe pela alma adentro, indefinidamente, e um grande prazer o abalava na sua obscu­ridade de moço econômico e recatado. Pensava haver topado enfim o que desejava, a sua mulherzinha. Aquilo, parece, introduziu-lhe na pele uma substância estranha e salutar. A loira fisgou-o, sem saber. Verdade é que lhe não passou despercebida a insistência com que o caixeiro man­tinha o nariz para aquele lado; mas ao descer, nem mais se lembrava daquela fisionomia enjoada e inocentona.

O pobre, com um mês, sem trocar palavra (pois se ia à casa do Osó­rio a recados do patrão, a beldade o evitava de instinto) pespegou-lhe uma carta. A portadora foi a Mãe Zefa. Antônia ficou toda uma alegria: supu­nha que era do Visconde. O Senhor Visconde escrever-lhe!.., que achado, que fortunão.

E agora, onde ler aquilo bem de seu, com a maior segurança? Ocor­reu-lhe a camarinha das regras. Entrou, escondidinha. Uma claridade, encardida, um cheiro de àmoníaco e bodum; a telha escurecida pelas fu­maradas da cozinha. Estendeu-se na cama de couro de boi, ao canto, onde dormia, à noite, a penca de moleques. Foi logo à assinatura: João Batista do Nascimento!

Desapontou! Batia-lhe o coração, de insultada. Sentia um buraco no peito esquerdo, como se estivera com três dias de fome. Esmorecia miseravelmente. Quase teve um faniquito.

João Batista do Nascimento!

Fosse para a casa do diabo!

Já se viu um bicho mais besta? Que mal fizera a Deus? Não lhe diriam?

Amada por uma figura daquelas, entristeceu. Uma ofensa à sua be­leza e formosura.

Pareceu-se muito feia a si mesma, uma vez que um tipo daquela ordem simpatizava com ela. De feito, entendia de seu natural, só haver simpatia, havendo semelhança. Neste ponto se tinha ou não razão, é com o boticário Fernandes, que sustentava: aquela atração do corpo e alma supõe sempre certos pontos de igualdade, aparentes ou não, entre as duas pessoas; o que o Osório combatia com uma teoria contrária. Com­pleta oposição, dizia este, é a base do amor.

O escrevente pedia licença para ofertar-lhe um vestido. Que pediria a sua mão, quando ela quisesse. Que só ia naquela casa por amor dela, etc. etc.

"Sei que seu pai é um pobre cego, e que você é quase só no mundo. Seu pai não precisará pedir esmolas, quando nós nos casar­mos."

Isto irritou-a. Falar assim naquela mancha negra da mendicância, que era como umas sardas na pele rósea do seu rosto! Lembrou-se de quando o vira pela primeira vez. Que olhar impertinente! Dias depois, vindo a mandado do Visconde, saudou-a muito sem vergonha, deslambido, e daí, continuou.

O pobre não sabia disfarçar. Gostou da rapariga. Desconhecendo, porém, completamente a vaidade e suscetibilidades femininas, julgou que o maior agrado seria pedi-la chatamente, — sem saber se caíra em graça. Pela carta, solicitava o seu consentimento, para ir aos padrinhos, certo de que estes não recusavam.

De bruços, no couro cru, Antônia, meio pasma e meio enraivecida, erguia os olhos de bichano para o altar das crioulas. Diria que sim? Mas antipatizava horrivelmente com aquele rapaz, sobretudo ao ver que ele, vinha com isso de amor. Ante ele, depois dessa idéia de fundirem-se os corpos e a vida de ambos, tinha sensações de um sezonático ao pôr a vista em carne crua. Quando ele apertava-lhe teimosamente a mão, sen­tia ela uma impressão fria e pegajosa, e se lhe revoltavam as entranhas.

— Impossível, minha Nossa Senhora!

E repetia a frase instintiva, dolorosa:

— Não posso. Não posso, meu pobre pai!

O João de Paula, estava ali, pelo poder sugestivo que se obrava nela, naquele raro momento. A filha escutava, no tijolo, as pancadinhas do seu bastão, guiando os passos, e sentia-o passar a mão pela parede, como fazem os cegos na rua. Mirava, sem rumo, os santos do oratório das escravas, destas cuja fé era assaz vidente para não descobrir as dis­formidades de uma Santa Rita de venta chata e de um São José de per­nas de beribérico, desde que eram imagens benzidas. Sim, aos pobres negros tanto rendia um Cristo pançudo como um de barriga no espinhaço; era o mesmo Bom Jesus dos Aflitos; o mesmo cujo sangue era tão rútilo como o do Dr. Afrodísio, ou como o do preto velho Mané Corre que fedia a cachaça e a masca de fumo.

Antônia procurava como que uma resposta inspirada, no pedaço de parede reverenda. Olhava para aqueles trapos de papel pintado, um pouco acima das malas incrustadas de remelas de cera de carnaúba, salpica­das de sangue de pulga e empoeiradas. Parecia estar no terço das Al­mas, a que vinham os crioulos, tirado por ela, que se fazia muito rogada para isso, lido num caderno antigo distribuído por Frei Serafim. Com cer­teza a cantoria instintiva dessas mulheres degradadas era supinamente mais comovedora, expressiva, incomparavelmente mais rica e cheia de alma, do que a das meninas do Colégio. De um ritmo saudoso, bastava entoarem o primeiro trecho:

"Abrirei meus lábios, em tristes assuntos
Para sufragar os fiéis defuntos..."

e transfigurava-se aquela camarinha imunda, em fantasiosos comparti­mentos do Purgatório. A corda de roupa, que lhes era o guarda-vestidos; as redes amarelentas entrouxadas entre os cordões do punho do arma­dor; o vão do telhado, fusco pelas fumaradas do fogão vizinho; o tijolo catingoso do mijo dos molecotes; o bodum que recendia com um enjôo de panos abafados: a triste indecência daquelas mulheres sem direito de amar; os cafundós de sob o vasto leito de couro cru; os velhos trastes imprestáveis que os senhores botavam pr'aí; desaparecia tudo na íntegra da impressão auricular. Duas velinhas de vintém, pregadas no tampo das malas, alumiavam parcamente a caixa de cedro, feita pelo cabra Teodoro, suspensa na parede forrada, apinhada de santos, entre os quais pom­peava o S. Benedito de beiço vermelho e grandes olhos limpos, com um resplendor de níquel.

E Antônia, estirada na cama de couro, de vestido preto, com a sua tez, cujas imperfeições apagavam-se na penumbra, e aqueles cabelos dourados, estava mesmo uma pintura. Entrasse ali agora o Afrodísio! Aquele para quem ela se sentia de todo inclinada! Sonhava desposá-lo.

Teve um susto com esta idéia... O painel de madapolão, que, na parede, acima do nicho, com abundâncias de tinta azul e amarela, ex-bandeira das novenas do Rosário, seguro com preguinhos, abria-se como um pássaro de grandes asas, a modo que agitou-se como se ainda estivera içado no mastro e passasse um vento forte e repentino...

Enfim, foi-se o mau pensamento. O pano continuava estendido, com a sua rígida pintura estraladinha como o vidrado de louça velha, e a ima­gem de Nossa Senhora, a virgem das virgens, na sua pureza imaculada.

Na sala, aproveitando uma discussão que os pais travavam no ga­binete, Maria das Dores lia a segunda carta do Centu. Parecendo-lhe um olhar em cada poro de parede, balançava-se na cadeira de vime, junto à mesa do centro, muito aplicada com um livro que abria ante si, com as duas mãos: Lições de História Natural, muito recomendado pelo velho.

Assim, podia vir quem quisesse. Não estava para aflições: uma pá­gina, intercalada, era a preciosa cartinha, que dizia assim, com uma letra demorada e rabiscada:

"Querida Maniinha:
Me deste uma lição de mestre! Não me confiaste uma palavri­nha sequer. Oh! crueldade! Uma folha de independência metida num envoltório de papel avermelhado, com o meu endereço, eis aí a resposta que me enviaste! E castigo merecido, eu te ofendi muito. Mas que queres? Hei de eu enganar-te? Dirás: Mas neste caso você devia ter previsto no princípio, porque há meses que você voltou ao Ceará, e sempre que me via demonstrava, cada vez, mais amor!
E eu acrescentarei: Antes de partir para o Rio, sem conhecer-te, já eu te adorava em ideal. Entretanto, nunca eu me achei como agora. Tenho um pressentimento de que a minha carreira será cortada, se me casar! Que situação dolorosa a minha! Não sei o que será de mim. Por isso é que o meu desejo era isolar-me, pronto para naufragar, mas sozinho! Bem vês que o meu amor é muito maior do que julga­vas. Estou doido de amor, mas é dura em mim a pertinácia do bom senso. Eu não estou doido inteiramente, antes o estivesse.
Desde que resolvi entregar-me simplesmente às forças naturais, tirar à minha vontade o direito de imiscuir-se em tudo que não seja o estudo e o trabalho, passo melhor, leio, rio, faço caminhadas de recreio. É verdade que me dizem melancólico, e me chamam filósofo; e eu me sinto muito sensível. Isto, porém, é o amor que me gravaste, que me aguçou a percepção externa, me afinou os nervos e os sen­tidos.
Bendito amor...
Eu ia pondo aqui uma adversativa, ia dizendo um mas... que te faria muito mal. Não quero, porém, agravar a tua ferida.
Teu

V.”

Se com a outra carta a menina desapontou, com esta muito mais.

— Que ingratos, estes homens! Uma carta com reticências e mistérios: o Senhor meu primo estará me flauteando? Quer me desfrutar!... Quem sabe...

Esta frase veio num turbilhão histérico; a menina largou o livro e levou as mãos ao rosto, sacudida pelos soluços.

Não havia maior vilipêndio, maior desilusão, mais acerbo dissabor. Experimentava a mesma revolta que um homem de bem associado de boa-fé a um tratante que o bigodeou por fim.

Melhor não se importar mais com aquilo. Abafar, com subido hero­ísmo e frio disfarce, o sentimento; fazer como à baleia fisgada, dar linha, até o cetáceo cansar ou desaparecer. Mas, se começasse a ficar magra e amarela! e ele viesse de repente, vendo-a desfigurada... Que jeito? Dieut le veut. Seguiu o conselho que lhe dera o padre reitor, para as atribulações:

— Faça-se a vontade de Deus, e não a minha... Ah! mas, uma boa idéia!...

E depois que o pai saiu para a rua, foi ao gabinete, tomou uma folha de papel de carta, escreveu transversalmente, em grandes e frisantes ca­racteres: DIEU LE VEUT Dobrou, meteu no envoltório e subscritou ao primo.

— Sim, senhor. Deus assim o quer. Agora, decifre Sr. sábio! Embrulhei-o!

A tarde esteve bonita. Ela saiu de carro com o pai.

Deram uma volta pela cidade, e, da Rua de Baixo, enfiaram pela comprida ladeira do Outeiro dos Educandos, no horizonte da qual apontava o muro branco do Colégio. Na subida, de um lado e outro as boas edificações iam rareando. Já na esplanada, estendia-se a cidade de casas pequenas, ruas de areia e hervanço, quarteirões de mato, habitada por uma população de vida vegetativa. O carro dobrou o canto do muro. Acharam-se marginando a frente do edifício, diante do qual abria-se um descampado que se destinava a uma futura praça. Aí, o mata-pasto, salpicado de florinhas douradas, cobria o pó, subia como um mandiocal; e na tona viridante, avistava-se o busto de quem se internava pelas veredas.

A Mariinha aliviara o abalo interno em demorar a vista na paisagem.

Umas casinhas novas começavam a delinear a praça, agrupadas espaçadamente, com o amarelo do ocre, ou o escuro do roxo-terra, ou o alvo da cal. Um proprietário mais poderoso sungava a frente aos 22 palmos da marca da Câmara, e deixava o resto em meia-água. Ao fundo, onde o terreno descia para um açude, as habitações, por trás daqueles matos vivificados de maio, punham o queixo acima da seara de erva, e de algumas se não via senão o topete. Com aquele cinzento baço e fofo do corpo dos avestruzes, as casas de palha, com a frente em empena, insistiam pelo meio da futura praça, e fora dos alinhamentos das ruas que começavam a desprender-se; e por essas choupanas arruinadas podia-se tirar a olho o rumo das estradas antigas e extintas. Soutos de pau-ferro

cobriam terrenos devolutos, capoeiras de antigos roçados; e um roxo lácteo florescia como enxames de mariposas, por miríades, nos jurubebais. As cercas de faxina, as caiçaras, onde o melão trepava, alinhavam-se, toucadas de filó verde, e com o cinzento de casca de pau. O ar denun­ciava a pancada dos pilões, o canto dos galos, o latir da canzoada, o gri­tar dos meninos, naquele viver promíscuo e semi-selvagem.

Pela frente do edifício passava o empedramento, que um pouco adiante morria na estrada de areia, artéria dos roceiros da Aldeota e do Rio Cocó, por cerca de duas léguas ao Sudeste.

O Senhor Bispo vinha saindo pelo portão do Colégio, construção de forte alvenaria ladeada por um gradeamento preto. A cruz e o tran-selim de ouro, na murça cor da túnica do Bom Jesus, e o roquete de fi­níssima guipura, transparente no lindo roxo da batina, o tom sagrado dos seus passos, o olhar pontifício, o lustroso pêlo do chapéu, as pedras pre­ciosas do anel e da cruz, feitos para o macio das catedrais e dos apo­sentos principescos, melhoravam aquele ambiente mísero e terreno. Era com um fervor que há muito não sentia que a Das Dores, dobrando o jo­elho, baixava o rosto sobre a mão sagrada e depositava um beijo na pe­dra fria do anelão do pastor. O Senhor Bispo sorria uma palavra amena, um gracejo, como para nivelar os espíritos. E as Irmãs que o acompa­nhavam até o portão entravam no cavaco, e recebiam a Das Dores com a maior doçura, como se esta fosse ainda aquela. O desembargador ofe­recia o carro a Sua Excelência Reverendíssima. O Bispo agradecia, e con­tinuava a pé, mansamente, sob o guarda-sol do seu secretário.

As Irmãs demoravam na soleira do portão. Uma nuvem passando lentamente servia de pára-fogo àquele sol das cinco e meia da tarde. Em seguida, as altas copas dos coqueiros dos quintais da Rua de Baixo, ao Ocidente, avistadas por cima, amostravam as bordas acendidas, as pal­mas, em estrelas, avivadas de luz.

Das mudas cenas do Ocaso sentia-se um fino silêncio, que vinha quebrar-se na superfície da terra. A areia tomava um cinzento corado e morno, e o mato era enormes manchas de vário verde infiltradas de uma claridade aloirada, amortecida e palpável. Rente à paisagem, para o Ocidente, ia-se percebendo uma poeira brumosa, com o moroso cair do sol.

Fez-se um crepúsculo quase nu. O Poente empastou-se por uma nuvem parda e lisa, por entre as brechas da qual saíam vislumbres fulvos que iam colorir as ligeiras névoas salpicadas aqui e ali pelo firmamento.

A Das Dores fora à capela de Lourdes com o pai fazer umas orações. Mandada pela Fabiana. As Irmãs entraram, ao bater da sineta, para a ceia, depois de no parlatório entregarem à antiga educanda a chave da capelinha. A porteira seguiu os visitantes com o seu paletó quadrado e o seu beato andar de leigo fervoroso, conversando piedosamente, narrando os últimos milagres da Senhora de Lourdes. Atravessaram uma área de jardim. O desembargador meteu a chave na porta. Abriu. Dentro era escuro, apenas no ar, ao fundo, a lâmpada arroxeada. Puseram-se às escâncaras três janelas. Então se podia admirar a gruta. A mica brilhava nos papos da rocha; e, numa cavidade alta, aparecia Nossa Senhora, de alvo, mãos postas, pisando em rosas silvestres, faixa azul, os olhos no céu, e em torno um letreiro: "JE SUIS L'IMMACULÉE CONCEPTION."

Prostrou-se profundamente a Das Dores. Ah! dias, que foram! sen­timentos escoados para sempre que não há invocar! Do chão ao telhado, até um terço da extensão da capela, amontanhava-se a gruta, que pare­cia conter as mais ricas pedrarias. A estátua da pequena Bernadete, a quem a Santa apareceu, ajoelhava por dentro da grade, de vela e rosário, olhando para a Imagem. A esquerda aplainava-se na rocha fingida, uma ara para a celebração da missa. Um Cristo e castiçais de prata aí repou­savam no morno silêncio. Ao meio da gruta cavava-se um depósito da água milagrosa, vinda de França.

Estava-se como numa sepultura subterrânea.

Pelas paredes sombrias, quadros do Juízo Final, da Morte do Justo, da horrenda Morte do Pecador; e ao lado da porta principal, fechada, que dava para a rua, escancarado, o armário dos milagres, ostentando per-rias de elefantíases, dependuradas, mãos inchadas e em pústulas, bra­ços cortados, cabeças de crânio roído, ou de boca torta, ou de nariz can­ceroso, muletas, representações de naufrágios, em desenho rijo, ventres dilacerados, retratos desfigurados, peitos lancetados, pescoços escrofu­losos, lombos mirrados pela tísica: a carne nua e podre na mais horrível confissão da miséria humana e do milagre divino. O desembargador exa­minava, atento, afigurando-se que ainda cria naquilo.

A Das Dores, porém, no genuflexório, pensava era em beber da água miraculosa, para o mal que a minava. Pedia que lhe apagasse o fogo que lhe ardia dentro, a chama excomungada, o ciúme consumidor. De repente lhe havia surpreendido a convicção de que o primo amava outra, alguma filha de rico fazendeiro baturiteense! Que enorme afronta! Esta idéia de traição metera nojo, e trouxera imediatamente uns cheiros vis de impu­reza e de intestinos, uma lúcida intuição da quanta baixeza a que pode afundir o bicho homem. Ofuscou-lhe a feminina e transcendente idéia do heroísmo. E ficou como as esposas esquecidas e desesperançadas. Re­presentava-se-lhe o ser como uma esponja insaciável. Escandalizou-a, aquilo, como a quebra de uma palavra de honra. Uma sensação de es­magamento. Num mar onde tudo vacila. Um naufrágio da esperança. A alma, da sua pureza de amor, caída na privada onde brotoejam o ódio e as aversões.

— Coitada de mim! bradava com os olhos para a Santa.

"Não se lembrava, a sua antiga padroeira, da pequenina Das Dores que vinha cantar em coro, e o hino delas enchia aquela gruta sombria e sagrada? Já a esqueceste Maria Virgem? Por que a deixas neste mundo maldito? Ah! quando ela renunciou a Satanás suas pompas e suas obras!

"Um raio desse teu olhar azul conserte o seu coração quebrado pe­los maus pensamentos!

"Ilumina o escuro de sua alma, Senhora, Ave Mana cheia de graça!"

Os ratos faziam uma correria por detrás do zinco e madeiras que representavam a rocha. Um morcego ia e vinha com o seu voar frouxo. Por uma janela entreaberta, para o Oriente, o desembargador avistava um último luzir de sol na trunfa de uma castanheira afastada. Chegavam até ali, claramente, os gritos e vozerios das educandas, no recreio; e uma Irmã saía de dentro da gruta, por um corredor disfarçado, a convidar a Das Cores para o Mês de Maria no caramanchel dos jasmins, num dos pátios internos. Das Dores não quis. Beijou a mão da sua antiga mestra, saiu e foi a meter-se no carro.

A Irmã, em companhia da porteira, que fechava o grande portão de ferro do jardim, ouvindo-se ainda o forte ruído das rodas no calçamento, fazia balançar no dedo o olhal da tesoura que lhe pendia do cinto, e can­tarolava:

"Le monde fait son tapage..."

A perteira curvava-se para correr o ferrolho de baixo, com o &u ar piedoso, não entendendo o francês, nem o sentido mordaz daquelas pa­lavras.

Ao pisar na soleira da porta do parlatório, a francesa relanceou um último olhar pelo crepúsculo. Nem mais se via um pingo de sol:

"Et l'amour fait son ravage..."

Seria em português cortante: O mundo amotina, e o amor arruína.

Dos extremos do cano meio descido, paralelo à toalha, sobre o ser­viço de chá, os dois bicos de gás, nas mangas de vidro em forma de meio globo, clareavam suficientemente, sobretudo à calva do desembargador, à direita dos bigodes do Visconde que honrava a cabeceira da mesa. O pente de tartaruga marchetado e duas pastas grisalhas, o riso e parla­patice ocasional, não punham dúvida de que à esquerda assentava Fa­biana. Um reflexo doloroso na fala, uma sombra, uma colateral melodia como se com os sons primordiais marchassem harmonicamente outros sons, davam a entender Maria das Dores, a morena, ao lado da Fabiana. Fronteiros a ela, o Cunegundes, redator de A Oportunidade, e mais o Ma­jor Secundino, comerciante, barbaçudo e circunspecto. Antônia acoita­va-se vizinho à Maria, e era um pedaço de latão arejado junto a uma obra de lei.

O Lucas seguia-se a Antônia, e chamava-lhe sempre Antonina, à maneira dos portugueses.

Parecia um repasto de luxo, a notar pelo bule de prata. Havia bolos, pão-de-ló, vários queijos, torradas, carnes frias, pastéis. A manteigueira, o açucareiro, e a fruteira do centro, de grande custo. É que ali andou mão de Maria das Dores.Pela primeira vez, esta coadunou-se com a mãe. O diabo entrou-lhe. Tomou uma tal aversão pelo primo, com a simples idéia de que ele a enganava, que o sangue materno, como os cururus da beira da lagoa, entrou a berrar-lhe naquela noite do sentimento. Resolveu con­quistar o Visconde. Este fidalgo estava caidinho pela Antônia, e por isso, olhava, ria e falava para o lado delas, e a Maria tomava que isso era con­sigo, pois um Visconde não ia lá se ocupar deveras com a filha do cego João de Paula.

Fabiana, satisfeitíssima. O desembargador, esse, nem como coi­sa. Conhecia o magano pela pinta do olho. Sabia-lhe agora muitas mamparras.

O caso é que Antônia, dias depois, indo ao mês de Maria em São Bernardo, não foi vista na igreja; o que Mãe Zefa, que a acompanhara, contestou, alegando que até haviam estado todo o tempo da novena ao pé do altar de São Roque.

Neste entretempo, a menina recebe a terceira carta do Centu e foi caçoando mostrá-la à mãe:

— Vosmecê quer ver como anda o seu sobrinho com as manias de papai? Olhe cá.

Fabiana estava assentada no banquinho da costura, na sala de jan­tar. Com os óculos na ponta do nariz, inspecionava a renda que a Ângela fazia, e achava, como era fado seu, pelo menos, preta de sujo. Puxou a almofada para si, e desenrolava a quantidade de renda já urdida; media a palmos, avaliando quantos côvados precisava para um cabeção com três carreiras de entremeios; enrolou a peça e pregou-a de novo na al­mofada. Angela, de pernas cruzadas, no chão, a seu lado, entrou a trocar os bilros. Largava uns e tomava outros, e quando um ponto ficava dado, segurava-o descendo um alfinete, e assim, imperceptivelmente, ao longo da tira de papelão ia se formando aquele caminhozinho bordado. Mani­nha gritava do gabinete:

— Mamãe, ande ver!

A velha enfezada:

— Arre lá, que me importa isso agora!

Por certo, uma vez que a menina manifestou-se pelo Visconde, me­recia toda confiança. Pudera, boa filha.

Na cadeirinha de pés aparados, Fabiana continuava costurando. Des­cansava os tacões na travessa de um mocho onde depunha o açafate contendo a caixa dos óculos, o agulheiro, a tesourinha, o canivete, uma laranja de madeira para consertar meias, o coto de cera branca, os novelos, os carretéis, alecrim seco e uma raiz de gengibre. No silêncio que pairava na habitação, quase ouvia-se a ebulição das panelas e a voz dos próprios pensamentos. A mesa expunha o seu verniz de sândalo, a co­berta, de linho pardo com estrias vermelhas, repuxada para uma das ca­beceiras, ao lento esvoaçar de umas duas moscas. Antônia, junto ao en­vidraçado e alto guarda-louça, curvada sobre o bastidor do labirinto, le­vantava de vez em quando um olhar para a quente perspectiva do quintal, ninando, aos estalinhos secos dos bilros da Ângela, as idéias que lhe ador­meciam na mente. Ângela mudava automaticamente os alfinetes e esta­lava os bilros fortemente, sem mesmo reparar na bela chita adamascada que revestia a frente do almofadão. Irmanada intimidade fazia-se entre todas. A Fabiana com o seu dedal de prata, cerzia uma ceroula do ma­rido. Os seus dedos sem brilho paravam por momento, estendidos no tra­vesseiro da costura, e dos seus lábios secos desciam palavras pelo brando, repassadas de unção materna.

Nos buracos da almofada, nos topos, Ângela guardava um pedaço de rapadura, que roía às furtadelas. Pouco entendia dos conselhos da senhora, e a prova é que saía-se com perguntas tolas, indiscretas algu­mas, que pasmavam de pejo ou de riso. Faria a primeira comunhão, ia inteirar treze anos, precisava recordar a doutrina...

— E como é isso? perguntava à senhora.

— Como? No catecismo, tola!

Esquecera a matrona de que o catecismo é para ser lido e decorado, e que, no seu pensar, negro não se instrui. Foi desenvolvendo os capí­tulos, que sabia de cor, explicando o melhor meio de decorar, de com­preender as sagradas lições. Quando encarava o quintal, nos vidros dos seus óculos, dançava em miniaturas catitas o dia exterior com os objetos que ele banhava.

Um profundo pesar avermelhava-lhe de costume esses fins de con­versa de religião: não ter ido para freira em Portugal. A não ter podido, por força da natureza, sustentar as carnes e a frescura de noiva, — nesses momentos de enlevo místico deplorava não ter preferido a abstinên­cia completa.

Abaixava para Antônia e Ângela um olhar duro, crivado de mistérios e de interrogações. Daí, o desejo da virtude física amadurecia em inveja.

A cabrinha trocava pacatamente seus bilros, erguendo sobre os quadris esparramados no chão o tronco esbelto e rijo. Da Antônia, roçavam na grade do labirinto os dois seios fatais, parecendo pipilarem como pintinhos ao sair do ovo; tremiam-lhe ao mais leve meneio, as argolas dos brincos postados como espiões na pontinha doce das orelhas; a pele, com a quentura, porejava, e os dois olhos verdes, cambiando, amorneciam sob a fixidez superciliar; e o largo da testa, para ser plantado de ósculos de amor, ia esconder-se pudico na úmida orla do cabelo, onde enrolava como uma cobra uma fita azul. Pelas portas, que abriam sobre a varanda, sonoro de vidrações incandescentes, auriverdes, via-se o dia lá fora, cheio, equatorial, invasor, oceânico. Em jarros de terracota, assentes no peitoril do alpendre, que seguia-se à sala de jantar, reverdeciam pés de alecrim, de cravos, de junquilho, de rosa-menina; e numa corda armada entre as colunas da varanda que seguia-se à puxada da cozinha e dependências, pendia uma vistosa toalha de mesa, franjada, com manchas de café e de vinho. Uma toalha de sol acendia-se no ladrilho, e abria um foco des­lumbrante no flandres de um pequeno regador emborcado junto a uma vassoura de piaçava. Ouvia-se, como um ebulir de sons num cristalino caldeirão de luz, o discorrer dos passarinhos presos. Das bandeirolas, pendiam duas gaiolas de fio de ferro, com casais de canários belgas, e numa de taliscas de bambu, junto ao guarda-louça, uma graúna, negro brilhante, lembrava o cair da tarde nos carnaubais, desmanchando-se numa cantoria selvagem e lânguida, por modos a lavar um peito ébrio de amor, naquela hora de modorra. As folhas das portas, com uma tinta alva de casca d'ovo, dobravam-se na espessura da parede forrada de pai­sagens. Como um prédio de construção pesada, o guarda-louça, na sua abundância de vidraçaria, enchia um claro. Angela fazia estalarem os bil­ros, na renda; e o gato mourisco, de orelhas em pé e cauda para o ar, passava e repassava o lombo sob o seu cotovelo, fazendo ron-ron.

A Mariinha, teimosa como ela mesma, veio com a carta do primo, sentou-se ao pé da mãe, e fê-la ouvir a leitura.

— Eu quero que você veja só, mamãe, como este rapaz é maníaco. Estou que ele acaba doido. Se há de cuidar nos seus soldados, passa o tempo estudando as aves, as pedras e os matos de Baturité e da Serra! Veja lá!

A carta parecia de rapaz a rapaz. Nem vislumbre fugitivo de paixão. A Fabiana respondia:

— Está direito, minha filha! Puxa ao pai, que morreu de aprender. Assim é que o teu primo há de conseguir ser alguma coisa.

— Eu aprecio muito mais um homem como o Visconde, que vive sempre no desempenho da sua profissão, atalhou a moça.

— Está bom... Isto agora é assim mesmo. O Visconde é um fidalgo, um homem notável, uma espécie de príncipe.

E olhava maternalmente a filha:

— Ele te aprecia muito. Parece mostrar, até, uma certa queda por ti...

— Já reparei... fez a donzela, entre sorrindo e desconfiada.

— Mamãe, e soldado é soldado; o Centu não devia pôr-se agora

a idiotar estudando bobagens! exclamou intempestivamente.

A velha, na satisfação da sua vontade, que costumava antepor a tudo, não surpreendia aquelas lucilações repentinas que involuntariamente relampeavam na conversa da filha, a respeito do Centu, fosse qual fosse o assunto. Era imperfeito o prisma da sua compreensão, para decompor a grossa luz do pensamento da donzela e ler-lhe nas cores simples.

A própria carta do oficial traía-se, apesar da calculada frieza.

Dizia que as eleições tinham-se feito sem mais novidade. Não re­velava grande entusiasmo pela vitória dos amigos do desembargador. Estendia-se muito em desenhar a natureza baturiteense, sobretudo da serra, onde passava semanas inteiras, deixando a força entregue ao sar­gento. Mas escrevia por baixo de tudo, em um "note bem", que a Ma­riinha não leu para a mãe ouvir, que o estudo não lhe fora bastante para compreender tão apaixonadamente a esquisita natureza da sua terra, se antes, alguém não lhe tivesse fornecido a chave do cofre dos sentimen­tos. Repetia a frase dela. Dieu le veut! e acrescentava: J'en doute!

— Que blasfémia! vociferava, de dentro do coração, a menina! Deus quer, mas eu duvido! Ah! senhor meu primo!

O caso é que passou a crise do ódio. Raiva de amantes, que de­genera em riso. Veio, antes, dela mesma: entendendo-se traída, e o ci­úme subira, como os vermes. Agora passou.

Entretanto, ela sentia — que uma coisa lhe faltava. Estava como uma gaiola cheia de canários, donde fugira um. Voou.

O amor é como um cacho de uvas: toda vez que a carne assoberba devora-lhe uma, até que só resta a vinha da amizade, se não lhe dá a filoxera do esquecimento, do tédio, da repulsa, da saciedade, da aversão.

Mariinha levou a mão ao peito, o músculo cardíaco era o mesmo, agitando a massa do sangue.

— Mas o que é que eu queria? dizia consigo, entrando na camari­nha. Eu ia fazer alguma coisa... e levou o dedo aos lábios.

Procurava lembrar-se, ligar idéias, não encontrava em si a faculdade da memória! Pesavam-lhe as capelas dos olhos: dois abalos sucessivos haviam-na prostrado. Restituída a si, ao seu amor, por aquele nota bene que ela não vira a princípio, estava, entretanto, cansada.

Havia, ali dentro da camarinha, um trescalar longíquo de paixão e de flores. Num ângulo sombrio, pelo punho enfiado no armador, dependu­rava-se a rede, cujo panejamento dobrado entalava entre os cordões disten­didos, o todo parecendo uma funda carregada, as voltas do tecido abraçan­do-se cumulativamente. Abrolhava escapulida, uma bolota com um pedaço de varanda, em desmazelo de gente nova, em frouxo aconchego. Os cor­dões do punho desleixadamente enrolado no corpo fofudo e alvo daqueles algodões, apareciam enlaçantes, como dedos que abarcam e afagam. Réstias de sol imprimiam pelo recinto os seus topos acesos, grandes olhos de luz, pequenos caprichos de claridade. Um cheiro de mato subia da esteira, nova, sobre a qual se estirava um par de sandálias de marroquim, com o jeito do pé. Fechou sobre si a porta, cor de folha madura, francate esvazada na parede branca. Armou a rede. E dormiu.

Antônia veio mostrar-lhe o Meirinho, jomalzinho picaresco e jocoso, que trazia umas chavascadas no Visconde; porém recuou, por não acordá-la.

Quando o desembargador foi para o jantar, disse, como costumava, as novidades do dia; entre as quais a nova de que seguira para Baturité um oficial, render o Centu, que tinha de ir para o Amazonas, dois dias depois, por ordem do Ministro, vinda por telegrama.

Cortando a carne assada, Mariinha, ao escutar esta notícia, demo­rou um pouquinho o garfo à beira do prato, baixando os olhos como se estivesse engolindo alguma coisa com dificuldade. Depois, voltando a si, pigarreou, e continuou a jantar com a maior calma deste mundo.

O pai entrou a enfatuar de elogios o nome do moço, almejando-lhe uma esposa condigna, possuidora de bens que garantissem-no contra a perseguição da sorte.

Gabou muito a carta que ele dirigira à prima, no sentido de atraí-la para o estudo sério das coisas.

"Se ele fosse outro, acrescentou, cuidava era namorá-la."

Aquele post-scriptum fatídico a Mariinha arrancara, para mostrar a carta ao pai, avançando que o papel rompera no abrir do envoltório.

Embarcava pela manhã, no paquete brasileiro, o Centu. Vivia agora numa calma feliz, tendo conseguido torcer o pescoço, como ele dizia, ao pintainho do amor. Concretizou, na excursão, vários conhecimentos. Gozou do supremo prazer de colher, comparar, deduzir, induzir, generalizar, formular princípios, lendo no livro da observação, fervilhando na natureza bruta. Indo para a bacia do Amazonas, que antegozo o picava, que cu­riosidade, que estremecimentos!

E Mariinha?

O desembargador, calculava que ele voltaria capitão do Corpo de Engenheiros, ao que o tenente objetava dizendo que era preciso ser trans­ferido previamente para o Estado-Maior de 1 ° Classe.

— Pois isso, pois isso! Hei de fazer valer os seus trabalhos.

— Vosmecê cuida ainda que, mesmo no Exército, voga o que mais age no desempenho dos seus deveres e no evoluir da sua vocação?

— Está bem, eu sei que tudo neste país é muito pela casca. É por isso que quem primeiro anda primeiro manja, contra o Evangelho, que diz que os últimos serão os primeiros.

— Pôr-se em evidência pela astúcia! frisou o moço.

— Pois sim! E estamos na lei da sabedoria: pomba e serpente.

— Esse consórcio é quase impossível, é contranatural.

— Pode ser até absurdo!

Enfim, seja o que for, não é motivo para desesperançar. Enquanto aprendo e trabalho, sou feliz. Navego sem pavor de naufrágios. Soço­brando, fá-lo-ei com frieza de marinheiro que nisso vê o seu fim natural. Entretanto, enquanto puder, deito lastros ao mar. Já comecei...

— Como já começou? Então se compara a um navio?...

— Sou um navio que largou carregado a todo o calado, de um porto, e atravessa o oceano, visando outro porto. Do Rio a Lisboa, por exemplo. Tudo é não deixar-me surpreender pela borrasca, nem pelas colisões, nem pelos parcéis.

— E então?

— As colisões, evito; ou afundará o menos avantajado. Os parcéis, a eles não vou porque conheço a navegação, e se for, me arrebento ga­Ihardamente.

— E a tempestade?

— Carga ao mar.

— E que volumes tem deitado? Diz que já começou...

— À medida que o mar se encapela (neste ponto o símile é imper­feito, o mar da vida, para cada indivíduo, vai embravecendo gradualmente, fatalmente, até o horrível ciclone da morte), vou alojando às ondas do es­quecimento, ou da abstinência, vários pequenos vícios e prazeres, e até alguns sentimentos...

— Bons ou maus?

— Se bons ou maus sentimentos, não sei.

O mais pesado de todos, que por um triz imerge o tombadilho, tanto pesava, foi isso... de amor...

— Hein, isso de amor?!

— Vosmecê não calcula sequer...

— Então isso leva ao fundo do mar?

— Avalie um negociante que se estabelece à fiúza de outro, assinando letras; entra pagando juro, sem liberdade, comprando ca­ro...

— Mas não é o geral.

— Ê o meu caso, e o de todos os moços pobres que são votados a um serviço como que nacional, cuja vida não pode encerrar-se no lar, que anseiam é por palpitar com um país inteiro, são um glóbulo de san­gue que tem que circular no organismo de um povo do coração à ponta dos cabelos e às unhas dos pés.

— Que imodesto que é!

— E pretensioso, não me faz favor.

O velho sorria pelo brando. No interior, estava contentíssimo com aquela franqueza bruta de soldado, confiante, decidido e bravio.

— Disto é que o Brasil precisa, filosofava, a fungar uma pitada. Com que não se casa, não é assim?

— Não. Eu mesmo hei de carregar a mochila, quero estar escoteiro para levantar acampamento ao primeiro toque.

— Admirável, admirável.

O velho passeava de um canto a outro da sala, sacudindo o lenço de tabaco.

— Sabes muito, meu filho, mas ignoras uma parte de ti mesmo. O conhecimento é um sol que se acende no cérebro. No ser, entretanto, há grutas onde ele não penetra nunca. Nessa gruta é a fonte das contradições. Sobem dela vapores que ofuscam inesperadamente, o sol se oculta, a luz decompõese em cores diversas, o ser parece outro, e o mundo chama-o contraditório. Mais tarde volta o clarão diuturno. Novas nuvens passam depois, ou demoram. E assim vai. O homem é como a nossa at­mosfera, meu caro, sempre a mesma e sempre variável, domínio do im­previsto, do problemático.

— Ora diga-me, senhor: esse grande amigo seu, esse Visconde, não se tem conservado refratário aos afetos?

O legista ficou em dúvida.

— Não tenho elementos para responder-lhe. Mas desgraçado da­quele que não é caroável a essa afeição, a esse sentimento primordial, candeia, roteiro, chave das puras delícias do espírito.

— Mas há tanto bruto que ama! exclamou triunfante o moço.

— O que quer dizer com isso de bruto? Em todo caso, destaque da massa humana os indivíduos privilegiados, e veja se a algum deles faltou essa afeição.

— Mas não quer dizer casamento.

— Isso agora... conforme.

— Qual conforme, nem meio conforme, confesse que venci-o!

Mariinha que apanhara metade da discussão, e compreendeu a mira das palavras do Centu, aquela obstinada pirronice, aquele torcer da con­versa para um só rumo, de caso pensado; tendo apertado a mão ao primo, e ido para a janela, não pôde assenhorear-se, e mal findava ele aquele o venci irónico, ela avançou e atirou-lhe, como se fora uma bofetada a um malcriado:

— Isto é ser bruto de mais!

Proferiu, ou antes gritou estas palavras como a cobra que dá o bote, e o moço ficou como se lhe houvessem abanado os queixos. Mudo e quedo. Cobarde.

Mariinha desapareceu ato contínuo pelo corredor, e o pai, caindo das nuvens, gritava-lhe: 'O que é isto!? O que é isto!? "seguindo-a, porém ela desaparecia vertiginosamente adiante dele, até que bateu-lhe a porta da camarinha. O pai ordenava que abrisse, ela soluçava de dentro.

Passaram os minutos, num forte palpitar de corações. O pai a pouco e pouco foi invocando o raciocínio:

— Dar-se-á o caso que...Santo Deus! Mas...eu não lhe vi indício al­gum de histeria!... Ela é sã como um abacate. Ah! Estes ladrões... estes canalhas se amam! Patifes, e me enganarem até aqui!

Um transporte de alegria relampeou-lhe. Estava descoberto o meio de aniquilar por uma vez a turrice da Fabiana, que queria à fina força ca­sar a adorável criança com o repelente politicão do Afrodísio. E, contra o natural dos pais que se abalam com a simples idéia de entregar sua filha a outro homem, achou conforto.

Tremente, sibilou pelo buraco da fechadura:

— Já compreendi, minha filha, acalma-te, e conta-me a teu favor.

Felizmente, rodava um carro na rua e parou na porta. O Centu, so­zinho na sala, veio à janela, e num longo suspiro restabeleceu a calma para o sangue. Como poderia encarar ao desembargador, que era um homem tão estouvado e ingênuo quanto fino, sem envergonhar-se?

— Ele compreendeu, por força! — cogitava o coitado. Olhando para o carro conheceu a tia, que apeava com a Antônia.

— Anda com isso, mulher! gritava a Fabiana, desenganchando do estribo o rabo da saia. Que lesma!... Oh, então você está aí, senhor va­lente capitão?

— Estou, sim senhora, respondeu da janela o Centu. A sua bênção. — Deus te abençoe, e te faça um general. Anda com isso Antônia! — Vou já!

Antônia, com um pé no estribo, segurava uma trouxa de sapotis.

— Deu muito trabalho apanhar, o lenço desatou-se todo e caiu tu­dinho no carro. Pode ser que tenha ficado algum, — e virando-se para o cocheiro, que fechava a portinhola: — Procura para ti, Joaquim.

— Este cá não vive dessas porqueiras, cá é carne e pirão, resmun­gava o moleque, fechando a tromba de negro ruim.

— Quase que não venho, minha gente, exalava a Fabiana, subindo, os três degraus, pegando o vestido na frente e arrepanhando a cauda. A Dona Porcina é tão agradável, e a Jacarecanga é tão longe... Safa! Estou como se viesse a pé... O carro sacode tanto... Osorinho, é preciso comprar-se outro carro!

O Centu e o Osório vieram recebê-la na porta. Ela tomou para a ca­marinha, ia desapertar-se, e meter o pé na chinela; o sapatinho de cor­dovão era uma luva, mas arrochava como os trezentos.

Antônia correu a guardar os sapotis na despensa, que estavam de vez; os poucos maduros viera comerricando com a madrinha, na viagem. E ficou o Centu de frente com o desembargador:

— Sim, senhor, vosmecê tem uma grande habilidade.

Esta frase, dita pelo manso, com um certo ar de apoio e superiorperspicácia, puxou ao Centu o inevitável sorriso, irreprimível, amarelo, de quem não acha termos para escudar-se, tão flagrante está a verdade.

— Sentese na cadeira de balanço... Amanhã vosmecê embarca... E diga: promete escrever-me?

— Sempre.

— Tanto basta. Louvo que sustente a sua maneira de pensar. É o melhor caminho de se mudar de idéia; para melhor, bem entendido.

— Agora é que eu rio francamente, exclamou o mancebo, de um salto, pondo-se em pé, tomando de novo as rédeas do coração: Eu? Mu­dar?

E soltava uma gargalhada seca.

— É isso mesmo! gargalhava também o desembargador. Você? Mu­dar? E ria irónico, e riam ambos, pondo no canto do olho uma pontinha de brejeirice.

— Você quer saber de uma coisa, senhor futuro Capitão de Enge­nheiros? Cheguemo-nos às boas, e vamos a um gole de vinho..E erguendo-se de mãos no bolso:

— Oh Ângela!

— A praça rendeu-se, — entressorriu o oficial, agitando o balanço da cadeira,— com armas e bagagens.

Defronte, nos fofos de lã que encobria o mármore como as rendas a alvura de um seio, empinava-se o retratozinho da Maria das Dores, em busto, na doçura dos quinze anos já passados. O olhar fito da fotografia molestou-o, e fê-lo mudar de cadeira, protestando contra o sol que batia nas paredes do Nascente.

Entrou a brincar com a corrente do relógio. Estava outro. Tendo feito sentir claramente ao pai de Mariinha o seu modo de ver sobre isso de amor, foi uma verdadeira vitória. Sentia-se mais de casa, despira todo o acanhamento. Absorvia-se no passeio ao Amazonas. Donzela que ia ao primeiro baile. Daí, cobria a tudo com um dourado sorriso de felicidade, todo rosas, limpidez, candura, esperanças. Mil cegos pedissem-lhe es­molas naquele dia, que aos mil daria tudo, tamanhos lhe eram a sensi­bilidade e os receios. Acentuavam-se-lhes os traços, e a fala fremia e ofe­gava nos pontos e vírgulas. Mariinha ficava. A culpa não era dele, que resolvera, para ser forte, dedicar-se ao exclusivismo da Ciência. Não há como um sábio, embora rombo de sentidos, de hábitos e de paladar.

No insondável de sua alma, o Centu ficou lisonjeadíssimo com a cena que dera a prima; e cada vez se tornou mais sobranceiro, por jul­gá-la mais cativa, completamente conquistada, de todo entregue. Já não havia ali as seduções de um problema.

Angela depôs a bandeja com uma garrafa e cálices, e o desembar­gador serviu.

No momento em que o Osório entregava-lhe o cálice, o moço fez uma pergunta, passando de um pólo a outro, com uns ares de mulher quarentona e curiosa:

— Ora, meu tio, diga-me lá, quem é essa Dona Porcina, donde veio a tia Fabiana, e de quem muito ouço tratar?

— É... é... proferia o outro baixinho, e parou. Relanceou o olhar pela sa­la como se faz nas confidências de teatro; e debruçando-se por cima do moço, fazendo, com a mão arqueada, sombra à boca, sibilou cochichando:

— É uma viúva muito estimada pelo Visconde.

— Mora...

— Em um sítio esplêndido, na Jacarecanga.

— Mas então, como é que...

— Muito simples. Tua tia procura freqüentar todas as pessoas que o Visconde preza. É um jogo. Aquilo é política como os seiscentos! — Mas que vantagem poderá ela...

— Meteu-se-lhe no miolo casar a filha com o Visconde! Aí está. O velho deu uma volta pela sala, e, como se faz nos romances, reparou minuciosamente o efeito de suas palavras no sobrinho afim. O rapaz proferiu simplesmente um arregalado:

— Caramba! E mordeu os beiços pondo-se de pé.

— É certamente um grande enlace, não há dúvida nenhuma. O desembargador vai ser trunfo.

O velho observa-o de braços cruzados.

— Muito obrigado. Mas fique sabendo que se isso acontecer, é por elas. E não preciso ser trunfo. Nesse julgado faço de Pilatos.

— E a sua candidatura à senatoria? sorriu o moço, em tom filial e confiado.

— Disso já perdi a ilusão. Estou voltando ao meu tempo da acade­mia, sabe? em que acastelava pensamentos de justiça, de hombridade, de independência, supondo que amoldava os homens a mim (porque cada qual faz o mundo à sua imagem e semelhança).

— Os moços querem ser palmatória do mundo...

— Depois, caí na babozeira da vida prática; os interesses da política estragaram-me completamente, fui deputado, fui presidente de província, fui grande, e finalmente queria cronificar a minha grandeza: ser senador, babau! Já passei dos cinqüenta, e nada! Ultimamente, apareceu-me esse Visconde. Supus que fosse uma adivinhação de minha mulher, que tem a feminil pretensão de ler no fundo dos corações alheios... Finalmente, o nosso homem é um mercador, como eu fui, como todos os partidários... Você sabe que isso de justiça pública, é sempre obra humana, sujeita aos caprichos e paladares. Houve meio decente de aliar-me ao Visconde, pois sim, aceitei. E ficou ele com mais um desembargador na Relação.

— Bravos, é de uma franqueza a meu modo.

— Estou na fase. Não tenho, porém, mais interesses, nem propensões. Disponho-me a seguir só. Tenho de que viver, estou livre de parentalha arranjável. Enfim, vou acompanhando ainda o Visconde, mera formalidade; um belo dia rôo-lhe a corda. Depois, a Fabiana gosta que eu assim proceda; e ela apesar de seus defeitos de raça e de educação, é todavia a pessoa que me ama sinceramente, que me sustenta o espírito nas crises de desânimo, ela enfim é sempre a minha mulher.

Na noite do casamento, disse-lhe:

"Faça de conta que sempre fomos casados, e todos os dias, no cor­rer dos decénios, julgue sempre que está casadinha de novo. Assim a felicidade não nos abandonará, decerto."

— Mas isso é humano?

— O divino é apenas um caso particular do humano.

— A razão é que não casaram somente homem e mulher, senão a sua natureza com a dela.

— Diga-me lá— irrompeu novamente o Osório, mudando de ar: — O que é o Diabo? É Deus em divergência consigo mesmo. O que é Deus? É o homem concebendo a suprema força. O que é homem?...

— Não sei aonde me quer levar...

— Quero lhe dizer que a Ciência não sabe o que é o homem! Responda! Penetre nas diversíssimas organizações que se embastem do passado até hoje, como farinha de nebulosas, nos mistérios do íntimo, no mundo psíquico, e tire uma fórmula geral.

— Mas a que vem...

— A que vem? A nadà, é que você parte amanhã, e eu não sei se o verei mais! Há só um recurso infalível de não transformar a nossa afeição em motivo de dor. A força do raciocínio. Pois é essa força que assegura a paz do meu lar. Você ainda anda de sunga de alçapão! Vá para o seu Amazonas, é um futuro brilhante. Estude, engorde o seu espírito. Fique certo de que nesse pau tem abelha. Não surpreenda-se quando apare­cerem os favos de mel, e o zumbir de insetos a aferroarem-no.

— Misteriosas palavras! Isso é filosofia indígena?

A Fabiana gritava lá de dentro:

— Oh seu Doutor Osório, deixe de arreliar o menino!

Pelas cinco e meia foram jantar. Maninha não compareceu. O pai amparou-a contra as exigências fulminantes da Fabiana que alegava re­petidamente gente moça não ter juízo, que não dizem o que sentem cui­dando bigodear aos velhos, que devem é levar muita peia, que se enga­nam aos pais, a Deus não lhe botam poeira nos olhos; e por aqui assim, esvaziando uma grande pipa de bílis.

A coisa é a Fabiana estar com os seus azeites, e sentir a mínima contradição a uma vontade sua. Não saiu-se como ideara na visita a Dona Porcina; pois que... essa senhora não perdera ainda os seus sonhos a Viscondessa...

— Mas é o que tu não pegas, amargava consigo a Fabiana. Tam­bém amava!

Quem pagou o pato foi a Mariinha. Sim, porque nessas pessoas de bilis atroante, a causa do frenesi, — é como o ferro candente lançado pelo ferreiro à tina de água, e que faz efervescência na superficie, ou como a gruta do álveo que produz o perau nos rios, e fica fora das vistas. Na monstruosa engrenagem do rancor, do ódio, do amor próprio contrariado, a roda motora fica inapercebida na sua insignificância. Parecia que a fú­ria proviera da filha, talvez a própria Fabiana entendesse isso; mas é que esta senhora havia encontrado em Dona Porcina uma frieza disfarçada, e na voz e na pinta do olho a significação de uma repulsa. De feito, a Senho­ra Dona Porcina vivia segregada do convívio das famílias, e fez-lhe espécie a estranhez daquela visita; verdade é, que se conheceram em outros tem­pos, mas daí para cá o mundo virou, revirou e tornou a revirar. Por me­xericos e enredos Porcina já andava a par dos projetos da mulher do desembargador, e portanto, barateou-lhe muitos agrados, mas que agrados!

As mulheres quando se encontram se beijam, mas os homens que ouvem aqueles regalados estalidos sorriem e comentam, sabe Deus o quê.

Fabiana, invadindo o sítio da outra, e chegando à habitação, edifi­cada entre os cajueiros, abriu um grande ar de pasmo topando a Dona Porcina, e fingiu ter-se iludido:

— Ah, minha querida, desculpe... eu me enganei... ia para o sítio do Dr. Barbosa, que é neste correr...

— Não há de que, Dona Fabiana, ora esta, agora entre e descanse, faça favor.

E pronto. A Fabiana estava introduzida. Serviu-se de garapa de cana; foram ver o riacho, percorrer o sítio, e bastou.

A dona da casa pressentiu que aquela princesa dos sertões ia ali era farejar o rosto do Visconde, e com acinte feminil, dava a entender, tanto quanto permitisse o trato com uma senhora afidalgada, a amizade que o titular lhe dedicava. Só faltava dizer:

— Ele e eu nos queremos! A senhora chegou tarde com a sua filha!

Fabiana tinha, por conseguinte, pedra no sapato. Ora, como quando uma pessoa está de mau humor, embora descarregue-o sobre uma dada criatura, a gente sempre toma para si uma parte daquela zanga — é o caso de estar bem consigo e mal com todos —, o coitado do Centu, ainda por a vítima ser a Mariinha, ficou pelos ares. Cada palavra áspera que a mãe botava contra a filha, era um aperto no coração dele. Mais uma verificação de que havia um quê é de inextinguível entre as duas naturezas, dele e da menina. Mariinha não apareceu, e nem era possível. Por seu lado, maldara que a mãe havia descoberto o namoro dela com o Centu.

A noite, porém, foi à sala. Quanto à cólera brutal da Fabiana, tendo aparecido o Afrodísio, foi água na fervura.

Fabiana abriu-se toda, como as folhas do mata-pasto ao sair do sol, e desfez-se em carícias para a filha, e para o sobrinho, chamando Oso­rinho ao marido, e espanejando gostosas gargalhadas de sertanejo.

Aquela mulher tinha consigo uma qualquer morrinha, alguma coisa no interior, assim como a semente de uma doença vagarosa e fatal, um broto raquítico hoje, amanhã viçoso, e vice-versa; pelo menos assim en­tendia o marido. Um curandeiro matuto que a conhecesse, diria logo na sua experiência, franzindo a cara, com um ar magistral:

— Seo compadre! Neste pau tem formiga!

Apartados para a janela, em que a Fabiana atirava a filha a conver­-sar com o Visconde, o Osório e o Centu discutiam o caso:

— Ela não era assim — dizia o marido. Receio que venha dar em alienação!

— Qual!

— Está emagrecendo...

— Muito pouquinho. São fatalidades da carne. Pode ser que seja a morte que comece a brocar o seu roçado. Se assim é, não há tolher. Já fé-la examinar por médicos?

— Ela mesma os chama. Quando lhe dá na mania queixa-se de quan­ta moléstia há no mundo!

— E o que eles dizem?

— Receitam, e não fazem diagnóstico positivo. Também eu não te­nho dado cavaco.

— Já sei, é vítima do grande mal do século.

— Hein?

— Da nevrose.

Aqui ao desembargador subiu-lhe sangue às orelhas, e dando um passo para trás, largou um prolongado:

— Com efeito!...

O moço ficou como se houvera dito uma grande asneira.

— Pois seu Centu, você entoa com essa troça das outras terras, sem mais aquela?...

— Está dito. Minha tia é vitima de nevrose, o grande mal do século.

— Prá que vocês hão de ser embusteiros! Seo Centu, o grande mal do século é a Cavilação. Fabiana é uma grandíssima cavilosa, como qua­se todas as mulheres educadas com quindingues. Se receio pelo juízo dela, é porque seu bisavô morreu doido, que você bem sabe disso...

Podia que fosse essa a última noite que o Centu passava entre aque­las paredes, podia que fosse a derradeira vez que o seu olhar modesto se abrisse, como a estrela na noite, imerso, como a papa-ceia com a din­dinha Lua, no disco luminoso que irradiava da calma simpatia da Mariinha.

A menina estava uma tagarela. Mesmo com o Visconde, — por quem nas tredas horas do ciúme, do suplício da carne, sentira brutal e vingativa inclinação, mas que a sua nobre natureza repelia, — falava por quantas juntas tinha. O que ela queria era fazer a sua voz, as suas idéias, os seus pensamentos, setarem pelos ouvidos do Centu, como a flecha do índio atirada para o alto e que desce ao alvo certeira. Assim como, com a me­nina dos olhos, dominava-o por um longo beijo das duas pupilas, assim quisera com a voz, e com o pensamento. E o mesmo fazia ele.

Cantou o Vorrei morir. Baixinho, como só para o oficial, impressio­nou-o. E ele erguendo-se, para ela, dizia galanteando:

— Prima, isso de querer morrer, embora no mês das flores e das aves, já se não usa. Não existe mais a morte. Vivese eternamente quando...

E disfarçando a folhear o livro da música, aberto na estante do piano diante dela, como à procura de uma peça conhecida, acabou a frase, só para os dois:

— Vivese eternamente quando se ama!

Que sorriso com que a moça aureolou esta oração nos seus lábios mudos de pejo e de contentamento!

Arrulhou ainda uma modinha brasileira, e então ao Centu subiu-lhe mesmo o sangue indígena. Vibrou com as paisagens pátrias, agiu com os nossos músculos, cismou com a nossa modorra, palpitou com o nosso coração singelo e ardente, puro e cioso, doce e bravio, luminoso e tonante como as fecundas tempestades do inverno, coração suicida que acaba por arrebentar com as hipertrofias; e no gemido consolador daquela can­tiga em música e língua nossa, naquele volteio sensual e queixoso, o Centu sofria !mpetos de ajoelhar aos pés da amada, embolar-se com o gato friorento debaixo de seus pés, viver como pulga nas pilosidades daquela epi­derme, ser uma das suas chinelas, um ponto das suas meias, uma dobra da sua camisa, um biquinho dos seus seios, uma gota do seu sangue, uma bossa do seu cérebro, um cabelito daqueles braços, uma palma da­quelas mãos que quando tocavam pareciam ter a alma nos dedos!

E quase que se levanta e diz ao pai, implorativo e decidido, torcendo o boné entre as mãos nervosas:

— Meu tio, eu já não embarco!

Embarcou sem despedir-se. O Osório foi do parecer que não era bem aconselhado ele fazer os seus adeuses à Mariinha, porque, a mão de uma pessoa amada que se despede aperta umas certas molas do ín­timo, como em certas bonecas, e o sentimento grita. Bem sabia que a Fabiana destinava a sua bonequinha ao Visconde. Que ele, Centu, nãose arreceasse disto, mas que não era curial chofrar assim a Fabiana com uma pedra inesperada!...

— Asseguro-lhe que a sua tia nem se apercebe da sua benquerença! Ela vê as coisas pelo seu próprio pensar. Está certa de que a menina e o Afrodísio se amam!

— Meu tio, quer saber? Antes venha a ser como ela deseja. A falar franco, hei de envidar tudo por apagar essa candeia que se me ateou na alma à socapa.

Osório ria cínico:

— Seja. Mas o que eu não quero é a minha Fabiana contrariada...

— Nem eu tampouco, meu caro senhor.

— E quanto a desarraigar ou não isso de amor, digo-lhe que a erva é de caule subterrâneo, é como capim-gengibre. Tenho muita confiança é numa coisa: vocês ambos são educados, e têm o sentimento do ver­dadeiro, e não são organizações pervertidas. Confio na hélice e no leme dos dois paquetes, nas impulsões das duas naturezas; se atraírem-se, melhor, se afastarem-se, melhor.

— E que idéia minha tia fará de mim se eu não for tomar-lhe a benção?

— Vá às sete da manhã. Levarei a menina para a missa de Lourdes; tem de ir, que é sábado.

Foram para bordo às duas da tarde. Daí, o Centu viu-se no meio dos camaradas, uns da oficialidade do batalhão, outros da rapaziada pai­sana, que se lhe tinham afeiçoado, e os companheiros de comissão, boa troça do tempo escolar. Tudo nele transmudou realmente, da terra para o oceano. Quando o escaler, à forte impulsão dos remos, estonteava em cima da onda, ele erguia o busto altaneiro, o mento para o ar, — como o cão escapo do outro, e que adiante, livre, na primeira eminência, alça o focinho e late por despique e desafogo. Agora ia pertencer exclusiva­mente ao seu verdadeiro amor: à Ciência, palavra proferida de boca cheia.

"O passarinho que comeu o xerém e o queijinho da gaiola, cuidado por mão amorosa e vigilante,quando foge, — pensava o Osório, silencioso, sentado ao fundo —, tem perdido muito da boêmia das aves, e não tem o mesmo vigor no bando."

Mariinha em casa, estava prostrada. Inventou um estalido. E então, Santo Deus, a sua dor podia gemer alto. O Centu ia naufragar... Quando visse unicamente mar e céu, e no tenebroso da tempestade, aí o vapor afundava... Ela tapava os olhos e dava um grito. Considerava-se viúva. Ah! tornaria ao Colégio, ia ser Irmã!... Mas a congregação não aceitaria mais, ela tinha agora consigo, como a louça velha, as eivas do calor mun­dano impregnadas de ranço. A Fabiana trazia-lhe bochechos, e ralhava Porque ela repelia o remédio:

— Mamãe eu sinto uma agonia no estômago... não sei se engolir isso...

— É só para tomar na boca, e não se engole, filha! Arre, com os diabos, valha-me Deus! Tem efeito vomitivo. Agora, arranja-te! — Pois deixe estar, mamãe, ora esta! respondia a menina chorando,com mágoa.

Era o que mais doía-lhe dentro: não ser compreendida pela mãe, estar sob o jugo daquele animal tenaz, e desapiedado, com doçuras e crueldades de tirano. Figurava a Fabiana como certos araçás, que tem um lado maduro e doce, um pedaço verde e outro pedrado, e outro já podre. Antes não a tivessem posto no Colégio, se queriam-na inteiramente moldada ao sabor da mãe.

Mas não. Permitiram-lhe aprendimentos que lhe germinaram gosto próprio, alçaram seu pensamento a alturas que a mãe não divisaria nunca; e agora, forçarem-na ao vôo rasteiro? Antes bodocar de uma vez a an­dorinha, e vê-la morta, do que atirá-la de penas aparadas rojando no pó.

No dia seguinte, à noite, houve terço com alguma solenidade. Acen­deu-se uma vela do Santo Sepulcro, de muitos anos, já com a cor e as manchas peculiares da cera antiga.

À tardinha, teve de arrumar-se de novo o oratório, para hospedar mais uma imagem, — Santo António, chegadinho do Porto. Mariinha, de queixo amarrado, e Antônia, auxiliavam de bom grado à Fabiana. Gostavam de pegar naquelas pastas de tinta viva e doiradas de rendas e sal­picos de flores, naqueles nariguinhos, boquinhas e olhos de vidro; tinham ímpetos de apertá-los, ou de beijá-los em cheio na cara. Riam dos mal­feitores, e admiravam os bem acabados:

— Este santo, sim, faz milagre... Mas aquele?... Bem queria!

E soltavam muxoxos. Riam como os preás. Fabiana, com os seus óculos, muito aplicada na sua obra, não prestava-lhes ouvido. Lá uma vez ou outra passava um pito em ar de gracejo. Estava de um humor admirável, o que era uma feliz compensação para o machucado coraçãozito da Mariinha.

Fabiana apelidava o Santo Antônio: o seu namorado. A imagem, numa caixa de folha envernizada à água-forte, sob o reflexo argênteo do flandres, estendia-se como um anjinho no seu caixão, ainda cheirando a copal, entre um recheio de fitinhas de papel, à espera de que a arran­cassem daquela modorra. Vênus de burela surgir das espumas. Tinha palmo e meio de altura, fora o resplendor. Antônia apanhou o santo num abraço reverente, e pô-lo de pé sobre as suas coxas, sentindo-se bem ao contacto transfigurado e cheio da peanha. A cabeça do amoroso frade e legendário pregador das turbas, muito redondinha, naquele momento, saía do sono de uma viagem em pacote, para fisgar o olhar matreiro nasi feições da loira... Enfiaram-lhe, por um buraquinho do sincipúcio, o resplendor, de prata, aberto profusamente em forma de cauda de pavão. Ai que gorducho e engraçadinho que era!

Aquele nunca sofrera de moléstias. Vê-lo é ouvi-lo. O burel, uma sombra. Semelhante ao traje grosseiro das donzelas do campo, em nada, apouca, ao contrário, faz destaque ao corpo cetinoso e túrgido que se adivinha.

De um embrulho de papel de seda, Mariinha desenrolava o Menino Deus, um pimpolho de carne, fortemente cheirando a verniz, estremecendo em um riso íntimo de infância, espernegando como em travesseiros de cetim e alfazema:

— Ai gente, olhe a pimbinha dele, mamãezinha! gritou ela, com que Antônia ficou muito escandalizada, e até repreendeu-a:

— Dorzinha! — exclamava esta, como se acontecera alguma des­graça. E indicava com um beiço e um olhar severo o respeito devido à Fabiana. Esta, porém, num riso úmido, entrou a pespegar enormes beijos no pequenito, dizendo que era preciso fazer-lhe uma camisinha de cam­braia com bicos de ouro; e falava como bebê, em tatibitate, com efusões de mãe. Das Dores sentia uma doce inclinação pelo pequerrucho. Antônia ardia por fazer-lhe cócegas, e por ficar sozinha no quarto, naquele cheiro de homem que lhe saía dos próprios sentidos, ante o Cristo pre­gado nu e musculoso na cruz, lá ao fundo do oratório, ante aqueles san­tos varões barbados.

A lamparina, em um copinho roxo,espalhava na toalha odorante a roseiras, um clarãozinho violáceo. A toalha, ao gume da pesada cómoda, caía em cachoeira de rendas e babados, por cima do frontal de damasco eriçado ao de leve pelos puxadores das gavetas, biquinhos de peitos ocul­tos.

O dia poeirava ali, pouco difuso, parco, sobras anêmicas da perenal harmonia exterior. No campo das paredes bruxuleava um paraíso de qua­dros bentos, bem-aventurados de diversas condições e idades, mendigo até rei, donzela até messalina, salteador até pontífice, operário até apóstolo; dentre todos ressaltava o Batista, metido numa pele de carneiro, com energia desusada, a desfraldar no tope do cajado a bandeira do Ecce Ag­nus Dei; revolucionário, selvagem, puro, dos lábios voando-lhe a sublime palavra do sábio e do poeta; e pobre, e nu, e sóbrio, era, — entre o luxo e a ingenuidade de seus colegas de Empíreo, ali presentes na parede em grande auréola em torno da cômoda, — como a casca de uma árvore frutífera que alevantava o porte monstruoso dos seus braços por sobre a casquilhagem de um jardim de flores ociosas. Mariinha ficava horas de mão no queixo a admirá-lo sem o compreender.

Fabiana pediu mais claridade para ver bem o efeito da nova arru­mação das imagens no oratório. Antônia, mais que depressa, escancarou as janelas da sala, e as portas do quarto; mais uma pouca de dia entrou, e também o vento, que atacou de súbito a um molho de palmas bentas que pendia de um armador, e as pontinhas da palha encarquilhada ro­çagaram no áspero do caiamento com ligeiros pruridos de lixa. Fabiana sentava-se num baú grande, envernizado, de aldrabas de latão e tendo na fechadura uma penca de chavinhas luzentes; cansada, deixando-se escorregar até à parede, cruzava os braços desleixadamente, apreciando o serviço feito. A saia arregaçara um bocadinho, por modos que os olhitos azuis dos santos perceber-lhe-iam a canela reluzente, com uma roncha de chaga antiga.

Não houve novena, nem terço, nem promessa que fizesse os gostos à Fabiana. Qual casamentos nem namoricos da filha com o Visconde! Uma miséria. Duvidou até da masculinidade do fidalgo, e classificou-o com um nome feio. Que aquilo era ver o bacorinho de chiqueiro, insensível às doçuras do Amor. Osório ria disto que era um gosto, e repetia joco-sério:

— É Fabiana, é isso mesmo, ele parece que não é caroável a mu­Iheres. O que eu creio, porém, é que a nossa nobreza não é suficiente. Sua Excelência prefere acabar solteirão, a desposar donzela que não seja da sua iguala.

— Home na verdade, compreendia ela, mó de coisa que é isso mesmo!

E desse jeito, Osório tornava-se mais coraçudo para com a dura Fa­biana chegando a dizer-lhe um dia nas ventas:

— Parece que não enxergas? Pois não vês, pelos modos, que esse Afrodisio Pimenta é sim uma boa criatura, mas que não tem coisa alguma das que exiges?

— Não é caroável a mulheres!

— E depois, a Maninha não casará com ele.

Por que não havia de casar? Ela se governava?

Osório sabia o motivo. A mulher quis por força que o dissesse, mas ele teimou em não, e foi mudando de assunto.

— Fica prá missa do dia.

— Então a menina não é caroável ao casamento.

Risota por parte do marido.

Não, lá isso; tu mo hás de dizer. Estás pegando uma moda que não tinhas. — Vamos, diga lá, por que é que ela não casa?...

— Porque... Ora gentes, aí está: porque não chove! Fabiana, olha o que eu te digo: Sê menos crédula. E senão... Deus queira que tu não tenhas plantado a desgraça nesta casa!

— Que diabo estás dizendo! Osório, deixemo-nos de mistérios. Ora muito bem!

— Nada, filha; vai para os teus arranjos. Entretém-te a costurar, e governar a casa... Pelo amor de Deus, não me inventes mais coisas... — Que coisas? Terás tu bebido sobrei osse?

— Nada. No frigir dos ovos é que se vê que manteiga sobra!... Dize: tens reparado a Antônia?

— A que respeito?

— Quantas vezes mandaste Ângela com presentes ao Afrodísio?

— Muitas.

— Meia palavra basta.

Aqui ele conchichou no ouvido da mulher, e esta fez primeiro um ar de pasmo, que transmudou em incredulidade.

— Duvido muito, homem. Quê?! O Visconde? Duvido até com os pés! Não é caroável...

Sancta simplicitas! — fez o Osório em atitude de oração. Enfim, se for, não me pesa na consciência.

— Desse pecado? Quero eu arder no inferno!

— Pois estás fritinha... Em todo o caso, Fabiana, tu és mulher, e peço-te que repares. Não crés, não é assim? Mas olha que somos donos desta casa, e respondemos por todos que estão sob o nosso telhado. Faze de conta que és polícia, tiveste uma denúncia, espiona, teu dever é ave­riguar. Não calculas quanto me aflige e assusta se isto for verdade. Pois que diabo de homem serei eu? E se os adversários políticos explorarem o escândalo, pondo a autoria para cima de mim?

— Não, por isso responde essa senhora.

— Toma providências, e se já for tarde, é urdir o segredo. Quando me lembro! quando me lembro!... Olha, separa-a um pouco da Mariinha!...

— Mas se for uma calúnia?... É calúnia, é! Não pode deixar de ser!

— Fabiana, faça o que eu lhe digo!... imperou o marido. A sertaneja, em toda a sua proa, gostava contudo, quando, num caso sério e grave, depois de disputarem, o marido batia-lhe o pé. Faça-se isto! — Ela não dava a entender obediência, ao contrário, replicava; mas aquilo, se fazia.

O homem começou a andar impressionado. Se ali estivesse ainda o Centu, bem; conversariam luminosamente sobre o caso, e quando me­nos, tiravam deduções filosóficas e bastantes para amainar as atribulações daquele ânimo frouxo. Com a mulher, encetaram uma série de cochichos, de mímicas, pisadas nas pontinhas dos pés, de mãos pela parede, uma verdadeira caducação. Antônia não saiu mais, foi-lhe vedado; a não ser na companhia da matrona. Dantes confiavam-na à mãe Zefa. Hoje nem isso.

Em uma daquelas ocasiões em que ela fora com a mãe Zefa, às novenas, na Prainha, que eram muito arrojadas, voltou um bocadinho tarde, alegando que houve muitos fogos de vista, e máquinas, de maneira que a novena foi longe. Mas, se alguém maldasse, notaria a tremura da fala, as titilações daquele coração, a abundante verbosidade que ela despe­java por cima de uma idéia fixa que a beliscava, que estava sempre a pôr a cabecinha de fora, como um demônio, quem atinasse, havia de suarpreender a bondade flagrante e a satisfação com que ela narrava, e des­crevia; a maneira saborosa por que ela mordia ou chupava os beiços, na inversa, como se acabasse de beber mel; o passar da mão pela cabeça :afastando dos olhos os cabelos fugidos do pente de arregaço, o encolher dos ombros em arrepios súbitos, e o modo por que, assentada, esfregava finamente os pés e mexia com as pernas, como se uma força oculta as obrigasse a enroscar. Estavam ceando, quando chegaram. Mãe Zefa tirava as sevilhas para deixar cair a areia, enquanto a loira tagarelava para impedir que lhe exigissem mais explicações pela tardança. Curvava o busto com um garbo de atriz, e parecia ter azeite na cintura, tão flácido a movia. A modos que dos pés ao rosto subiam uns afagos pela pele acima, e às vezes ela apertava os peitos com os braços encolhidos, em surpresa e com medo. Teria brasas nos pés, tanto pisava, fazendo estalar no tijolo seco o salto da botina.

Maria das Dores, essa, crassamente indiferente, brutalizada para tudo que não fosse a sua vida íntima com as cartas do Centu, com o espírito dele. Podia o mundo virar de pernas para cima. Fabiana lhe era um pesadelo, uma torneira que impedia o vazamento da sua verve da rapa­riga, um canhão encravado onde as suas fortes e virgínicas impressões não podiam explodir, uma porta condenada que vedava o dia de clarear-Ihe a alma pudica e anelante. Consolava-se ao piano, e com o estudo daquilo que agradaria ao amado; palestrava longamente com o pai, e escrevia laudas e laudas para o Centu, que não seriam endereçadas, mas que um dia ao menos haveriam ambos de ler. Antônia não podia ser-lhe confi­dente, Mariinha entendeu-a logo, e pó-la de parte.

— É uma doidela. Entende que sou apaixonada pelo seu Visconde, e por isso lança-me uns olhos revirados para o lado e uma cara muito beiçuda. Coitadinha! Eu lhe queria tanto! Já não me apelida Bem Bem, agora é nuamente: Maria das Dores. Das Dores vivo eu, alguém se farte de alegrias.

Nessa noite dos fogos de vista Antônia dormiu um sono regalado. Deitou-se nuazinha. Para isso esperou que a Mariinha se recolhesse pri­meiro e apagasse a vela. É verdade que por cima das paredes do quarto aparecia ainda claridade do aposento dos donos da casa, que tinha luz até a Fabiana catar a derradeira pulga. Mariinha ressonava bem; e como ela estivesse voltada para o lado da porta, a outra metade da rede, en­tesada, encobria-a para o aspecto do fundo do quarto. Antônia sentia uma espécie de correrias pela carne, e fazia-lhe bem o contacto imediato do ar. Chegou a rolar pela esteira, debaixo da rede, como uma cadela ao sol. E beijava surdamente os próprios cabelos e os próprios braços, num soluço abafado, num desespero de mordeduras e de apertos, de paro­xismo e de espasmo. Ajoelhada, puxou a beira da rede para si, e como o nadador agarrando-se à borda do escaler e içando-se com os próprios músculos, foi rojando os peitos docemente pelo grosso algodãozinho, o estômago, o ventre, as pernas, e devagarinho estendeu-se então na rede, ao comprido, inânime, como um cadáver no esquife. Lembrara-se de que o punho do lado dos pés enfiava no mesmo armador que o da rede da outra, e que o movimento comunicava. Cobriu-se com o lençol. E daí a pouco as varandas da rede estremeciam espaçada e levemente com a respiração dela, em começo de um amplo sono venturoso.

A cabra Ângela, esta se pusera moça aos treze anos. Uma cuia de mangabas não apeteceria tanto, nem um odorante abacaxi, nem uma dou­rada penca de bananas maçãs, das que ela ia levar de presente ao Vis­conde, em uma bandeja de xarão coberta com guardanapo de frivolité feito pelas mãozinhas da Das Dores ainda no tempo do Colégio.

Uma vez foi Ângela assim, ao Afrodísio, ao meio-dia em ponto, com uma compota de cajus, naquela mania de presentear que a Fabiana ainda conservava dos hábitos do seu torrão. O homem, sozinho em casa, veio recebê-la no topo da escada, "pensando que era gente", como disse gaiatando.

Estava mesmo de truz.

De mangas curtinhas, vestido em leve decote, cintava-lhe por cima dos cós da saia a fita do avental, de fazenda preta por mó do sujo. Nas costas encruzava um x formado pelas alças do sobrepeito. la mesmo pi­sando duro. Que mexer de quartos e de cotovelos! Que faceirice! Com que chiste arrebitava um muxoxo! Ria, como uma sem-vergonha! A ca­rapinha, de um castanho fulo, formava um pão, enfeitado com fita ver­melha e cravos brancos. Era domingo. Aquilo era muito bruta e muito linda. As ventas e os beiços volatilizavam ardor concupiscente, atordoante, apesar de que as mãos cheiravam sempre a ranço de cozinha, e os braços tinham um pêlo miudinho que parecia sujo permanente. Do cós, o pane­jamento da saia, muito cheio de pregazinhas verticais, descia rotundo e parecia ímpar com as pulsações do sangue. Pelo fio do lombo descia uma concavidade, afogada logo al pela compressão do corpinho aspe­ado. Os ombros, como os da Antônia tinham o voltear veludoso das du­nas, pejados noite e dia pelo sopro de Cupido. No pescoço aninhava-se uma cobra de aljôfares,e nas orelhas estavam sempre a dançar uns brin­cos enormes, de vidro, com um donaire arrebatado e domingão. A droga da cabrocha inflamava! As faces, carnosas como um caju de mimo, por cima do pigmento escuro da raça, tinham a transparência da fruta do imbu, apesar de não serem como as da Antônia, que eram pétalas de rosa atra­vés da luz. O relevo do cabelo e o roliço do cangote, com a firmeza tur­gescente da puberdade, porventura sacudiam por todo o corpo um fluxode humores cálidos, uma predisposição para o riso e para o choro, com mil nuanças várias de animalidade. Uma alimária de papoco, aquela es­crava. Quando andava, estremecia como geléia.

O quarto do Afrodísio ficava no andar daquele seu casarão portu­gués, de negociante, que destoava da ligeira e risonha edificação da ci­dade. Cheirava a mofo. Além, ainda tinha um mirante, onde o amigo desembargador gostava de ir para gozar do panorama urbano. Aqui, jane­linha para o nascente, e outra para o ocaso, com rótula e vidraça estorricadas, e óculos na parede ao sul e ao norte. Sempre uma rede ar­mada nos caibros, uma banca e castiçal, e dois mochos. Merendava lá, quando lhe parecia, o solteirão; e até, ao canto, entre palhas de ninho de rato e garrafas esgotadas, reviravam-se latas vazias de doces e de biscoitos, e em cima de uma trave jaziam pratos cobertos de pó e talheres ensebados de queijo. Tinha graça era assim, à estudante do Recife, apesar de que, o Senhor Visconde, quando lhe dava na veneta, esmurrava o moleque do serviço, bradava contra aquela porcaria, mandava lavar, por erva de ratos, entupir os buracos, arsenicar os cupins, protestando pintar tudinho de novo.

Angela depôs a bandeja em cima da mesa, com um ligeiro ofego da subida. Destamparam as compoteiras.

O sol não entrava pelas janelinhas escancaradas, porque estava a pino; mas o vento, que ajudava a agitar as bolotas da rede, aplicava nas telhas um chupão sensual. De quando em vez as bandas da rótula iam e vinham, e em instante batiam furiosamente no portal, à refrega, para acalmar de novo.

Uma rajada, como sacudida adrede, esflorava a poeira do assoalho; e, à guisa de um balão de festejo, apagado, perdido numa árvore, a inflar o papel sussurrante, como um fantasma em noite de luar, pendia de um armador a saia de chita, em folha, com que naquele domingo a cabrocha "quebrara a tigela". O vento entrava-lhe pelos babados, e enchia tudo. A guarda-pisa arrebitava, deixando ver a saia por dentro, e abaixava. O cordão de enfiar, que franzia o cós, preso ao armador, agüentava os em­puxões do ar agitado. E boquiaberto, camaleões a engolir vento, os dois sapatinhos verdes estiravam-se mesmo com a dormência de lezardos. Alva, como uma alva de padre, sobre o armário da sacristia por cima dos paramentos para ser vestida, encobria o casaco e o corpinho a anágua, revirada na mesa, ao lado das compoteiras cobertas de frivolité.

Além da influência do berço e da educação, Mãe Zefa estendia so-tre Angela e sobre a Antônia outras muitas. Eram estas duas quase da mesma feição, pois que a brancura de Antônia era enegrecida pela miséria dos pais, por um descuido hereditário, pela existência vegetativa da sua linhagem. Foi um tormento, quando a Fabiana lhe pós nas mãos o Método Fácil para Aprender a Ler; a menina gastava o tempo abismada nas vinhetas, uma das quais, logo no princípio, era um moço a cavalo, correndo, quase nu, com um volumoso X e por baixo esta inscrição: Xe­nofonte era um filósofo guerreiro. Porém, a vinheta preferida era uma, na letra L, em que se abeiram uns lírios perseguidos por um moscardo; os lírios quietos no seu lugar, e o inseto a dar voltas como procurando o co­ração de um deles para varar de uma feita. A criança atraía-se por esse namoro.

— Certamente não podes ainda avaliar que de horror e de náuseas produz uma beijoca aplicada por um besouro num imo virginal de uma flor, — dizia então o padrinho, sempre filosófico.

Para Ângela, além de tudo, Mãe Zefa ostentava mais o prestígio de ser a rainha dos pretos. A cabrita bem se lembrava de té-la visto com uma coroa de lata vistosamente dourada, com assento à esquerda d'el-rei, também, de coroa, e mais os calções e capa de grande varredura que enrolam no braço para dispensar criados do séquito. Tinha bem presente, gravada na recordação de menina, aquele casarão da Praça do Patrocínio, que os pretos alugaram para a festa de 6 de janeiro. O dossel do trono, armado pelo sacristão do Rosário, num grande salão forrado e assoalhado; as pretas, vestidas longamente, de alvo, e de cor rosa, flores­cidas de ramalhetes, peroladas com miçangas, a caminhar com ares de grandes damas, e mais elegantes que as moças brancas do Clube, mais cheias de cane, mui destras e remexidas na dança, desabridas na ga­lhofa, e com estudados refinamentos e meneios de nobres senhoras; Vossa Incelença pra qui, Sua Maxtade d'acolá, e de quando em vez, como estouro de bomba um tu e um não seja besta a entornar o caldo da civili­dade. Angela futurava vir a ser a rainha da classe.

Antônia, por seu lado, até isso almejou uma feita! Num ímpeto da sua natureza açudada, num escouceamento da sua pobre alma votada ao inferno. Arranchavam-se nela oásis de felicidade bruta e momentânea, em um só dia, caravanas de desejos. Indo ao circo de cavalinhos, voltava querendo ser pelotiqueira. Do mesmo modo, se fosse ao Colégio das Irmãs, ficaria presa de um anelo orgástico de entrar para o recolhimento, amando ao bom Jesus, com a cabeça metida em um chapeirão semelhante a uma enorme borboleta de goma. Assim como, presenciando a cachorrada de uma messalina do tom, arderia por ser também cadela em cio contínuo de devassidões aniquiladoras, e pestilências, de abominações de cloaca estucada com ouros e brilhantes.

— Virtude próxima do vício é o amor, proferia o Osório nas suas ponderações — basta uma vareja, e o belo nariz de Cupido broca-se em bicheira horrível como um cancro.

Siá Dona Fabiana depositava em Mãe Zefa uma confiança a olhos fechados. Não verificou em nada o que o marido pediu com instância. E mesmo, a falar de coração nas mãos, ela de si consigo não havia em grande conta a honra de uma escrava, cujos partos seriam rendosos, nem a de uma rapariga de baixa estirpe, que nascem mesmo é para o que é ruim. O que Fabiana sabia, conscientemente ou não, mas unicamente, era satisfazer a própria vontade, caprichosa até ali. Soltou de novo as rédeas a Antônia, certificando ao marido "que aquilo era uma grandissima calúnia".

— Deus me perdoe, dizia Mãe Zefa batendo nas suas faces pelhan­cosas, mas, em tão boa hora diga, sinhazinha Fabiana a mode coisa que se enviuvasse casava com seo Visconde! Nunca vi uma cegueira assim!

A preta não se enganava. E se o desembargador ouvisse aquilo, teria presente, por associação de idéias, o que se deu com ele e a sogra, que Deus haja, e que o fez obter mais uma variedade para a espécie amor. A sogra amava-o, pelo veiculo da filha! Amor de sogra, que as transforma em harpias quando são ciumentas. Assim fazia Fabiana com o Visconde, futuro genro falhado.

Antônia, contudo, fingia não bater-lhe o papo com desejos de sair, pois conhecia o fraco da madrinha. Se botasse muita força por passear, o espírito contraditório da Fabiana saía-se logo:

— Não, senhora; não perdeu nada em novenas, nem em Passeio Público.

Assim, Antônia ficava nas encolhas, e ao menor convite das vizi­nhas, punha-se com chove não me molha. A matrona metia então o be­delho:

— Vai com as outras, homem! Queres te fazer rogada, criatura?

Mãe Zefa acompanhava como cabo de ordem e como aia.

O Afrodísio, perpicaz como ele, ia menos à casa do desembarga­dor. Ver o quê? Pegou no ar as intenções da velhusca, e riu entre as va­randas da rede:

— Chô! Arma tua arapuca prá lá. Não se quer não, caju azedo!

Osório caçoava da mulher, e dava pinotes, esfregando as mãos. Um rapaz, lá uma vez, aquele sujeito sisudo. Dizia-lhe esperançosa:

— Deixe estar, senhor! Eu conheço estas coisas. Os fidalgos pro­cedem diferente de nós.

O letrado foi mudando de rumo, com a privança do titular. Farto de familias como a da mulher que tinham por brasões o nascimento, a co­locação suntuosa, a solidariedade partidária e de parentesco, o sentimento da honra traduzido em ódio e em exterminação até das galinhas do ter­reiro do ofensor, e um amor próprio a ponto de só achar superior o que era dos seus. Com todo o fulgurante cortejo de preceitos estrelados en­grinaldando o escudo de pau da fidalguia cabeça-chata, em forma de tartaruga; diante do fulmíneo Sinai da lei dos nossos avós, com Moisés de chapéu de couro e garrucha, e Jeová de chile e esporas, e coivara de roçado por sarça ardente, e tábuas de lei escritas com a ponta das par­naíbas, o desembargador soltava na cara da mulher uma gargalhada es­voaçante e bulhenta como um bando de jandaias devastadoras, e como Aarão, preferia vir adorar na planície o bezerro de ouro, feitura humana, reconhecendo que só é admissível a aristrocracia dos mais inteligentes e mais educados cosmopolitamente, e dos habilmente lidadores. Por este lado valia o Afrodísio, mas era abominável o Visconde.

Este, quando pilhava o Osório nessas marés de gente nova, chama­va-o gracejando: "Cabeça erma de cãs e de riso".

Mariinha vivia resignada, muito amiga do pai, e, Deus lhe perdoe, enterrando no coração, como um sapo durante o estio, uma eterna queixa da mãe. Fabiana um dia caiu na asneira de falar pelo claro, já impando: queria que namorasse o Visconde e casasse com ele. A filha teve ímpeto de responder: Namore vosmecê! Mas limitou-se a fazer como a rama verde ao toque da labareda. E a muito instar, suplicou:

— Mamãe, eu não me caso.

— Havemos de ver. Tolinha!

— Filha de quem sou eu?

— Pois é, por isso mesmo...

— Por ser sua filha, tenho palavra! disse com timidez.

— Gentes! Venham ver agora esta rainha! Tens palavra, não é, Ma­ria? Pois bem, guarde-a, que é bem bonito.

Aquele sarcasmo hirto de gente velha era irritante. A tensão deli­ciosa em que vivia imersa a donzela, e a idéia fixa no Centu, faziam-na astuta. Vencia sempre a mãe. Dizia-lhe por exemplo, voltando às boas:

— Mamãezinha, confie em Deus. Você bem sabe que eu lhe quero bem. Pois ensine como hei de fazer para agradar o Visconde. Ele não me gosta, quem não for cego que veja. Você bem me viu tentar muitas vezes... Mas eu não sei... Não entendo de namoro... Como é que se faz?... Hein?

— Tola como o pai!

— Mas como é? Fecho o olho prá ele?

— Que olho, mulher! Faze... Derrenga-te um pouco, amortece a vista, fala assim...

— Assim como o gato no telhado?

— Sim... Não! Como teu pai... Mas...

— O que é? Hein?

— Conversa com o Visconde. Arre lá!

— Mas eu não conversei?

— Faze de conta que ele vem expressamente visitar-te...

— Ofereço fogo para o charuto e um cálice de conhaque, não é?

— Deixa que te aperte a mão demoradamente, interessa-te por ele, pela sua saúde...

— Mas eu sei que ele é sadio como o peru que se comeu ontem! — Espia muito pra ele.

— E o que mais?

— Principia, continua, teima, que há de vir aparecendo o que for preciso fazer.

— Pois sim. Olhe que vontade não me falta. Está ouvindo?

E por esse modo Maninha ia ganhando tempo, à medida que as vi­sitas do Visconde iam espaçando.

Antônia é que vivia feliz. Amada! Achava uma graça extraordinária em tudo. Diligente. A Fabiana colmava-a de elogios pela sua aplicação à costura e ao labirinto, pelo cuidado com as coisas de casa, pela bran­dura de gênio, obediente, grata e boa, bem mandada, não indo à janela como no outro tempo, não respondendo trombuda; aquilo sim!

— Feliz o pai que te gerou! Deus dê o reino do céu à mãe que te pôs no mundo!... A rapariga era tão estimável que até o Visconde presta­va-lhe atenção! E criminavam esta amorosidade dele! Caluniosos! Que gente, meu Deus, o Visconde era incapaz de abusar da hospitalidade! Um homem temente a Deus! E por outro lado: se fosse verdade, podia fazê-la feliz, casando-a aí com um rapaz pobre, com o seu dotezinho e com proteção para toda a vida. Mas era mentira. Enfim, Deus escreve direito por linhas tortas.

E Fabiana ia sempre direita ao alvo: tê-lo para genro. Pulava ror cima de qualquer empeço. E tudo se desculparia ao Afrodísio, porque não há como a lógica da própria satisfação e do próprio interesse.

Maninha, que vivia como o caramujo na sua concha, entretinha-se em reparar na vida nova da Antônia, como se estivesse incumbida de biografá-la ou de policiá-la secretamente. Uma ocupação para o seu espírito apreensivo. Logo ao amanhecer, que a Honorata abria as portas, e en­trava o arzinho azulado e puro de lá de fora, Antônia corria para o quintal. Atravessava o jardim e a horta, e penetrava no chiqueiro das galinhas, desatando a correia da portinhola relaxadamente engonçada na cerca de faxina. Debatia-se então no ar o branco volitar dos pombos a descerem para o terreiro raso de milho que ela sacudia a mancheias. Corriam para ela as aves, o pequeno exército galináceo encobria.a zona alimentícia, a desfiar os grãos pela garganta adentro, engolindo gulosamente. Antônia parecia mãe deles todos. A aurora para a população do chiqueiro. So­branceira, como um gigante, na onda irrequieta e emplumada, arengava ao mais forte que beliscava ao mais fraco, ralhava com os atrevidos que pulavam para ela vorazmente, sobretudo os senhores pombos, que pou­savam arrulhando-lhe em torno ao pescoço, fazendo cócegas com os pés de coral na pele nua. O sol ainda estava pelos telhados, e na cabeleirameio flava de um pé de oiti vizinho cantava o galo de campina. Ao fundo do quarteirão, uma palmeira imperial, lindissima e alta coluna, fantasio­samente dedilhava com as pontas das folhas, no beiral de um sobrado, donde assemelha-se que a luz cala. Pressentia-se o acordar das habitações na sua alvenaria folgada e leve. Acolchoavam-se pés de fava na cerca do galinheiro, e do chão poeirento e úmido, erguiam-se mamoeiros ma­chos, a esgalhar dentre o bordado feixe de suas palmas de leque, a al­vura da inflorescência, de que as aves saboreiam as pétalas chuviscadas no pó.

Já esvaziara o avental da Antônia e ei-la, corno um reposteiro, pen­dente ao vinco da cintura, meio arroliçado no ventre, meio cauteloso so­bre o colo, onde é pregado a bico de alfinete, e afastando-se um e apro­ximando-se, à mercê do ar, dos babados da saia. Um arrepio de matinal frescura percorria-lhe a cútis a descoberto, do antebraço e do pescoço, e uns tons pálidos machucavam-lhe a fisionomia, como ainda pela impressão de sonhos, e arroxeiam de leve a mucosa dos lábios, que não são, como os da Angela, da cor dos mangarás das bananeiras.

Há uma certa lividez passageira na polpa das suas mãos, porém o cor-de-rosa começa a aurorear da transparência marfínea das suas unhas. À medida que declina o limite moroso e tremente da sombra, como um vaso que se vai esgotando, e ressuscitam no sol os corpos, e as cores se esquentam, vão-lhe os átomos do sangue tomando lugar a flux, e mais tarde parece querer borbotar da epiderme, marejando a cor do fruto do mandacaru. A branda chita do vestido, esfriado, parece buscar-lhe o ca­lor do corpo, apegar-se-lhe, secundada pelo pequeno sopro erradio ma­tutino. Os cabelos caem desprendidos para as costas, meio embaraça­dos, e pela impertinência do ar, prende-os ela, enrolando-os, com uma grampa. O galo tem a impertinência de procurar milho até no purpúreo marroquim das suas chinelas, e é tão desastrado que belisca-lhe o tor­nozelo, ligeira empola disfarçando o encastoamento da perna no pé re­chonchudo, que irritado pela dor arrebita a orla da saia aplicando violen­tamente contra o corpo do galo atrevido. O rei do galinheiro toca rebate com uma gritaria alarmante, depois de erguer-se no pó onde o rebolcara o pontapé, que muita gente quereria levar em parelhas circunstâncias, principalmente o coitado do João Batista, que a amava à proporção que ela o desprezava.

No alto do muro o gato se assustou, e vendo a dona, acocorava-se de novo ao bom sol que já o banhava com a sua inundação de luz e de quentura. As cores pipilam. O limite da sombra corta em oblíqua de mais em mais encolhida o longo do muro, e a areia se desnuda paulatinamente ao loirejamento solar. O fundo do quintal parece arder, desde a ramaria miudinha e gigantesca do tamarindo até à sapata do muro, onde aqui e ali se prendem flocos de grama, como saídos do alto, e donde, já no solo,irrompem mamoeirinhos novos e frementes. Diferencia-se na areia a faixa irregular do caminho da cacimba, pepinado e socado, e luzem os braços negros da Honorata puxando água, ao ganir moroso do carretel.

Sentia-se uma cheiro de umidade, de horta, e um errante perfume. A copa do tamarindo era uma nuvem, como feita de frouxel de melindres, miudinhas folhas, miudinhas pétalas douradas pelo mordente do sol, miu­dinhos insetos fervilhando e zunindo, naquele matutino ágape aéreo. Como caem os pingos da chuva grossa, e como voa a areia peneirada dos mor­ros, assim deflora-se a dourada carregação do tamarindeiro, e o germe fica, ao confuso e profuso efervescer das abelhas e marimbondos e besouros e vespas. De toda parte acodem os bandos de insetos, na época da inflorescência, ao namoro, ao idílio das florinhas incautas. E é nos dois crespúsculos, da aurora e do entardecer, que se abrem as portas daquela feira suspensa.

Antônia evidenciava-se ao sol, que descera até aos seus sapatos de marroquim. Daí a pouco os seus lábios estavam da cor da crista do galo, e as faces com a ternura da rosa amélia, e seus olhos como um pingo de verde-mar numa pétala de jasmim. Fechou sobre si a portinhola do galinheiro. Sacudiu o avental. Consertou de novo o cabelo, foi olhar-se na cacimba, e soltou-o de novo. Lavou o rosto e as mãos na tina que a Honorata enchia. Enxugou-se com o avental, e era um prazer vê-la es­fregar com ele os braços que pareciam feitos de uma substância não classificada ainda, e o pescoço, arrodeado de beijos por força da imaginação de quem a visse. O grito de Fabiana, trespassando as plantações como uma seta importuna, chamou-a para casa, perguntou-lhe "pela saia de gorgorão que ficou nas costas da cadeira". Antônia veio devagarinho. Ma­riinha ia. E a loira e a morena encontraram-se no meio do quintal, cada qual com o sorriso que lhe era próprio.

— Vai aguar os seus craveiros, Maria?

— Vou. Não sei se o tio Raimundo preparou o estrume. As fo, migas estavam roendo, mas eu botei algodão...

— Não serve, menina! Só uma roda como eu fiz r' sempre-viva. — Para mim eu creio que nem isso, Antônia. Eu sou caipora até com as minhas flores.

— Pois esta cá é feliz até com as galinhas. A minha ninhada está que é um gosto. É cada pintão deste tamanho.

Através das plantas ouvia-se a fala biliosa da Fabiana, gritando pela rapariga. Esta apressou o passo, e correu, deixando após si, como a ca­tinga de certos animais, uma peculiar emanação.

Mariinha ficou um instante parada, recebendo o hálito feminil das flores. Figurava, como sempre, ter a seu lado o Centu ou que ele a estivesse vendo. Havia escrito pela terceira vez, la muito bem. Esperançoso, entusiasmado com o seu amor pela Ciência. Parecia nem se lembrar daquela cujo pensamento estava nele noite e dia! Porém os enlevos de amor, essa vida toda pelo impalpável, na supliciada menina, eram toldadas pela idéia feroz do capricho materno. Ela estava no mais belo dos sonhos acorda, lhe avançava essa idéia, de dentes arreganhados, e o seu coração dava mais um grito de pavor. Tinha uma pasmosa sensibilidade por todo o corpo. Uma simpatia imensa, adquirida, pela natureza em bruto, e apre­ciava o isolamento, a soledade naquele selvagem egoísmo de paixão. No seu imaginar emprestava sentimento às plantas, e forgicava colóquios entre os seres inanimados, como fazem as crianças com as bonecas. A mãe já lhe havia dito que ela parecia "ter paixão pelo Senhor Dom Vi­cente".

Isto abalou-a no momento, como a queda de um raio, e à luz des­lumbrante do relâmpago ela persuadiu-se de que a mãe leu-a toda por dentro. Mas disfarçou em surpresa, pôde achar nos lábios uma dobra de riso, e depois no diafragma uma boa gargalhada, e respondeu galante­mente, com a incubada ironia das donzelas.

— Era só o que faltava... Nem pelo Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor Visconde de São Galo, mamãe, quanto mais...

Quando passeava no quintal, ouvia trincarem as florinhas nos seus pecíolos. Àquela hora, em que ia em busca do regador pequenino para amanhar as suas plantas prediletas, o velho crioulo Raimundo, irmão de Mãe Zefa, mas um polo oposto, e que é torto de um olho, ia e vinha ar­mado de dois enormes regadores que mergulhava alternativamente nos barris do pé da cacimba, e alternativamente ia distribuindo pelas plantas, de manso, caminhando ora suave, ora apressado.

Como que sentia-se o cair das folhas mortas expulsas pela selva, cujo ímpeto a manhã desafiava. Para Maninha, corolas baforavam ver­sidades de aromas; corolas como borboletas fixas, colibris abismados na própria contemplação. Reportava-se insensivelmente à idade infantil, e ao tempo do Colégio, e cantava ingenuamente com a sua fininha voz de criança:

"Acordei de madrugada
Fui varrer a Conceição
Encontrei Nossa Senhora
Com seu raminho na mão...

Ao preto velho Raimundo, ao ver a donzela morena, surpreendia-se uma saudade comprimida nas suas feições de mono. Ele perpassava pau­sadamente como quem conduz um defunto pela alça do esquife; ouvia-se entre a rama de vereda em vereda, com as suas calças de azulão, ao peso de uma vida inteira de cativeiro, e reaparecia, o crânio entoucado por um lenço de ganga. E continuava a regar. Os fios de água trespassavam em chusma a ramaria delicada. A areia estrumada como que entumescia,desprendendo um tênue cheiro de estrume e de esturro. Os ramos fica­vam a gotejar, e espaçadamente, a água junta na ponta de uma folha, caía. A rega era a modo de uma vassoura de cristal fundido, a espanar a poeira que inquinava as plantas. A terra das veredas parecia upar on­deantemente, artérias da circulação da luz sobre as ramadas. A hortaliça, nos canteiros suspensos, afogava-se a meio na sombra, e a meio emer­gia no sol, e por aí adejavam borboletas brancas e amarelas. Maninha, entrou a matar as lagartas das couves, depois de abençoar as suas plan­tinhas com a linfa do regadorzinho verde. E de pedaço em pedaço, ou­via-se o grunhir do carretel, seco e o despenhar da água no bojo dos bar­ris, ao braço negro da Honorata.

O muro entreaparecia, com as suas fieiras, a nu, reforçado pelas pilastras cujos lombos empolavam na penumbra. Havia um largo jogo de ensombrações, e trémulos de frondagens frescas. O pino das altas árvores fulminava ardente. Nesses toques de fogo e verde da clorofila pul­sava como um raro fulgor de pedrarias. Havia um saudoso encanto de florestas ínvias.

— Centu! Centu! — É o grito surdo que se remexe no coração da morena. Que fazes? Aqui também há a poesia da selva, e mais a poesia única, a da minha alma, a dos meus sonhos, a do mundo inteiro que eu cismo superior a esse que loucamente buscas interpretar. Sê sábio, para esta natureza, para este universo que eu sinto dentro de mim. Que és tu nessa amplidão de águas da Amazônia? Nessa infinidade de florestas mudas e pavorosas, sem o sol e sem mulher; que vales para esses ho­mens secarrões que te acompanham e para os índios bravios, e para as feras, e para tudo isso que é indiferente às tuas dores e às tuas alegrias? Centu ingrato! Conhece, no meu padecimento e firmeza, como se é grande e forte! Centu! Centu, ingrato!...

A garrixa soltava, no muro, aos saltinhos de cauda erguida, para o ninho do beiral da cozinha, o ruído que a natureza lhe ensinou, seme­lhante a fricção arrostada de um seixo no outro; e o vem-vem balançava docemente no macio do tamarindeiro, com o seu assobiozinho afinado e afilado; pequenininho feito de gema de ovo e de ônix, coroado de ouro, um reizinho aéreo e feliz.

A rapariga, debruçada sobre o canteiro, já não catava as couves, e com a mão no estrume, que estava afofando entre os pés de coentro, acompanhava com a vista o voejar de uma borboleta nas primaveras do alpendre. Angela, de ciscador, limpava o terreiro, reunindo as folhas e detritos em um montículo. O tio Raimundo descansava um pouco os re­gadores, e lançava um olhar conhecedor para a habitação, guiado por uma vozeria, e resmungou para a menina:

— Já pega o lelê, sinhazinha.

Modelava-se, em fundo alteroso, a alvenaria da casa. Pela grilhagem miudinha do peitoril da varanda, cor de telha, oscilavam os sarmen­tos e as folhas verde-escuras do maracujá-suspiro, e uns braços, por cordões e varinhas, galgavam acima, com pretensões de guarnecer o freste das colunas. Os largos ombros da Dona Fabiana perpassavam de vez em quando, de uma porta para outra, já encobrindo alguns dos quadros e móveis da sala de jantar, já oculto. E então, como se lhe enxergasse bem o olhar lívido e o carão arroxeado, o preto Raimundo se escoava me­droso pelas ramadas, e foi sentar-se na casinha de banhos, de barro e zinco, chupitando no seu cachimbo, ancho por estar fora do alcance da fúria, e caçoava da triste da Benedita, cujo topete e cuja tromba perpassavam também o zunzum. Ouvia-se baques e despejamentos de raiva. Ângela, no terreiro, divertia perseguindo um besouro, com o ciscador, quando a Fabiana se afastava; e ciscava muito apurada, o corpo acur­vado na lida, quando a senhora reaparecia:

— Que parelha! — murmura no seu asilo o regadeiro. A Benedita e a senhora à mode que nasceram pra comer no mesmo cocho. Se pe­gam por tudo! E você vê — continuava, como se estivesse com outra pessoa — a senhora podia vender logo a Benedita! Mas não senhor, mode que precisa dela é assim mesmo. Deus me livre! Hum hum! Eu mesmo? Não presta? Bote pra fora, acabe de uma vez. Mas agora, pôr-se um cristão de Deus se arreliando todo dia? Por mode quê? Como é que seo desem­bargador agüenta isto, senhor? Eu mesmo nem sei! Hum hum! Chega me dá um vexame! O que é que os vizinhos não é de dizer desta mulher, e da sinhazinha? Oh! que moça boa. Nem parece filha da senhora..

Entra-lhe de repente pelo banheiro um molequinho, nu, perseguido pela mãe, a Benedita, que o queria arrebentar com uma acha de lenha, sem que, nem pra quê; talvez por vingar-se da ama. O mísero foi agar­rar-se com o preto arrulhando numa vozinha suplicativa:

— Dindinho!

Meteu-se-lhe pela roupa, achando no suor do cabra velho um cheiro esquisito e bom. A Benedita, deixou-o de mão, por veneração ao crioulo. Mas este repeliu a criança, obrigando a voltar para casa:

— É que tu fizeste cousa, corno! Passa já pra cima!

E o moleque repetia:

— Dindinho!

— Passa! — replicou o regadeiro, pegando num cipó.

— O que está dizendo, tio Raimundo? — fez a Mariinha, que acor­dava do seu enlevo, e aproximava-se da cacimba. Deixe o moleque! Vai brincar, Francisco... Olha, tira-me umas goiabas...

Mas a donzela tomou um susto, com a voz da mãe, que assomava na varanda e gritava-lhe:

— Que está também fazendo, senhora dona?

— Já vou, mamãe. E virando-se para o moleque, tomou-o pela mão: Vamos. Quero ver quem toca em você.

Aquela zoada era muito conhecida em casa, e tolo é quem a estra­nha. A Fabiana, usurária, por um lado, e esbanjadeira por outro. Queria, por exemplo, quando lhe dava na cachola, que a Benedita desse conta da panela com dez réis de alho e dez réis de pimenta. Até a lenha, dada por contagem. O Visconde prezava-a por isso, ele que, mesmo nos gran­des negócios políticos não gastava sem o cálculo prévio. Se ele derra­masse um saquinho de ouro nas mãos da plebe faminta que elege aos representantes da nação, diz o Osório desiludido da sua candidatura a senador, é que estes não passavam de procuradores de meia dúzia in­teresseira. Caramba!

O desembargador, muito em segredo, chamava epicurista ao Vis­conde, no mau sentido da palavra. Bem ou mal, entende que o cacique receava o saque à sua casa, em revolução que por acaso estalasse, e que por isso arrumou-se chefe de partido e alimentador da multidão, e a cada vulto festejado pelas turbas sacudia um tentáculo. Isto o letrado apreciaria como virtude, como sinal de superioridade digna do século da astúcia e da inteligência, se não lhe fosse além de tudo ganhando uma certa aversão, indiretamente, por causa da embirrância da. Fabiana em querer à fina força conquistá-lo para genro. O Afrodísio não tinha culpa disto, entretanto. O mais que poderia fazer, seria, aproveitando aquela cegueira da mulher, dar pasto aos seus apetites egoístas, de homem hábil e despido de certos rigores de moralidade.

O Visconde, muitas vezes, dizia intencionalmente ao desembargador: — Seo Osório, fique certo de que ninguém trabalha pela morte. — Nem o suicida? acudia presto.

— Nem mesmo quem se suicida, que quando morre está gozando do efeito do seu desaparecimento.

— Ah! fez o Osório pasmando e levando o dedo à fronte... Existirá em absoluto este antegozo compensador?

E entrou a ruminar filosofias, enquanto as conseqüências da tei­mosia da mulher, aliás muito bem intencionada, seguiam naturalmente o fio das águas.

Afrodísio tinha agora o mirante bem varridinho, com uma rede de varandas sempre lavada, e lençol vermelho com avesso branco, e uma cama de vento, bom vinho do Porto e ovos para gemada, pães-de-ló, bis­coitinhos, etc. Queixava-se de fraqueza "por amor do trabalho", e da re­crudescência de um mal antigo. Viam-no por vezes apoetado. Punha-se na alta janelinha, de mão no queixo, a olhar para o escuro da noite, como se esperasse alguém, ou como se estivera idiotando. Por cima de sua cabeça abria-se muda a solenidade das estrelas, abundantes e vivas, na ardósia indistinta; e no horizonte, crepitava algum foguinho de arrabalde reverberando dubiamente numa frentezinha caiada ou nalguma árvore. A cidade confundia-se em enormes blocos negros, dentre os quais, como de folgadas junturas, surgia a claridade aqui e ali estrelando os combustores. O homem sentia-se bem, com aquela perspectiva da noite. As de­licadas nuanças da treva e da claridade, ora um pesado negror de carvão, ora um sublime luzir de estrelas, e os mais melodiosos esbatimentos, os mais fantásticos reflexos, uma frente de sobrado que subia vagamente, o interior arborizado de um quarteirão, sombras coladas em sombras, a série angulosa dos telhados, tudo se lhe desenhava ao mais doce con­junto, e um sentimento vago e dolorido penetrava-o.

Um galo feria como uma estrela o escuro do silêncio, ao longe, sen­tinela a bradar as armas.

Às vezes quisera ter a sua mulher e os seus filhinhos. Mas era bastante abraçar a Antônia, a Porcina, a Angela, ou qualquer outra, e na idéia do animal fêmea submergia-se a da esposa. Ficava desconchavado na atmosfera de um lar. Em compensação as famílias olhavam-no com des­confiança.

Estava com sono e dispunha-se para descer. Ao pegar na luz, corria um derradeiro olhar pelo compartimento, o mais alto da cidade, povoado de sensações amortecidas; para a rede, para a esteira, para a mesa, onde num grampo enrolava uma fita de veludo, atilho do cabelo, beijava sa­borosamente a fita, e as sandálias de mulher, que jaziam entre os objetos da mesa. Atirado na cadeira havia um par de meias servidas, em cuja catinga de suor feminino ele se absorvia. Havia mais uma adorável ca­misa de cambraia, clâmide finíssima, com rendas de alto a baixo, deco­tada, curta, sem mangas, parecendo conservar um jeito de seios. Isso tudo ele tinha ali, compradinho por ele. Estava cansado de maquinar um meio de encher aquela camisa fora de horas.

Aquelas sensações deslizavam num plano inclinado, o coitado solto nele, rolava, e a velocidade, nestas soalheiras, inda cada vez maior, quem sabe, a tropeçar no delírio. O Afrodísio tinha o amor da Antônia, aviltado a princípio com o da Angela; e agora, o que servia era subir, subir até às estrelas, no balão do amor. Antônia calculava subir até ao casamento, iludida pelo exemplo ainda frescal, de um português que vivera com uma escrava e a desposara em artigo de morte.

Antônia cogitava também em um meio plausível de deixar a casa da madrinha.

A intenção desta — e as suas intenções eram de ferro — era que a afilhada só havia da sair de sua companhia, ou casada, ou para o ce­mitério.

Mãe Zefa desempenhava papel importante. Propusera ao homem alvitres vários para arrebatar a rapariga e tê-la de peito cheio, sem hora marcada. Mas nenhum era aceitável. Davam nas vistas. Uma terra pe­quena, é o diabo!

Antônia vivia no céu. Tudo a sensibilizava a boa parte. Mariinha re­parava nela com tristeza. A Dona Fabiana queria cada vez mais a afilhada. Aquilo sim! Havia ela de ser uma dona de casa, uma senhora, dando-se ao respeito com os escravos, sempre muito limpa, e cheirosa; que noivo de mão cheia não acharia! O João Batista babava-se por ela! Um moço de juízo, poupado, um regalo, que parzinho de dar pencas!

Antônia estava mesmo de cheirar e guardar. A carne a fazia feliz. De uma grande ternura pelos gatos, pelos cães, pelas galinhas; é crível que achava numa flor um segredo novo, uma beleza misteriosa e significativa.

la ao banho, sozinha, quase todos os dias. Passava lá um tempão, com sabonetes e água-florida. Dona Fabiana perguntou-lhe a sorrir, donde lhe vinha dinheiro para tanta coisa:

— Oh, madrinha, pois o João Batista não botou na rifa aquela fro­nha que acabei?

Estava, portanto, justificado e explicado.

Uma obra feita pela mão de Antônia, rifada pelo João Batista, seria vendida a peso de ouro.

Um día a Mariinha, para moê-la, perguntou ingenuamente: — Que fronha é essa para render tanto? menina!

— Olhe lá, cadê essa dinheirama? Só nos frasquinhos de cheiro, nos sabonetes, uma...

— Está bom, Amônia, acudiu a Mariinha, já penalizada do embaraço da outra, eu estou brincando, não estou pedindo contas. Bem sei que és uma rapariga exemplar, que não aceitarias dinheiro do... João Batista assim com um descaro de cômica...

— Por certo.

— E então? Para que começaste a dizer o que compraste? E de­pois, fosse como fosse, é teu, faze do que é teu o que te convier. — Por certo.

— Parece que desconfias de que não sou mais tua amiga. Por que namoras o João Batista? Ora esta! Eu até poderia servir-lede onze letras, tanto aprovo esse amor... pelo João Batista.

A Antônia ia protestanto que "não havia de namorar nunca esse tipo; que não sei que diabo tinha, que não lhe entrava"; mas acudia-lhe ao espírito ser necessário e vantajoso para o seu descanso ficar a outra na suposição.

Mariinha feriu-a com um olhar risonho, e malicioso, como um cardeiro com a sua linda flor, e foi estudar o seu piano, cantando, aos sal­tinhos de valsa, corri no tempo do colégio; e batendo palma a ritmo:

"Virgem bela dá-me um beijo,
Se me amas com ardor,
Dá-me um beijo tão-somente
Em prova do teu amor!"

Às dez horas, a Angela foi fazer o ménage do galinheiro, como era costume nos sábados. Não gostava daquela tarefa "por mó dos cafutes".

O galinheiro era situado em seguida à puxada, cujo último compar­timento era a cozinha.

Depois de Ângela findar o serviço, entrou Antônia, que ia ver os seus pintainhos. Também, Antônia era a única pessoa que acostando-se de uma ninhada, a galinha não beliscava com a fúria do choco, levava os inocentes biquinhos pipilantes à sua boca da cor de sangue, como se lhe desse a sorver o mel dos seus beijos, repassava no pano das suas faces o pêlo dos pipis, e metia-os no seio, de mistura com os dois peitos du­rinhos e assustados. Riu daquela cócega de veludo.

— Por outro lado adorava a púrpura dos galos e o seu canto de guerra. Lembrava-se do Afrodísio quando via o galo generoso, enlame­ando as suas barbas rubicundas, clamar pelas suas raparigas, sacudindo coisinhas do bico adunco e breve. Açodado, espalhafatoso, nos largos desempenhos do patriarcado e da poligamia. Sóbrio, um para todos, para as velhas arrepiadas, para as frangas, para os bambinos cor de gema de ovo salpicados de cor de café, com os biquitos de âmbar e os grandes olhos de inocência... Antônia abominava um frangote roufenho, que es­garatava tímido a distância, como entristecido por ideais ciúmes.

Acertou de, na alta janela da cozinha, aparecer, a Benedita em busto, com um alguidar entre as mãos e atirar um volume líquido que espalhou-se no solo e assustou a população galinácea.

Bordou-se, na areia, uma larga mancha escura, brilhando um instante. A terra, descascando ao calor, empolou-se, parecia chiar, e entrou a expandir frescura, evidenciando ao sol detritos de alimento. As aves tornaram do susto, em cima do rastro, de chofre, e puseram-se a aproveitar os lanhos de peles, naquinhas de osso, de gordura, saídos com a lavagem de carnes. A sociedade concorreu para aí, de vários pontos do chiqueiro.

O grande peru negro impara nas suas penas vãs, por entre aquela pequena humanidade. Caninhava majestoso para que todos o vissem. As carúnculas lhe desciam para as ventas, mudando de cor, a cambiar pelo alvo, pelo violeta, pelo zul e pelo rubro. Ele faz-se respeitar. O galo que tem uns músculos de homem, açoita-o por vezes, e mais o receia.

Consentese que o peru avulte o seu grande corpo em pleno galinheiro, para regalo de todos. Antônia assobia, para vê-lo entoar o seu belo canto de corvo da fábula, tossindo glô-glô-glô.

As frangas se comprazem na casquilha companhia do galo pimpão que lhes arrasta a asa. As galinhas poedeiras passam com seu positivo conhecimento da vida. Qual se aninha, qual se abebera no caco de pote sob a projeção da gravioleira, qual se espoja na terra escandecida e fofa. Os frangotes procedem com um acanhamento de colegiais bisonhos. Um esgaravata na barrica do cisco, jazente perto da porteira e esturrando ao sol, outro procura um derradeiro grão de milho enterrado, da ração da manhã, e aquele cisca junto ao alicerce da cozinha, numa areia gorda espalhada de cascas de abóbora e talos de hortaliça. A um canto levan­ta-se tumulto pela descoberta de uma cobra de duas cabeças, que todos querem papar.

Pela janela da cozinha o vento puxa e desfia uma fumacinha va­porosa, e do peitoril para o chão alarga-se na parede uma faixa encar­dida, esboçando no amarelo de ocre uma longa silhueta de respingos e de estrias, de água suja escorrida como por uma boca abaixo.

Estorrica o terreiro úmido, que encrespa-se, e as tijubinas lambis­cam por sobre o banquete abandonado. A sociedade busca as sombras, e refocila à sesta, uns num pé só, outros agachados, e uns atirados numa adormecida frouxidão de membros. Entre as ramas aparecem as verdes graviolas. O peru, entufado, ronda e tosse. Uma carrapateira de tronco acinzentado, e furunculado pelos anos, ao canto, entre a cerca e o muro, recebe na sua esgalhada uma tosca escadinha de mão, que à noite serve a alguns de dormida ao ar livre. Como lágrimas de bugia prendiam-se à madeira incrustações de cocô, solidificadas, e montículos no chão como estalagmites que Angela fez desaparecer na limpeza sabatina.

No fundo do caco da água aparece o olho do sol, e uma galinha de pintos, com os pés na beira, acocorada, abaixa e levanta o bico, abe­berando, na melhor paz deste mundo. Os pintainhos trepam-lhe e escor­regam, ao liso das penas. Súbito, uma sombra atravessa o espaço, como uma nuvem ligeira pelo sol. O galo solta um grito entalado, gutural, de pavor, e mais depressa que um raio a galinha pula ao chão e os filhinhos se Ihe escondem debaixo da asa. A sombra, foi como uma seta. As aves correram apavoradas, repetindo simultaneamente o grito que faz arrepiar os cabelos. Passara, roçando no pó, crescida, a sombra enorme de um urubu. Ao galo, vem água nos olhos, de medo, e ele, passado o susto, ergue o pescoço, com o ouvido alerta e a crista empavesada. Depois en­tra a ciscar, como se dissesse: "Não foi nada".

As aves tinham corrido para o telheiro, que lhes serve de albergue. Pelo muro arrulham os pombos, frocados, e pelas traves, entrando e saindo de suas habitações suspensas metidas no vão da coberta em meia-água.

Arde o zinco em cima, e pelos pedaços da parede de palha fervilha a passagem de algum pintainho. Dos ninhos cavoucados no pó macio e moreno acamados de toiro capim de gigo, irrompe às vezes uma gali­nha, em grita, fazendo ciente a Deus e a todo mundo que pôs um ovo de suas entranhas.

Dá vontade de a gente se deitar na terra sombreada, e Antônia, tendo recolhido uma porção de ovos numa corbelha, desejava também forçar e sacudir-se.

Um capão se lhe aproxima, e ela avalia-lhe o peso suspendendo-o pelos encontros. Uns pintainhos correm piando para ela e pelo peito dos pés, deixado a nu pela chinela rasa, roçam com os biquinhos como fazem os patos na flor da água. Os olhos dela amolentam-se, à vista da grande luz que a tudo penetra. Assalta-lhe um delírio animal e esporcado pela re­cordação que ela já conta. Vé-se a titilação das veias das frontes e os seus dedos fremem até aos ossinhos. O seu corpo estremece, ao calor que descolora o limbo das folhas e incendeia a cal dos rebocos. Ela busca folgar ao contacto neloso da camurça dos pintainhos. E deixa-se cair na areia impregnada do odor das aves sentindo os videntes segredos da solidão. Era como se fora no fundo de secular floresta, ou sob as abóbadas desertas de um templo. Fervem-lhe os cinco sentidos, e ela estira-se no pó. A natureza curva-a para a sesta. Antônia desaba sobre si mesma, como o teto de uma casa incendiada. E os pipis lhe fossam na roupa úmida de suor cálido, como os patos entre os nenúfares embastidos. Afrouxa os braços, crucificada pelas turbas do desejo, e escuta o arrulho dos pom­bos. E é como se no alto da cruz murmurasse: "Tenho sede". Mas dar-te-ão fel e vinagre? Bom esse mel, esse doce luar do amor feito realidade.

As réstias alouram a tênue sombra do interior do telheiro, e o verde dos olhos enubla-se nas sombrancelhas, onde naquela ocasião assenta­ria o mais prolongado beijo. As teias de aranha, tenuíssimo labirinto, li­bram-se trespassadas pela grossa e rala chuva de sol coado através das folhas da coberta estragada pela oxidação. Há no chão recantos em que a areia não trilhada está ainda bexigosa das chuvas do inverno.

A palha das paredes tem grandes rombos. De permeio com o pa­Ihamento há trechos de flandres, e tabiques pintados que serviram a um teatrinho particular. Num ângulo sobem em escala as varinhas do poleiro. Num bule velho metido entre a coberta e o muro há um ninho de carriças. Há um cortiço abraçado por cordas de cruá oco, abandonado, uma ca­baça de tapuia, onde, quando o vento dá, produz um assobio fúnebre, e tenta quebrá-la contra o muro. As abelhas foram devoradas pelas la­gartixas.

As cinco horas da manhã o tio Raimundo já está de pé. Dorme ao fundo do quintal, em um casinholo de palha, sob o tamarindeiro. Levan­ta-se, desarma a rede, faz o pelo-sinal, de pé, na porta da cabana, olhando para o lado do Nascente, e resmunga a sua oração à Senhora do Rosário. Toma o seu gole de cana, e sai a colher as verduras para a venda do dia. Prepara tudo muito bem, os molhos de coentro, os mercados de couve, pimentas de cheiro, malaguetas e outras, a hortelã, a alface, os tomates e os limões por modos que em chegando, Mãe Zefa, de caminho, já com alguns produtos que apruma na cabeça, não tem mais do que pegar mais esse contigente para o seu comércio, e largar-se. A Dona Fabiana confia grandemente no tio Raimundo. Se há bananas maduras, ou alguma outra fruta do quintal, que tudo ele superintende, como sapoti, maracujá, gro­selha, romã, graviola, mamão e mesmo goiaba, ele prepara o tabuleiro e manda o moleque Joaquim pela rua. Um dia Angela foi empenhar-se com ele para sair também com um tabuleiro, e levou umas cipoadas. Taciturno e severo, sempre do voto da senhora, só achava bom aquilo que ela achava, embora fosse ruim.

Tinha um olho abugalhado e congesto, que Antônia horrorizava como a uma coisa do outro mundo. Certa manhã, quando a loura ia para o ba­nheiro, ele pôs-lhe o dito olho em cima, e a rapariga entendeu que aquele órgão cego e inútil estava lendo-a por dentro; arrepiou-se, e muscou-se por entre as ramadas. Oh! como as plantas são boas! Toda vez que Antônia se abrigava nelas, a doçura daquele verde, o alourado das frondes maduras, o matiz da inflorescência, o ar, a linguagem daqueles viventes, a indescritível, a misteriosa, disposição dos ramos e das folhas, derra­mavam uma proteção que ela não encontrava, nem na secura da matéria inerte, nem nos seres que têm vista e ouvidos.

De tamancos, a rapariga sumiu-se entre as bananeiras, com a to­alha dourada de cabelos soltos sobre a toalha felpuda que lhe abarcava as espáduas. Tinha mais pejo que dantes. Acontecera, alguns meses atrás, vir ao banho, de saia e cabeção, e toalha mal protegendo o colo, mas agora nem por nada.

Ficou de pé na portinha do banheiro, alheada, braços cruzados, fronte recostada no umbral, em doce dormência.

O bananedo agitava, sobre a associação de pilares lisos, os monstruosos penachos de palmas oblongas, enormes ramalhetes entressachan­do-se, com elegância de arcárias, de dóceis, de zimbórios imaginados.

O palhiço brilhante dessas heliocônias, à guisa de línguas pardas, subia do chão, a lamber o último verdor daqueles troncos aquosos. Pal­mas emurchecidas pendiam, e outras ficavam em cima, dilaceradas pelo sopro do ar.

Formavam-se acordes de colorido, a pegar do amarelo das folhas maduras, ao das palhas secas, e ao verde setíneo das frescais.

Dentre essa boscagem de fustes viridentes despontavam os grelos dos filhotes, e uma fértil umidade azeda. Pelos troncos, descambavam madeixas descuradas, as velhas folhas mortas. Os cachos, crivados de pencas de fruta, faziam inclinar com o peso as bananeiras mães, e na pontinha de cada um, o respectivo mangará, procurando o solo com um bico de pião, arrebitava a roxa capemba, semelhando língua, e como den­tinhos alvos apareciam debaixo destas as camadas de florzinhas, onde vão a chupitar doce líquor os colibris e as abelhas. Em derredor, a terra do caminho, escura e socada, com poças de lama que de longe parecem pastas de mica ou de prata. Pelos baixos, umbroso; e o olhar da menina cansado da muita luz do dia anterior, deliciava em penetrar nessas bran­duras de sombra. Havia despertado o desafio dos pássaros e da luz.

Chuviscara pela madrugada. As frondes espanejavam mais leves, no ar frio, e frouxéis de nuvens cinzentas apareciam pelos interstícios da vegetação, vagarosamente se arrastando no azul esbranquiçado.

Um casal de lavadeiras, saltava para o chão da cacimba, com o seu gritito monótono, e o seu traje lavrado de preto e branco. A umidade tra­zia a Antônia um acesso de nostalgia. Contra a sua vontade, tinha rubros assaltos de pejo, consigo mesma, figurando que estavam a olhá-la. Por que não se criou no Outeiro com o pai? Teria desconhecido os aparatos e confortos da gente rica, o verdadeiro tormento seu. Tudo isto poderia faltar-lhe de um momento para outro, e ela cair no chinelo roto e na saia suja das raparigas da Feira! Uma impressão medonha afogou-lhe a gar­ganta. Mulher de feira! Virgem Santa!... Ainda podia inventar um motivo qualquer, e buscar a companhia do pai, o mendigo João de Paula. Nin­guém adivinhava. Tinha irmãos pequenos e irmãzinhas, uma quase moça. A madrasta morrera, já se vê que ia até ajudar o pai. Que vida no meio deles! Quando houvesse o quê, almoçava; senão, jantariam; e por último, antes uma ceia por almoço que fartura e riqueza em risco de perder-se uma rapariga para sempre aos olhos de todos. A Maninha que pensaria dela? Como era boa, a Dorzinha! Feliz criatura. Mas também, teve papai e mamãe e espera com fundamento. E Antônia? Casar com aquele João Batista a quem abomina?

A loura conservava o timbre rústico da sua gente, não sabia contra­riar-se. Iria para a casa do pai, ser feliz com aquela miséria honrada, deliberou.

Mas casar com o tal de Batistinha? Um frade!

Um susto, porém, estremeceu-a; o Afrodísio iria bater lá; e então a infâmia invadiria a tapera de seu pai, o fundo roto das redes das suas irmãs, e cuspiria na fronte de seus irmãozinhos. Ah!, madrinha Fabiana! Para que introduziste este homem na tua casa, onde a felicidade habitava e donde mudou-se para sempre? Desgraçada madrinha! atiraste o osso ao cão!

Era possível que um Visconde a desposasse? Ele tinha dado a en­tender que não. E depois, contavam que ele e os outros, a gente endi­nheirada, costumava proceder assim. É verdade que lhe ofereceu uma boa casa no Beco do Rosário, alta e espaçosa, reformada pela marca da Câmara, com mobília, prontinha de tudo. Mas diz que é assim que eles fazem mesmo. Aboletam uma rapariga inocente, freqüentam-na por uns tempos, e vão negaceando, negaceando, com esse desamor, a gente, que não é de pedra, vai gostando de outro, e de mais outro. Cai no vício. E vai se queixar ao Sem Jeito.

Um acesso de medo correu-lhe pelas juntas, e a rapariga encolheu-se toda. Meu Deus, por que é que não podia chorar? Por que é que não achava lágrimas? Dantes não lhe era tão fácil? Aqueles olhos secos a assassinavam, o coração virava em brasa e a cabeça tornava-se um coco roído da lua.

Hoje em dia, com que cara apareceria ela ao João Batista? Horri­velmente despeitado, e considerando-se injuriado, ele insultou-a numa carta em que dizia pelo claro todos os passos ocultos da loura! Historiava diversos casos parecidos com o dela. E dizia, como uns assomos de tra­gédia: "uma foi fulana, com o Doutor Sicrano, médico. Sabes que é dela? É a Chica de tal, com um apelido indecente, e mora um mês na Santa Casa e dous na rua. Outra? Beltrana." Assim por diante.

Antônia queimou aquela infame carta. E cada vez ficou odiando mais aquele homem grosseiro que se atrevia a ofender por tal modo os melin­dres de uma mulher que, afinal de conta, não lhe devia coisa alguma nisso de amor. Bruto! Não compreende a grandeza daquela fragilidade.

— Esta peste, exclamava ela, se fosse outra coisa, poderia salvar-me. E vem com injúria, me chamando simplesmente fêmea! Ah meu Deus, meu Deus! Maldita sejas tu, madrinha Fabiana! Oh mãe, por que me pa­riste?

O João Batista surgia-Ihe diante, ali debaixo das bananeiras, esgue­delhudo, tétrico, faiscando ciúme, com largas e cambaleantes passadas de teatro, e estendia horizontalmente o braço e a mão. Rouquenho:

— Antônia de Paula, amásia do Afrodísio Pimenta!

Na alucinação ouvia distintamente a voz encatarrada do miserável, e bateu subitamente a porta do banheiro. Correu a taramela, e o ferrolho da padieira e o de baixo...

Só, em frente do tanque de cimento, entre quatro paredinhas caia­das, sob um teto sacudidinho de teias de aranha. O dia espionava por esguichamentos na cabeceira de cada telha. Respirou, e soltou um pro­longado e aspirado — ai de descanso.

Acercou-se do banco de pau, corrido ao longo da parede, e com um adorável pontapé no ar, desfez-se dos tamancos, de couro e joão-moleque, que fizeram soar como um sino fúnebre a beira da bacia de arame encostada ao canto. Arremessou a toalha, que foi enganchar no cabide; esticou-se toda, cruzando os braços, com os pés endurecidos, juntinhos como os de um cadáver, roçando os calcanhares no cimento frio do solo. O corpo apoiava-se pelos calcanhares, ali no cimento, e pela cabeça, na parede, e pelas nádegas, na quina do assento. Esteve momentos assim. Era muito boa aquela posição hirta, que fazia parar o relógio da imagi­nação dos pensamentos ruins. O mundo lhe existia apenas pela audição. Fechara os olhos. Acariciador, refrigerante como o ruído do mar, borbulhava-lhe o fervilhar da folhagem. Um galho arrastava na telha, em compasado vai-vem. Pósse a descompor os ruídos. Aquele mais grosso é do sapotizeiro... E aquele chiado saboroso... chega parecia passarem-lhe um braço de veludo pela cintura.., era do bambual do vizinho... E aquele outro, chia também, cicia... a modo que os cabelos se lhe enrolavam no rosto... Ah era das palmeiras do Chico Pinto. Agora ia caindo tudo, que diabo, o vento podia carregar os telhados... Passou... Foi como um em­purrão... Estavam puxando água na cacimba... Lá a Benedita gritou com a madrinha; que se amolassem... Ai, aquela esfregação bolia-Ihe nos sei­os, a arrepiava.., basta, basta, senão ela caía na risada... tamarindeiro, basta de se esfregar no telhado assim, vá se espojar no diabo que o car­regue... Cantou um dorminhoco... Está um bando de sanhaçus nos pés de mamão... Vai passando uma carroça pela rua, mais outra... Lá um com-boieiro gritou... oboi... O tio Raimundo passou assobiando... Que coisi­nha bonita, meu Deus, como isto é fino e delicado, como é bom para... canta mais uma vez, assam fininho, vim-vim.., quase é fim-fim... É vim-vim que ele canta, não é vem-vem. Quem lhe dera aquele passarinhozinho para ela devorar num beijo, para meter no seio, para enfiar pelos ouvidos e cantar-lhe no cérebro.

Foi abrindo os olhos. A água estendia-se na banheira de cantaria, quase abarrotando. Os respiradores triangulares, fronteiros, no alto da parede, cada um parecia conter um olho ao meio.

— Ah?! Espera, dia dos trezentos diabos!

Despiu o casaco e entupiu um dos buracos, o outro, e o terceiro, que eram todos próximos, com a saia. Agora sim, podia estar em camisa, e mirar-se no espelho da água.

Via-se por diversos modos, no espelho horizontal. Mirava-se deste lado, daquele, estirava uma perna, um braço, enrolava estes.., descia um pé cerceando a água, sem feri-la, e via a perna invertida... Admirou-se em várias posições, diretas e inversas... Com os diabos! Tinha de despir-se, e varejou com a camisa para o banco. Intentou ver-se em projeção horizontal, mais ou menos paralela com a flor da água... Se o João Ba­tista espiasse agora gritava-lhe:

— Devassa!

Desequilibrou, e caiu na água. Foi ao fundo. Era raso, naturalmente.

Por felicidade não se machucou muito... No tornozelo apenas, na borda do tanque, uma pancadinha, que assim mesmo doía como uma canelada. E retorcia-se gostosamente com a dor. Diabo! Isto a fazia rir e a fazia cho­rar. Não sabia que existia dor e prazer ao mesmo tempo.

E os ais catupeavam aos inflamentos, ao arfar daqueles venerinos selos metidos na água. O que mais tempo ela deixava fora eram as espáduas, corcovada que estava para diante, apertando o pé machucado. O cabelo, parte boiava e parte pregava-se em desordem naquela polpa de ombros que emergiam como em luxuoso decote de vestido. Não se lhe viam, ao todo, os braços, colados ao corpo, e cortados, pelo lume de água; e o sombrio louro do sovaco no aderir das carnes, mal denuncia­vam-se por uma deliciosa linha terminando semelhante a comissura dos lábios fechados, semelhante a um beijocável e apetitoso cantinho de boca.

Foi estirando-se, desenrolando-se, como uma cobra, e mergulhou rapidamente; agitou-se; depois foi erguendo-se até assentar à beira do tanque, de pernas cruzadas. Branquejou-se, de pé, sobre a borda, quase com a fronte nas telhas, com a espuma do sabonete; pulou para o chão, entrou a se desensaboar, tirando água com uma cuia. Instantaneamente aquela palpitante imagem envolvia-se numa redoma de água; como um roupão ao despir-se, a água descia no mesmo instante. Improvisava-se de novo o cristal da redoma, e de novo caía, descortinando o pêlo todo, a gaze da idealizada vestimenta. Em derredor, tudo molhado. O sabonete, pela metade.

Novos mergulhos, e nova temporada de molho e de movimento. Era bom que a banheira desse campo à natação. Não sabia nadar, mas com aquele pendor de peixe, aquela natureza instintiva e rudimentar nadaria como as alimárias, sem ensino. Começou a arrepiar-se. Fartara a sede de toda aquela pele crivadinha invisivelmente de poros e de desejos. Saía demoradamente da água e de uma carreirinha, como se houvesse agora muito pejo e vergonha da sua nudez, foi acostar-se ao cabide, pondo os pés sobre um pequeno estrado, puxou a toalha, cobriu-se por diante, do seio aos joelhos, encolhida, cíngindo-se com os braços, como uma está­tua de Vénus. Surpresa. Tremia de gosto, de propósito, infantilmente, com os joelhos e com os beiços, a si mesma exagerando o frio. Saturada de água. Uma lesma arrastava-se na parede úmida, e uma rã fazia raco-raco debaixo do beiral. Entrou a escutar novamente a música da ventania. Espremeu os cabelos, enxugou-se o quanto pôde, e encolhidinha, como se lhe fugira todo o calor orgânico e sensual, meteu-se na camisa. Então empertigou-se. Podiam v@-la. Não lobrigavam mais que o roliço dos bra­ços, o coxim do decote, e o início das pernas. Agradável sensação per­correu-a, quando as formas se acharam protegidas pelo morim cheiroso a trevos, enxutinho e quente. E passou a mão cariciosamente pelo relevo das formas. Torceu os cabelos na toalha, sacudiu-os, passou-lhes o pente.

Sentou-se no mocho, e descansando o tornozelo na coxa, esfregou os pés, e meteu-os nos tamancos. Ei-la de pé, e avança nos respiradouros, donde safa o casaco e a saia. Prontinha agora. Sentese bem-estar, e acha a vida muito boa. Para complemento, devia ser noiva do Visconde e sair com ele pelo braço a percorrer o quintal, readquirindo calor, em um suave exercício depois do banho. Compreendeu então um ameno vi­ver de senhora honesta, com o seu maridinho, amizade, amor, afeição, confiança, respeito. Um raio de graça divina entrara-lhe. Por que não a desposavam-na?

E mais quem a queria? Daí, agora, ou Viscondessa, ou... nada.

E o corvo do remorso peneirava sobre ela. Arrependimento? Impossível. A estrela que cai não volta. Casarem-na iludindo a boa-fé de um homem de bem? Este a repudiava. Com um sem-vergonha que a acei­tasse conscientemente? Metia nojo. Antes a queda completa. E nesta an­gústia, encarava mudamente o céu através da folhagem.

Mãe Zefa estava prestando contas. Apuraram-se tantas patacas e tantos vinténs; tirando a sua vendagem, ficava livre tanto. Fabiana dizia-lhe uma graça, que ela recebia mostrando a clara dentuça na mucosa das gengivas, e daí, antes de ir para casa, um quarto no Beco das Trin­cheiras, vizinho de frege-mosca, esfumarado, dava uma prosa na cozi­nha. Vamos a saber das novidades.

A mais forte, naquele dia, foi-lhe cochichada pela Honorata que estava areando um tacho: Angela com antojos!

— Sinhá viu?

— Inda não. Quando ela souber... Ai, ai! Eu nem sei.

— Quê? abrejeirou a Mãe Zefa. Zangar? Sinhá zangar porque a mo­leca está de bucho? E donde sinhá terá escravo, senão assim? Como é que eu fui cativa e você ainda é, comade Norata, senão pro mó do pe­cado?

— E quem será o pai, Mãe Zefa? — perguntou a Antônia, assando castanhas no fogão.

A preta arrebitou os beiços.

Antônia, com o rosto afogueado, revolvia as castanhas com o cabo da colher de pau, e ficou imaginando. Ardendo, as castanhas figuravam uma forja de ferreiro assoprada pelo fole. O óleo da preciosa amêndoa do caju fazia explosões lindíssimas, produzindo uma chama clara e forte, sem fumo quase. Remexia-as, para assar bem; retirava as prontas, com­pletamente negras, que largavam a fumegar. Deitava-lhe mais, das cruas, e a cada uma espipava uma explosãozita. Acabada a tarefa, amontoa­vam-se à beira do fogão, as prontas, com pontinhas de brasa e esfumando até esfriar.

Mãe Zefa não respondia quem era o pai da criança...

Antônia desconfiou.

— Por isso é que Ângela gostava tanto de ir lá!

Coitadinha da moça branca, estava com o coração denegrido instantaneamente. Horrível! que sorte, que desdita, que desventura! Rival de uma cabra reles! De uma negra cativa! E ao derradeiro fumozinho que escapava do carvão das castanhas torradas parecia fazer uma pergunta com os olhos pasmos.

O tio Raimundo entrava naquele momento com os seus regadores, o ciscador, a pá e a enxadinha de jardim.

— Siá Toinha, quer que eu ajude a quebrar?

Aquela voz de homem fez-lhe bem. Era assim como uma proteção, embora de um miserável preto.

— Obrigada, tio Raimundo, eu mesma quebro.

E segurando a castanha, coraçāozinho alargado e de carvão, entre o polegar e o índex da esquerda, batendo-lhe com um caco de telha, An­tônia fazia abrir-se em bandas a noz e aparecer a delicada amêndoa ro-liça, do jeito de meia lua, alva e corada, metida numa casquinha de pele como uma ninfa da borboleta; e sacudia-as num prato. Alguma provoca­dora a mais, ela descascava e mastigava ali mesmo. Acontecia vir uma queimada, que ela guardava para lavar as mãos, ou alguma chocha que era repudiada. Eram as amêndoas de caju para lardear bolos de carimã, que em casa estava um rebuliço como em dia de farinhada na roça. Pães-de-ló, bolinhos, bolo de arroz, bolo de milho novo, canjica, assim só à véspera de um noivado. O acelero e o açodamento em que a Fabiana punha os mais! O tio Raimundo, forneiro, ia deitar a lenha e acender o forno ao fundo da cozinha. Ângela, a batedeira de ovos, a preparadeira das massas como ajudante da senhora. O moleque Joaquim reduzia as espigas de milho, sentado no chão, com um ralo dentro de um alguidar de barro vidrado. Fabiana, de avental branco e touca, e mangas arrepa­nhadas, metia as mãos na bacia da massa de bolos. Um padeiro suarento. Até aos cotovelos, tinha o branco da carimã.

Maninha, o único serviço que fez, foi untar de manteiga as formas, e isto a poder do muito chamar-se por ela. Não vê! Trabalhar em man­jares para os anos do Afrodísio Pimenta! Aquilo não é homem que se apre­cie.

O Centu, este sim, escrevia-lhe. É verdade que friamente, no amado costume, com um desamor brutal; mas sempre era um homem sincero e bom, e já agora era impossível deixar de se lhe amar. A menina acre­ditava não sei em quê, a resignação lhe imbuía fé e esperança rija.

A cartinha era lida, relida, decorada. Consultada. Cheirada. Beijada. Ai que se é feliz! E detrás de sua cabeça um espírito vinha dizer que por baixo das palavras que se vêem costuma haver outras, encantadas, que é onde fica a realidade. Como habitualmente, estava ora na sala, ora no gabinete.

Ler bastante, e fazer progressos no piano. Censurava a si mesmo o pouco interesse que, de certos meses, tomava pelos trabalhos domésticos. Uma vez que timbrava em desposar o primo, era dever seu apli­car-se aos misteres de um lar. Mas sentia uma repugnância invencível pela mãe, pela Antônia, Deus lhe perdoasse, e pela Ângela. E mais, que fazer? Conversava com o pai, taramelava com os fâmulos, descarregava o bom humor de donzela bem nutrida, era como as outras, na Igreja, no Colégio, nalgum passeio. Não fora mais ao Clube. Efetivamente não fre­qüentava a sociedade. Saía com a mãe, a visitas da civilidade. Diante de gente de fora, mostrava-se prazenteira com a Fabiana. Birra contra birra. Assim como ela aguardava o advento do Centu, a mãe emperrava na segurança de que ela e o Afrodísio viriam finalmente a querer-se.

No seu contínuo raciocinar, o Osório entendia ainda que esse fenômeno que se passava no entendimento da sua mulher havia de ser assim um espécie de paixão retardatária, tardia, extemporânea, como atas em agosto, pelo Afrodísio; ou assim uma coisa assemelhável à paixão de um padre por Nossa Senhora.

Para engendrar inglesias de lógica e de filosofança ninguém como o desembargador!

— Que então, bolava ele, ela, vivendo na filha, casando esta com o dito, apazigua-se.

E coroava as suas deduções, muito ancho da sua capacidade, ex­clamando sozinho no gabinete:

— Não tem nada, é uma nevrose! Vamos ver em que isto pára. Ré­dea frouxa, doutor Osório; o cavalo sabe o caminho.

Disse isto em voz alta, e a filha, que parara o piano naquele mo­mento, foi a empurrar-lhe a porta, perguntando pelo brando: — Me chamou, papai?

Encontrou-o de pé, em atitude de químico analista, que ele apren­dera do boticário, quando era morto e vivo lá.

— Então, me chamou, ou não? — alçava a menina a voz, segurando na porta, com a cabeça para dentro.

— Hein?

— Me chamou? Arre!

— Não. Eu não te chamei... foi aqui... uma pessoa na rua, talvez... Enfim, já que vieste...

Enlaçou-a pelo pescoço como se fora moça com moça, e beijou-lhe na testa. Pegou-lhe na mão, bei°ou, e levou-a sobre o coração:

— Isto é o coração do Doutor Osório, não é? O teu maior amigo, não simplesmente por ser teu pai; que é erro pressupor-se infalivelmente que a paternidade ou a maternidade são acompanhadas, como o sol com a luz, da amizade real e verdadeira como eu a compreendo. O laço carnal é muitas vezes motivo de suspeição, não é? Uma coisa muito física, muito sujeita aos sentidos, e portanto a achaques. É o caso de empregar-se originalmente o baliro, adjetivo sadio: pais doentes de nevrose, por exemplo, devem conhecer-se, e ter bastante bom senso para entender que são incapazes de um amor sadio para com os filhos, quero dizer, um amor sem preconceitos, sem crises, em pleno desenvolvimento...

— Creio eu, porém, que você não está com isso...

— Também eu...

— E então? Parece que está hoje tão namorado da sua filha? — É verdade. O meu amor é grande realmente para contigo. Sentaram-se de frente um para o outro, à escrivaninha.

— Faça o favor de não me namorar tanto, senhor! Estará de nevrose? e sorriu como criança.

— Não. Isso não é comigo. Passa a tua mão pelo meu rosto, anda, pela minha fronte, e pelo meu crânio, que a tua pureza se me filtre na alma. Assim... Mais, ainda mais... Deixa beijar-te essa mãozinha adorada.

— Porém, não me dirá, o que é que você quer assim tão caidinho? Quererá pedir a minha mão? Entenda-se com a Dona Fabiana, a esse respeito.

— Que inspiração! fez ele saltando da cadeira. Dá-me um abraço, tu adivinhas, é justamente sobre isso que eu te queria falar. — Sobre isso? O quê?

A menina conhecia quanto o pai era desazado para com ela, prin­cipalmente quando tomava um copo de cerveja. Se fazia simplória, a fim de entrar mais suavemente por aquele crânio de rábula, e fazer o pai dis­correr com lhaneza e sem solavancos.

— O Visconde me deu a entender que te desposará!

A Maninha sentiu nesta notícia, que aliás não era de estranhar, como que a maior surpresa da sua vida. Não pôde responder. Nem convinha. Abaixou os olhos, assaltadíssima de pudor, e de susto; sentiu repentina­mente um mal-estar impossível de exprimir. Abandonaram-na pensamento e memória. As palavras do pai caíam-lhe pelas ouças como setas segui­das, ou pedras lançadas sucessivamente ao fundo soturno de um poço. Um peso queria tombar-lhe do crânio para os olhos, um pranto se aco­chava nas órbitas como a água na máquina hidráulica, as entranhas e os pulmões pareciam comprimir fortemente os músculos cardíacos.

— Eu não sei o que dirás, continuava o pai, fazendo uma contração de choro. Pelo meu gosto... Por seu lado, a Fabiana foi quem armou tudo isso! Positivamente, respirou ele, assoando-se e empertigando-se, posi­tivamente, o homem não te pediu ainda; entretanto, deu a entender. Percebi que ou casaria contigo ou ficava solteirão.

— Papai, aquilo é um infame! explodiu a menina. Ele sabe perfeitamente que é mais fácil casar com o negro Samango do que com ele! Canalha! Vilão! Réprobo!

— O que é isso, minha filha?!

— Perdão. la sendo inconveniente... Já agora, porém, que abri a boca... Ah! você não avalia o que eu tenho padecido... fez ela cobrindo enfim os olhos com as mãos.

— Leio nos fatos, filha. Calculo.

— Não digo nada, porque, enfim, a religião, a sociedade, enfim por­que a mamãe é minha mãe. Eu já disse na cara dela: não caso, mamãe, não caso, não caso! E foi diante da alcoviteira Mãe Zefa e do João Ba­tista. O Afrodísio sabe disso; ora, com toda certeza. E ele...

la acrescentar que ele devia era receber a Antônia em casamento, se é que era "homem". Já a Ângela, punha-se de parte, era cativa, e ele cabra. la dizer mais que lhe adivinhara o plano; fazer presente da Antônia num maço de dinheiro, ao coitadinho do João Batista; e quanto a ela Maninha, como seria judiada, sendo feita mulher de semelhante in­divíduo!

Porém calou-se. E choraram, sem quê nem pra quê, o pai sobre o peito dela, ela sobre o peito do pai.

— Jeová devia ser coisa muito ruim, porque isto foi feito à imagem e semelhança dele! — blasfemou o Osório, abanando a cabeça.

Mariinha soltou-se de súbito, como o animal que, assustado, fareja e escuta no ar. O pai tinha-se erguido, frio, acalmado, filósofo.

— Não blasfeme. Deixe esse defeito do sexo forte! Se não tem for­ças para sofrer, aprenda com as mulheres.

A noite o desembargador foi cumprimentar o Visconde, que fez anos. Muitos amigos, tudo homem, como em uma sessão maçônica. A mesa, ali pelas nove horas, presidida pelo Excelentíssimo Presidente da Provín­cia, o desembargador ez ao Visconde um brinde campanudo e entusiasta. Foi o mais li: onjeiro toast que o anfitrião recebeu por aquele aniversário.

Ângela passou a noite fora. Andou ruando. Tinha saído com licença, gostosamente concedida pela Fabiana, para sambar com os escravos do Visconde. No outro dia estava e andava por tal modo a rir que parecia uma sem-vergonha.

— Tu não me dirás até quando vais com esse desmancho, criatura? gritava-lhe a Benedita.

O certo é que ambas caíam na gargalhada,sem saber por amor de quê.

Isso de riso e choro entre mulheres é assim mesmo. Benedita estava tirando c almoço, no fogão, de manga arregaçada, empunhando a colher de pau. Arrastava a caçarola, e ordenava para Ângela que fizesse rogo "essa farofa". A outra não sabia orde estava a manteiga.

— Pois tu não a trouxeste neste instante, mulher? Diabos te leve! — E agora! — fez a cabrocha num muxoxo.

— Anda buscar a chaleira de água fervendo! O senhor quer almoçar cedo!

A cabrita foi pegar a chaleira, pisando duro com os calcanhares e mexendo com os quartos e com os cotovelos.

— Sai daí arrebitada! — gritou-lhe a Benedita com desprezo; e virou a cara para não dar demostração de que estava estourando para rir.

Ângela embicou a água fervendo para um prato fundo, aplicou-lhe manteiga a dissolver, e entrou a resfriá-la um tanto, com a colher. Tem­perou com cebolas e coentro, e deitou farinha aos poucos até formar um engrolado.

Ambas, ela e a farofa estavam fresquinhas e quentes.

Uma vez, isto antes de conhecer ao Pimenta, Ângela quase afoga-se gargallhando assim, mesmo à cara da Benedita, com grande desaponta­mento para esta, que enraivecia já, com as suas feições sangradas e roxas de sífilis:

— De que tu te ris, grandíssima cachorra? — berrou a cozinheira. Ângela curvando-se ao peso do acesso nervoso, amparando os peitos com as mãos, buscando fôlego, respondia-lhe no cacarejo do riso:

— Estou rindo.., da tua cara...

E perdia-se de novo na vascolejo do riso.

Por isso é que as companheiras a chamavam sem-vergonha e lhe queriam bem. Naqueles bons tempos em que o Afrodísio lhes era ainda desconhecido Antônia fazia-lhes companhia e nessas ocasiões de destem­pero de riso e fala era-lhe tolhida, à loura, por pouco mais a um nada. Para proferir a primeira palavra repetia a primeira articulação uma récua de vezes, e a sílaba sumia-se na catadupa convulsiva carregando o pe-dodo inteiro. Pronunciava palavras que explodiam ao inflar das boche­chas, e delas que eram um gaguejamento. A fisionomia, upada por mo­mentos, vinculava-se como as coxas de um menino gordo, vascolejava, e os olhos vazavam lacrimejo exprimido, o suor acudindo a flux do corpo todo, e as ventas entupidas.

Baba-te, desesperada! gritava-lhe a Fabiana. Já estás com o demo no couro, Antônia!

Ângela sempre teve forças e boas disposições para o serviço, ha­bilidade, e quando queria, ninguém manipulava melhor pitéu. Se, porém, amanhecia trombuda, ai meu Deus que desadoro! Era um dia de juízo. Tudo malfeito, alinhavado, escaldado, sem apuro, sem jeito, por modos que lhe diziam: "Deixa isto; vai-te embora." Olhava então fixamente, abai­xava os luzios, metia-se no canto, julgando-se inutilizada, e quando da­vam fé estava embiocada com a cabeça escondida nos braços, de có­coras, derretendo-se ao sol do despeito.

— Ai gentes! Acudam esta manteiga! Olhem mingau pra Neném! E a dona Fabiana, cantava numa toada popular:

"A gente do Cariri
Tem olhos, não tem pestana;
Lá vem o carro cantando
Cheio de olhos de cana".

Mãe Zefa, a bem dizer, criara Ângela, e Antônia. A loura tinha lá os quindingues dos brancos. Se lhe davam os pruridos maternais, que sói acometer as estéreis, principiava Mãe Zefa a narrar como Angela nasceu, que todo mundo viu logo ali uma neném como não havia de brancos. Bonitita, gordita, vivinha, com umas manchas roxas nas nádegas, com uns bugalhos de gente grande e um choro dengoso de matar. Esmiuçava anedotas da infância da cabrinha, abstendo-se discretamente de falar na mãe dela, que era uma coisa triste, pois fora uma negra ruim, ladra, muito atirada ao mundo, pelo que, embarcou para o sul. Antônia viera, da casa do pai, ainda pequenita, e assim era beijocada por todas as donzelas da vizinhança, tão rechonchuda era; nos frenesis, chegavam mesmo a fazer-lhe judiações. Parece que as moças cada uma delas tinha para si que a Nini era sua, arrancada de suas entranhas pelo milagre de uma con­ceição supositiva, como em vadiação de bonecas.

Naquele dia imediato ao aniversário do Afrodísio, Ângela teve de suportar um par de bofetadas que lhe atirou a senhora: Dissera-lhe um desaforo por cima do ombro.

— Espera que te abaixo o fogão, cabra! Estás com muito gás! E foi-lhe aos beiços, que o sangue espirrou.

Mãe Zefa entrou com as suas funções apadrinhadoras, com o seu valimento perante a sua ex-senhorinha, e a coisa aplacou-se.

— Tome cuidado com essa cabra, Zefa! persurou a senhora. Olhe que um dia eu mando surrá-la no tamarindeiro, de fundo para cima! E há de ser pelo Chicão!

A cabrocha estremeceu de horror e de medo. A preta idosa entrou a sermonear que uma pessoa cativa não é como os forros, uma criatura deve trabalhar para ser boa, ou ao menos fingir, senão adeus carta de alforria. Quem quer pegar galinha não diz chõ. E citava exemplos, entre os quais deslumbrava sempre o seu, uma história enjoada, muito longa, que era ver umas páginas do Fios Sanctorum. Uma santa mártir aquela senhora idosa, de cútis negra, e dotada por uns braços de travesseiros! Para narrar, sentava-se comodamente, na cintura do pilão deitado, passava o xale, e começava por aqui assim:

"Minha filha, quando eu era molequinha, lá nos Inhamuns...”

E entravam peripécias muito honrosas, patéticas, enxameadas de nomes de senhoras moças, de doras, de mães b. ancas, de sinhazinhas, de Seu Comandante Superior Fulano, Seu Vigário Padre Chiquinho, ne­gro velho mestre Antônio, bons invernos, maus verões de um rol de ve­zes, gado morrendo, cavalarianos de Pernambuco, e coisa, e loisa: ven­dida para a Capital, prestes a dar a volta do Mucuripe, escapando por se ter valido aos pés de Dona Sicrana que lhe goderava as aptidões; de­pois, a viver de cozinheira e engomadeira, o mialheiro de barro; é muito no finzinho o dia da alforria, em que não falava sem regar-se de lágrimas de alegria, que eram uns diamantes naquele carvoedo!

Ângela, amuada a um canto, escutava. Assova-se, expelia as últi­mas sombras do choro, assim como quem sacode os cabelos depois de um banho e daí, encaminhava-se para o serviço, impressionada por coloridos projetos, disposta a labutar como a legendária Mãe Zefa. Havia de ser bom. Chegar a velha, toda limpa e livre. Ria instantaneamente, e reperguntava à crioula isto e aquilo de quando ela era Anjinha. A preta lembrava-se então com saudade de quando aquele corpozinho tenro de bode novo, andava de mão em mão os beiços violáceos e a boquita ver­melha como pimenta.

Contudo, a Fabiana era mais mãe para aquela gente "que quando não salta, berra", do que mesmo para a própria filha.

Como certas amásias que se apegam mais ao seu homem, tanto mais ele surra-lhe, a matuta não podia largar aquela amofinação, aquele hábito de danar-se ao menos uma vez por dia com as pessoas de casa, e em compensação, de aparvalhar-se por igual medida. Acontecia mesmo, sem transição sensível, saltar, do furor, à parvoíce; um certo gênero de bondade, esse.

Viera da Prainha, tarde, com a Antônia, onde foi confessar-se com um santo lazarista. Com pouco, atroava na camarinha, o abrir dos gavetões puxados pelos seus braços empoados, e quem a conhecesse tinha-a agora em imagem com o seu afogadilho de seda preta e o seu pente de tarta­ruga, e na mão, enrolado como luva de sapateiro, o rosário de vidro, de crucifixo e verónica de ouro.

Em camisa e saia, abeirou-se da cama, tirou os sapatos, de couro de lustro e fivela, as longas meias pretas, e bradando pela Angela.

Com a porta entreaberta, expunha ao ar, posto no outro joelho, o pé direito, congesto, com os seus calos abugalhados, e repassava, à guisa de serrote, a meia por entre os dedos suados:

— Gentes! Mode coisa que estou com um bicho... proferiu, fitando as carnes do pé.

E chilrou:

— Ângela!

A cabrocha ia cair de novo em graça, depois da rusga do bofetão.

— Ângela! Vem cá minha filha!

Por debaixo de seu dedo grande parecido com uma cabeça de ca­langro, havia realmente um pontículo azulado, numa rodinha lívida.

— Cabra dos trezentos diabos! Olha se o assoalho tem espinhos!

O olho do pulgo, já tapuru, se lhe arregalava cínico na pele aque­cida e vermelha, com um prurido insuportável. A dona repuxava o dedo ofendido, escangotando-o como se faz ao pescoço de uma galinha que se quer sangrar. Pespegava-lhe dedadas acariciadoras de saliva, e co­çava infantilmente.

O marido entrou-lhe pelo quarto:

— Que é isto, Fabiana?

— É um bicho, homem. Vê se mo tiras!

— Ora! Até eu gosto quando eles me entram!... Filha, a gente deve temer é aos bichos que não enxergamos. Tu vens da Igreja?... Eu quero que arranques o bicho é à Ângela e à Antônia!

— Sai daqui — fez a mulher, disfarçando um arrepio de pavor. Já te afiancei que é isso calúnia...

— Calúnia? Aquilo é que são verdadeiros tapurus, minha dona! O tempo aí vem.

— Pões tua alma no inferno.

— A tua deve estar no seguro, pelo que vejo.

— Mas, ó Osório, tu não eras tão falante nem atrevido assim?!

O marido olhou-a, pelos óculos. Teve pena. Amava a mulher, o tra­tante.

— Estás insuportável! Me contrarias assim de pé pra mão, como se eu fosse a pamonha da tua filha que só escuta o que tu dizes! Toma cuidado! Olha que me gabo de não ser boa!

O marido, em atitude joco-séria, apontou-lhe para o pé:

— Senhora, lembrese que está com um bicho!

— Bicho, bicho; repetiu ela com desdém. Bicho vejo que tu és! Hás de lucrar muito com essa cara descabelada!

— O serviço que lhe posso prestar pelo momento, galanteou, é exa­minar esse odorífero extremo da sua torneada perna, e descobrir escru­pulosamente o que há no seu martirizado dedinho.

— Vai-te, homem, que estou em graça de Deus. Não me faças pecar!

— Sim, oh cândida e pura alma confundida com a minha! — pero-raya ele, já na porta. Eu te deixo a sós com o cruciante inseto parasita.

A dona estirou-lhe, com um gesto de despeito, um — vá bugíar­ — que acompanhou o velho juiz pacato e sorridente, pelo corredor afora.

Com pouco, a porta afastou-se, e Ângela assomou, com o seu vestidinho de riscado e o avental escuro. Osório veio atrás, com ares de noivo, lépido e dormente.

Angela agachou-se, desenfiou um alfinete, e aplicou atentamente os seus belos olhos castanhos nos dedos secretores do chulé da ilustre senhora. Com a mão esquerda intumescia a residência do pulgo chucha-dor, espremendo a carne.

Daí, tão airosamente esgarafunchou, pachorrenta e amorável, com uma aplicação de míope, que, ao cabo de instantes, se retesando sobre os joelhos dobrados debaixo do colchão dos quadris, patentou aos quatro ângulos da camarinha, na ponta daquele alfinete que tantas vezes mor­dera o pecíolo de flores, um carocinho alvo, invisível quase:

— Eis aqui o buxo! — bradou.

Ali estava o tormento da matrona, dado à luz, morto, como a cabeça do gigante na ponta do alfanje do menino Davi. No dedo ficara apenas um buraquinho muito bem feito. Angela tirou cerume do ouvido com a curva de uma grampa e entupiu a ex-residência do parasita.

A senhora chupou um suspiro de satisfação, mas não se atrevendo a enfiar imediatamente o pé na chinela, saiu pulando num pé só, a al­cançar o cabide para tirar a roupa de casa. Acenou à Ângela que se re­tirasse, e disse que queria à noite lavar os pés com cozimento de malva, por mó de umas coceiras.

O marido, em paletozinho de seda e calça parda, foi assentar na mala de pregaria.

Sempre que, em certas disposições de espírito, presenciava em meia nudez o corpo da mulher, subia-lhe ao nariz o extinto aroma e a sepultada sensualidade de dos bons tempos... Ela disse-lhe:

— Faça o favor de sair, senhor desembargador.

Ele não respondeu. Olhava-a.

— Como vai o buraco do bicho? — fez ele, com indiferença.

— Coçando.

— Há de sarar. Não vá esfregar o pé que apostema.

— Não preciso de lições, agradeço os seus cuidados.

— Realmente, para essa espécie de parasita, é dispensável a inter­venção da medicina. Há, porém, uma outra que, saído o bicho, não há cera de ouvido, nem de moral, nem de religião...

— Há o dinheiro, senhor doutor! Há o dinheiro, que sara a honra, senhor desembargador! arremeteu a sertaneja indignada.

— Sim, o dinheiro que salva as almas à míngua de virtudes.

— E que faz os burros botarem cabrestos nos doutores! Há o di­nheiro, senhor doutor, que faz os bacharéis pobres casarem com as ma­tutas ricas, desmioladas!

— Safa! que eu não esperava por este momento lúcido, minha se­nhora.

— Assim é que eu entendo — findou ela, encolhendo os ombros, com um ar de fereza insuportável.

Ele torceu a cara e escarrou detrás do baú. Levantou-se:

— Ponto final. Vossa Excelência pode, quer e manda. Sabe, porém, em quem não manda? Na minha filha. Simplesmente isto.

— Veremos, fez ela enfiando a saia. Veremos.

Depois de uma pausa:

— Deus me perdoe, meu Deus, já nem me lembrava que vou co­mungar amanhã! Credo! Padre nosso que estais no céu, santificado seja o vosso nome...

No oratório uma fitinha de sol, caída no meio das bentas imagens, traspassava resplendores ricamente cravejados, e essa luz, descendo por um biquinho de telha arrebitada, imergia ali supersticiosamente, pelos vi­dros quietos. Zimbório e colunas estavam de um negro empoeirado ao de leve na cocoruta, onde, como uma ventoinha de torre, campeava um anjo de latão empunhando uma estrela radiosa.

Havia ao pé do criado-mudo um trinque desocupado, servindo ape­nas para dependurar a azelha de uma sacola de americano, parecida com uma bolsa de confraria, abarrotando roupa suja.

Entre as estampas da parede, coloridas, uma faixa de sol, da telha de vidro, banhava a Santa Bárbara, com a palma do martírio semelhante a um olho de palmeira; o São Roque, de cabeça a tiracolo, apontando para um cão a lamber-lhe as chagas; e a Santa Rosa de Lima, ao pé da roda de dentes que a serrou em vida. Mais adiante Santa Cecília, tocando Órgão; Santa Isabel, rainha, com o avental cheio de biscoitos, que vira­vam em flores ante maridos sovinas; Santa Luzia, com um par de olhos no prato e outro no rosto; São Manuel, advogado da paciência, nu, atado a uma árvore, e varado de setas como seu vizinho São Sebastião. Um mártir virava sobre uma grelha em brasa. Num feixe de claridade celeste, entregava-se às delícias do amor divino a freira Teresa, absorta, enlevada, extática e feliz.

Fabiana passeou um olhar por aquilo tudo. Compenetrou-se de estar em graça de Deus, repetiu o ato de contrição ajoelhada ante a cômoda.

"Senhor meu Jesus Cristo, Deus e homem verdadeiro, por serdes Vós quem sois, tão bom e digno de ser amado...

Abriu, depois, as portas, adotando um arzinho meditativo. O dia, in­vadindo o aposento, desfez a fantasmagoria das réstias no oratório, e as estampas da parede expunham-se agora no simples qualificativo de litografia de carregação metidas em caixilhos envernizados, com vidraça por diante.

Fabiana saiu pensando se não haveria um santo advogado para o mal de bichos, visto como os há para de garganta, o de madre, o de olhos, espinhela caída, quebranto etc. etc.

Há tanta gente cambada!

Afrodísio, à janela do seu mirante, às 11 horas de um dia ardente e ventilado.

O céu deliciosamente azul, e mais um azul extasiante, pairando por cima da cidade, querendo abocanhá-la. Muito ao longe, recortava-se no ocidente, um grupo de pequenas montanhas, sob os vapores informes. Debaixo da janela, espalhava-se pelas telhas um punhado de flores murchas.

Ventava pouco. Ardia o sol ao contacto dos seres. Do meio de um quarteirão subia o corpo de um castanheiro antigo, e aquela enorme fronde refrigerante, para onde convergiam os euros, aquele palácio vegetal, be­bia os olhos saciados do Afrodísio. Que boa vida a das aves que volitam, sem haveres, sem teres, sem devedores nem dívidas, sem casa, sem roupa, a agitar-se no azul e no verde livre! Mas o chumbo e a gaiola? Boa vida seria não viver! Não! replicava o homem a si mesmo. Em um uni­verso onde há uma rapariga do saber da Antônia, não há sofrimento que se não suporte, não há dor, não há gemido.

As edificações levantavam a fronte umas por entre as outras, ani­nhando uma população de milhares de almas, de cuja existência subia o ruído apenas.

Do acervo de telhados, avistava-se, nalguns pontos, a arborização das praças. Transeuntes amesquinhados com a distância. Numa para­gem, dentre o vermelho da coberta abrolhava um mirante caiadinho. Em trechos de fachada bordavam-se gradis de varandas. Se devassava, no quarteirão, ao poeiramento solar, uma zona de quintais sulcada de muros paralelos aqui e ali ocultos pela vegetação, num horizonte de tetos de ásperas angulosidades e reentrâncias. A luz aplicava-se como uma ra­pariga pechosa em não perder um pontozinho a sombrear ou a iluminar, e o embeiçamento das telhas era uma série indefinida e sucessiva de pla­nos inclinados e confusos pelo conjunto, embicadinhos. Ora pareciam ca­nutilhos, ora umas telas encrespadas, frisadinhas, onde se poderia bor­dar gigantescamente com o retrós da xantofila e da clorofila das árvores, com os fios de ouro do sol, com a seda escura das sombras, e com os salpicos da plumagem dos pássaros, e debruar com o arminho das nu­vens, e enfeitar assim o manto azul da cidade.

Daí, o Visconde imaginava-se no silêncio da sala de visitas, em cujo âmbito seria justiça que Antônia viesse a dominar. Encamisada, pelas ho­ras de luar, a vidraçaria aberta, em alvíssimas rendas perpassadas de fitinhas cor-de-rosa, como seria romântico. Ele devia tê-la como esposa, ali, onde as cortinas transpareciam levemente arregaçadas, meio velando os pudores do recinto, presilhadas em maçanetas de doirado fusco. Os elegantes consolos negros, sobre o mármore das lápides em branco, se­riam uns túmulos insaciáveis a encher de cálidas recordações. Antônia rolaria nos tapetes onde correm árabes a cavalo perseguindo corças; veria o invisível arfar dos ramalhetes nos jarros cor de creme, ouvindo o tlim­tlim dos pingentes tocados de luar e de brisa no grosso candelabro que desce dos florões do estuque. De dia, havia de arrastar o longo vestido branco, fazendo sala, e das paredes forradinhas de verde com colunas de trigo dourado, e dos grandes espelhos beirados de caixilhos de talha, que sorriem de luz, e da vidraria de cristal, e de tudo, manaria um fino sabor de nobreza. Nos devassamentos de sol matutino, como um gato mimoso de nariguinho de pitanga e lacinho ao pescoço prendendo um guizo, ela deitaria nas alfombras empalidecidas. Ostentaria valor inesti­mável, fronteiro ao dela, o retrato que ora inda existia entre as duas ja­nelas; despenhado para o espaço, habitando numa moldura vistosa, em grande uniforme de galo pimpão de crista alevantada, oferecido pelos ofi­ciais da guarda nacional ao Ilustríssimo Senhor Coronel Comandante Su­perior, naquele tempo Afrodísio Pimenta Carne-Viva, pelos seus mereci­mentos e amor à pátria. As pupilas da pintura, muito abugalhadas ha­viam de estar pregadinhas constantemente, nas do retrato da Antônia. E a esposa, tarde viria dar bons dias ao sol, e cedo bateria as portas e almejava boa noite às estrelas.

Em uma de suas cartas indagava o Centu se já estava concluído o Passeio Público, e lastimava de que a Mariinha lhe escrevesse com uma sovinagem de agiota. A morena sorriu com isso, pois um tal queixume era pródromo de uro seguro triunfo. Papocou-Ihe uma cartapácio que era ver uma brochura, com o destino calculado de revelar-se pessoa engra­çada e de chiste. Para documento de que esse rasgo de expansibilidade não era extemporão nem leviano, tinha para si que as palavras do ma-cebo cancionavam assaz a independência e a dignidade do seu afeto de mulher de siso. Empregou expressões notoriamente simplórias e ingênuas, e de propósito andou a despropositar.

Lembrava-se da Ângela? Aquela cabrinha airosa e espevitada que era com a Antônia o ai Jesus! da Mamãe? Pois pegou a ficar ruim, mal ouvida, e pediu para pagar semana, até que uma tarde, muito pimpona e bem vestida, veio com dinheiro para se forrar. Isso há cerca de seis meses. Dera à luz na semana passada, em uns cafundós do Beco das Trincheiras, donde se dizem coisas que moça não pode ouvir. Mamãe estava arrependida de a ter alforriado, porque ficou sem a cria.

O tal de Afrodísio pouco ia lá em casa, apesar de que mamãe che­gara a pontos de me sacudir nas ventas que eu casava com ele e por força ou por vontade.

Eu tive uma raiva! Ora você já não viu? Ela obriga a ninguém lá o quê! Porém resolveu não dar cavaco. É como se não fosse comigo. Devia responder como a Antônia, que também queriam casar à força com o João Batista.

— Diabo é quem quer!

Daí a Mariinha fartou-se. Mas não disse o que desejava. Entretanto, o primo veio ao Ceará antes do que se pensava. Arribou ali pelo meado de novembro, achacado de beribéri. Um gáudio para a Dorzinha! Mas a princípio, quando o pai mostrou-lhe o telegrama do Pará, em que o rapaz dizia Sigo doente Fortaleza, ela sentiu na alma um profundo gemido. Imaginava-o morto nos seus braços, e ela, como a Senhora da Soledade, Riste, chorosa, inconsolável, desejava realmente sete espadas que a transpassassem para o outro mundo. Sonhou que morriam ambos, e iam para a mesma sepultura. Era daquela natureza o sonhar-se feliz, mesmo na maior desgraça.

Mas qual! O Centu desembarcou andando, apenas arrimado à ben­gala. Trazia um terno de casimira cor de café, paletó curto, e chapéu de palhinha. Parecia um caixeiro de mercearia. Caminhando devagar, firman­do o bastão a cada passada, as pernas muito moles, bambeando ao mudá-las, e envergando o tronco para trás ao assentar o pé, era mesmo de provocar o riso. Mas a Mariinha, que estava na janela, quando ele apontou na esquina, teve um ímpeto de dor. Que pena! Como ele foi, e como ele vem!

— Eu bem dizia! Vê-lo assim exposto aos olhares indiscretos, com uma moléstia que faz o andar tão ridículo.

As janelas eram altas, e ele de longe conheceu a casa pela frente de azulejo, e pelos dragões de cobre da cornija. Abriu um sorriso quando sentiu o olhar da Mariinha, e achou logo um encanto extraordinário num pedaço de braço nu que ela debruçava na janela. E que mãos, que pa­reciam entrar-lhe por dentro e remexer na bagagem do peito, examinando, pesquisando tudo, a ver se havia algum afeto estranho!

Parecia não fazer caso de si, e era toda olhos para ele. Notou-lhe bem a vista úmida de comoção. Passados mais de dois anos, sem esperar, o acaso de uma moléstia! Quando enfrentou com a janela, a me­nina ergueu-se na carreira para esperá-lo na porta da sala. Não se con­teve. Ao subir os três degraus da entrada, desceu e veio ajudá-lo. Pegou-o pelo braço, apertando.

— Que Cireneu que é você, Mariinha!

— Podes dizer, concluiu o Osório, que o ajudava pelo outro lado, tendo-lhe tomado a bengala. Disto é que eles se fazem. O melhor Cireneu para o nosso Calvário é uma boa mulher.

Mariinha corou.

Na sala, o doente sentou-se, tomando fôlego. Deu um assobio de satisfação, e um ar de bem-estar:

— Agora sim... isto é outra coisa... Caramba, estou cansadíssimo.

— Toma um cálice de vinho?

— Obrigado, sorriu o mancebo, com a cabeça reclinada no espaldar da espreguiçadeira.

— Faz favor de tomar o vinho! repetiu a menina.

— Coragem, menino, isso não é nada! animava o Osório.

— Ora, fez o doente enfadado e cansado. Eu bem sei. E mesmo... agora já posso morrer!

— Não! assustou-se a Maninha. Agora é que você há de viver direito!

— Quem mo garante?

Ela respondeu num olhar.

Seguiu-se entre os dois uma fase de combate. Encontrando-se de novo, expandiram-se mais familiarmente, e ardentemente, e cada qualestava curioso, vexado, excogitando por meios indiretos, por ver se o ou-o era ainda aquele dantes, se não sobreviera alguma erva daninha, se a afeição revigorou na saudade... e à medida que a dúvida ia-se desfa­zendo, a certeza apertava as duas almas num abraço ideal e infinito.

Mas em qualquer atitude em que a menina se pusesse agora, estava sempre gravada no cérebro do moço a primeira, o modo como ela estava à janela. Pintara-se imediatamente, na imaginativa do engenheiro, uma tela de altíssimo preço, as cores inextinguíveis, eternas como sói parecer o sentimento. Ao rosto moreno, de uma luz como viram os Bu­nyan e as Teresa de Jesus, nos geniais arroubos místicos de amor divino e de glória celeste, rimava a polpa esculpida dos braços de manga curta, e o primor das mãos, mãos que falam, com unhas que provocavam beijo. Não era preciso mais. Para entrançar de uma feita os fios esparsos de um afeto, e torná-los uno, e sagrar o amor em paixão, bastava aquele caráter de aparição, simplesmente, e a doença em breve desaparecia da carne para uma outra aferrar-se no espírito.

— Que vida que eu sinto na sua presença, Mariinha!

A menina, sentada no sofá, brincando com as bolotas da almofada, perguntava-lhe traços gerais da viagem, e do território amazônico. Os dias de enjôo, o tratamento de bordo, com um disfarce de admirável sensatez. Ficou falante, como o não era senão raramente. A alegria assoberbava em idéias e em verbosidade.

— Enfim, o que me trouxe de lá? inquiriu docemente, com uma especiosa melodia de canto de ave. Muita coisa, que eu mesmo nem sei. São de nomes todos indígenas... amanhã. Tenho um vocabulário, que organizei, com as explicações que pude colher.

— Trouxe alguma coisa do que levou?

Ele esteve em não compreender.

— Já sei que ficou por lá...

Com a surpresa de ter entendido, subitamente ele bradou:

— Trouxe, trouxe. Pudera não! Tal como foi.

— Direitinho?

— Direitinhozinho.

— Queira Deus!

O pai entrava sempre no cavaco, se havia brecha para uma sentença.

Veio um moleque, tirou as botinas ao doente, e mudou-lhe as meias que estavam úmidas da jangada; ao passo que a Maninha acordava o piano, aquele saudoso piano dos primeiros tempos do enlevo.

Virou-se, depois de um longo trecho, para o primo, que sonhava com os olhos no forro:

— Sabe? diz ela argentinamente, batendo nos ombros do piano, este era o meu confidente. Misturadas com as frases da música ele ouvia coi­sas...

Mal não acabava a palavra, a donzela corria a mão novamente pelo teclado. Havia propositalmente estudado um repertório com a perfeição que era acessível, para exibir à chegada do primo. Peças que, lá no seu ver, diziam o que ela não podia nem sabia, que apenas sentia confusa mas intensamente.

— Gostou deste pedaço?

— Mas muito! É pena que eu não entenda dessa arte, nem conheça os autores.

— Isso agora é outra coisa. Eu quero é assim mesmo. O meu pro­fessor, Mr. Benoit, diz-me sempre: É melhor a senhora tocar um pequeno número de peças, boas e bem, do que pedantear em conhecer, tocar, e discorrer sobre muitos autores, que, a falar franco...

— Não deve ser tão fácil...

Pauca magna... ia sentenciando o Osório.

Quando a Fabiana chegou, ali pelas sete da noite, com a Antônia, do mês das almas, que se fazia no Santo Cruzeiro, tendo saído de casa antes do jantar e andando não sei por onde, ficou desapontada por ver o sobrinho instalado em um quarto, comunicando com o gabinete, e mais o Osório, que por esse modo abandonava a câmara nupcial. Teve ímpe­tos de perguntar se a sua casa era rancho de comboeiro ou de paruara. Se o senhor seu marido estava autorizado a meter em casa um rapaz solteiro, cujos costumes não eram conhecidos, que andou por esses mun­dos de meu Deus, com toda casta de gente. Se...

A Mariinha, porém, fez um jogo diplomático e fino:

— Mamãe, o primo Centu, sabe? Coitadinho, teve um ataque!... aqui em casa... Trouxe para o Visconde uma porção de presentes! das pri­meiras pessoas de Manaus! Mamãe sabe que o dever de hospitalidade... O papai, pegou, e disse a ele: Menino, fique aqui, ao menos por hoje...

— Pobre rapaz! fez a Fabiana comovida. Fizeste bem, filha. Ele jan­tou? E o que é que ele trouxe para o Visconde?

— Mamãe, ele jantou, mas coitado...

— Deitou fora?

— Tudo! Já veio o doutor. Disse que foi do abalo... Mas não há pe­rigo. Diz que o beribéri faz isso mesmo.

— Pois sim. Quando eu acabar de mudar o vestido, vou vê-lo. Previ­ne-o, hein.

— Papai está lá. Estão lendo as folhas de hoje.

— Que trazia ele para o Visconde! repetia a matrona.

O Centu experimentara um grande alívio estirando-se na rede, en­fronhado num chambre de chita adamascada. Não devia estar com as pernas dependuradas. A fisionomia, chupada, mostrava uma placidez fe­liz; a barba crescida esculpia-lhe uns tons cadavéricos. A cabeleira, em melenas para as frontes e sombreando por trás das orelhas, dava idéia de certos retratos de poetas. Parecia um alucinado. Entre os supercílios ne­gros, como a maré quando começa a picar, nascia verticalmente o indício de uma ruga que espraiava, entretanto, pelo moreno da testa, um ar de respeito e viril.

A Fabiana entrou com um ar taciturno; e logo que foi pondo-lhe os olhos se lhe representou perfeitamente nele o cunho de família, esse tim­bre, essa afinação, para o qual nem sempre se tem ouvido; essa espécie de segredo que desaparece na indiscrição das formas e na diversidade das educações, das convivências, dos meios de vida, dos climas e dos alimentos. Um traço, um vezo no olhar, uma particularidade vocal, uma especial disposição das juntas, ou de certos músculos, um chiste, o mor das vezes, em condições como aquela, dificilmente percebível como a primeira estrela que ao pôr do sol aparece e perdese no lato azul.

Fisgaram-se as simpatias da carta. Justamente o contrário dera-se cem a Maria das Dores, que apreendera não o primo, sim o homem, de um salto, com as oposições e semelhanças. O mal e o estudo haviam carcomido ao Centu uma boa parte do superficial, do adiposo, do adqui­rido; e a sua natureza vinha a lume, como o solo das aguadas, na eva­poração de dezembro. Firmou-se com os cotovelos na rede, e sentou-se para tomar benção a tia Fabiana, que levou-lhe aos lábios o dorso da destra rechonchuda e aromatizada com água da Colônia. O Osório parou a leitura do jornal, que era de vante a ré uma verrina contra o seu amigo Afrodísio, fazendo rir ou indignar. Maninha gostava de estar ouvindo, por ser outra quem era, apesar da visível reprovação do primo àquela degra­dação intelectual da sua gleba.

Com um gesto maternal, a Fabiana, sentada num baú, interrogava ao sobrinho sobre o seu mal e sobre a sua vida, sobre o que ele trouxe para o Visconde, e acabou penalizada pelos sofrimentos dele; entusias­mada pela sua altivez nativa, e pelo amor arraigado que ele demonstrava para o que fosse útil e bom. Mas não deu a entender. Receosa, porém, das idéias livres do primo, a Maria das Dores adiantou-se a mentir à mãe, na presença deles, obrigado a confirmar que se havia confessado e comungado em Manaus, que não perdia missa toda vez que a celebravam onde lhe fosse possível alcançar. Aumentou que o moço andara duas lé­guas em canoa, rio acima, para ouvir a missa de um missionário boliviano em uma povoação do Rio Madeira.

O pai, de mão no queixo, deixava cair o jornal, e encarava o cinismo daquela alma incapaz de proferir uma inverdade e que assim descara­damente engendrava mentiras; e com uns olhos compridos e seguros na filha, exclamava consigo mesmo:

— Que artimanhas, que veneno de serpente, não trazem estas pom­binhas no biquinho de coral!

Mas coitadas, elas entendem que o seu grande interesse é isso, é

o amor. A Fabiana levou longe a parlapatice com o rapaz. Que histórias não contou ele! Deu notícias de muitos conhecidos dela, pessoas que ha­viam tido com quê, e hoje em dia andavam por aqueles mundos como seringueiros, uns enriquecendo, outros se desgraçando a mais. Por fim, vieram a topar em assuntos de familia, e então a matrona tomou a palavra para desfiar as intérminas proezas dos seus.

O avô dela, compadre da rainha, por procuração. Um teu avô, preso para o Limoeiro, em Lisboa, no tempo das milícias. E amontava dados de nobreza.

Mariinha julgava aquele o dia mais feliz da sua vida. Não sabia o que fazer.

— Quanto mais se vive, mais se aprende, repetia-lhe o pai acen­dendo o gás do gabinete. O rancor de tua mãe pelo Vicente é porque eles nunca estiveram assim entrelaçando os espíritos peito a peito. Praza a Deus que aquilo não seja fogo de palha.

A gravidade marcial, fazia-o, com efeito, antipático; hoje viam-no descascado. Nem todos tem o dom de ser logo impressionados pelo sim­ples efeito da presença.

O Centu não ceou, porque pegou no sono, e o Osório não consentiu acordarem-no. Quando, porém, ao alvorecer, o tio se ergueu da rede, e enfiou os pés nas chinelas de trança, ele já estava, embrulhado na fres­cura dos linhos, com a vista grelada para o dia que olhava, pelos interstícios do telhado.

O médico ordenara mesmo que o doente ficasse num quarto de te­lha vã, conquanto o Osório, também entendido em Medicina, se opusesse; mas o médico era o responsável, e o desembargador, submetendo-se, proferia:

— Vejo que isso de medicina é como as senhoras mulheres: há de toda casta.

O Centu acordara com a idéia vaga, se estava ainda a bordo, ou em terra.

A paisagem amazônica, alfombrada de rios; as florestas pantano­sas e silentes, o vai-vem dos aventureiros com a sensibilidade embotada pela gana; as barracas dos seringueiros cearenses, sempre com um roçadinho ao lado, com um traço de cultura, com um indício de gente; a flora e a fauna inclassificadas; as belíssimas parasitas, e os gigantes ve­getais; a abundância de caça e de pesca; o ócio e o mal habitando o mais esplêndido eldorado; depois o Pará, com o seu afã mercantil, o seu pó vermelho, e a sua portuguesada e caboclada e o seu forasteirismo; de­pois o.oceano; o Maranhão, tradicional e rotineiro e velho e culto; e mais oceano; e enfim, o moreno colo das dunas aparecendo no azul, como um pedaço de cútis numa abertura desabotoada, e a cidade natal, risonha, clara, cheia de sol e de amor; e na janela, quando ele dobrava a esquina da rua, a Mariinha, com a pompa de seus braços e a sinceridade e o amor seus olhos, na sua fala, nos seus lábios, no menor gesto... Palavra como ele não queria levantar da rede, para não espantar aquela bruma crepuscular de sonhos verdadeiros.

Teve uma discusão com o tio, se devia tomar banho frio ou não. O tio que não, ele que sim.

— Pelo seguro não tome.

— Eu sei que não faz mal. Agora estão empregando...

— Sujo não mata ninguém. Tome banho morno.

— Mas eu apeteço é frio.

— Pois não toma... oh Mariinha!

A menina já estava na sala, a ler. Acordara, naquele dia, às cinco horas, vestira-se ao espelho, deitou essência nas mãos e no rosto, pó-de-arroz, abrira as janelas, e recebeu os bons dias da primeira claridade do sol, repassando as cartas do primo, ainda as de Baturité, a balançar-se donairosa na cadeira. Agora é que aquelas expressões valiam deveras. Como era bom o ter sofrido tanto!

Quase quatro anos, desde que o Centu chegara do Rio. O pai repetia:

— Oh Mariinha!

Ela penetrou no gabinete. Estavam os dois de pé, o Centu com a toalha de banho ao ombro.

— Achas que o teu primo deve tomar banho frio?

Ela, depois de tomar-lhe a benção, apertou indiferentemente a mão ao mancebo, voltando para o pai:

— Não senhor. Depois ele tossiu de noite.

— É uma ligeira bronquite, desculpou-se o rapaz.

— Embora. E encarando-o fixamente: Não deve tomar banho frio!

— Está bem, fez o moço, com uma cariciosa resignação de leão domado.

Fabiana fez preparar a água morna, em uma grande bacia de arame, no seu quarto. Pôs uma tábua sobre o tijolo para botar os pés, e despejou água-de-colônia, na água, e depôs na cadeira um sabonete do mais caro.

Mais tarde o barbeiro, a escambou o hóspede. E então o Centu fi­cou apresentável, com o cabelo curto, o rosto liso disfarçando a magreza. Passou o dia de blusa parda, com os canhões e gola azul, e calça branca. Em vez de boné, punha o chapéu de palha, quando, à tarde, foram a espairecer no quintal.

Antônia, a bem dizer, não existia agora naquela casa. la ficando ronceira, e alguma coisa esquecida.

Todas as noites vinham o Afrodísio, e outros a prosear com o hóspede, cujo nome começava a ser pronunciado nas rodas políticas, à vista do favor que o governo lhe dispensava. Uma noite, quando a convalescença o permitia já, dançou-se algumas quadrilhas e polcas— pela pri­meira vez em casa da Fabiana — com seis pares, porque estavam aí umas vizinhas, curiosas por travar-se com o doutor engenheiro.

Este era uma rocha para todas. Tocou, ao piano, um rapaz, antigo companheiro de casa do Centu.

Não foi sem visível tremor que o oficial recebeu no seu braço o de Maria das Dores, que foi o par da segunda.

Ela parecia estar dizendo — Agora sim!

Os seios dela chofravam positivamente na carne dele, com uma do­çura e uma intimidade confiante; e, de lado, ela, mais baixa que ele, deitava-lhe um constante olhar risonho e úmido. Foi quando conversaram direito.

— Eu queria poder magnetizá-lo!

Sério e melancólico, o Centu respondeu:

— Mais ainda?

— Sim, eu queria vê-lo magnetizado, que era para saber da verdade real! Ler o seu caráter em esqueleto.

— Como então? — fez o moço com ar ofendido.

— Queria sim.

As últimas duas palavras ela as proferiu com ardor desusado e in­fantil. Entrou a quadrilha. Aristocraticamente, ele pegou-lhe na mão, em arco, e avançaram até o meio; recuaram, e tornaram a avançar. Queria evitar o galope. Fizeram balancez, e não houve jeito; galopavam todos, inclusive o desembargador que era o vis-à-vis. Teve de suportar aquele braço ideal oprimindo-lhe o ombro, com uma força e um vigor... Não resistiu, porém. Parecia que o beribéri lhe aparecia de novo.

Finda a primeira parte, sentaram-se. Estava incapaz de dizer uma palavra. Apreendeu que até a bronquite se repetia.

Ignorava, até ali, que a matéria, a carne, possuísse aquele filtro, aquele domínio, todo estranho, que o encandeava. Não supunha que a aproximação dele com a prima, assim tão conjunta, influísse até no cé­rebro, e no organismo todo. Virou-se para a menina e desculpou-se.

— A agitação ainda não me faz bem, Maria das Dores.

— Pois dancemos devagar... O que é que você está sentindo?

— Positivamente — fez o rapaz apalpando o próprio corpo, não estou sentindo nada.

— E então?

— Estou-me alienando, me sinto estúpido...

— Muito obrigada, muito obrigada, senhor, exclamou a morena, ba­lançando com a cabeça verticalmente.

— Por quê?

— Ficou assim, é porque... estava a dançar comigo, já sei, já...

— Ora: isto só se responde com uma gargalhada. É pena que não esteja aqui o Seu Lucas, que eu mandava dar uma por mim.

— Por isso não, eu empresto uma. Quer?

— Pois me empreste lá.

— Isso queria você!... Fique sabendo que estou zangada. Ficamos mal.

E acabada a quadrilha não falaram mais um com o outro.

Ficar mal! Em um namoro tem-se os doces efeitos de uma ausên­cia. Maria das Dores, ficara com a sensibilidade de uns olhos que estão sempre a visionar, uns olhos para os quais uma centelha toma o brilho de um raio; e com susceptibilidades de uns ouvidos para os quais um mosquito zoa como uma trombeta. Bem que o Vicente não a magoasse, Maria entendeu que sim, e torceu o rosto. Contudo, arrependeu-se de negar-lhe a palavra, quando o moço perguntou, humildemente, se estava de feito zangada. Não podia voltar atrás. Ela não podia expelir aquele hu­mor, pois era uma coisa alheia à vontade, domínio da carne. Como a folha do maricá, quando a noite desce, assim murchou a alegria do mancebo. Desgraçada lembrança de dançar-se naquela noite! Como iria dor­mir, ele para quem a morena já fazia parte dos órgãos essenciais da vida?!

Já pelas onze horas tentou as pazes novamente, pedindo-lhe que tocasse um trecho do Guarani. Não se atrevendo ele a falar de frente, ela envesgou-lhe um olhar malcriado e estendeu-lhe a pontinha da Un-gua, muito entre os dois lábios.

— Desaforo! — rosnou ele.

Caminhou para a janela, a desafogar-se com o ar frio.

Debruçado para a calçada deserta, desferia em devaneios cevan­do-se na sua paixão. Ora, ali estava uma coisa que entendem por desaforo, mas que ele tinha na verdade pelo gesto mais adorável do mundo! A lingüinha de fora!... E descia às demonstrações, como em uma saba­tina escrita de matemática.

Espairecia para o longo dá rua, onde a iluminação ardia solitária, diante dos beirais e das cornijas desaparecidos na terra.

Realmente depois dos mistérios de um olhar, nem o riso, que malda; nem o suspiro, que é piegas; nem o muxoxo, que é chulo; nem o pranto, ue finge; nem os arrufos, que magoam; nem os acenos, que matos têm olhos; nem um beliscão; nem um beijo cavalheiroso e fidalgo nas costas da mãozinha... só um deitar de linguazinha por entre os beiços cálidos de amor! Que arrebite, que chiste, que melodia não cantou aquela rubra ontinha de língua que ela quisera morder à larga!

Estava disposto a tomar a língua como entidade, para a estética doseu uso; a entregar esse órgão rubicundo aos carinhos da Ciência e do Belo.

Entrou a apostrafar, pregando às estrelas, surdo aos rumores da sala:

— Não tenhas sido compreendida, veio da liberdade feminina; tu que desoprimes, imediato auxiliar das lágrimas! A tua forma é a da chama, a tua cor é a das partes mais sensíveis do ser, a tua morada inacessível! És tu que proferes aquilo que faz o nosso ímã — a palavra! Sem ti, que seria o beijo? Estás fora do regime do toucador, a moda não te estraga. Em ti reflete a saúde as suas intermitências És a aurora do coração. E o Mestre (referia-se a Jesus Cristo) escolheu a tua forma para infundir a ciência nos Apóstolos...

Virou-se. Estava a seu lado o desembargador:

— Que temos? fez este mansamente, com a sua fala de orador.

— Estava aqui a descansar... Receei sobrevir a tosse...

— Qual! Isto está que nem um tronco de aroeira!

A Fabiana aproxima-se também. Perguntou se já eram horas de des­cansar; não sacrificasse a convalescença. O sobrinho, que não, poderia permanecer acordado a noite inteira; mesmo não tinha sono absoluta­mente; se fosse deitar não pregaria olho.

— Então, batia-lhe o velho no ombro, sigamos a um pouco de cerveja. E enfiaram para o interior.

Diante da bass, provocado pela boa prosa do tio afim, sob a influên­cia do recinto, quase a sós, naquele tabernáculo de família, para ele de um raro conforto, nem assim, o Vicente estava inconversável. O pobre não sabia disfarçar; aprendera muito, mas do coração humano, e da mu­lher principalmente, não pescava um triz. Para isso, era um ingênuo. Feito na forma do ideal, pelo estudo, ai dele se o acometesse uma realidade má! O amor o atordoava. Era um recruta. Qualquer mina, ou qualquer foguetão, o desmoralizava.

Viraram o primeiro copo, em uma parolice penosa. Maria das Dores passou por eles, para o alpendre, chamando pela Antônia, e nem olhou. Porém, com o rabo do olho, viu-o perfeitamente, e notou-lhe a fisionomia muito caída. O pai chamou, e cochichou-Ihe:

— Vê o que tem o rapaz.

Ela respondeu alto:

— Ora! É denguice.

E seguiu apressadamente para a sala. Daí a pouco, entretanto, Ma­ria voltou de novo à sala de jantar, e desta vez abriu o guarda-louça demorando-se a procurar, certamente, o que não guardara. Aquilo era instintivo. De repente, rolou em cima uma taça de porcelana, e os peda­cinhos espalharam-se no tijolo. A Fabiana acudiu imediatamente lá de dentro, como bom rondante ao apito, ao baque demorado e sonoro:

— Que foi isso, menina?

— Não foi nada... Foi o gato, minha tia, acudiu de lá o Centu.

— Que ladrão! exclamou a matrona. Eu bem que lhe digo, Seu Osó­rio, que é preciso acabar com essa gatarrada da vizinhança. Não se agüenta mais, é um desaforo! Lá se vai mais uma xícara, está vendo, nhor?

— Deixa irem todas, Fabiana, é preciso proteger aos louceiros. Também! Homem; que esta!

Mariinha roçou por trás do Centu, e repreendeu-o ao ouvido:

— Não lhe pedi favores, já ouviu?

O moço foi arrebatado ao sétimo céu por aquele sopro que lhe acariciara nas ouças. Que coisa! Que afago! E como os beiços dela imprimi­ram-se-lhe fortemente assim, no pavilhão da sua orelha mortal!

Daí, foi brotando a fonte da alegria, e o rapaz se transfigurou. Espeitou, expandiu-se, o que o tio botava para a virtude da cerveja. Em ar de uma aquarela catita, mimosita, colorida finamente, que alcance as sutilezas e transcendências de percepção, e apanhe as radicelas do sen­timento e da sensação pelo corpo adentro, e repuxe, e arranque o gozo, pregava-se-lhe diante ainda o gesto da Maninha deitando-lhe a língua:

— Vá bugiar. Vá as favas...

Brejeirice e cavilação. Ela estendia-lhe o mento, cãozinho a farejar, e abrindo um pouco os olhos a um presto arregaçar das sobrancelhas, os beiços fastavam, despontavam uns dentinhos, a polpa rubicunda e viva estirava-se para fora, num relâmpago.

Apresentava-se o cortejo das idéias. O purpurino molusco, de um sangüíneo de papoula ao sol, se recolhia à concha bucal. Os lábios ti­nham ligeiro congestionamento, com a momice rápida. A vista faiscou. Vibrou no ar mais uma seta. Aquele músculo sanguinolento, glutinoso e brando, retesara como um arco. Entretanto, melhor cola não existia para pregar duas almas. É fender a conjuntura, o pudor castiço do beijo. Há nisso um sabor de sangue. Amor tem o seu quanto de fera. O pulmão 'recebendo o hálito de outro, nesse envenenamento vai uma ventura. Uma saliva derreter-se na outra! Amor tem o seu quê de criancinha em alei­tamento...

O Vicente se achava, a bem dizer, curado. Principiavam as chuvas de janeiro. la entrar um ano de fartura.

O oficial apresentou-se, pronto para o serviço, à Presidência da Província, que o mandou adir ao Batalhão; e no mesmo dia, retirando-se da casa do tio, apesar das instâncias deste e da mulher, foi habitar a sua antiga república da Feira Nova, e de lá enviou aos pais da Maria das Do­res o solene pedido de casamento. Era impossível resistir por mais tempo! Assegurou-se de que a rapariga era sã de alma e de corpo; ficava transtornado, quando lhe estava junto, entendeu que a natureza aprovara o conúbio.

O Visconde, era um grande amigo seu. Nunca pretendeu casar, disse-lhe ele, e havia, por indiretas, desiludido completamente a Dona Fabiana, que por isso lhe ganhou embirrância, passou a enjoá-lo de den­tro, e até fazia-lhe, atualmente, pirraças que, enfim, desculpava. A resposta do desembargador foi um abraço muito apertado, prolongado, que deu quase em choro. Ficaram mudos um para o outro. Felizmente a re­pública estava sem outras pessoas. O Vicente puxou conversa, para der­reter aquele chumbo que pesava sobre ambos; paulatinamente ergueu dúvida sobre um assunto literário, se José de Alencar sabia o português, e daí acalorou-se uma discussão que fez de excelente derivativo.

Depois daquela noite, não se dançou mais em casa da Fabiana. Aquilo era uma gente que vivia num estreito círculo, e não aproveitava a boa existência trabalhada e divertida da Fortaleza. A Maninha era por isso mesmo alguma coisa matuta. Se freqüentou o Clube, foi levada pelo pai e pela curiosidade, poucas vezes, quando havia baile em que o desembargador, pela sua nova condição de amigo do Visconde, era figura obrigada. O Osório, então, aparecia todo formal, de casaco, em verda­deiro magistrado, que mede as palavras e não muda um pé sem a devida justeza.

Não levava era claque, alheio a essa francesia. Punha a sua jaca e metia botinas de bezerro, engraxadas como a sua consciência, que isso de pelica e polimento era para janotas. O guarda-sol não dispensava, e nem a boceta de rapé, de grossa prata esculpida; para fungar uma pitada, afastava-se, porém, como se fora fazer outra coisa, tirava a luva, e ser­via-se; quase sempre acompanhado por outros, no conluio daquele vicio-zinho que ele se arrogava como prerrogativa dos pensadores e dos ho­mens de responsabilidade.

Acertou de haver um baile, oferecido a um presidente demissioná­rio, poucos dias depois de ser concedida ao Centu a mão da prima. O ex­presidente era o Doutor Benedito Xabregas, um juiz de direito que arran­caram de Goiás expressamente para a comissão de administrar a incom­preendida província dos Cariris, do Jaguaribe e do Baturité, do cangulo e do camurupim, da rapadura, da vela de carnaúba, das atas, do caju, do hércules Filgueiras, do turbulento Padre Verdeixas, do oxalá, do samba e da seca. O Doutor Benedito, a quem os estudos somente de livros e os processos haviam proibido tocar sobre a verdade das coisas, não agüen­tou repuxo. Confessou a si mesmo não possuir a precisa coragem para campear em cavalo passarinheiro como a gente, doCeará, e obteve de­missão, passando as rédeas para a mão conhecedora do i? Vice-Presi­dente, o São Galo.

Maria das Dores foi a esse baile, com o seu decote, os seus braços nus e o seu porte donairoso. A Fabiana seguiu-a, no gorgorão e nos ade­reços do ouro antigo. Primeira vez em que a mulher do desembargador ia a função mundana. Depois de estar dentro, a fisionomia tomou a mesma expressão de prazer que na missa cantada ou em outra qualquer sole­nidade religiosa de lavar o peito. A mesma sugestão, o mesmo gozo, o mesmo sol de satisfação fazendo cintilarem os mesmos círculos de on­das. Assim como, de joelhos, aderindo com o peso das suas carnes ao assoalho do corpo da igreja, sentia-se ir subindo com a enorme Senhora da Assunção do retábulo do altar-mor, assim naqueles modestos salões de província, que lhe pareciam deslumbrantes a mais, a dona, sentada, entretida com outras senhoras idosas, no vão de uma sacada, julgava estar dançando igualmente, ao impulso da orquestra e daquele ar excep­cional.

Voltou para casa muito ancha e gaiteira, fazendo outra idéia dos homens e das coisas.

Entretanto, mesmo nessa noite, Antônia pôsse no bredo.

Era ao entardecer. Mariinha todo o dia só falou no baile; "porque o baile, porque eu saio cedo do baile, porque eu só danço a segunda qua­drilha", etc. etc., bem que tudo isso não fora senão o ensejo de gozar da festança ao lado do noivo.

O alvoroço que se apossa dos moços ao preparar-se para uma festança, que chega a tirar-lhes o apetite, a festa pela festa, isso não era para a Maria das Dores, que não se pertencia mais; Antônia passara a semana macambúzia. Naquele sábado esteve revistando a sua roupa, os seus cacaréus, e olhava-os silenciosamente, compridamente, como se lhes soluçassem um adeus. Via-se-lhe bem um pensamento fixo a de­moniar pelos cabelinhos das pestanas, e de vez em quando, parando, como o beija-flor — depois de mil revôos, entre os supercílios dourados. Amostrava as comissuras dos lábios ligeiramente caídas, em ar de tristeza. Cada passada, lhe parecia ser a última.

— Algum dia tornarei eu a pisar neste mesmo tijolo em que estou ainda por hoje assentando o sapato? Onde irei eu bater? Onde me levará a Mãe Zefa? Eu não irei para a Rua das Trincheiras! Antes morrer!... Para o Outeiro? E meu pai, e minhas irmãs?

A madrinha Fabiana embirrava hoje em dia cruelmente com Antô­nia, por causa da sua terminante recusa de casar com o João Batista. Olhe que isso foi uma batalha! Casa, não casa, encurralaram a rapariga, amofinaram, ela dizia sempre que não, que não, até que puseram-na de parte, conveñcidos do baldado esforço; mas a Fabiana tomou a recusa como afronta sua autoridade, e passou a detestar a afilhada. Esta cho­rava lágrimas de sangue, vendo, a urdir "toda essa infâmia" a mão oculta e fria do Afrodísio, com, Mãe Zefa por lançadeira. Resolvera fugir. Sair daquela casa, fosse para onde fosse, à toa mesmo. Perdida, perdida meia, perdida toda.

Faltava-lhe a educação que lhe desse uma norma, que a sustentasse, e propusesse-Ihe melhor saída daquele aperto. Ao cair da tarde esteve com a Dorzinha, no quintal, a sua Bem-Bem de outrora. Manifestava um — "ar demudado", um timbre doce, de violino, uma estranha e pálida frouxidão fisionômica, um abatimento flagrante. A Mariinha isso passou desapercebido; se estava toda Centu! Por tudo, via-se, entretanto, que vinha à tona, a loura, o gravado afeto, que ela possuía, pela casa e pelas pessoas da Mariinha. O seu rosto estava despedindo-se amargamente da outra, que passou com ela naquela tarde um tempão e tagarelou sobre o seu próximo casamento.

E Antônia olhava demoradamente o céu por entre as árvores. Sen­tia-se o poente incendiado. Havia, para cima, um enorme cúmulo espon­joso, com uma parte azulada e outra vermelhenta, como o ferro apanhando o ar ao sair da forja. O grande tamarindeiro avistado por todas as cozi­nhas do quarteirão, expunha ao sol moribundo as suas entranhas criva­das de bages, com um aspecto quase fulvo, sem frondes, por modo que via-se o céu da outra banda.

A Fabiana esteve também no quintal, papagaiando mais a liberta Angela, que veio vê-la com a intenção de passar-lhe uma finta. Nas lon­gas tardes preguiçosas, a Fabiana, não habitando em sobrado, donde avistasse os últimos inundamentos do dia por cima dos telhados entre­meados de verdura, espargia a alma ao sussurro das frondes semelhan­tes ao marulho de águas, sentada no quintal, em uma cadeira, com uma perna sobre a outra, ouvindo conversa nem que fosse do molequinho que trazia o tição para atear o cachimbo. Acercou-se da Maninha e da Antô­nia. Estava de boa maré; e eram as suas horas de bom humor, no género, as melhores do mundo. Quando as pretas viam-na assim, regalavam. E todos em casa procuravam entrar-lhe pelas portas da alma, como se fora num palácio encantado. Era um gosto vê-la, no quintal, cercada dos seus inferiores, à vontade, expansiva como a galinha choca espojando-se na cinza. Na verdade, uma cadela rabugenta como a Fabinha, era de ver quando se transmudava em um carneirinho cândido que comesse péta­las de rosa. Era o efeito surpreendente, embora esperado e costumeiro, do romper da aleluia, quando caem dos altares e da vidraçaria da igreja os véus negros, rasgados pelo dia crepitante, ao vôo dos pombos alvos de fitinha ao pescoço, ao delírio das campainhas, ao troar da fortaleza, ao repicar da sinaria, ao alegro da orquestra e das vozes. Mostrou-se agra­dável a Antônia, por modos a esta vacilar na sua timbrada résolução de pôr-se ao fresco.

Estavam em troça, numa clareira formada pelas papoulas, espirra­deiras, independências e jasmins corais; a matrona assentada no tabu­leiro de um carrinho de mão, e as demais, na areia lavadinha pelas chu­vas recentes começada a forrar-se de zinhos tenros que a Mariinha apa­nhava para os preás. Aqui furava um carreiro por baixo das roseiras, ali uma vereda meandrava; acolá, ao pé do muro aninhavam-se boas-noites e maravilhas, ao fim de uma estrada. Salpicavam-se de florículas as ro­meiras escarlates.

Todas achavam Angela descarnada e amarela. Estava uma mulher. Notavam-se nela as mamas caídas, o corpo imitando ao de homem, as maçãs do rosto aguçadas, e o pescoço fino. Viera pedir para alugar-se à senhora, que não aceitou-a.

— Então, sinhá, me empreste dez tostões.

— Antes isso.

Dera em beber, a cabra. Tinha ido já à polícia. Muito faladeira, en­treteve a Fabiana debulhando mil histórias, de casas conhecidas, a dizer de gente branca e fina cobras e lagartas; e com isso engabelava todas as vezes. A Fabinha então! que para puxar por um enredinho estava só! — embora tivesse de confessar ao padre que pecara murmurando contra o próximo. As gargalhadas da Fabinha retiniam, e pareciam comunicadas até as plantas. Esmiudava mais, e a escangalhada risada da Angela ia com a dela num concerto pândego, e quem as ouvisse de longe, imagi­nava antes umas lindas raparigas brincando seminuas à beira de uma lagoa. Antônia dizia lá uma ou outra palavra, sorria apenas, e entrava a escrever com um pauzinho na areia. Maninha erguera-se, avessa àque­las histórias onde a suinez da alma foçava implacavelmente na miséria dos outros. Realmente, na fase em que ela estava, só aprazia o otimismo, o puro, o ideal, o divo.

E entrou por debaixo de duas goiabeiras entrelaçadas sobre as quais formava um manto a ramada de uma passiflora. Maninha sumia-se nesse caramanchel. O pé de maracujá deixava cair alguns tentáculos, como que procurando mais braços de goiabeira. No lado por onde a morena entrou, o teçume da fronde da trepadeira formava cortinas salpicadas de flores violetas, cujos órgãos representam os martírios da Paixão, e de pomos redondos, lindos globos verdes, lindos globos amarelos, como feitos de aérea porcelana, inúmeros, pendentes, a agitar-se de manso, à brisa, nos Pecíolos, entre o escuro do interior da moita e a líquida luz solar onde chalram os ventos. As duas mirtáceas quase sucumbiam, presas, na rede, como o leão de La Fontaine; porém também brotavam os seus frutos re­dondos, e flores alvas semelhantes a pincelinhos de pó-de-arroz, e sa­cudiam as grenhas da sua ramada por cima da teia de sarmentos.

Era para aí, para a sua antiga Bem-Bem, e para as flores do ma­racujá que a Antônia dirigia atenção agora. Avistava no imo do caraman­chel a cútis viva do tronco de goiabeira, como braços e pernas a nu, apenas denunciados por uma claridade coada e esmeraldina. Em outros tempos, a loura gostava de trepar-se ali, e trazia no regaço goiabas de vez, e maracujás de que fazia ponches.

Mariinha, oculta na capelinha vegetal, fazia rolar para o seio da Antônia maracujás maduros, de um lindo amarelo flavo e de um perfume arraigado e aguçoso. Ficou absorta, ali dentro, como criança, trepada na goiabeira, e emaranhada na rede de ramos. O amor fazia-a contempla­tiva. E sentia um vago prazer no seio das árvores, ali sem horizontes, como num caldeirão de serra, sob a cortina azul do céu veiado de vermelho crepuscular, olhando o frisadinho dos telhados, e os muros paralelos dos quintais tufados de verdura. Uma pitangueira aparecia nas frondes leves dos dedais-de-dama. No quintal vizinho, dois meninos, a pedradas, per­seguiam calangos quase lesos que andavam a lambiscar formigas. Um outro descia de um sapotizeiro com uma gaiola de alçapão.

Mariinha lembrou-se de que era o dia do baile, e desceu apressa­damente:

— Mamãe, você não vai também?

— É cedo, são seis horas, menina. Espera.

Antônia sentiu um horrível aperto no coração, ao lembrar-se por sua vez que havia deliberado fugir naquela noite, fosse como fosse.

Às oito e meia horas, com efeito, a loura para um lado, e o carro da família Góis para outro. Saiu vestidinha, como quem vai à novena, com a grande cópia de vinte mil-réis no bolso, parte que reservara dos bons tempos e parte de engomados e trabalhos de agulha, que foi ajuntando. Abeirar-se-ia da irmã viúva, contava-lhe tudo, e, forjando com ela uma qualquer tramóia, ficaria em casa do pai, na santidade da família. Seria isto para eles até uma felicidade, visto como ela era forte, ensinada e tra­balhadeira.

Dobrava assustada as esquinas. Assaltava-lhe o mal-estar de quem houvesse praticado um crime. Certa de que ninguém a tinha por fugitiva, parecia-lhe entanto que todos apontavam-na com o dedo:

— Lá vai ela!

Os dias que passou quase amucambada, puseram-lhe rabuge na alma; e a Mãe Zefa a repetir que aquilo era mandinga! A fuga estava sem jeito, e ela continuava na sensação aflitiva do momento em que ia pondo o pé fora da casa. Poderia assassinar o filho quando nascesse, praticar um infanticídio, e ficaria sempre honrada, e na casa de seu pai, apesar de mendigo. Mas se descobrissem? E teria coragem de esmagar a carne da sua carne? Esmagar a si?... O crime trouxe-lhe à mente a cadeia. En­tendia agora pelo claro a situação daquelas mulheres estioladas, de pele rugosa, sem cor, que ela vira uma vez na prisão, quando fora comprar sapatos com a Madrinha; compreendia a condição daqueles encarcera­dos a bater sola e a coser sevilhas abrindo largamente os braços para os lados! Ah! Os presos, porém, estão bem; livres dos olhares perseguidores dos que enxergam sem ver, dos olhares que a imaginação cria por centenas; os visitantes olham para os presos compassivamente, simpa­tizadores, com a sorte dos infelizes. E Antónia como que ria nervosamente, em falsete, de si consigo, de naqueles tremendos instantes de reflexão, achar a prisão superior à liberdade. Lutava por dominar-se, porque enfim, bem diz o mundo: quem morre é que se vai.

E largou a espancar, com um azorrague de idéias picarescas a boa companheira de todos os momentos, a consciência, a sublevação natural do ser. O seu nariz mergulhava no bafo aquecido da própria carne, e no costumeiro odor de rosas metidas no seio. Os dentes desejariam trincar um braço musculoso, e a língua coser-se com outra língua numa fervura de amores... O beiço arregaçar-se-ia como se ela houvera emagrecido; e o olhar havia de afundar um pouco; as maçãs do rosto ficariam da cor da manga madura, e as orelhas, cujo desempenho é nulo em lirismos; provocariam contudo novas mordeduras. Assim é que ela quisera amar!

Estavam apagando o gás, porque era hora da lua sair. O empre­gado, encostando o topo da escada na cruzeta de cada combustor, subia ligeiro, e com o rosto junto ao bojo de vidro que lhe iluminava o boné de galão encarnado, torcia a torneira, e a sombra caía repentinamente. Os dois cordões paralelos da iluminação iam perdendo foco por foco, e o es­curo ia vagarosamente engolindo o claro. As luzes que perfuravam o som­brio, de alguma sege, de algum sobrado longínquo, avermelhavam.

Era sombriamente lírico esse luar mortiço. Das lojas, alargavam para o meio do calçamento línguas acesas entre línguas de escuro, travando-se, no esbatido, mortos sobre vivos clarões, pálidas sobre escuras sombras. Ouvia-se o mais leve ruído, como nas noites úmidas. Um grilo era bastante para encher o quarteirão comercial da Rua da Boa Vista. Os ca­minhantes iluminavam-se e apagavam-se, ora sim, ora não. O menor foco irradiava, espesso como uma estrela. A cidade parecia edificada sobre águas. A visão era restrita e apertada.

Numa confusão de idéias que por momentos fizeram esquecer a sua desesperada e resolvida situação, a fugitiva sentou-se na calçada do edifício da Assembléia, cuja enorme corporatura mal aparecia no morto luar. Tinha diante de si o movimento noturno da Feira Velha. As árvores da praça, alevantando-se defronte da loura, pareciam-lhe fímbria de uma floresta infindável, por debaixo da qual os distantes lampiões dos tabu­leiros de doces, de quitandas e das barraquinhas da feira, tinham pronunciado quietismo, como facho de pescadores fora de horas. Entra­vam-lhe pelos ouvidos toques de piano, passadas de transeuntes, o cobre que batia na gaveta das tabernas, conversas do lar e das calçadas do Largo do Palácio.

Pela calçada oriental da praça, onde despejavam lojas de molhadas unidinhas umas nas outras, os passantes, pela mor parte homens sem paletó, e mulheres de chinelo e de xale trespassado, criados de compras, etc. davam vida à paisagem noturna, que lhe imprimia nos nervos ma­goados uma sensação indistinta e poderosa, e um passamento de angústias. A tremenda sensação do incoercível caía sobre a rapariga como um abutre, dos penetrais da noite.

Quando sentiu o arrastar desavergonhado das chinelas das "mulhe­res do portão da feira", quis voltar.

Pois naquilo é que dão os venturosos dias da paixão realizada? As formas provocadoras da donzela, que inspiram as Artes, e endoidecem os Sábios, podem virar naquilo? Apodrecer no lodo da libertinagem? Ma­drinha Fabiana, desgraçada madrinha Fabiana!

Veio-lhe à mente, em visão, o João Batista, e achou-o desta vez uma criatura estimável e simpática. Ao enxergar o indefinido abismo a que a própria índole podia arrastá-la, não podia ter naquele momento o João Batista senão como um salvatério. Pode ser que até o vigor da boa im­pressão lhe sugerisse o benquerer.

Desceria a ladeira da Assembléia, para, atravessando a Rua de Baixo, subir o aclive do Outeiro, em rumo da casa paterna? Bateu-lhe for­temente o coração. Esmoreceu. Era melhor passar a noite com a Mãe Zefa, no tugúrio da Rua das Trincheiras, pedir-lhe adjutório; ir à missa de madrugada na Sé, e de lá, se encontrasse a irmã, bem; se não, se­guiria até o Outeiro, pois a hora matinal é própria de passeios a arrabal­des. Sondaria. Diria primeiro que ia passar o dia; e ficava, com umas par­tes de comer caju e tombanças. De noite pretextava doença, e ficava ainda.

Porém, quando viesse o portador da madrinha? Não havia ainda pensado nisso! Que cabeça desmiolada! Pois com certeza a Fabiana dei­taria precatória por todos os cantos e recantos da cidade e subúrbios; e para o mato, e para o sertão, e para as serras, até descobrirem a fugitiva.

Mas agora? Era tarde!... E viu, como na noite, no pretume da Mãe Zefa, a sua salvação. Quando mais não houvesse, perderia a vergonha, a aceitar a casa mobiliada e servida de um tudo que lhe havia oferecido o Afrodísio. Boa lembrança. Ele àquela hora estava... estava... no baile do Clube, que era político. Se não fora baile político, ele, que não sabe apertar a mão de uma moça não iria lá por força nenhuma. E a rapariga, aliviada pela adoção de uma idéia decisiva, internou-se por debaixo das árvores da Feira, na esperança de aí encontrar a Mãe Zefa, e participar-lhe o feito e o resolvido.

O Afrodísio havia de ser sabedor por um tudo naquela mesma noite. Aproveitariam uma quadra em que ele descesse ao salão de bilhar; ou a Mãe Zefa, com as suas imunidades, penetraria pela escada do serviço, arranjava-se com os criados na confecção do chocolate, do chá e do café; e daqui ou dacolá, pegavam sempre o cabra.

A preta não estava na Feira, porém a Antônia percorreu todos ostabuleiros, penetrou pelo enorme portão de ferro, para o pátio dos açou­gues, furou por toda parte, entrou pelo barracão do peixe, nada.

No pátio interno pairava muita tristeza, apesar do movimento da venda de miúdos, frissuras e carne morta. Os quartos de bois para o talho do dia seguinte pendiam dos ganchos, em todo o circuito, pondo no ar um cheiro de sangue. A rapariga chegou instintivamente ao portão que desemboca na Rua de Baixo, onde havia os mictórios e uns mendigos. Voltou com o coração na boca, assustadíssima! como se houvesse per­petrado um assassinato... Estava lá, pedindo esmola, o pai, o cego João de Paula!

Parece que ele a divulgara... E a filha tapou os olhos e enxugou uma lágrima irresistível.

A desonra aparecia à mísera como uma doença incurável. Saúde e honra que não voltam mais! Depreciadas pelos que as possuem, inu­tilmente aneladas pelos que as perdem de todo.

— Não há remédio, meu Santo Deus, não há cura! soluçava, em suores de agonia, sentada num pedaço de calçada.escura. Não há jeito! O que não tem remédio arremediado está.

Passada a crise, que foi como um acesso de tosse em tísico despachado e confirmado, a cachopa ergueu-se, mesmo como os tísicos, como se coisa alguma sofresse.

Achava agora em si a superioridade do cabedal, da matéria-prima. Vira com os olhos, tocara nalgumas sujeitas que passavam, comparou-se. Era-lhe inteiramente impossível sair assim. Tomou coragem. O mal da­quelas desgraçadas entendeu que era o ócio, e o desabrimento. Ruim é aquele que ruim se faz. E novo hausto lhe sustentou o ânimo. Anda­va-se na rua com a liberdade de não ser conhecido. A luz dos combustores não estava, e ela é que é a fria denunciadora das pequenas cenas noturnas, e a que desmascara as feições de quem veste o incógnito. Algumas habitações, entretanto, jogavam-se reciprocamente efeitos de luz, que era preciso passar depressa, como se a gente fora saltar um riacho.

A cidade estava como no tempo em que não havia senão o raro lam­pião de azeite; uma reminiscência para os velhos, mas uma perturbação para os novos, habituados à luz.

Acontecia passar o vulto negro e ruidoso de uma carruagem que ia para o Clube, com os seus dois bugalhos de fogo; e famílias à fresca, arrastando chinelas, descerem para o banho de mar, conversando, rindo, com as toalhas trespassadas, a roupa meio embebida no luar desabro-chante, com a mancha escura dos cabelos soltos.

A lua havia subido um tanto, porém não tinha força ainda para sacudir por cima de uns seres as sombras de outros seres. Brilhava lá para si.

Antônia perdera-se, indo bater no Campo d'Amélia em vez de no Largo da Misericórdia. Esse campo onde manobravam nos dias de gala as espaventosas paradas da guarda nacional, cobria-se de uma tênue gaze de luar. Ouvia-se o ronrom das ondas, como de um gato gigantesco. O luar nevoentava os blocos de telhados da Estação do caminho de ferro. Ao pé das casuarinas afastadas, do cemitério de São Caetano, deslum­brava a alvura do Morro do Croatá, uma duna que estava a engolir aquele abandonado jazigo dos mortos de há trinta anos. O cemitério protestante confundia-se no cimo das casas de palha, onde fervilhavam rumores de samba e uma fogueira no terreiro. Antônia apavorou-se, e pareceu-lhe que surgia um homem a persegui-la. Ouviu a corneta da guarda da Ca­deia tocar silêncio, beirou o campo, seguindo uma linha de casas rare­adas. Dobrou para leste, enfiando por entre a alta muralha da prisão, e uma carreira de habitações por acabar; era a Rua da Misericórdia; respirou faro de cidade. Atravessou a Rua Amélia, e continuou a derrota, pela calçada da Santa Casa. Descobriu a iluminação do Clube, com em­bandeiramento pomposo; no silêncio, como um bando de gralhas, espa­vejavam os derradeiros compassos de uma quadrilha.

— Está animado, disse ela consigo.

E procurou, para tomar fôlego, o assento de pedra que corre ao longo da fachada do hospital, já no Largo da Misericórdia. O largo era ocupado pelo Passeio, cuja arborização, compacta com o luar, mal denunciava um ventozinho modorrento. Era hora de vir-lhe o sono. Mas não o tinha. Uma espécie de incandescência dos sentidos não permitia que a natureza a convidasse para o repouso. A vigília era, assim, um prazer. Sua vontade era andar, desfrutar a franquia de ir para onde quisesse. O seu ímpeto era fazer os próprios gostos, irrefletidamente, imediatamente, sem apelo nem agravo.

Pensava no último trecho do caminho.

Acabava de seguir a fachada sul da Misericórdia, alta como o muro da cadeia, branca, e com uma janelaria acima da cabeça dos passantes, numa complicação de anteparos de ferro, de vidraças, e de guilhagens, com uns ventiladores na barra, de onde, com o bafio mofento, a modo que escorriam contágios de moléstias ruins; os combustores apagados, pregados na parede, estendiam-lhe, quando passou, o pescoço negro e fino; do outro lado, enfrentara um correr de quartos de aluguel módico, habitados por um enxame lodoso de mulheres decaídas; a lembrança disto reluziu-lhe assustadamente no animo. Sempre que se lhe apresentava à mente o cortejo cínico e mal asseado daquela gente, ela vacilava. Até ali não desciam as suas pretensões herdadas ou adquiridas. Que faziam aquelas tipas durante o dia? Esses demônios para que infamavam assim o sexo? Bem podiam ganhar com o trabalho, e viver com quem quisessem. Pois é possível que haja amor que se atole assim na porcaria? Pas­mava em não compreender como uma criatura pode existir assim enclau­surada no vício, sem a liberdade de aparecer onde bem quisesse e comdesassombro. Entristeceu. Levantou-se e tocou apressadamente para o Clube. Na coxia fronteira à porta principal, havia uns tabuleiros estabe­lecidos, e entre eles o de Mãe Zefa. Lobrigava-se a escadaria atapetada e luxuosa, com um grande espelho no primeiro patim. O gradil do Passeio, detrás dos vendelhões, com a sua barra cor-de-rosa.

As estrelas salpicavam no firmamento o azul de ardósia, no remanso do luar a coroa do edifício brilhava com o seu guarnecido franco, e o luar, ganhando força, espalhava por cima uns borrifos de neve! Das sacadas subiam como girândolas de bandeirinhas; e para as cimalhas fronteiras, atravessava o ar alguns cordéis com enormes pavilhões de nacionalida­des, de alto a baixo, em estendal, alguns lambendo a fronte dos transeun­tes, cadentes, morosos com a brisa; e aqueles moles panos de lã, varie­gadamente colorados, davam à vista da rua uma co-participação na festa.

No meio da rua ainda estavam os bancos da fanfarra que havia anun­ciado, com trechos de marcha grave, a entrada das senhoras. Nos salões térreos, estalavam maciamente, elasticamente, as bolas de bilhar, estou­ravam as bebidas, e tiniam os talheres. Aí, divulgavam-se nitidamente as pessoas, mas em cima, era preciso que estas viessem à sacada. De quando em vez passavam bustos de dançantes, e nas variações da quinta parte poder-se-ia reconhecer algum. Maria das Dores, num vestido azul, de colar de ouro e brilhantes, com uma grande caçoleta sobre o peito, passou muito tempo numa varanda com o pai e o noivo. Trazia o pente­ado simples, com uma rosa. Um luxo simplório de princesa. Antônia não viu o Afrodísio, e nem a sua protetora conseguiria abeirar dele, porquanto o palacete estava todo luz e pompa. Os homens entretidos no achonchego das ninfas do salão, ou na troça com os demais, ninguém poderia dar atenção senão à festa. Um grande tédio e tristeza se apossaram da ra­pariga, um humor insuportável; e ela recriminava a si mesma, sentada nas pedras da calçada.

Por que não se conformou com a sua sorte? Agora, tome!

Não podia estar ali, é verdade, não podia freqüentar os salões, que devem ser uma coisa muito boa, como nunca vira, mas assim mesmo podia ser que mais tarde com casamento sofrível.., e o quê? Ali estavam algumas inferiores a ela, em tudo, menos na desgraça... E querem sa­ber? Podia estar lá... Mas aquele seu gênio era que a atraiçoava sem­pre... E entrou a analisar condições de algumas damas do baile. A Fran­celina, moça paupérrima e que não tinha lá esses bons sangues, que ser­via em casa do Conselheiro Sucupira, estava dançando. Por quê? Porta­va-se bem, e vestiam-na com estima. Quanta asneira, porém, não dizia ela aos moços! Ora, isto é mal de muitas e de muitos. As Meneses quem eram? Primas de um servente de pedreiro. O Coronel Fagundes estava dançando com a costureira da mulher. Via-se empregados públicos de ordem rasa, e caixeiros, nas águas dos chefes e dos figurões. Magnatas ombreavam afavelmente com mancebos de humilde condição e faziam cortes indistintamente a qualquer moça.

A reflexão era para Antônia uma piora. Com efeito, ali naquela reu­nião oficial e aristocrata, se punha às claras a feição da terra. A socie­dade abria lugar para todos. Era questão de decência, de boas relações, de boa reputação. O abismo então se abria mais adiante de Antônia.

Entre as mulheres da Feira e as de certas ruas, que acompanham os congos e o bumba-meu-boi, as que vão para o sereno do circo de ca­valinhos, as que fervilham nos fandangos e no escuso das novenas de arrabalde; entre mesmo as que tem prédio e dinheiro na Caixa Econô­mica, e que entretanto um homem limpo não lhes pode falar em público, à luz do gás, e a sociedade das mulheres honestas Antônia enxergava um precipício!

Aquelas não souberam, virgens loucas, alevantar na fortificação da carne a bandeira da esperança, não torceram o pescoço ao bichinho do amor logo ao sair da casca, e julgavam que o correr não cansa, e que o andar não chega. Antes de amarem, caíram na esparrela da concupis­cência.

Antônia sentia a cabeça desengonçar-se. Mãe Zefa era do parecer que voltasse. Aquilo não se fazia. Também, não estava assim perdida. Tivesse juízo.

Fugir, pró mó de quê? Deixasse estar, que as coisas se arranjariam pelo melhor. Havia dois partidos a escolher: ou casar com o noivo que Seu Visconde lhe desse ou ir para a casa montada de tudo que ele lhe oferecia na Rua do Rosário. E levantaram acampamento. A Antônia, em estado de dormência, era um concordar com tudo.

— Eu faço você entrar outra vez na casa da sua madrinha, e aposto que ninguém descobre. Quem lhe viu sair?

— Ninguém.

— Pois 'stá direito. Ora, ora. Então quem será Josefa do Espírito Santo?

Toda confiante, como confessado para confessar, a menina seguia a preta, vendo nela um ente extraordinário, e sobrenatural. E seguiram, a preta velha a coxear de um quarto, a exibir de quando em vez um con­selho do repertório do seu reconhecido senso prático.

Às duas e tanto rodavam os carros, findo o baile. As famílias embrulhavam-se nos manteletes de lã, e rapazes temendo os resfriados punham o lenço ao pescoço abafando a garganta. As seges não eram muitas. Pela mor parte os convidados iam de pé para casa. Agradável, pelas ruas asseadas e desertas, com um luar esplêndido.

O Vicente gozou sonhos cor de rosa, naquela noite. A sua queda pela Maninha arrastava-o a necessitar agora, não mais de um simples lance de olhos, nem de palestras, mas de contacto. Adeus! vocação deapóstolo da Ciência, se é que isso dependia do celibato! Só uma catástrofe o arrancaria dos braços da prima. Só se dizia bem quando agrilhoa­do aos pés da noiva. Guardou no cofre da memória, donde ignorava ainda que as sensações se evaporam traiçoeiramente ao sabor carnal de quando ambos saíram de braço dado em pleno salão de baile. Parecia-se nutrido como um gigante. A sua destra a modo que estava sempre segurando na cintura dela, a esquerda cruzada com a mãozinha fragrante, cetínea, apetitosa, símbolo da carícia e do afago. Que cafunés não estalariam, ele com a cabeça no colo dela, os olhos semicerrados, numa tepidez de car­nes mesmo e inquebrantáveis. Sentia no peito direito, e como eterna­mente, a doce pressão dos seios dela, que lhe incutiam sugestões de aromas desconhecidos. O ímpeto era dançar de par constante. Nem co­gitava de leve que o namoro estava dando nas vistas, e que uma velha a conversar com a Fabiana e outras reformadas, na sacada, franziu o na­riz dizendo que estava fedendo a azeite de carrapato e que outra pergun­tou se precisava de tijolos para fazer uma casa. A que a senhora Góis respondeu a sorrir que "eles tinham licença, ela estava pedida e consen­tida"; segredo esse que a cidade inteira já sabia.

Todo idealidades, o Centu aborrecia-se terminantemente se ouvia falar no positivo, no esqueleto, no real do casamento.

— Feliz quadra! batia-lhe o sogro no ombro. São os melhores dias, aproveite-os.

— Oh meu tio, não me filosofe a esse respeito!

— Olá, meu obcecado, a coisa é isso mesmo. Quem cega não é a Justiça, é o Amor.

— E o senhor que o diga.

— De cátedra.

O Centu chegou a escrever numa carta os tópicos seguintes a um dos seus antigos camaradas, casado e habitante no Rio:

"Com a volta à minha terra, ou por outra, ao novo encontro com a prima de que te falei, o meu ser virou outro. Ignorava até então o poderio enorme que a natureza concedeu à oposição dos sexos. E é tal o efeito desse sentimento em mim, apesar de vocês na Escola me acoimarem de homem frio e insensível, que de inimigo da Arte, sou hoje um seu ferrenho apologista. Antes de sofrer a ação trans­formadora desse fluido, se bem digo, do Amor, eu considerava a mu­Iher pelo escalpelo, um animal como outro qualquer. Hoje, porém, vejo que, se a Ciência a encara tão friamente, a Arte a eleva, se ab­sorve no mistério das formas das sensações e do sentimento.
"O inverno é isso. Julgo-me um ente feliz. Podem sobrevir to­dos os padecimentos. Estou convencido de que o homem é capaz de ser Deus.
"Mais uma força me trouxe este novo sentimento: o amor ao torrão natal. Anteriormente o Ceará me era uma região tacanha, um povo inconseqüente e mal-educado, uma tribo de bárbaros num território que em remoto futuro seria um deserto líbio. Hoje vejo na mi­nha querida provincia um país curioso, típico, imorredouro, encurra­lado na sua modesta cordilheira circular, lavado com os seus rios de seis meses, nele nascidos e nele mortos, com os sertões de inverno e seca diferentíssimos, com as serras cultivadas com os brejais, com os ariscos, as dunas, o céu lindíssimo e cruel, o oceano amigo, e uma população mal-aventurada, sóbria, nervosa, e conquistadora pela arma do trabalho, abatida pelo fogo do clima, a lutar pela vida sempiter­namente. A nossa grandeza é toda íntima, e é nos sentimentos ínti­mos, do amor à mulher, e à família, que o cearense frui o suco da vida.
"Estou convencido, além disso, que o homem como força, na tríplice acepção moral, física e intelectiva, é o resultado do regular funcionamento do seu organismo. O homem só entra em pleno desenvolvimento de suas aptidões, com o casamento. No domínio so­bre a mulher, na vibração simpática dos dois seres, adquirimos uma força incalculável, a consciência do nosso poderio, a capacidade de conquistar, de adquirir, de medrar, a consciência de que se existe, se é. Um Ergo sum mais lato que o de Descartes.
"Poder-se-ia chegar à mesma conclusão abstraindo da con­venção matrimonial. Porém a união dos sexos como entre os irracio­nais, naquela pureza, é impossível no homem de hoje, produto artificial da civilização de séculos sobre séculos.
"Não me venhas com o ponto de vista econômico. A base da economia é a utilidade. Desorganiza-se economicamente o casal que não toma a sério o seu ninho...."

E ia a carta por aí além. Havia um tópico em que assegurava ter estado redondamente iludido quando supunha que o sacerdócio da Ciência era incompatível com o culto da mulher. E exclamava: Mulher! me és necessária como a flor à abelha.

Quase deitou verso, em seguida a esse arranco. E ia tudo mais na­quele entono da paixão.

Antônia passou o domingo como não esperava. Não viu quando a Fabiana, o marido e a filha entraram do baile, porque a fadiga muscular prostrou-a logo no sono, e deliberada ao que desse e viesse, as cogitações não tiveram azo para tê-la em vigília. Quando acordou por mais de sete horas, só o velho, dos brancos, estava de pé.

A loura saiu para o banho, tendo armado as feições e a mente con­tra algum resquício da gorada fuga da véspera. Dos pretos, nenhum pa­recia a par do acontecimento.

— Graças a Deus! recomecei bem; faço de conta que hoje é que entrei para esta casa. De feito, saindo a Fabiana, ficou a casa deserta; cada um tomou para seu lado, aproveitando a noite divertida de sábado; apenas o tio Raimundo, na sala de jantar, conchilando, cão fiel, a beberfumo, julgando que a Antônia estava de incômodos para a camarinha, ou que havia acompanhado a dona da casa.

Na rua, inda mesmo algum conhecido havendo notado, não era caso de espanto, nem de novidade, em uma cidade onde uma senhora ou uma donzela atravessa livremente, sozinha, ruas e ruas, com desassombro e sem receio.

Ao fim do quintal agitava-se no sol as folhas do Canavedo, e as fia­das singelas do muro banhavam-se de sombra de ramadas e de fáculas deslumbrantes. A paisagem rumorejante encurralava-se no quarteirão. Um sopro abatia sobre a vegetação, escoado em regra, de cima das ca­sas, de parceria com os luzimentos de um dia vigorosamente limpo. Espalhava-se no ar a vida obscura das cozinhas.

O moleque Joaquim surrava um tapete, no alpendre, arrancando-lhe a poeira, e o tio Raimundo, regando as plantas, escutava a conversa desengonçada de um samangolé que estava à espera que ele acabasse para irem à missa do Rosário, que naquele domingo havia sessão da irmandade.

O porco, um baé muito gordo, com umas papadas ruivas, empinava o focinho com os pés de diante apeados na pocilga, grunhindo com um suplicante olhar para Antônia que passava. Uma goiabeira esfregava-se no muro, e provavelmente deitava para o vizinho um ramo curioso. Pim­pavam as coisas maiores e mais vivas. No texto de ferro de uma caixa de água que se erguia de outros quintais, girava doidamente uma ven­toinha. Hilariantemente caía sobre o tamarindo gigante um vôo de peri­quitinhos verdes. Um portão vizinho batia com o vento, a ranger nas tá­buas ressequidas. Vaporavam eflúvios de horta, e de jasmim, com o aze­dume dos chiqueiros.

O casamento estava marcado para quinze dias depois do baile do ex-presidente Benedito.

Realizada a cerimônia, às 8 da noite, na Sé, o séquito de carrua­gem, desfiando pela cidade, voltou à mansão do Desembargador. Os noi­vos subiram adiante, solenemente, seguidos pelos pares de convidados, que surdiam da aglomeração dos carros e de espectadores, que toma­vam a rua.

A grande luz dos candelabros, nas salas e cámaras transformadas em salões, estrepitavam as dragonas dos oficiais, com os peitos crivados de condecorações, o pano fino das casacas coisés na alvura dos colari­nhos e peitilhos, as caudas dos vestidos, o agitar dos leques, os decotes empoados, e o sorriso aristocratizado.

Os noivos estavam em exposição, no sofá, a seus pés aplainava-se um tapete novo, e a um lado e outro as cadeiras eram ocupadas pelas senhoras e donzelas, como em guarda a honra. A sala retinia da bulha. das conversas e das risadas com medidas. Uma senhora despachada tomou o ramalhete da noiva e deu nova vida à sociedade, a distribuir os cravos, que arrancava um por um, pelas moças e pelos mancebos. Outra, pegou o véu nupcial, e nele ia envolvendo as meninas núbeis, cabeça por cabeça. Antônia vinha entrando nesse momento, de vestido azul-claro, pálida e formosa; depois de repelir o filó, dizendo a rir que não tinha fé, as senhoras obrigaram-na a recebê-lo; e ela debatia-se galhofando que "só gostava de véu preto".

A Fabiana atravessava solenemente a casa, como um bispo, no vi­gor da seda cor-de-rosa, com um penteado em que despendera uma hora de relógio. Esteve pelo braço do Visconde, por algum tempo, a quem agora parecia dedicar nova espécie de afeição. Já nem se lembrava de que o queria para genro, que para isto fizera o marido aliar-se-lhe, que lhe abrira as portas de sua casa, e que aí o Afrodísio só não fez o que não quis, encontrando apenas oposição por parte da pertinaz Maria das Dores, que, enfim, triunfava. E a matrona botava para a figura melancólica do homem um olhar, em que parecia dizer:

— Eu é que estava mesmo de jeito para sua mulher! E suspirou: Se eu fora viúva...

Era esse o novo rumo da sua queda pelo sugestivo Afrodísio, ou fora sempre. Atirara-lhe com a filha, carne da sua carne, esta pendeu para outro, ficava ela em campo.

O Desembargador conduzia para dentro uns figurões, a tomarem alguma coisa. A sala de jantar estava preparadinha para banquete, atra­vessada de um lado a outro pelo corpo da mesa, posta e profusamente servida. O Lucas tomara conta das bebidas, muito solícito, fazendo a Ângela, que viera expressamente por amor da sua antiga sinhá-moça Bem-Bem, sair de um a um com a bandeja de copos, ou com a licoreira de prata.

A festa acabou cedo. Logo depois da comezaina, que entrou ali sob as dez.

Também, desde que passou o vapor brasileiro, a casa dos Góis de Oliveira a modo que imergiu no escuro. Os noivos tiveram de embarcar para o Sul. O Vicente Moura saíra tenente do Estado-Maior, e recebera ordem de seguir prontamente, para uma comissão de colônias militares para o Paraná. Como timbrava, cumpriu a ordem mas levou fortes em­penhos do São Galo e de outros amigos políticos da província, para o Mi­nistro arranjá-lo na. Corte, onde esperava fazer concurso em uma das es­colas superiores, e aí fazer sede, que, dizia ele agora, do Brasil só onde se pode morar é no Rio de Janeiro.

Osório sentiu profundamente a ausência da Maria das Dores, e do genro; tal, que entrou a imaginar em uma licença para ir ao Rio, e arran­jar-se também por lá, no quentinho da filha. Seria nova embirrância com a Fabiana, que por certo não se deixaria arrancar do Ceará com duas razões.

Antônia achava-se desmastreada completamente. Mãe Zefa acabavade arranjar-lhe na sua morada uma entrevista com o Afrodísio, a desoras; porque de dia ou cedo, a rapariga teimava em não sair de casa, e de­clarava absolutamente não mais tornar a pôr os pés no sobrado do São Galo.

Depois que os noivos partiram, Osório fez-se acessível, entrava fora de horas, e passava noites jogando no Clube; fruindo, na vida de rapaz, enchimento para o vácuo moral e nervoso que parecia roê-lo dia por dia. A pouco e pouco, reatou a sua antiga amizade com o boticário Fernandes.

Na noite da entrevista da Antônia, uma noite sem gás, como a do baile, viu casualmente o Afrodísio desaparecer, no Beco das Trincheiras, à entrada solitária do tugúrio. A parede sem caliça escurecia cada vez mais a portinha sem pintura. Um cheiro de lama de esgotos empestava a coxia, e ao correr do calçamento havia rumas de tijolo e barro de construção, gigos, barricas, tabuados de pinho, caixões, que o cair da noite não permitira recolher aos armazéns. A porta estalou desafinada. O Desembargador não podia lobrigar mais, daí por diante, e foi-se, julgando muito natural aquela espécie de empresa noturna, adequada ao seu viver como de rapaz.

O aspecto do aposento era esfumarado, o teto enegrecido de fuli­gem. Uma teia de aranha, no canto, atravessada pela ténue fumaça que procurava uma telha meio suspensa para servir de chaminé, recebia o bafo luminoso da trempe de pedras, onde havia uma panela de mungun­zá. O chão era uma terra socada e desigual. Uma tapagem de esteira e estopa separava uma alcova, cujo ingresso era vedado, à guisa de re­posteiro, por uma antiga manta vermelha, de soldado de polícia, com quei­maduras de ferro de engomar. A tia Manuela, irmã de Mãe Zefa e co-pro­prietária, roncava perto do fogo, embiocada numa tipóia suspensa por cima da mala e dos trens de cozinha. Sentiu bater na porta, e empurrar, ergueu-se, descerrou o ferrolho, e reconheceu Mãe Zefa. A porta fechou-se. E o Afrodísio sentiu-se bem, naquele ambiente sujo.

A tia Manuela desenvolveu largo sorriso, e indicou o pano de baeta que vedava o biombo. No interior deste, sobre um mocho, ardia uma vela de carnaúba enfiada num frasco. Em uma cama de ferro, cujo lastro exa­lava amoníaco e bodum, estendia-se, envolto em camisa alvíssima, um corpozinho louro. A cortina caiu por detrás do vulto masculino. E transformou-se, à imaginação de ambos, toda aquela infecta sujeira. Os olhos da criaturinha loura abriram-se preguiçosamente, pondo a alma às claras. E talvez tivesse escorregado a pérola de uma lágrima. Apareceu a fileira dos dentes, as doces curvas e a provocação dos beiços e o son-zinho da sua voz danado e matador. Intumesciam as rendas do talhe. O joelho originava dobras graciosas. Ligeira secura repelia do corpo a espessura vaporosa da camisa. Os pés, porventura titilavam nos tornozelos, e nos dedos, a descoberto, e nas unhas embutidas na carnação co­rada e nova.

Mãe Zefa, erguendo-se para beber água, vacilou, e bateu casual­mente na paredinha da alcova; o cotovelo enfunou a estopa, o mocho caiu, lá dentro, o frasco revirou com o coto de vela que ninguém reacendeu.

À meia-noite passava uma serenata. A princípio o som era longín­quo, dominando unicamente a voz do trovador. A pouco e pouco foi re­forçando, e destacadamente se percebia, em brandas lufadas, a flauta e o violão. Cessou, enfim, a modinha; ouvia-se o rum-rum dos rapazes, gargalhadas francas, discussões e pilhérias. Bateram na venda da esquina, estiveram muito tempo, e como lhes não abriram a porta, berraram des­composturas; e saíram modulando uma valsa tristonha e sentimental, que infiltrava nos nervos adormecidos da cidade, àquela hora, uns repassa-mentos de angústia e de saudade, e acordava fantasias na modorra da carne.

Antônia entrou com a Mãe Zefa, que ia buscar as verduras para a Feira, às cinco da manhã, de lencinho cheiroso, abanando-se, decla­rando que esteve muito boa a missa de madrugada. Fabiana admirou de não ter percebido quando ela saiu, que dizia ter sido às três e tanto.

O Afrodísio nada adiantara sobre a crítica posição da rapariga. Esta insistira em querer abrigar-se na honestidade da família, de maneira ne­nhuma aceitaria casa.

Quase desesperada, vendo o tempo estreitá-la no férreo círculo dos nove meses, deliberou adoecer. A Fabiana vexou-se, quis mandar vir o médico. Antônia respondeu que bastava o doutor vir no dia seguinte; em que amanheceu repentinamente boa.

Quem a salvou da aflitiva situação veio a ser o padrinho. Banhando o rosto, no alpendre, curvo, inundando as faces barbudas, apreciava o fartum da aguardente com que matara a frieza da água. Os punhos da camisa, arregaçados, só queriam descer. Da bacia de louça, beirada de azul e encarnado, saltavam respingos e flocos. Do lavatório abaixo, cuja tinta estava uma dúbia confusão de manchas, a água escorria, e em der­redor estampava-se uma zona de ladrilho molhado. Deu de garra ao sa­bonete. E breve o seu busto aparecia espumado, como se todo fora ca­belos brancos. De olhos fechados, esfregando a cabeça com as unhas, agradavelmente subia a umas regiões ideais, donde se nota serem as conveniências e vícios sociais de uma toleima atroz, garroteando os ver­dadeiros ímpetos do ser; via famílias sacrificadas pelo descuro de um pai, brocadas fatalmente pela ruindade de um dos seus membros; donzelas e mancebos adstritos à penúria, sacrificados à Vaidade e ao Mundo; eachava a civilização corrente muito alheia à superioridade humana e ao sadio prazer que a carne pede com o espírito. Depois de tirar de todo a espuma, com os poros fartos, despejou água do jarro sobre o crânio, como para o lavar bem, o batizar, o firmar contra aquelas idéias importunas, aspirações a um bem impossível, trucidação e desvairamento para quem deve estar sempre calmo e em ação na batalha da vida.

Pelos intercolúnios do alpendre gozava do painel do quintal. Ainda esfregando a cabeça com uma toalha felpuda, se achegou do peitoril. Um choro de criancinha supinamente zangada, na habitação vizinha, irrita­va-o. Mas ele teria netos. E deduzia:

— A felicidade repousa na sábia combinação das dores com os pra­zeres. Desgraçado o que não sofreu, é como um terreno onde somente o dia se espalha, e não há sombra, e nem cabe noite.

Aprazia-se na perspectiva dos telhados da outra rua, colinas de fino tauá, frisadinhas, confidenciosas como devem ser todos os telhados. Alegremente sozinha, arvorada num bambu enxertado na rama de um cajueiro, debatia-se em mil variados ademanes com o vento, uma ban­deira de lençol de chita, e isto o reportou à puerícia, cujos pormenores, como até certa distância o foco luminoso, cresceu de mais em mais à medida que se avança por outras idades.

Permanecia no parapeito, como se não tivera acordado ainda. Tam­bém a cabeça dele fora submetida a tantas quadros diversos no museu da vida, os seus ouvidos, o seu olfato, a sua epiderme, o seu gosto ha­viam provado sensações tantas que o diplomavam de mestre para certos casos. Adormentado no país do ideal, se esforçava logo, semelhante a quem de um balão procure alcançar terra. Descer à realidade imediata, a única e jamais desmascarada amiga de todos. Avistou, no quintal, uma escrava levantando a camisa a um molequinho, prendendo a cabeça dele entre os joelhos, e aplicando-lhe meia dúzia de chineladas. Revoltou-se, e mais contevese por amor da força moral que devem ter as mães e os senhores. Era o tempo que Antônia subia do banho, e tomava-lhe bênção. O padrinho entendido botou-lhe uns olhos, por cima, que pareciam coados através de uns óculos profissionais; disse paternalmente:

— Antônia, isso não vai bem... tu precisas... mudar de clima...

A rapariga tornou-se como a flor do algodão.

— É, filha, repetia o padrinho. Isso é caso de mudar até de tudo. E adoçando a sua brutal franqueza: É assim a modo de umas sezões...

Antônia titubeou, mordendo os beiços, com um nó na garganta, en­terrada pelo chão adentro, envergonhada e exaltada por uma inundação de lágrimas:

— É, inhor sim.

Procurava a rapariga odiar ao Afrodísio. No fundo do seu coração incriminava-o de ingrato, infame, perverso. E por quê? Ela não via logo?

Não via?! Ela não via coisa nenhuma! Quando atirou-se, julgava que se não viesse a casar, que ficaria vivendo com ele, melhor do que se fora mesmo esposa. Ignorava existir em si aquele sentimento incubado que somente agora despontava, a sua natural repugnância pela vida airada, um pudor instintivo, um horror por tudo que não era sagrado à família.

A rapariga apanhara pelo sujeito um amor verdadeiro. Beleza e for­mosura podem ser da casca, simpatia nunca. Depois de mulher, de grá­vida, preferia, por isso, morrer, a depravar-se diante dele, a ser apontada na rua como sua amásia.

Aproveitou a frase providencial do padrinho, e adoeceu deveras com sezões. O Osório propôs à Fabiana que a afilhada passasse umas se­manas fora, a ver se aquilo acabava sem precisar recorrer-se a mezinhas.

— Mas onde?

— Ela indicou-me a casa da irmã.

Isso por lá é uma miséria que faz pena!

Se ela quer ir pra lá... que temos nós com isso?

Pois sim, homem, eu estou por tudo. A Fabiana declinava das suas antigas aspirações, e vivia hoje em boa paz com o seu velho, sonhando com os futuros netinhos, arengando com as escravas e ao mesmo tempo empregando nestas e nos molequinhos boa dose de ternura.

Antônia despediu-se à noite. Chorava de cortar coração. Acompa­nhou-a Mãe Zefa. A habitação do casal Góis, sem Angela, sem Maninha, sem Antônia, morreu, por assim dizer.

A liberta Ângela dera em beber, a ponto de, por ocasião do recolher do Largo de Palácio, ir empencada com outras dar com os quartos no xadrez do Garrote, vaiada pela canalha que piruetava à frente da música.

Osório pateava às tardes com o seu antigo camarada, o boticário Fernandes; e ambos, passados na casca do alho, senhores das virtudes e defeitos das influências comerciais, eclesiásticas, e políticas da locali­dade, comentavam o livro da vida, expendendo na privança coisas que se proferissem à luz da publicidade haviam de valer-lhes apedrejamento.

Narrava ao amigo o cortejo de peripécias das suas relações com o Afrodísio, e, ao ouvido, as desgraças de Ângela e da Antônia. O boti­cário arregalou uns olhos, e persignou-se.

E a conversa continuando sobre o assunto, o Osório chegou a er­guer-se, e pegou a deitar filosofia: que o outro ficasse certo do que ele dizia. Um homem que possua os meios e o vigor indispensável para o casamento, e procure em vez da esposa, a meretriz, não podia ser to­mado absolutamente, no problema da evolução, como uma quantidade positiva.

Embalde as donzelas núbeis, como abelhas a uma flor, procura­vam-lhe o mel, que não existia. Nesse, o prazer do sexo, o do homem, não daria em resultado o de esposo e de pai. Esses, o que eram paraas mulheres, seriam para o resto: saciadores do eu, repugnantes ao seu modo de ver sentir.

Eu já tinha imaginado quase isso mesmo, homem! — fez o boticá­rio, fanhoso, e pondo a luneta: Venha de lá um arrocho de mão, seu canalha.

Se homens superiores, prosseguiu o orador, safando a mão do rijo aperto, soltando as frases num tom abafado, com uma convicção e cólera capazes de trazer-lhe o pulmão à boca. Se homens superiores, foram ce­libatários, é porque circunstâncias da vida e da profissão os forçaram a semelhante sacrifício...

E daí, passava a desmanivar ainda os motivos pelos quais as pre­tendentes à mão de São Galo, baqueavam irremissivelmente, fatalmente.

Que as mulheres possuem, mormente as virgens, salvo nas orga­nizações pervertidas, um inconsciente que as impele para os homens su­periores. Como que desejam ligar sua existência à dessas criaturas que têm a sedução do ideal...

— Nisso vai a suprema vaidade inata, interrompeu o outro.

— Concedo. A tendência para gozar do melhor...

— Parece que o amor, isto é, o amor sentimento, deve ser propor­cional à superioridade do indivíduo...

— È assim que Jesus Cristo, acudiu o legista, no prosseguimento da sua tese, o mito do homem-Deus, o virgem, teve a auréola das cha­madas santas mulheres. Há nisso um ecletismo inconcusso, verdadeiro, Seu Fernandes!

— Arre! que desembuchas como um jovem! exclamou o outro, levantando-se, como os dedos na cava do colete. Estás me parecendo um promotorzinho da última bacharelização.

E daí, o letrado passou a esboçar um paralelo entre a filha e a An­tônia. E assim gastava o Osório as horas vagas, entre o bom senso do Fernandes e o jogo do Clube, com o respectivo cortejo da cervejada.

Foi preciso segurar nas crinas, e tocar com as esporas, aconchegar o corpo à frente, porque a areia frouxa fugia nas patas do cavalo enter­radas pelo chão adentro. O animal encolheu-se, forcejou e galgou arriba. O cavaleiro, passado o primeiro instante, respirou a paisagem que o cer­cava a perder de vista. O espinhaço das dunas ia, até desaparecer entre a planície e o mar. Uma nuvem gigantesca alaranjava-se, a partir do ponto onde o sol, como uma enorme moeda de ouro, caía para detrás das ser­ras longínquas. E assim montado, do alto do Morro do Moinho, a noroeste da cidade, Osório, pela primeira vez sentia-se abalado por um panorama da sua província adotiva. O céu lhe parecia muito mais gigante do que fora até ali. A terra, uma floresta interminável, dando à perspectiva o ar de uma planície indefinida.

O horizonte era fugidio, e suave até na linha de serras destacadas que ao poente e sul costumam ornar-se de nuvens no tope. A cidade, per­tinho, saía como de um lado vastíssimo, bordada sobre um tapete verde, edificada numa chácara imensa. Para a esquerda, afundava-se a praia, e entre ela e o semicírculo ingente do oceano, enrolava-se e desenrola­va-se o nevado cordão do quebrar das ondas. Não trouxera óculo de al­cance. Também, devia enxergar o seu torrão era mesmo com a força na­tural dos próprios olhos. Começava a sentir com aquele pó alvinitente, com aqueles matos retorcidos da encosta interior das dunas, que o vento ia aterrando; com os galhos já meio carbonizados, representantes de an­tigos bosques, que o mesmo vento exumava no seu giro doidivanas. Ba­tia-lhe na fronte o influxo monstruoso das serranias meio sumidas no cre­púsculo amortecido e atentas na vastidão do espetáculo, soltas no hori­zonte; "porventura pirâmides milenárias no alto das quais a Fortuna, muda e expectante, pousasse todos os dias, como o sol fizera há pouco espe­rando que a raça confusa e sóbria e atrevida que se aninha no vasto da­quela planície aparente que sobe insensivelmente sertões acima, se una, e cresça, e dé desempenho daquela natureza ainda não compreendida". A cidade-cabeça desse povo ali está, a taba mestra, o sábio dos moru­bixabas. Dominam as torres brancas das igrejas. Há uma semelhança en­tre os mausoléus que estão ali no cemitério, no sopé do morro, e aqueles outros onde soou agora o dobre do Angelus.

Educado e vivendo fora dos negócios, o Desembargador, como um missionário que tem na sua religião e no seu refeitório a segurança da sua felicidade intra e extra-mundo, quisera modelar aquela província na fôrma que lhe inspirava o seu aprendimento. A cavalo, no ponto mais ele­vado dos arredores, isto era pó, e migalhas de mato a viver mais do ar do céu que do suco da terra. Aquela encantadora planície verde que ia até acinzentar-se, não eram searas e nem fazendas, e dariam frutos dou­rados mas não os frutos do ouro. Aquelas nuvens ricas de forma, de co­res, com a frescura das donzelas núbeis, eram muitas vezes rasgadas pelos ventos Don Juan e Lovelaces. Aquele sol que semeava estrelas pela folhagem inútil dos matagais, um polvo com os tentáculos do calor dis­farçado com as ilusões da luz.

Começou a abismar-se no espetáculo do Poente. De além das ser­ras se estendiam os raios gigantescos do sol pelo céu acima, semelhan­tes aos que se pintam na fronte de Moisés. Uma claridade fantástica ilu­minava os corpos de um lado só. O sentimento retocava-se dos luzimen­tos verde-louros do Ocaso. Para o Norte, os coqueiros longínquos, a meio soterrados, subiam em silhuetas debruadas de um fulgor estranho, e aquilo despertava impressões de leitura de coisas da Africa. As dunas se esten­diam como alvos corpos de mulheres; e tinham ondulações de um enorme lençol possantemente agitado. No plano do oceano, que parecia muito baixo, erravam as pintinhas brancas das jangadas que se recolhiam da pesca; e quase no Nascente, o vultozinho do farol puxando após si o ca­bedelo do Mucuripe. No entroncamento deste, amontanhava-se um morro, cinzento com a distância e pela hora, que ameaçava de submersão um povoado, e na perspectiva, roçava por cima da longa mancha verde-escura de toda aquela praia de Mucuripe e Meireles, uma língua branca a lamber o horizonte. Era para ali, aquém do compacto coqueiral do Meireles, que a cidade havia sacudido, como um monturo de fora de portas, a formosa Antonia tresloucada. O Desembargador tivera um arranco de humanita­rismo; montara a cavalo, e fora vê-la.

Daí, atravessara a praia da cidade e subira a gozar do panorama no alto dos morros do ocidente, donde sacudiu os tentáculos do espírito na sucção das belezas do mundo exterior, sem cogitar de que são mais profundas e comoventes as do mundo interior que cada um traz em si.

Nem lhe lembrava o terrível encadeamento de carne, de pais a fi­lhos, de irmãos, de amigos, de servos, de amos.

Dispunha-se a descer. O caminho ia pelos verdes da planície como uma risca de cabelos mal-repartidos. Os mausoléus do cemitério destacavam-se numa alvura cortante, e uma extensa nesga do morro, cosida no pano verde dos matos de dentro e de fora, fazia ilusão de um lago esplanado entre verduras. Havia casinhas de palha e de telha sal­picando a extensão viridente.

Seguia por entre as moitas do tabuleiro, entre um grupo de lava­deiras da Jacarecanga. E por detrás dele desaparecia o lombo do mar, oculto pela enorme trincheira das dunas.

Demorava a palhoça da Binga, irmã da Antônia, a casada, no Lon­guinho. Entreaparecia na rama do cajueiral que subia, do lado de terra, morro acima. Ficava a meio do declive, numa espécie de patim; e lá em­baixo, passava um córrego, no brejal do pequeno vale anesgado feito pela rampa do Outeiro com o cordão das dunas.

O Osório tinha ido pela Rua da Alfândega, alagada e frondosa. Enxergava-se lá no fim aquela tira alva, tapando o horizonte; era o morro em sua parte nua. Aproximando-se mais e correndo a vista, apareciam lá no alto, os coqueiros soterrados, uns só com a grimpa de fora, do an­tigo sítio de um fuão Longuinho, cujo nome imortalizou a areia inconstante. O marido da Binga, o Pedro Cação, chamava lar ao rancho lar, na fina propriedade expressiva da linguagem plebéia. Uma construção fácil, e adequada ao clima. As paredes, de pau a pique entaipados de ramo e de palha. Na coberta, leve e jungida com cipós, os caibros formavam xa­drez com o envaramento — onde mordiam as cabeças das palhas de car­nauba, semelhantes a leques fechados, e apertadinhos a não deixar sair um pingo de chuva. No interior desse prisma oco, em constante equilíbrio com a atmosfera, arranchavam marido, mulher, filhos, e mais que hou­vesse. A abertura da frente cerrava-se por uma porta de talos de palmas de carnaúba, e a de trás vedava-se com uma cortina de lona, pedaço de vela de barcaça. Dois compartimentos havia; um, que servia de sala de visita, de sala de jantar, de cozinha, e também de dormitório, e outro, com as prerrogativas de camarinha. Recendia a fumaça e maresia.

O Pedro Cação era lancheiro. Gabava-se de todos os dias no seu rancho botar-se panela no fogo e da mulher ter sempre saia, casaco e lençol e ourinho, para ir à missa na Prainha, ou para aparecer na cidade, e dos culumins viverem de barriga cheia, disporem de camisa lavada no córrego, chinelo e ceroula.

Ele mesmo, apesar de relaxado e bicudo conservava no fundo do baú a sobrecasaca de pano fino, e as calças pretas do casamento, e o chapéu alto, que enfiava pelas novenas da Conceição ou pelo falecimento de um camarada.

Orgulhou-se com a vinda da Antônia e blasonava meio mundo que a cunhada estava no seu rancho tomando ares, que todas as manhãs saía para se lavar na maré, que estava engordando, botando barriga. Omi­tia, porém, as visitas do sogro, o cego João de Paula. Este era mendigo, e sustentava uma filha viúva com uma ninhada de não sei quantos meninos.

A filha que o cego tinha em melhor sorte era mesmo a Antônia. Fa­zia da loura um ideão. Esperançava um dia ter notícia de que ela, criada e moldada no bem-estar, fizesse um bom partido, e de que era senhora distinta e esposa feliz. Dispensava que se lembrasse dos seus. Fizesse ela por si, e cada um com a sua sorte. Fora sapateiro, e cegara de go­ta-serena, quando Antônia era ainda criança. Como a mulher falecesse, entregara Antônia neném à madrinha, Dona Fabiana, que era uma pessoa que cheirava a santo.

No instinto de pai, não deixou de estranhar aquela esquisitice de largar-se agora uma donzela a tomar ares na choupana de um mísero lancheiro chambregado; mas como se falava em banhos de mar, efeti­vamente era quase na praia e um ponto afamado aquele. Já andava meio leso, perguntava e reperguntava. A paralisia a modo que ia alastrando-lhe ferrugem pelo cofre das idéias. Indagou porque razão não viera ainda ali nenhuma pessoa a não ser o Desembargador, e aquele mocinho fanhoso, o João Batista, caixeiro do Seu Visconde. Em resposta explicaram que o estado da Antônia não era grave, ela andava era assim à espécie de um passeio. Negócios de mulheres, que homem não entende assim do pé pra mão. Nas vésperas de ir para a cama, Antônia, à boca da noite, sentava-se no limiar da choupana, enquanto os sobrinhos brincavam ao luar, e a Binga escamava o peixe e punha no fogo a ceia do marido, que atirava-se na rede a curtir um derradeiro gole de cachaça.

Naquele afastamento a rapariga, sentia renascer a sua antiga in­clinação pelo Afrodísio. Achava-se em uma situação como de namorada ausente, em que os menores incidentes e episódios, iluminados pela suave constância da saudade, ressurgem, um por um, e desaparecem e voltam, e vão, e tornam, com uma vida e claridade palpáveis; em que se escuta a voz e se vêem os olhos da pessoa amada e ausente... Sofria, como é dado a mulheres, até aos pequenos nadas de uma separação. E na lua clara, diuturna, na fluidez onde os corpos salientam-se úmidos de prata contornados pela penumbra esbatida entre o negro dos recônditos e o brilho do amplo, caía-lhe dos lábios tinta de desejos e negra de dúvidas a tremenda palavra-mistério, dúbio vocábulo, melhor dicção que há para exprimir as inauditas maluquices do amor e as verdades impenetráveis da crença.

Aquele cio não lograra ainda o equilíbrio; isto é, não chegara à neu­tralização dos dois fluidos contrários, — que traz o tédio; ao choco em­perrado, cuja mezinha são os arrufos, as pequenas zangas enciumadas; aquela paixão ainda fervia, não passara a fermentação, ainda borbulhava.

A abandonada criatura punha a vista nas estrelas atoleimada, e mi­rava o firmamento, a disposição das nuvens, o avanço do crescente, que sulcava, góndola misteriosa tripulada por cupidinhos invisíveis, por entre cachopos de neve, rompendo mansamente as águas do céu. Para as ban­das da cidade, um pedaço de céu escamento, com uns sombreados, fin­gia moitas sobre caprichoso dédalo alvadio, realizando como que a cópia de uns tabuleiros de praia. Mas o meio da enorme campanha estava nu, num mar fosforescente beirando regiões sinuosíssimas, variegadas de aspecto; e notavam-se pontas, baías, calhaus, restingas, espraiamentos, alvo colo das dunas, rochedos, sulcos de barras de rios da mesma cor azúlea da profundez infinita.

Antônia encarava o novilúnio, canoa para ser tripulada por um casal que se quer bem. O luar e a proximidade das matas inoculavam-lhe uma terna e palpitante sensualidade inesgotável.

Isso de afeições, quando é doença fatal, forçosa, apego de átomo com átomo para constituir molécula, pelo panorama das idéias, ao acor­dar pela manhã, se conhece logo. O que tem de ficar, a pouco e pouco recebe realidade nos sonhos e imaginárias. O leito e o sonho fazem de simples simpatia belezas deslumbrantes. O sol matutino solta uma risada de frade feliz, risada real, que esmaga as fricções e ergue as realidades. Havia um n tremor de inocência no verniz da folhagem cintilante e fresca, na bulha dos córregos. E nas areias, ainda úmidas da noite, pelas vere­das e pelos morros, e nas águas estendidas, o espírito se prolongava e se arrastava pelo solo e subia com os vapores da mata, e fundia-se no ambiente com a verdade das coisas.

Antónia acordava cedo, com eletrismos felinos. Vivia em dormência de lua-de-mel. Farejava um vago encantamento no sexo oposto; que pra­zer no tato, e na pele toda! A tudo apertar, em tudo roçar. A manhã lhe trazia um cheiro esquisito de novidade. E tendo sonhado, topava na na­tureza inteira aquele mesmo cheiro corpóreo do ingrato Afrodísio amado. Sentira, sempre, no correr do dia, através das mais prosaicas ocupações os braços dele, o rosto dele. Um enlevo sensível, real, vivo, de alucinado!

A uma segunda visita que fez o padrinho, e desta vez com o Fer­nandes, a rapariga havia dado à luz pela manhã, e não ia bem. Franca­mente, o boticário saiu duvidando que a puérpera escapasse. Por felici­dade ou não, a criança morreu ao nascer. A mãe, porém, não acreditava! E a altos brados tresvariava que lhe dessem o seu filho! Inda bem que, naquele deserto, vizinhos não ouviam aquela confissão da própria enten­dida desonra. Foi mister, contudo, arredar o pai, que estava no costume de vir ali todas as bocas da noite.

O confessor, um senhor Padre Ricord, incubiu-se dessa obra de ca­ridade. Mandou por um criado do seminário tocaiar o velho no patamar da capela, que lhe desse aviso quando o cego apontasse, pois ele mo­rava no Outeiro da Prainha, e tinha de descer a ladeira.

Quando veio o cego, o padre que fingia estar passeando no pata­mar, esbarrou nele e proferiu em tom acre:

— O senhor. parece que é cego?

— Sou, inhor sim.

— Perdão, filho, eu pensei que não o era.

E acrescentou que havia adivinhado em passar por ali, naquele momento... Recebera de uma pessoa muito cristã umas esmolas para distribuir por alguns cegos mendigos...

O velho sorriu, pois infalivelmente seria contemplado.

— Mas, a mode coisa é que estou falando é com um padre do se­minário?

— Está sim senhor. E é preciso saber de uma coisa; para receber a esmola vosmecê terá de passar a noite em oração, por alma de uma mulher, que morreu de parto; se quiser passá-la aqui em nosso recolhi­mento.

O cego não quis, tinha de voltar para casa. Quanto a passar a noite em oração, isso era menos...

— Mas como hei de eu dizer que vi o senhor guardar a noite piedosamente?

— Entonce é preciso eu vir sempre...

— A esmola é boa, vale o sacrifício!

— Sacrifício não é nenhum, não senhor. Mas... primeiro eu tenho de ir lá embaixo...

— Onde?

— No Longuinho.

— Ver o quê?

— Ver uma filha que tenho lá, uma que estava doente, a Antônia, que fora criada na cidade na casa da madrinha, aquela dona que vinha muito ao seminário, muito religiosa, benze-a Deus.

— Já sei, já sei. Não tenha cuidado...

Ele padre Ricord é verdade que havia confessado e sacramentado essa menina, mas não era pelo seu estado grave, e sim por dever de boa cristã. Bem sabia que o Santíssimo Sacramento muitas vezes servia de remédio corporal.

— Grandes são os poderes de Deus.

— É uma fadiga dispensável, o senhor descer aí por essa escuridão. A rapariga vai perfeitamente bem.

Às cinco horas tocou a sineta do seminário. O cego amanhecera de pé. O confessor de Antônia disse missa de paramentos negros aga­loados de retroses amarelos, às cinco e meia, assistida por ele. Depois de descer do altar, desparamentou-se, fez a ablução das mãos, e deu ação de graças; consecutivamente, o padre foi ter com o velho, deu-lhe a esmola, uma cédula de dez mil-réis, novinha, e acrescentou que "a sua miséria se transformara em riqueza".

— Quem me dera!

— Aos olhos de Deus.

— Ah, isto sim, eu logo vi!

Disse-lhe mais o padre que ele era muito feliz, pois tinha sido Deus servido.., levar para sua santa glória.., a alma puríssima... da Antônia.

— Deus olha para você! É um pai misericordioso.

O golpe foi brutal e à queima-roupa. O mendigo cegou agora do espírito repentinamente. Embalde o padre largou em consolações. O cego ensurdecera. Calou-se. Encostou-se a uma coluna. Da caixa do peito su­bia-lhe um vulcão. A pele ardendo com a secura e o calor de um forno, ele julgava copiosamente suada, mas de um suor de água fervendo. Cada junta era um pontaço. E veio a tornar-se dormente na dor e na agonia. Sentia tudo e nada sentia. Cada pontinha da pele estava ligada ao am­biente por um fio que o puxava para estourar como uma bomba.

E aparentemente calmo como um bêbado costumeiro, porém ofe­gante, queixava-se pelo brando de que estivera de noite a rezar pela alma de sua filha, para ganhar uma esmola, hein? Ora bolas, que felizardo!

As últimas palavras foram um soluço. E saiu de porta fora cuspindo para dentro da igreja uma blasfêmia.

Pobre velho! Ele queria tanto aquela filha que não tirava esmolas

no quarteirão onde ela habitava. Dera-a criancinha de peito, pelo muito amor instintivo, à madrinha, Senhora Dona Fabiana. Dera-a! Morreu! Al­tos mistérios de Deus. Poderia vir a fazer um mau casamento; não é assim? E quem sabe ainda? Talvez Nossa Senhora a tivesse arrancado da borda do abismo! A dor do cego era profunda, porém iluminava-se pela alma virginal da donzela.

Agora, pai do céu, tirasse-o! Agora sim. De manhã, quando ele se levantasse, não rezaria mais pela conservação da sua triste vida... Enten­dia que a sua existência não tinha mais razão de ser.

Antônia falecera minutos depois de o lazarista coloquiar com o cego no patamar da capela. O padre não esperava que ela morresse tão de­pressa, e por isso tentara impedir o velho de ir até lá, para este não ouvi-la gritar no delírio da febre:

— Eu quero o meu filho! Eu quero o meu filho!

Morta cessava tudo.

Um trabalhador da casa, deu parte ao João Batista do triste acon­tecimento, estando ele no bilhar no "Hotel de France".

Às onze da noite ia para a casa do Pedro Cação. Seguindo a ladeira da Rua de Baixo, dobrou na Rua do Chafariz, deserta e úmida, escutando o coro dos sapos e dos grilos. Contornou o edifício da Alfândega, e su­miu-se na escuridão para o lado do Meireles.

De longe percebia-se haver novidade na casinha do Pedro. Clarea­va uma fogueira, para debaixo dos cajueiros, denunciando a frente da palhoça, e no terreiro havia uns homens, deitados uns, de pé outros, em grupo, como à espera que se acabasse lá dentro uma comprida novena, assistida pelas suas mulheres e famílias. Por aqueles arredores, na que­brada do Outeiro, nos sítios, pela epiderme fria da dunas, espalhava-se um berreiro de vozes femininas, que o João Batista ouviu ainda distante. Era o velório. Naturalmente, vizinhança e conhecidos reuniam-se ali, se­gundo o costume do povo, fazendo quarto à defunta.

Foi logo Seu Batistinha saudado pelo cabroeiro que velava cá fora. Antes de penetrar na palhoça tomou um gole de aguardente, que lhe ofe­receu o Pedro, e acendeu um cigarro, apesar de não fumar.

Falou longamente o lancheiro, digressivamente, os últimos instan­tes da cunhada, pesaroso e calmo. Isento de carraspana, naquela noite. Quando ofereceu a xícara de aguardente ao caixeiro do seu patrão, disse que estava repunando o espírito. Na verdade, não tocou em bebida,senão três dias depois. Deixe estar que o cabra tinha lá o seu sentimento. Os homens, de camisa e calça, e chapéu de palha, ao revérbero da fogueira, conservavam nas feições um ar de respeito, descobriam-se ao aproximarda porta da palhoça. Havia dois compridos bancos de madeira tosca, no terreiro do casebre, como se faz para os sambas. Estavam sempre a pa­rolear, lá fora, mas em voz baixa, se acaso gritavam, era por algum que se afastara. Discutiam antigas passagens, episódios que se deram em brigas, em divertimentos, nos fandangos, nas novenas do Mucuripe, e contavam histórias de visagens e de defuntos. Um velhāo robusto, muito dizedor de palavrões e glosador de indecências, concentrava um grupo em torno do seu cachimbo e da sua prosa corredia e pinturesca. De vez em quando atabafavam uma risada explosiva. Uns quatro rapagões — ponta-limpa, jogavam queda de corpo na areia macia afastada. A noite era traspassada pela brisa do mar, de uma frescura impertinente, e o fir­mamento clareava, pomposamente. O Caminho de Santiago, o Cruzeiro do Sul, a Arca de Noé, o Rosário, as Três Marias, o Relógio ou Sete-Estrelas, a Mancha do Sul, todo o mapa celeste conhecido e classificado pelo olho do povo, indicavam sem embaraço, tendo o cuidado de não apon­tar estrela com o dedo, por mó de não nascer berruga.

Ao longe, ouvia-se a pancadaria de um chinfrim do Outeiro do Se­minário; de vez em quando sobressaía o berro do trombone.

Mãe Zefa chegava, com o tio Raimundo, e a Benedita, esta espa­lhando a catinga sebosa da sua roupa de cozinheira.

Da porta do casebre apanhava-se a vista do interior, num lance d'olhos. O cadáver estendia-se ao meio do compartimento, sobre uma esteira, escondido por um lençol branco, e parecia muito inchado, maior do que era de esperar. Embora falsa, uma sensação de mau cheiro assaltava o nariz do indiferente, e provocava as glândulas salivares. Ao fundo um xale azul, novinho em folha, pregava-se na palha, acima da tampa de uma caixa coberta por um lençol de tacos; e aí, dominando a mingua­da formatura irregular de imagens de santos, alçava na cruz o vulto de Cristo na sua soledade dolorosa, por quem Antônia chamara ao morrer, nu, correndo sangue, mal feito, olhando para a terra, fronte pendida, na muda profundez do Consumatum est. Em bocas de garrafa, e palmatórias de flandres, ardiam quatro velas de carnaúba, e uma de cera branca, sendo esta do Santo Sepulcro. Em outros pontos da palha colavam-se penden­tes de argolas diversos registros de santos em molduras de cedro.

Tinham feito uma pausa na cantoria. A tiradeira da reza, uma sujeita idosa e magra, que usava um cocó muito apertado, ajoelhada com o seu vestido roxo diante da imagem de Jesus, dizia agora Padre-nossos Ave-Ma­rias e Salve-Rainhas, num afã de orações pela noite inteira, como se um momento passado sem isso prejudicasse a alma da falecida. A modo que o Jesus dissera àquela gente da árvore da cruz o Vigilate et orate. As de­mais mulheres, sentadas ou ajoelhadas no barro duro do chão, respon­diam. O compartimento permanecia com os seus trastes, o pote no canto sobre a forquilha de três ganchos, com o coco dependurado pelo cabo;

as malas no pé da parede, uns cacetes enfiados na palha, as redes en­roladas com os punhos enfiados nos armadores que saíam das estacas, a vassoura de vassourinha, tudo à mão. Apenas a corda de roupa fora desarmada. Alguém se erguendo, para entrar na camarinha, ou para sair pela frente ou pelos fundos, ia como se receasse acordar a defunta.

Mãe Zefa ajoelhou ao lado do vulto branco estendido no chão, fa­zendo um enorme pelo-sinal, e orava nos seus grossos beiços. Benedita deixara o chinelo na porta, em mostra de respeito; não sabia pôr as mãos, cruzava os braços, com o estômago empinado para a frente. O velho crioulo Raimundo ficou à entrada, para ter livre saída quando fosse lá para fora juntar-se com os outros homens; dobrado sobre os joelhos ronceiros, se­gurava no seu bastão como se este fora um brandão aceso, sério e grave como um juiz. Lembrava-lhe aquilo um terço, que em casa da Fabiana era a oração da noite para a família e escravos, em que a Antônia, com um vestidinho velho, no ajoelhar, este rasgou-se na espádua, e quando ela começou a cantar o hino de Nossa Senhora, a mode que uma niqui­nha de sua abundante voz se escapava por aquela brechazinha. Quando ela abriu a garganta no Agora lábios meus, a camarinha de sinhá mó de que se encheu de passarinho e de fulores.

Quem conheceu a aperitiva Antônia não podia estar ali sem um pro­fundo e entranhado soluço!

Num caco de telha, ao pé do altar, fumegava a alfazema.

Ao ruir do mar, ao bulício das árvores, a sinceridade e simpleza da­quela gente, ao suspirar do vento na palha, o Batistinha ficava não sabia como, em diverso mundo, arrebatado, como fora, de uma jogatina foliona, à mísera obscuridade de uma câmara ardente, choupana magramente alumiada, relicário de uns restos mortais verdadeiramente restos.

Coitadinha, podia ter sido uma esposa! Repugnou justamente aquele que a faria feliz! Morreu! Teve medo de vê-la, receava enxergar naquele rosto, que acendia-lhe a vida, a monstruosidade da morte. Não entrou, absolutamente não entrou. Em todo caso a rapariga fora uma ingrata para quem fez tudo por ela. Se morreu, foi ainda porque desdenhou aceitá-lo, até a última. Não gozava o falecimento da sua maior inimiga, deplorava, sentia, e amava-a tolamente ainda. Adorava agora aquela altivez com que o pisou em vida. Ficou toda noite do lado de fora,sem ter visto o cadáver, e adormeceu ao relento sobre um dos bancos, apesar de haver tomado café por duas vezes,que lhe ofereceu o Pedro para passar o sono. Aco­corado sob as ramas do cajueiro, onde uma vizinha improvisara trempe e fogo para ferver água e coar o café, explicava o Pedro aos amigos a presença do caixeiro:

Que Seu João tinha uma paixão desadorada pela Antônia. D'esna do ano retrasado. Ela nem como coisa. Nunca se viu judiar tanto com um pobre!...

— E mó de que não se casou?

— Como havia de casar? Apois si ela repunava ele de mais! Neste mundo hai de tudo!

A vizinha, sacudindo o pano do café, reprovava em muito o proce­dimento dela. Ele podia achar outra bem boa. E ao clarãozinho do fogão, desfiaram o assunto, entrando pelas anedotas e casos acontecidos como aquele.

Pela madrugada, ainda se ouvia de vez em quando o Meu Senhor e Amado, e outros cânticos de piedade popular, como para manter alerta aos que faziam quarto. Muitos ressonavam. Mãe Zefa, Benedita e o preto velho foram embora à meia-noite. A uma hora chegaram uns soldados, da guarda da Alfândega. Estiveram pouco tempo. Tomaram café e ca­chaça, que era o que eles queriam, e deram boas noites. Ameaçava chuva. Com efeito depois da primeira cantada do galo, caiu um forte aguaceiro. A pouco e pouco, um estremecimento manifestou-se pela rama das ár­vores, um vago rumor, agitação ao de leve, como se por sobre eles passassem miríades de insetos. A escuridão incidia do alto, mais espessa e friorenta. O fogo recrudescia, como as chamas da hulha na forja, ao sopro do alcaraviz. Breve, a frondagem aluía-se toda. O palhiço do chão, no vale, andava em vórtice, e o vento sacudia lufadas de areia. Alguns entraram logo, outros afrontavam o meteoro. O Pedro gritou:

— Chuva rapaziada! Venham para dentro!

— Deixe cair, falou um dos que teimavam em ficar debaixo do ca­jueiro. Este cá não tem medo daquilo que Deus manda!

Ainda não caíam os pingos d'água; e mais o aguaceiro, estava anun­ciado pela ventania úmida a rolar de um céu de breu, qual invasão de touros furiosos, e encapelando o mar, assanhando as árvores, transmu­dando o pó em nuvens, arrepiando os tetos, zumbindo nas torres e desembestando na planície, horrisonando mundo em fora. Repuxados para um lado, os vultos negros do esgueiral do morro, procuravam tenazmente erguer-se, e daí um vai-vem, que nem mulheres que se esgadanham.

Um chiado compacto se espalhava por tudo. Atinando para o que o cercava, o Batistinha quis disparar para a cidade, porque do contrário pernoitaria as horas que restavam para o dia, com o cadáver da Antônia. Achou-se isolado no meio de tantas pessoas. Temia desmoralizar-se na presença aterradora da defunta. E mesmo a tempestade lhe aprazia, qui­sera ficar ali fora, molhar-se que nem um pinto nuelo. Dormia, quando passou a primeira desfiada do vento. O Pedro foi quem pó-lo de pé, obrigando-o a entrar; o que o caixeiro só fez depois de acender o cigarro num tição, virar uma golada e armar fisionomia de um certo recolhimento. Antes de pôr o pé na soleira, o primeiro relâmpago abriu e rolou o pri­meiro trovão.

Tapou-se a porta do fundo que ficava na barra do vento. A da frente permaneceu meio aberta.

O Cação fê-lo abancar numa cadeira que havia. A cantoria engrossou, com a surpresa da tempestade, e de mistura com as preces de fi­nados, entoou-se deprecatórias a Santa Bárbara e a São Jerônimo, dei­tou-se palhas bentas do Domingo de Ramos no braseiro da alfazema, e rezou-se O Magnificat, por mó dos raios e coriscos.

Involuntariamente o Batistinha teve de pregar os olhos na falecida. Um magnetismo! Absorvia-se naquela massa informe, de uma impressão repulsiva, do lençol branco estendido por cima de um corpo frio onde ar­deu tanto a carne e onde ardejaram tão limpos desejos dele, coloridos de ideal; esparzia sonhos por sobre o empolamento que ao meio fazia a barriga upada, jazida de um órgão gerador, mina que poderia ter sido de brilhantes para ambos; demorava o olhar no jeito anguloso, de pirâmide, que o algodãozinho tomava cobrindo aqueles pés hirtos, que seriam a primeira coisa que ele beijava na noite de noivado, ao puxar-lhe caricio­samente as meias, e neles teria mergulhado a fronte chorando de alegria, e neles teria roçado os seus cabelos altivos, e passaria neles demorado como a apaixonada Madalena com seu belo Jesus. Parecia-lhe que o pano agitava-se, e que os pés frios da morta iam mexer-se...

Ia de mais em mais a convulsão atmosférica.

Da abertura da porta, por onde entrava um refrigério de ar frio, longe, no Outeiro, viam-se as pintas de luz dos combustores da Prainha, esba­tendo nos azulejos da fachada uma claridade tristonha e difícil. O gás rolava pelo tijolo molhado e pincelava umas copas de árvores. Pela força do imaginar, enxergara o Batistinha, desviado subitamente da contem­plação da defunta, nas mangas daqueles lampiões longínquos, escorre­rem as gotas de chuva em ar de lágrimas abundantes, como as que lhe queriam irromper...

Entretanto, a Binga, aproximou-se do cadáver da irmã e levantou um bocadinho a parte do lençol que encobria a cabeça, olhou, tornou a cobrir. O seu vulto chamou o olhar do moço novamente para a defunta. Quando inclinou-se que ia pegar no pano, ele estremeceu, e não foi se­nhor de si. Fisgou a vista cada vez mais, hipnotizado; para fechá-la re­pentinamente guardando fotografada no cérebro a mais horrível impressão que já teve na sua vida.

A fisionomia da morta, que lhe ficou gravada, repousava sobre um saranhão de cabelos aloirados. O lenço amarrado para segurar o queixo ocultava a bela carnadura do rosto, e espremia para cima a boca arro­xeada deitando um líquido pelos cantos. A lividez da testa e das frontes metia-se a meio nos cabelos embaraçados; o nariz exagerava o seu belo atilamento; porém o olhar, sepultado nas pálpebras descidas eternamente,afundia com toda a criatura, e entregava aquele formoso, aperitivo e be­líssimo corpo à fria hediondez do nada.

Apagara o fogo concupiscente ao coração do Batistinha. Antes, no bilhar, acabando de perder três partidas, pagando a cerveja, com um riso contrafeito sobre as caçoadas dos pirus, que um seu trabalhador cha­mou-o de parte e deu-lhe a nova do falecimento da rapariga, tivera um abalo mui diferente daquele d'agora. Lá, ao pensamento, vinha-lhe um rima de sensualidades, que ele afagou. Absolutamente, não pensava no aspecto repulsivo de um cadáver, e o seu obstinado benquerer, ao em vez de estirar-lhe por diante um corpo hirto e álgido, punha-lhe de pé e ao encontro uma visão angélica de cabelo de ouro e rostinho fresco, voando ao zéfiro a gaze da sua vestimenta,e pensava correr para abraçá-la, fartando-se no olor embriagante que ela espalhava com uma claridade sobrenatural. Os companheiros viram-no sair com o trabalhador e grita­ram frascariamente que queriam ir também, julgando o caso muito outro.

Largou para a ladeira da Conceição, que ficava por trás da Sé, pois era mais perto do que arrodear pela praia. Chegando, porém, ao Santo Cruzeiro, foi tal a impressão de tristeza que lhe infligiu o aspecto soturno e angustioso daquela enorme cruz alçada, carregadinha de emblemas do martírio, que a idéia de morte saltou-lhe em cima como um traiçoeiro e feroz canguçu. Passou-lhe pela vista uma rede, saindo da escuridão, levando o corpo frio, conduzida por dois homens. Estes andavam de chouto, como os peixeiros quando vão de calão carregado para o mer­cado, e os acompanhavam outros para ir revesando. Que séquito! Fechou os olhos e sentou-se um momento num dos bancos de alvenaria do pa­tamar! Pior! A rede passava e repassava. Uma coberta de chita vermelha e desbotada pendia do pau, a um lado e outro, à maneirá de cortinado, e escondia completamente o conteúdo como à criança no berço oculta o mosquiteiro. Para não irem esvoaçando as pontas da coberta eram presas com alfinetes por debaixo, na altura da cabeça, dos rins e dos pés. A rede esticava para baixo, como um saco munido até ao meio. O Batistinha parecia acompanhar irresistivelmente o fúnebre cortejo, como o peixe pelo anzol, e ouvir a voz dos curiosos:

— Vai morto ou vivo?

— Vai morto, meu irmão! respondia o tropel de homens descalços, pisando forte no calçamento, ao chouto costumeiro, abanando com os braços na cadência do caminhar.

E o rapaz encarava o céu estrelado.

A alvenaria do templo erguia-se monstruosa e metia na noite o bojo branco das suas torres. Do coro, as altas janelas pareciam escoar uns ruídos de cantochão, vagos de flauta e violino, e sussurros de contrabaixo. Passadas de esqueleto, secas, invariáveis, marcando o compasso, o tra­balhar soturno do relógio da torre do Norte. A modo que, de quando em vez, o sagrado edifício tinha estremeções em sua grande sensibilidade sonora, e como que a vozeria oca das ondas estava a sair constante­mente daqueles poros de pedra e cal.

Começou a refletir, o Batistinha, na atribulada posição do momento. A morte da Antônia era uma surpresa. Como é que um homem, semelhante a um ator de mágica, se acha, de repente, assim de um cenário a outro!

Mola poderosíssima e quotidiana do desconhecido!

Pôs o caso em si. Realmente, o que devia fazer como homem e so­bretudo como idólatra e amigo, era ir logo à Empresa Funerária, para ter tempo de preparar caixão apropriado, e tratar do enterro, com a eça, car­regadores, brandões, etc. ajustando por um preço que estivesse nas suas posses. Pagaria tudo; não se fiava no Desembargador e na velha Fabiana, uma gente sovina, que parece que só queriam era ver-se livre da pobre rapariga! Só tinham caridade na boca; e religião, no manual. Outrossim, pela manhã distribuiria cartas de convite a pessoas que não desdenha­riam acompanhar um enterro de uma choupana do Longuinho. Para isso recorreria aos irmãos de São Vicente de Paulo. Poria anúncio, em que João Soares de Paula e Pedro Rodrigues Aracati agradeciam do fundo da alma, as pessoas que se dignarem acompanhar ao último jazigo os restos mortais de sua prezada filha e cunhada Antônia Benícia de Paula, por esse ato de caridade e religião; e convidavam de novo as mesmas almas caridosas para assistirem à missa do sétimo dia que seria celebrada na capela da Prainha às cinco horas da manhã, sexta-feira, 21 do corrente.

E daí, foi ter ao escritório da empresa. Se não cuidasse daquilo bem podia ser que os caboclos do Longuinho, com o tonto do Pedro, fizessem o enterro de rede. Repugnante! Subiriam a íngreme ladeira, em cujo tope se apresenta a capela emendada na janelaria do seminário, e entrando no corpo da igreja despovoada, estendiam o cadáver no soalho, sumido na panaria de algodão e cobertas, com a comprida trave, onde amarra­vam fortemente os punhos, caída para um lado, à espera que seo padre chegasse para fazer a encomendação...

Foi por isso que ele chegou ao Longuinho já noite alta.

Estava ele, pois, debaixo daquela sensação que lhe produziu o sem­blante da defunta, quando a Binga levantou a ponta do lençol! Sentia-se hirto como ela. O seu desejo único era, naquele momento, irem juntos para a sepultura. Para que a vida? Se uma criatura daquelas fica assim tão horrenda! Por outro lado o seu outro eu, o positivo, buscava tirá-lo ao domínio de impressões tão dissolventes. E ele olhava, olhava tenaz­mente para a noite, através da larga brecha da portinha de talos. Os focos dos combustores da calçada do seminário cuja corporatura bruxuleavalonge, não tinham mais uma irradiação sequer. Cerceadas na espessura do ar traspassado de chuva, denunciavam-se apenas, estrelas perdidas no tenebroso da tempestade. Barulhava o córrego do brejo, com as águas das ladeiras. O homem gemia por dentro, caído na desolação, como o pássaro fulminado pelo sol.

Corrido o tempo, o chuveiro ia dando de si. Via-se já o vento pelas costas. A chuva prolongou, e afinal cedeu. De vez em quando ainda ros­nava o trovão, como o sonho agitado de um cão imenso. Fuzilava um relâmpago frouxo e cansado, que dificilmente aclarava o dorso negro do céu.

As águas superiores já não regavam. Pingos ralos é que caíam da folhagem, como a cada suspiro depois de um pranto nervoso. Aos pri­meiros albores da madrugada, o Batistinha já havia consumido quase um maço de cigarros.

A luz amarelenta da vela de carnaúba destacava-lhe metade do rosto, e banhava de um castanho aloirado os seus cabelos negros. Na parte da penumbra, o cigarro, pendido ao canto da boca, desfiava uma fuma­cinha, e de vez em quando lampejava da sua brasinha rubra. Com uma perna sobre a outra, o caixeiro denotava antes contrariedade pela chuva traiçoeira, como se tivera de ir para alguma parte. E assim mascarava o verdadeiro sentimento. Agora estiara, mas as barras vinham quebrando. Já pressentia-se um clarãozinho no alto do firmamento. Principiava a sen­tir uma dor de cabeça, e uma tal qual morrinha nos músculos. Aquela rapariga arrancara-lhe metade do ser. Ele era uma substância refratária, nisso de amor, a tudo que não fosse a Antônia. Condenado agora a sol­teirão. Não devia ter consentido o cauirismo do casal Góis atirar a Antô­nia doente para a derradeira camada social, é verdade, mas pelo seu an­tigo despeito, queria vê-la descer; e então viria a dizer-se:

— Sobe! Conhece que eu sou para ti como o Cristo para o Lázaro! Tolinho! Ela o abominava, de índole, por todo sempre.

Já as cornetas soltavam as notas da alvorada, no coração da cidade. E aquele toque prolongado e saudoso era para o Batistinha, estatelado ante o cadáver da Antônia, atirado ao chão, de uma pungência atroz. Aquela modulação longínqua, entrava-lhe agudamente como soprada ali propositalmente nas suas ouças. Fingia um exército remoto dos duendes que vinham para os restos mortais da rapariga. O seu coração batia como se ouvira toque de incêndio, e se este fora nos armazéns de que ele era guarda.

A capela da Prainha chamava para a missa. Começou na palhoça o alvoroto do amanhecer. Os homens foram para o serviço, as mulheres a ver os seus lares. O Batistinha chegou até ao trapiche, e aí ficou, man­dou o capataz abrir o armazém, botar na beira da praia o algodão e os couros que tinham de embarcar; que não perdesse a maré, que era cedo naquele dia.

Uma pontinha de sol incandescia o azulejo da torre da Prainha.

Era por esse tempo que o cego João de Paula esmurrava para den­tro da capela uma horrível blasfêmia, e varejava para o recinto sagrado o lixo de um desaforo, e descia, como se enxergasse, a ladeira, passo aqui, passo acolá, com a vista do instinto e do inveterado conhecimento do caminho, a ter mão em casa do genro.

Chegou aplacado. Quando os de casa viram-no galgar a areia da subida, aparecendo subitamente num cotovelo do caminho, estremece­ram até a raiz dos cabelos. Momentos de ansiosa expectativa. O velho foi falando por aqui assim, quase sem fôlego:

— Deus dê bom dia...

E como viesse avançando como se o terreiro estivesse limpo, gri­taram:

— Olhe o banco!...

Antes, porém, de findar este grito, já a Binga estava abraçada com o pai, e, bendito seja Deus, na mais benfazeja efusão de lágrimas.

Uma circunstância inesperada acertou de vir novamente pôr em ace­lero aqueles corações rústicos. O cego estava resignado. Os olhos lím­pidos estavam pisados de pranto e de insônia. Achava arrimo na sua crença, e absorvia-se na fantasiosa contemplação da filha, vestidinha de branco e toucada de rosas, entrando no Paraíso. Recorria inconsciente­mente às impressões da infância, ao que havia lido quando possuía vista, ao que escutara nos sermões, e formava no impalpável um mundo onde bebia a consolação necessária ao equilíbrio das suas funções vitais. Se as suas feições conservavam uma rijeza de pedra, como se a alma dele houvera fugido, era mesmo pela abstração. Fez queimar bastante alfa­zema, misturando com incenso.

Deu-lhe, porém, o destino abraçar o cadáver, num desses arrancos naturais do amor e da loucura. Um acesso, paroxismo da primitiva dor ilógica e brutal que o fizera injuriar a casa de Deus. Conhece que a mor­talha é de seda.

— Para que tanta riqueza? fez ele erguendo-se. Quem arranjou isto?

— É um vestido muito simples, meu pai, explicou a Binga. É saia e casaco... Foi o melhor que eu achei na ocasião... É um que a Maria das Dores, de Sinhá Dona Fabiana, deu a ela para a Semana Santa.

— Então é de seda preta?!

Ninguém respondeu.

— Mas eu queria que a minha filha fosse vestida de Nossa Senhora da Conceição!

Não havia pano azul. Porém ele dava. Então para que queria aque­les dez mil-réis novinhos? Oh Seu Pedro! O genro vinha subindo com um pote de água no ombro. O velho repetiu:

— Seu Pedro?!

— Que é lá!

— Temos de ir à cidade.

— Pronto ao seu dispor. Hoje não vou ao serviço, o patrão que se agüente. Não é de morrer uma pessoa em minha casa e eu me largar pro trabalho sem duas razões. Não senhor. Inda tenho um vintém de meu. Pr'onde quer ir vosmecê?

— Vamos, senhor, depois verá.

O Pedro pôs o chapéu e seguiram. A mulher cochichou-lhe no ouvido. O velho resmungando:

— Pois não deviam ver logo que a minha filha devia ir com o traje da Santíssima Virgem?

A Binga dizia ao pai que não fosse, que tudo a terra havia de comer, e que ficava muito tarde, que eram dez horas. Mas o velho fez ouvidos de mercador, e abalou.

Ela possuía o seu relógio de parede — uma réstia de sol. E mandou um recado ao Batistinha para que empatasse o velho até de tarde, e apressasse o enterro. Que doidice, meu Deus! Era impossível a Antônia ir de Nossa Senhora. Ao menos se o padre não a tivesse ouvido de confissão... Mas era o diabo! O Padre Ricord não consentiria em uma falsidade se­melhante! Quanto mais que ele é quem ia fazer a encomendação...

O padre reservara para si o privilégio de pronunciar o derradeiro Requiescat in pace naquele corpo cuja alma ele arrancara s garras do demônio com o Ego te obsolvo.

Dez e meia. Acompanhado pelo Cação e pelo Batistinha, que su­bira para a cidade a toda pressa, ao recado da Binga, o João de Paula entrava na Estrela do Sul, uma casa da Rua da Palma, onde se vendiam objetos de enterro e passamanes.

— Me dê oito metros de cetineta branca e três da azul, um diadema de rainha...

— Que é isso de diadema? obtemperou o caixeiro da loja.

— É para a minha filha que morreu. Vai de Senhora da Conceição, e quero com diadema.

— Está bem, fez o caixeiro, habituado e mestre no ofício. Isso ar­ranja-se.

— E quero um papel de arrebique. Estão aqui dez mil-réis.

Dez mil-réis não chegavam. O Batistinha mandou debitar-se pelo resto, e chamou o colega de parte. Fê-lo vender fazenda preta em vez de branca e azul, porque ao menos, como era provável, chegarem tard( e a família no propósito de remanchar, serviria para o luto. Portou-se ant o outro, como se o cego e o Pedro Cação fossem fregueses lá da case dos muitos parasitários que tem o Visconde, aos quais ele servia de c cerone.

Quando estavam nisso entrou o Lucas, de guarda-sol aberto e d opa encarnada, pedindo:

— Para o azeite do Santíssimo.

Reconheceu o Batistinha, e escancarou-lhe um abraço dos seus

— Oh, meu querido Batistinha! exclamou, arregalando os olhos admirativamente. Há que tempo que o não vejo em casa da comadre Fabiana!... Como vai essa força? Abatido, hein? Quer enriquecer da noite pro dia...

E desfez-se no seu habitual e pegajoso agradamento de filante. N abraço a espinha dorsal do moço quase sofre uma avaria produzida pel açoite da bolsa endinheirada segura pelas alças de prata ao gadanho d reito do andador.

— Conheceram-se, mandem botar! pilheriou o caixeiro.

O Pedro Cação deitou um vintém na bolsa, cuja grossa casimira e cartate ia esverdeando do cobre; e o Lucas, na pressa e na inesgotável prosa, estendeu-lhe rapidamente para beijar, como quem sacode um bofete com as costas da mão. O lancheiro dobrou o joelho direito e planto na custodiazinha de prata esculpida, cosicada no pano da semoleira, um ruidoso beijo da sua úmida beiçada.

Cortando a fazenda para aviar ao cego, o empregado fez sinal um outro menor, que despachasse o homem. O pequeno, puxou um dobrão da gaveta, e atirou ao balcão.

O Lucas arrastou o Batistinha, de mão no ombro, até a porta. contava-lhe uma porção de coisas "do nosso povinho". Que a Porcin brigou de uma vez com o Afrodísio, e muscou-se para o Pará, onde ia dar pancas no meio da galegada. Aquilo tinha uma vidinha esticada com sernambi! Que o tal de Centu, pelas cartas, acuara na Corte, à medid dos seus desejos, por empenhos do Visconde, e que a sua vida era troc pernas. Entrou no mundo com o pé direito! Sempre embirrara com aquel mafamede! Não lhe dava dois anos que o maluco do desembargador não arrenegasse de tal genro. Eita! Menos disso... Pois até loguinho. Quei bem a gente, que não custa dinheiro. E foi-se.

— Ora se custa! obtemperou o moço de si consigo, limpando r lenço a destra que apertara aquela mão que lhe era moralmente nojen como no físico a de um Lázaro.

E ficou de pé, na soleira, enquanto o colega arranjava o tal diaderr que o velho exigia. O andador seguiu rua acima, sem chapéu, e de guarda-sol invariavelmente aberto. Quando o vento dava, aparecia por baixo da opa o lenço de rapé, quase a sair do bolso de trás.

O homem se mexia presto, e de porta em porta ia gritando familiar­mente:

— Pro azeite do Santíssimo. Pro azeite do Santíssimo.

Isso por aí além. Os três não tardaram em seguir rua acima. As fron­tarias do ocidente e o rés-do-chão estavam tomadinhos de sol. Apenas uma estreita umbria contrapunha débil frescura. Eram atraentes aquelas varandas pintadinhas de verde, rindo no limpo corolamento das frentes coroadas de platibandas e encasquetadas de enormes telhados verme­lhos. Dentre as casas do Nascente, aparecia a meia corporatura de ár­vores da Feira Nova, derramando e gotejando sombras para aqueles la­dos. E eles iam a atravessar aquele vaivém de pessoas e de coisas, aquele bulício mercantil nos passeios, no empedramento, à sombra, ao sol, li­geiros uns, devagar uns certos, dentre tudo desafinando o ruído das car­roças como o moer seixos.

Desenganados de que por ali não arranjava-se o tal diadema, iam de loja em loja, sempre inutilmente. Uma tolice da imaginação do cego. No mercado não existia tal bugiganga.

O Batistinha, este a cogitar um pouco, para ver se encontrava nal­guma parte. Corria a vista. As padieiras, os claros de parede, ostentavam letreiros, tabuletas e amostras. De uma Ourivesaria se destacava um gordo relógio alvo, com ponteiros gigantes, e mais longe balanceava no ar o encarnadão de uma bandeira de leiloeiro com o dístico: Leilão hoje. Um mastro de consulado esgueirava para o alto, roçando a parede de uma esquina...

Desimaginado da sua pretensão, o cego estacou de repente. Resoluto:

— Home, quer saber de uma coisa? Vamos embora para casa.

Da Rua da Boa Vista, desembocando na Feira pelo Sul, via-se pela nesga do arruado, abrir a fervura do Mercado formigando de povo. Os ruídos eram impelidos ou descaminhados pelas correntes de ar. E já na praça, presenciava-se um fundo de xixazeiros altos a servir de sobre-céu à barracaria roxo-terra, verde, pintada a cores extravagantes e sujas. Do minavam os tons da roupa branca. As árvores se expandiam em cintilações e em sombras.

Não havia meio de o entreter por mais tempo. Opinião e pancada sua orçavam pela mesma segurança e rigidez. Contudo, ao atravessar a Feira, sempre tentou ver se achava por aqueles bazares e armarinhos

variegados, que dizem ter de tudo. Mas chegava a um e dizia: Aqui tem isto?

— É só o que falta, meu amigo, respondia o afanoso lojista, no seu aprumo.

Tocou o meio-dia, e soaram sinais por defunto no sino longínquo da Prainha. O vento favorecia a nitidez das badaladas.

O velho gritou para o Batistinha.

— Oh Joãozinho, se você vem assim remanchando eu largo-me adiante!

E entrou na bodega seguinte, explicando o que queria. O vendeiro custou a compreender.

— Quem foi que morreu? perguntou um polícia que acabava de com­prar coral para o correame.

— Quem sabe lá?

— Apois foi a se'Antônia, respondeu a Ângela, cuja vida era arrastar o chinelo e virar o copo, — aquela que estava lá em casa.

— E tu tens casa?

— A casa da dona que foi minha senhora.

— Ah! eu conhecia essa menina! Bonitona! exclamou o vendeiro com sentimento. Mas com quem havia casado?

O cego entrou na conversa:

— Não casou com ninguém, meu senhor!

O Batistinha e o Pedro ficaram do lado de fora, espiando uma briga de galos.

— Não casou? Não casou? repetiu a cabra, insolentemente, de mãos no quarto. E aqueles sinais são de donzela? Faz favor de me dizer?

Viu-se o cego revoltado até os ossos. Nesse ínterim o Batistinha ha­via sido inspirado por uma feliz lembrança, dizendo ao Cação:

— Ó Pedro! Agora é que me ocorre! Estamos fazendo uma grande besteira. Admira como o velho não se lembrou disto!

— Masoqueé?

— É que você já devia ter ido adiante com a fazenda!

— Como então?

— A fazenda é preta! Podese fazer a roupa.

— Ai home, é mesmo!

— Pois vai depressa, que assim o velho ao menos ficará mais con­solado!

E o Pedro largou, um pé aqui e outro lá.

Assim, quando a Ângela meteu-se a tagarelar com o vendeiro acerca dos sinais, o Batistinha entrava para dar parte ao velho da resolução to­mada e cumprida.

O cego respondia solenemente à liberta: que aqueles sinais que estavam ouvindo não podiam ser por quem ela dizia...

— Juro que são! interrompeu a cabra; e beijando os dedos indica­dores encruzados: — por esta cruz. Ainda agorinha vim da casa da Sinhá Fabiana. Um raio me parta nesse momento...

O cego passava por todas as cores. O Batistinha pegou-o pelo braço, e com uma voz engasgada, lhe dizia:

— Que tolice! Está vosmecê a dar trela a uma cabra tonta!

Foram saindo. A cabra, arroxeada de despeito, gritou-lhes da porta:

— Cabra tonta eu sei quem é. Quem sabe se tu não é o pai da criança, amarelo de goiana!

O Batistinha voltou e desandou-lhe um bofete, que a esparrou na calçada. O dono da venda apitou. Mas o criminoso desapareceu no meio do povo, que se ajuntara num instante.

A cabra erguendo-se no meio do círculo formado pelo ajuntamento, berrava:

— Anda dar aqui, miserave! Cabra desgraçado! Namorado sem ven­tura! Tu me deu é porque foi de treição!

E desfiou uma carretilha de nomes feios.

Entretanto foram aqueles os únicos sinais que tocaram naquele dia. A dúvida entrou no espírito do cego e começou a urdir a sua teia.

Já o cadáver amortalhado, com a fazenda da loja, e posto no caixão, que repousava em cima de dois mochos, um filhinho do Pedro, roendo a sua bolacha, nuzinho, torcendo o cabelo a chupar a língua, chegou e disse:

— Ih que pano preto!

O cego, entretanto, havia dado um último abraço na filha, com uma idéia de nuvem branca em céus de anil!

Tudo perdido! A dúvida fez a sua postura. Nasceu a certeza. O cego perdeu o tino. Achou em si uma decepção, como se o despissem na rua, como se o pegassem num furto, como se todos olhassem-no com espanto e nojo.

Teve força para guardar silêncio. E não se alevantou do lugar. Pudera! se a vergonha era toda nele! Todavia, quando menos pensou, estava de pé, saiu daquele ambiente afogadiço e mortal, com o coração fechado.

Um pai não insulta sua filha desonrada e morta. Acabara tudo. Assoberbava-lhe um grito enorme de desespero, iminente explosão, todo ele era um arrebentar. Não podia pegar em nada, e nem tocar em nada; largou pelo mato adentro, e andava fugindo ao contacto de tudo. Cada vez que assentava o pé, tirava-o, com uma sensação horripilante. O queixo lhe apertava, com uma adstringência suprema. E cada molécula do seu corpo era uma aflição. O coração tomava-lhe fôlego. E via sempre, sempre, a filha, não morta e estendida na esteira, mas viva, linda, formosa como a Virgem Santa, resistindo, resistindo.., para afinal desvendar-se por uma vez. Tapava os olhos. Enxergasse ele com os da carne! E subia-lhe de dentro um arrocho. Caiu, debaixo de uma moita de pau-ferro entretecida de maracujá-silvestre, com vontade de não mais se levantar.

Mandara o Joãozinho um homem após ele, e ficou para o enterro.

O golpe era profundo, o moço não tinha alma para assistir à dor daquele pai. A Binga rolava com um ataque, a dar guinchos na rede. Os circunstantes diziam que isto era doença do flato.

As quatro e meia horas da tarde assomava o enterro no adro da capelinha. Os carregadores vinham ofegantes da subida. A largas passadas solenes, calcando o pé, a um tempo, os quatro homens, de boné, jaqueta e calças de lustrim, com um rijo talabarte onde enfiavam as pon­tas dos varais que suportavam o caixão, entraram, pendidos para trás com o peso. Atroou a cadência de muitas pessoas no assoalho, e reboou a nave deserta. Os convidados abriram para os lados, depois de cada um armar-se do círio. Sobre uma pobre eça agaloada nas arestas, espe­rava o caixão a vinda do sacerdote, ao meio da igreja. Veio um menino acender as tochas dos quatro castiçais negros que arrodeavam o féretro. Inda houve momentos de expectativa. Enfim, apareceu pela porta lateral da capela-mor um rapazote de paletó de alpaca, alçando uma haste ne­gra e alta, encimada por uma aparência de guarda-sol fechado, de veludo preto com franjas de retrós amarelo, da ponta do que uma cruz subia com os seus braços duros e crispados. O rapazinho dobrou o joelho debaixo da lâmpada, e avançou, com o comprido emblema inclinado ao ombro, indo postar-se atrás, um pouco afastado, de costas para a saída. Veio o padre, com o roquete, a estola roxa, o ritual, acompanhado por outro menino que trazia a caldeirinha de água benta; e como se não estivesse ali pessoa viva, para ninguém olhou. Fez uma genuflexão à cruz, e colocando-se para um lado, leu no seu livro, rezou o Pater Noster, asper­giu o caixão, não sei o que fez mais, e foi-se embora. Os carregadores meteram os varais por debaixo do esquife, suspenderam, tiraram de so­bre a eça, enfiaram as pontas no talabarte, e saíram, envolvidos no pau­sado tropel dos convidados pelo tabuado soturno.

Da capela, avistava-se a paisagem dos sítios da praia, e lá por de­trás o mar enorme de um azul fino que provocava desejos de abeberar. Para o Nascente um teçume de coqueiros, e o cinzento do caminho in­terior do Meireles. Para o Poente a cidade, amostrando como a despontar do chão as torres e as platibandas mais elevadas.

Era longe o Cemitério. O Batistinha não foi além da Rua da Palma. Entretanto, era até andejo. Padecia, porém, um esmorecimento geral das forças naquele momento, e quisera ficar só, a ver se poderia consigo mesmo expandir-se, desabafar-se, prantear, imaginar, endoidecer, mor­rer, estalar de febre. Meteu-se no quarto, à Rua das Flores. E depois de dar algumas ordens ao capataz, que o acompanhava, mal este pôs o pé na soleira, a porta fechou-se.

Chegou a Semana Santa.

Sexta-feira da Paixão a Fabiana, de braço dado com o Osório, no rigor do traje preto, seguia para os atos da Sé. Uma com o manual, outro com o binóculo. Em toda cidade havia o extraordinário formigar do povaréu pedindo esmola para o jejum d'hoje, como é costume naquele grande dia. A ausência de sinos, de cornetas, de chocalhos nas cavalgaduras, de tráfico, de toques de piano, punha a cidade como edificada em cortiça.

O arrabalde invadia a povoação confortada. Ao longo das calçadas a plebe em turmas, ia de porta em porta. Havia aglomerações nas taber­nas e mercearias, nos armazéns das grandes casas comerciais, e nos baixos dos sobrados das famílias de alta catadura que consagravam ainda aquele uso tradicional. Mulheres em quantidade, de chinelo, xale surrado, ou cobertas com um lençol de tacos de chita, cabeção sujo, com o ar dis­farçado do cão que pisa em terreiro alheio. Raro uma pessoa branca. A modo que estava ali a grande maioria dos descendentes tapuias rara­mente cruzados com os africanos, e apenas de longe em longe retocados pelo sangue europeu. Crianças acompanhando as pessoas grandes, e fazendo pela vida. Ao espírito embora esterilmente observador do Osório, aquela multidão, arrastando chinela e penúria cidade adentro a pedir es­mola, era uma grande revista em ordem de marcha, do arrabalde perante a soberania da população mestra, duas espécies distintas de gente em claro confronto ao sol da Redenção que celebrava o catolicismo. Trajes, costumes, feições, andar, linguagem, e várias particularidades, como de duas nações diversas.

Por seu lado os mendigos de profissão tinham ciúmes daquele uso. Com que direito o mundo inteiro se despejava na rua tirando esmola? A População válida tinha obrigação de prover-se. À miséria é que cabia o direito de caramunhar sem pejo e pelo amor de Deus, de passar o dia acocorada no portão da Feira, de lamuriar à saída das festas de Igreja, de tocaiar o povo nas esquinas das praças, de exigir na porta de cada um. A mendicidade era um direito divino, como para nós outros o são as antigas monarquias e as novas repúblicas.

O João de Paula percorria a cidade como um idiota, banzando. Não trazia uru para o bacalhau e o feijão, nem o saco da farinha, da bolacha, da rapadura e de pão d'ontem.

O Pedro Cação havia chamado para casa o casco da família, isto é, a cunhadinha nova, a cunhada viúva com os três filhos pequenos. O cego havia abandonado de todo os seus. Vivia à toa. Comia onde havia, dormia onde anoitecia, e tomava lá o seu porrezinho uma vez por outra, Havia momentos em que era impossível abster-se o mais fugitivo traço de riso daquela fisionomia sem olhar. Estava-se tornando popularmente conhecido, porque tocava bem a viola. Era o cego da Viola. Aparecia à tarde, muitas vezes, de gravata, colete, e paletó servidos, que lhe davam; e ao amanhecer tudo era em lama, se chovia, ou poeira e rasgões. Pa­decia ataques de fúria, ou antes, dava-se a isso, quando estava na be­bedeira.

O Osório,ao pôr o pé na soleira da Sé, notou-o por entre os solda­dos que estavam aí montando guarda. A soldadesca cercava-o e tirava prosa. Fazia boas gaiatadas, que nem uma criança ou que nem um doido, torcia o beiço, batia com os braços em ar de galo que vai cantar, sapa­teava, contrafazia-se em trejeitos e mogangos, o que lhe rendia sempre alguns dobrões para a sacola. Havia naquilo um bom divertimento para a troça das ruas.

Um pano enorme, de casimira cor das opas do Santíssimo, com um sagrado emblema cosicado no meio, velava a abertura da grande porta da entrada, encaixalhada em fortes punhais de pedra lioz. Fabiana despregou-se do braço do marido para poderem romper. Logo adiante da entrada o guarda-vento, envernizado a pincel com roxo-terra, tapava a vista do interior, de alto a baixo. Meteram a mão na pia ostrada à pa­rede, e persignaram-se. O Batistério da direita com o seu Santo Antônio no nicho, estava escancarado para facilitar o trânsito. O casal Góis de Oliveira foi abrindo por entre os homens, numa atmosfera ruim, escure­cida pelas colunas atarraxadas que sustentam o coro e pelas esguias, em ordem decrescente, onde repousam os planos escarlavados do coreto. Da nave direita, tomada pelos homens, foram tomar ao fundo a grande escadaria em cotovelo que leva à ordem superior das varandas. No úl­timo degrau, vieram abrir o cadeado, e a grade deu franquia a ambos.

A Fabiana meteu a chave na portinhola do seu compartimento, e evidenciou-se o grande espetáculo da igreja cheia. De defronte, e de lá debaixo, do coreto, olhavam para ver quem era. O Osório, ao lado da mulher,que ajoelhava com as mãos no peitoril, corria o binóculo, e fez um ar de satisfação. Descobrira o boticário, ali vizinho:

— Passa para cá, Fernandes.

— Ora, espera.

Ambos deixaram aquela espécie de camarote de teatro.

— Eu estava para aí, doido por uma companhia; queria fumar.

— Fumar na Igreja?

— Devia ser permitido, como o teu rapé.

— Mas, fuma-se na torre.

— Pois vamos lá.

Atravessaram o corredor, e, ao pé do coro, puseram-se a caminho escada acima.

— É íngreme este caracol!

— Olha que aqui podemos pôr o chapéu na cabeça.

De quando em vez, por uma clarabóia, aparecia-lhes um jato de ci­dade. Por uma de Leste, avistava-se longamente uma tira de morros, como um gigante alvo e nu estirado entre o mar e o verde empoado da planície.

— Oh! Fernandes, aquilo é realmente insuportável: uma senhora não pode vir cá: repara estes desenhos pela parede! Que indecência imunda! Bonitos palavreados, sim senhor.

Na verdade o casamento estava garatujado a carvão. Eram caretas, nomes feios, e esboços imorais de uma torpeza crassa.

— Sabe quem faz isto, Seu Osório? São os nossos lindos filhos. Agora não admira. Li eu algures que a infância reflete a sociedade, e que pelo cachorro da casa, e pelos pequenos, podese concluir o que sejam os donos. Os meninos borram e quebram as obras de pedra e cal, e vo-cós as do ideal, o Direito, a Lei, a Religião, a Política...

Eram chegados ao meio do caminho. Havia aí um andar completo. — Homem, deixe-me lá, que é feito do Centu?

— Ai que aquilo está um pateta!

— Ora cá está a sua última carta. Recebia-a esta noite, depois de assistir ao Lava-pés. Ouve lá como isto ainda é bisonho.

A carta dizia uma dúzia de puerícias de pai, anunciando que a Ma­riinha tivera o seu bom sucesso. Perdidinho em amores pelo pequerru­cho! No fim, a Manriinha mandava um recado para a mamãe não esquecer as rendas e o labirinto para a camisa do batizado, e que estava muito bom o doce de caju e os queijos que foram. Pedia que visse se era possível mandar um caixote com carne do sertão e rapadura batida.

— E como vais tu com o Visconde?

— Homem... titubeou o Desembargador. Toma uma pitadinha deste simonte que é excelente...

— Eu uso lá de porcarias!... Mas, dizem-me que vocês estão de ponta...

— Qual! Comigo ele não se incompatibiliza. Sou desembargador! O que dizem é que vais abandonar a política.

— Eu? Agora que os conheço? Absolutamente.

— Os conheces? É mais fácil apertar muçu dentro da água do que proferir uma palavra segura sobre o caráter de certa gente! — Que bobo! A coisa é uma pessoa conduzir-se com as mulheres ilícitas. Os galardoados são sempre os mais remissos, que sabem negar o corpo, e dar a pancada a tempo, porque os chefes estão seguros do serviço dos dedicados ao que der e vier. Eu já aprendi a forçar a porta da travessa dos cérebros e dos corações, mesmo com o teu chefe.

— Cá a minha vontade era formar o partido republicano.

— Deus o livre, Deus livre o partido republicano o nascer desta de­generação mercantil!

Se eles enxergassem com os olhos da torre veriam a cidade, pai­rando pequenina lá embaixo, como o Gulliver diante do Liliput ou de Blefuscu. Os sinos, em seus nichos, estavam com os badalos amarrados, e o Osório batendo na beira do grande com o nó do dedo, fez-se na abó­bada da torre uma ressonância prolongada.

Largaram a parolar sobre a terra que se aplainava por aqueles ho­rizontes adentro. Via-se, nas ruas que o olhar apanhava, um formigamento de pigmeus.

— Este país não será coisa nenhuma enquanto a cidade não ca­pitular com a roça, formulava o Fernandes. O aumento da capital é pro­porcional ao despovoamento e abandono do interior! Isto assim vai à gaita!

O céu azul estendia o seu toldo imenso. E os dois amigos entraram a discutir em voz alta, naquele isolamento de torre. Não se podia perce­ber o panorama senão por nesgas, pelas fenestras dos sinos. Lobriga­vam-se indícios da vila de Mecejana, a povoação de Arronches, a matriz de Soure, pombinha alva caída nos matos, cerca de três léguas de cir­cuito. O mar, esse era a perder de vista, uma visão gigantesca e indefinível.

O Osório estava confederativo. O Fernandes, porém, mais às direi­tas, absolutista. Demonstrava o boticário que o rei absoluto precisa do braço do povo, contra as cabeças dos poderosos, e testemunhava com a História. O outro alevantava teorias de liberdade.

— A liberdade faz isto que você está vendo, seu desembargador, estirava o Fernandes o beiço indicando a cidade. Esta província ser, da Corte, uma afilhada reles, em vez de uma filha querida. A liberdade faz é consagrar esses parvenus em morubixabas, sem flecha e sem tacape em trégua permanente com os dois maiores inimigos desta Província, que são a Natureza e a Corte. Você está vendo aquela empena?... Ali, ho­mem! No campo da Amélia. Aquela empena com andaimes... É uma casa que estou construindo, à custa de rigorosa parcimônia. O fim dela será cair em mãos da oligarquia dinheirosa. Quem edifica é o pequeno bur­guês. O grande possui a favila do capital. Não constrói, nem planta. Abo­canha depois com a hipoteca.

— Homem, isto é muita afoiteza, seu Fernandes! E que serviço útil presta você com a sua farmácia?

— Concordo, é um meio de exploração, como o seu.

E de paradoxo em paradoxo, um chegou ao fim do cigarro, queteve de reacender mais de uma vez, e o outro a fungar umas três pitadas atroantes.

O Fernandes, riscando um fósforo, lembrou-se do cálculo que fizera, das ripas que havia de comprar para a coberta da casa.

— Hein, homem? Estará certo? Deixa-me ver... De dez em dez po­legadas, um caibro... são cinqüenta palmos... cinco vezes oito...

E com a pontinha carbonizada do palito do fósforo escreveu uns al­garismos na parede.

Desceram devagarinho, porque as escadas eram muito em pé. Findo o ato, concordaram prazo-dado para assistir de noite à Procissão do En­terro. E enfarpelados no pano fino, ambos tomaram para suas casas, cada um com sua mulher à banda. Haviam ajustado reunir no sobrado do fi­nado Senador Sucupira, de onde gozariam do espetáculo.

Realmente, obra de sete e meia, apontou o séquito ao fim da rua.

Provocava uma sensação peregrina aquele funeral por defunto su-positivo. A cidade profundava ainda mais o religioso silêncio do dia. Uma cruz negra abria o saimento, com a nívea toalha que cingira os rins do Morto, de um braço a outro estendida. Vinham pelas coxias duas intér­minas fieiras de irmandades, de vela acesa. O menino da Verônica espilongava o seu tiple, ao ruído seco e horripilante da matraca, e três me­ninos mais, também metidos em filós negros, representando as santas mulheres, respondiam. Ehu, ehu, Salvator noster. O andor da Mãe Dolorosa, o pálio solene e munificente, o Bispo com a fronte embuçada de luto, os sacerdotes cantando, o mover das velas pelo manso, o frio luzir das baionetas da guarda de honra, o pulsar gemente da marcha fúnebre, o mulherio, e, atrás de tudo, a tona enorme de cabeças de homens, a descoberto, fronte baixa, imbuíam estranho recolhimento e compunção.

O grupo encorujado nos balandraus da Misericórdia, com o pálio roxo, franjado de ouro, pairando sobre o esquife de rendilhadas de jaca­randá através dos quais, a luz dos lampiões sagrados, se percebia no transparente esfumilho do filó preto, o alvo corpo nu de Jesus morto, era de uma arte perfeita, e espalhava por onde ia passando a Procissão um vago e plácido sentir de boa morte.

Recolhida a procissão, a Fabiana, que ficara na Igreja, ouvia, de uma das suas varandas, o chamado sermão da Soledade, em que o pre­gador em certo ponto, desenrola ao auditório soluçante o Sudário san­grento que serviu ao corpo de Jesus. Fabiana chorou o seu tanto, enxu­gou o nariz com o lenço bordado, tossicou, escarrou, desobstruiu-se de manso. E daí tomou o seu carro e foi embora.

Seguiram se os ruídos valpurgianos costumeiros daquela noite. A tradição e o costume populares iam cumprir-se na rua, como no templo, a rubrica. Aos devotos estavam suspensos os gozos da carne, parado o riso, fazia-se treva na alma. No ripanço anônimo da plebe e rapazio ia entrar o diabolismo, os tumultos, a orgia, a inferneira da grande pândega do Judas. O arrabalde não dormia. O sítio do Bispo, os quintais da Rua de Baixo, as chácaras dos arredores, eram assaltados pela troça em gru­pos, de calça arregaçada, facão em punho, e chapéu nos olhos. A noite, como no oceano o ruído das vagas, vibrava de gritaria, de apitos, de gol­pes de machado. Em vão a pequena polícia da cidade, abugalhava no escuro dos bairros. Era um conluio de gente de gravata limpa, disfarçada em canalha, que atravessava uma rua furtando um judas, uma malta de aracatienses, na serração da velha, fazendo uma algazarra de arrepiar cabelo, na porta de algum octogenário, a serrar num barril, e convidá-lo "para morrer, que já era tempo"; uma noite selvagem, tapuia, aprecia­díssima. Serraram o coitado do João de Paula, e o seu ex-futuro genro estava no meio. O cego idiota, mesmo receando isso, que é uma noite aquela dos velhos dormirem apavorados, albergara-se em casa de um padre idoso, venerando e bonachão. Mas foi baldado. A uma hora da ma­drugada bateu aí a matilha, e glosou por todos os modos a iminência da morte para o velho, com cantigas e duetos acompanhando a azucrinação do serrote cego no corpo ressoante do barril. Desafinado e tredo vaivém. O João de Paula conheceu a voz do Batistinha.

— Ai como demudas, roda da fortuna!

Quando Antônia era viva, que o Batistinha vivia fascinado, agradava até ao cachorrinho da palhoça do cego, a todos queria, às irmãs da An­tônia, às sobrinhas da Antônia, a tudo que cheirava a Antônia.

— O mundo vira e revira mesmo como aquele barril que eles serram!

Por fim o padre-mestre entreabriu a rótula, botou a cabeça, e amostrando à luz do gás exterior a sua calva salpicada de cãs, levantou os óculos, e falou para a motinada:

— Oh! ladrões, como é que vocês insultam desse modo a gente ve­lha? Que é da educação cristã que receberam?

Isso foi num abrir e fechar de olhos. O bando, ao clarear da rótula, não esperou que aí aparecesse alguém, e debandou a toda carreira, com barris e tudo, a desaparecer na esquina soltando uma gargalhada sufo­cada e garota.

Voltaram uma hora depois, e então o padre, a conselho do mendigo, carregou a espingarda, e o outro abrindo, com tato de cego, uma brechi­nha do postigo, o reverendo papocou-lhes um tiro de sal. Feriu o Batistinha no ombro. Este soltou um grito de

— Assassino!

E dispararam então numa tropelia de gado espantado, sacudidos longe pelo medo.

— Assassino és tu e o teu patrão! gritou o cego, armado de bastão, pulando da porta na calçada, saltando em campo. A mola do ódio e da revindita impelira o coitado, e ai de quem o afrontasse naquele instante.

— Anda infame! Cachorro, ladrão, ladrão! Anda com todos os Vis­condes de São Galo!

Aquela palavra explosiva ladrão, ele a pronunciava com uma dúzia de aa e rr. A polícia acudiu, tarde.

Pela manhã faltavam galinhas e um peru no poleiro do padre; A im­prensa e meio mundo levaram a mal terem serrado o padre velho, sem notar que o atentado fora feito antes ao pobre cego e não a Sua Reve­rendíssima. Assim, as simpatias convergiram para o dono da casa, e o mendigo, claro dia, saiu a continuar na sua missão, com a viola debaixo do braço para tanger o rasgado logo ao depois da aleluia.

Os dois amigos voltaram aos atos da Sé, glosando as diferentes no­tícias dos incidentes da noite velha, ora rindo, ora glosando censuras.

Ao romper do dia a Catedral e matriz estava repleta. À porta, do lado exterior, o Bispo diocesano com os padres paramentados, irmanda­des, autoridades, etc. proferia a benção do Fogo novo, em que acendia-se o enorme círio pascal, conduzido por um seminarista. O patamar estava cheio de gente, e os mendigos clamavam a esmola pelo amor de Deus. Desse belveder apanhava-se quase um círculo do matutino panorama. Não apontava ainda o corpo do sol. O dia, porém, clareava em diversos pontos o espetáculo dos Judas enforcados. Ao longo da Rua das Flores distinguia-se dois, fora os que, na distância, confundiam-se nos matos dos sítios em que os metiam, para além do Campo da Amélia.

O Cerimonial entrou na Igreja. Iam agora benzer a água. Os dois, porém, preferiram ficar tomando fresco do lado de fora, porque já conhe­ciam muito aquilo, e a curiosidade movia-os antes para apreciar o mo vimento exterior da original manhã de sábado de Aleluia. Na Apertada Hora, uma ladeira de pó escuro ao lado sul da Catedral, havia três Judas, isto antes de morrer o aclive na esplanada do Outeiro. Nesta, à porta de uma taverna, bem edificado e uniforme casarão da marca da Câmara, reverdecia um pompudo sítio, de cujo meio esgueirava robusta força, da qual o braço esquálido suspendia um Judas, macho, e um Judas, fêmea. O chamado sítio de Judas era uma possível quantidade de bananeiras, de canas com as lindas palhas verdes, de palmas de coqueiros, a mor das vezes entrançadas e fazendo arcada, de galhos da mangueira, de goiabeira, e de toda espécie, obtidos no assalto noturno feito ao quintais, chácaras e sítios, representando, talvez, o horto em que se enforcou provavelmente o amaldiçoado Iscariotes. Por todos os ângulos da visão ocu­lar encontrava-se, perto ou distante, o cadáver pendente de um boneco enforcado, enfarpelado em paletó e gravata, pode ser que para exemplo ao Iscariotes do eterno Cristo que renasce diariamente nas pessoas dos

mártires da vida, como obtemperou o Fernandes. Para a prolongada su­bida do Outeiro da Prainha, dónde o visionário olho do sol chamejante ainda uma vez subia a derramar a sua gargalhada e sua miríade candente de farpas, a luz fimbriava em silhuetas um Judas de fraque com a cara sumida num chapéu alto, sozinho no fundo azul do céu. Debaixo esga­Ihavam ateiras em tòrno de uma alegre choupana. Perto do Palácio do Bispo, quase na frente, por trás do paredão que serve de assento a Sé, havia um, cuja máscara era uma cara de ancião, com bigode e pera, chapéu-do-chile, sobrecasaca de pano fino, botinas de cordavão, calças de casimira cinzenta, e luvas de pelica, os dedos muito duros, para fora. O vento agitava-os para um lado e para o outro. Ao espetáculo insistente dos bonecos enforcados, apoderava-se insidiosamente do Osório a idéia de enforcados de verdade, em carne e osso.

Foi tempo que rompeu a Aleluia, com um grande gozo para os co­rações oprimidos. Foram, ato contínuo, atassalhados os Judas pela mo­lequeira desenfreada. Só se ouviu, então, algazarra de repicaria em todas as igrejas, foguetaria no ar, salvas da fortaleza, tiros de bomba ar­rebentando as entranhas dos bonecos, um atroamento enorme e prolongado que parecia agitar até a tolda do firmamento. Estremecera a lousa do sepulcro. Mais nada. Fumegava de vários pontos o incêndio dos Iscariotes, e turmas de moleques rolavam pelo calçamento, de ca­cete em punho, batendo nos restos esmolambados do suicida em efígie.

Apareceu então por toda parte o número do Meirinho, folha picaresca, trazendo o testamento, ansiosamente esperado. No adro da Sé distribuíram-se alguns números, e o Osório muniu-se de um. O testamento do Judas era em verso, como de costume, deixando uma herança para cada pessoa geralmente conhecida na cidade, e em estilo mordaz, bre­jeiro e linguarudo. Logo que o Osório pegou no periódico, foi intentando para o que a musa popular dizia de sua pessoa. Botou os óculos, depois de limpá-los no lenço, e acostaram-se um do outro, lendo à meia voz, e estribilhando com gargalhadas e comentários cada tirada:

Deixo pra hora da morte
Do Afrodisio carnaúba
A minha forca bem forte,
Para que a seu tempo suba;
Porque em artes de dinheiro
Eu Judas não fui primeiro
E nem ele o derradeiro.

— Ah, ah, ah!

— Magnífico!

— Esplêndido!

O poeta em seguida lançava a seguinte quadra com pretensões à "palmatória do mundo":

Para o leão que na jaula
Fez a donzela em destroços
Ficam da Antônia de Paula
Debaixo do chão os ossos.

— Continua, que isto saboreia-se mais que paulada pascal!

Para não haver privança
(Neste país de vivório)
De justiça, ao meu Osório
Fica-lhe a minha balança.

— Ai que esta foi má, hein senhor desembargador?!

O homem riu:

— Meu amigo, é para todos!

— A cada um toca o seu quinhão!

— Mas isto assim indigno! Caramba!

O órgão plebeu e frascário ia de chouto com a sua bagagem de ver­saria, de léria, de chanças, com o direito e regalias dos escravos no dia das Saturnais. Do boticário Fernandes, dizia que à custa de água do pote e casca de pau, que se encontra a valer no Pajeú e na Aldeota, agenciara do compadre Zé Povinho.

"Um monte de ouro alto como os Andes."

— Nisto é que dão as liberdades, Seu Osório! batia ele com o papel, desapontado.

— Homem, não se atrepe, que isso querem eles. A quem não tem rabo de palha, prega-se, é o que dizem os nossos amigos. Muito pior do que isso tenho eu lido na imprensa séria. Ora se! Um horror! De meter à gente uns rompantes, de agarrar na rua um diabo e cosê-lo na ponta de uma faca. O bacamarte traiçoeiro de detrás das árvores, do sertão, metamorfoseou-se, mercê do civilizamento, nos duetos, verrinas e diatri­bes da imprensa limpa da capital. Não faça caso. A plebe, em nos ata­cando, está no gozo de um direito seu.

E daí, desceram o terraço da Sé, indo a escutar o João de Paula, na embocadura da Apertada Hora, desandando a violinha, numa taverna de soldados, onde há pouco a turba havia queimado um calunga.

Consumiu-se mais um mês. As chuvadas haviam empatado a obra do Fernandes, por modos que só agora houve de levantar a cumeeira. Estava ele na sua botica, um tanto nos seus azougues, para dentro e para fora, aviando os fregueses, empestado pelo humor negro das caseiras. Uma quizila, quando o Fernandes estava com as ditas. Parecia-lhe ser todo intestinos, e o asco subia-lhe até aos escaninhos das idéias. Helênea beleza se lhe desvendando ali, Aspásia entre os juizes, ele a con. denaria ainda assim, e tamanhas incongruências baforavam-lhe as al­morreimas pelo espírito acima!

Se não fora a boa fama das suas drogas e preparados, ninguém se atreveria a pôr-lhe o pé na soleira. Além disso, mercava com unhas de fome. Este último distintivo deu azo até a anedota de que um roceiro, indo comprar-lhe um purgante de óleo de rícino, pediu que botasse mai­orzinho, que era para gente pobre; ao que o farmacopola respondeu que aquilo não era leite batizado, se queria com lavagem, era ir ao Chico Fo­cinho, que vendia azeite de carrapato muito bom para purgar animais.

Agora, ali mesmo, um menino pedira um vomitório de puaia, e como não trouxesse o dinheiro inteirado, ele despachou-o:

— Não há de venda.

A sua boa estrela, porém, fez o Osório ir atravessando a praça. Ele deu fé e gritou:

— Desembargador!

O magistrado olhou em torno de si, procurando donde viera o cha­mado. A um segundo apelo fez-se para lá. Tão depressa entrava o Osório na botica, o Fernandes vinha de dentro enfiando o paletó, com o chapéu atirado à cabeça. Deu algumas ordens ao caixeiro, e largaram ambos ci­dade adentro.

— Quero mostrar-te a obra como vai. Há de haver por lá hoje a sua pinga e, algum trompaço de mais.

— É não lhes dar bebida.

— Como? se é uso! É de mau agouro cumeeira sem festa. — Bem sei. Arrotaste contra as credulidades.

— Tolo não sou eu.

Hora sem sombra, a calçada exalava um calorzinho já, e parecia tinir sobre os tacões. O Passeio Público aparecia lá ao fim da rua, com a sua massa de árvores barreada pela fita rósea do gradil. Dele, esten­dia-se o céu azul, com umas sardas de neve altíssima.

A safra atulhava a cidade. Os cargueiros gritavam para as caval­gaduras, a desviar dos combustores no dobrar das ruas, e com estalos de chiqueirador sustentavam o brio da tropa. Nos armazéns do São Galo estavam a baixo comboios, e no de açúcar, com a frente roxo-terra e te­lhado enegrecido, tudo parecia lubrificado com melaço, as cangalhas e o pêlo das bestas, o lombo dos trabalhadores, o chão, o pé da parede. O Batistinha, de roupa engomada e lápis em punho mandava recolher as sacas, e tomava nota das pesações. Brilhava, como dorso de enormes lampreias, o meio corpo a nu dos carregadores.

O seu Lucas, de opa verde, atravessava aquele atravancamento, pedindo numa toada só:

— Para a missa das almas. Para a missa das almas.

Avistando o Desembargador, correu-lhe ao encontro, e desancou-o com a sua prosa familiar e interminável. O Osório não podendo evitá-lo, fez sinal ao Fernandes, e descartaram-se breve do importuno. Continua­ram. E o Lucas prosseguiu no giro naturalíssimo da sua índole de mosca.

Uns foguetes subiam quase invisíveis no azul, e estalavam lá em cima uma brasa que se apagava logo, deixando uma fumacinha. A soalheira tremia na vista.

Com pouco, os dois pisavam no campo da Amélia, continuação da chapada em que assenta meia Fortaleza. Uma risca de mar aparecia em guardapisa ao rés do terreno, e os materiais do Caminho de Ferro, com a Estação, atravancavam para aí. Na face poente, o Cemitério Velho ale vantava um belo horto de casuarinas, ao sopé das areias ingentes do morro do Croatá. E a vista se perdia por matos e casebres, terras adentro. Ao longe, no verde, o Cemitério Novo, com ar de chácara.

— Lá está a obra, aquelas duas empenas naquele terreno devoluto. Aqui para o Nascente.

— Estás construindo casa do lado do sol!

— Para família é das melhores. São vinte mil-réis certinhos por mês. Uma sala, duas camarinhas, sala de jantar, cozinha, despensa e alpen­dre. Corredor lavado. Quintal de meio quarteirão. Telha vã, e pavimento de tijolo.

Via-se logo os dois enormes panos paralelos de alvenaria em preto, com a frente e os andaimes, com a viga mestra, e tudo embandeirado. No meio da rua estendiam-se compridas linhas de carnaúba, e amontoa­va-se tijolo branco, e carradas de barro.

O serviço estava parado, com a pagodeira. Três portas de frente. No interior, o sol, pendido para o lado, projetava sombra a meio na areia escura, salpicada de bandas de tijolo, e embaraçada de ripas, e cordas de poita. Aí os pedreiros, serventes e carpinas faziam correr o copo e me­rendavam pão, sardinhas, queijo e goiabada, tudo comprado na venda próxima. Chegava o Fernandes, e a gritar:

— Ó seu mestre, isto vai ou não vai? Acabem com essa borracheira, e linhas arriba! Olhem o inverno que me arrasa tudo.

E dando com uns milheiros de telha arrumadinhos ao sopé da parede:

— Estas chegarão? Amanhã vem o resto dos caibros, sem falta ne­nhuma. Comprei ripas no Aracati, de carnaúba madura, que acha?

O Fernandes tinha um medo, quando cuidava que a chuva ia derru­bar-lhe os oitōes. O mestre pedreiro, afastado do bródio, examinava as linhas que haviam de subir, e combinava com os dois carpinas.

— O dia hoje está muito aziago! bradou o amassador de barro, erguendo-se do conluio, a palitar os dentes com um fósforo. Quem ouve ler o diabo daquele jornal, não sei como tem ainda coragem para traba­lhar num dia destes!

Referia-se a uma notícia que a Oportunidade trazia, de uma morte no Caminho de Ferro, ali mesmo naquela praça.

— É por isto que eles não estão alegres como eu esperava! explicou a si mesmo o Osório, que estivera a espiar para uns fundos dos quintais.

De fato, aquela desgraça era o escândalo do dia. O Osório, que não havia pegado nas folhas, pediu uma que um pedreiro estava a soletrar. E largou a ler:

"HORRENDO ASSASSINATO!"

"Esta noite, estando esta folha já em paginação, espalhou-se o boato de que o trem de carga chegado s onze horas, quando devia chegar s nove, matou friamente a um homem de cor branca, já perto da Estação. Julgando exagerado o boato, pois estávamos longe de acreditar em tanta perversidade e malvadeza, mandamos indagar, colher as devidas infor­mações das autoridades competentes.

"Desgraçadamente a verdade ainda era mais crua! Um crime espantoso! Estamos dispostos a profligar até a última! É preciso que o governo tome sérias providências, do contrário, daqui a pouco, os trens sairão dos seus trilhos e entrarão pela cidade esmagando aos cidadãos inermes e às criancinhas inocentes, a mulheres e velhos.

"A vítima chamava-se João de tal. Era cego, vejam bem, era cego! Horresco referens... Vivia da caridade pública, e andava por uns sessenta e tantos anos de idade. Julga-se que tivesse errado o caminho, pois ele gabava-se de andar só, quando o trem fatal veio cortar-lhe para nunca mais as doçuras da existência! Chegou a gritar, sentindo-se perseguido pelo trem, e isso com tempo de parar-se ainda o monstro de ferro. Na­quele ponto a linha faz uma grande curva, de modo que o infeliz julgando que o trem vinha era em linha reta, tomava para o lado e caía justamente no caminho da máquina sem entranhas! O cadáver foi arremessado a uns montes de madeira, em mísero estado de deformação!

"A autópsia, ou antes o corpo de delito, foi feito, sendo o cadáver recolhido à Santa Casa, pelos Drs. Ambrósio e Meneses. Amanhã dá-lo-emos por extenso, se a polícia não julgar que o governo tem interesse em ocultar essa confissão tácita da sua inépcia. O maquinista fugiu. Daqui a pouco foge até a Companhia inteira com os materiais e a Estação.

O infeliz João trajava camisa de algodãozinho, muito suja, calça preta, muito puída e enlameada, e um velho sobrecasaco. Não vestia ceroula, tinha um pé calçado em uma botina rota; o outro andava talvez num chinelo, que não se encontrou. O chapéu não foi encontrado também. No uru conduzia meia libra de bacalhau e um embrulho de farinha, e meia pataca no bolso da calça, com um vintém de fumo de Baependi. Era estimadíssimo nesta cidade, de índole folgazã, e dizem que tocava muito bem viola e cantava lundus e toadas do sertão.

"Isto não se comenta! Isto não se comenta! Que fará o governo? Quosque tandem?"

— E não se comenta mesmo! suspirava o Osório, numa coita instantânea. O Fernandes, apreensivo por inteiro com a sua obra, levou o caso à conta dos lucros e perdas no razão da vida.

— São acontecimentos infinitésimos perante o Grande Todo. Deixe lá isso, e ande ver como as linhas vão subir num pronto para ir tomar o seus lugares na coberta. Esse pobre mendigo foi eliminado da equação dos vivos, porque assim devia ser. E o mais não passa de cavilação da sua parte, de jogo do seu jornal, ou de egoísmo de nós todos. Cada um brada contra o desastre, não com pesar pelo cego, sim por medo de que a si aconteça o mesmo!

O mestre da obra largara a bater boca açulando os operários para o serviço.

— Acabem com isso! Eu quero estas linhas todas em riba, hoje mesmo!

E era ralhos a torto e a direito, como um antigo mestre-escola. De vez em quando borbotava-lhe uma graça, de que os operários riam, para ser-lhe agradável, porque sempre se deve achar bom aquilo que vem do alto.

— Tenham paciência. O inverno aí vem, se a gente não aproveitar a estiada, lá se vai o dinheiro do homem. Este cá não é ladrão. Se não fosse pro mó disso, não se trabalhava mais hoje. Mas não hai jeito. Eis! Linhas arriba! Vamos, senhores! Toca!

Breve, roçagando ao fio das três carnaúbas inclinadas do meio da rua para o cimo da frente, subiam, linha por linha. Deitavam uma viga ao longo do sopé daquelas três que estabeleciam o plano inclinado, e sungavam-na, por cordas. Um íntimo prazerzinho para o Fernandes, que acompanhava com a vista aos menores movimentos, e dava apartes e votos.

— Puxa mais da esquerda!

— Ó seu mestre, porque razão não vai logo distribuindo as linhas pelos pontos onde devem ficar?

O outro olhava para o Caminho de Ferro, ali defronte, onde havia expirado o seu compadre João. Assim morreu o pai da sua afilhada Antônia, aos quais ele não foi bom em coisa nenhuma, apesar do seu bom coração. Agora, se o cego não sucumbira, havia de fazer-lhe muitos benefícios.

E delineava se ante o padrinho a imagem da sua loura afilhada. E reconstruiu se um passado inteiro. Abalavam-no as notas dramáticas de todo aquele episódio extinto. Mas como o demo as tece! Como é que se assiste ao crescimento e educação de uma rapariga, se a vê cair, apodrecer, esvair no pó, e é-se impassível? Como é que só agora ele via abugalhava, com uma inspirada e dolorida lucidez de poeta?

Ali pertinho, sobre os trilhos ainda manchados de sangue fresco erigia-se um castelo de recordações, que derruíam num sopro. A Antônia caminhava para ele Osório, sem jamais chegar, a pedir-lhe a benção, com aquelas feições coradas e aquele andar faceiro que lhe eram naturais em vida, e o pai vagabundeava lá por longe com o seu uru e o seu bordão. A memória do padrinho se desdobrava e ia representando coisinhas da Antônia, umas cenas domésticas muito á toa, que entretanto iluminava-se acentuadamente na fantasmagoria do ideoso, um cacoete porque a re­preendiam, uma ação má que ela perpetrasse, um elogio que mereceu, e o todo aparecia lógico, explicado, simpático, pela unidade das impressões. Percorriam a rede sensória do Desembargador os mesmos impulsos inenarráveis que diante do esquife do Senhor Morto, na Procissão do Enterro.

O mormaço intenseava, porém. O sol batia mesmo de chapa. Se­guro de que o serviço ia a bom correr, o Fernandes convidou-o a retira­rem, que fossem jantar com ele, que há muito não lhe dava essa maçada.

— Mas é preciso prevenir em casa a minha mulher.

— Passamos por lá.

E fizeram torna-viagem.

— Ohoi, uhoi! cantavam compassadamente os operários, trepados no arcabouço de alvenaria a içar as vigas, manobrando, a puxar por enor­mes cordas de poita. Era uma interjeição, ohoi, e o madeiro galgar mais uma braçada acima.

O Osório e o Fernandes encontraram outra vez o Seu Lucas, zum­bindo pela Rua Formosa, de porta em porta:

— Para a missa das almas. Para a missa das almas.

Abaixo do cordão das calçadas se deitava a areia frouxa, ao longo das coxias, misturada de cisco e de folhas das árvores das praças. O Lu­cas, por um triz, não foi apanhado, ao atravessar a rua, por uma carroça escoteira a disparada, cujo condutor, um Apolo no seu carro de fogo, de pé, roupas ao vento, estalava o relho no pêlo do burro galopante. O cal­çamento coleava abaulado embutido largamente por entre as casarias flamejantes. As ruas trepidavam, rasas de calor, e delas via-se pedaços abaixados, assim como seios de rede, onde modorrasse um farniente e­quatorial. Havia uma salientação geral sob o grande olho do sol, e a vista humana trazia velozmente os mais imperceptíveis longes. O vento corria no encalce da luz, adjutoriando-a no hino das coisas; levantava o pó, aba-tia o, limpava aquilo que ele mesmo inquinara; disparava de cabelo solto e mangas desabotoadas, apertava contra as vestimentas, esculpia fore s femininas teimando contra as coisas, e dispersava alegremente pelos arrabaldes; cujos toques se avistavam pregadinhos no céu, que sorria longe na sua calma antiga.

Da fita das cimalhas esguinchavam os serpentões, que parecia en­golirem o ar quente, aspirando com as dentaduras longamente a escâncaras.

As platibandas realçavam coroando linhas inteiras de habitações térreas e agrupações de sobrados. Os beirais se empinavam, como der­ramando goteiras de luz, as telhas embeiçadinhas em farto aconchego.

O deslumbramento se identificava com as pessoas.

— Arre! bradava o Fernandes, que a gente parece ter sol dentro de si mesmo!

Em alvos roupões, transitavam nuvens para o frio clima das serras. Um vôo de pombozinhos, batendo compassadamente no fresco azul, ia e vinha, amostrando ora o peito ora o leme da cauda, agitando sempre, quais bracinhos de neve, as brancas asas.

Com a sua opa verde, o Lucas inda sussurava como uma enorme vareja:

— Para a missa das almas. Para a missa das almas.

Verdade, verdade, verdade, aqueles alegrões de cego, a truanear pela Feira, pelas tavernas, pelas esquinas, de viola, eram antes fogachos de uma candeia que se extinguia. Não eram vitalidade, sim irritação. Não existir, mas estertorar. Por isso é que se lhe não podiam despegar da car­ranca, as voadas de um riso claro, como umas asas de garça. Naquele frontispício os caracteres do Lasciate ogni speranza sulcavam chamejan­tes da febre derradeira. Planeta que desnorteasse, e entrasse em cam­balhotas, a confundir no plano do equador a linha dos pólos em doidos movimentos, aquele crânio gelava e incandescia, negregava e fulminava. E como o rojão de artifício havia rebumbar, deixando após si o silêncio do nada. Mola impendente equilibrada no gume de um tabique a prumo, ao menor sussurro de uma pancada, despenharia, como desabam as bar­reiras de uma escavação. Barragem arruinada de uma represa, abriria ao primeiro enxurro assoberbante. À primeira idéia má que se lhe pegasse, Como o estopim da metralha, aquele cérebro havia estilhaçar. Andava, dormia, desfrutava os seus sentidos e o seu viver, ao passo que sobressaltava se de que alguma coisa dentro dele não partilhava disto. Era a modo que dois indivíduos, e não um; aspirando pela vida, com os seus gozos ligados às suas necessidades, uma força oculta atarraxava-o dorida inação, que ele só vencia por crises de alacridade; e ficava consigo semelhante a um homem do lado de fora de sua casa, cuja porta não há jeito abrir. Daí, um mal-estar do inferno, um suplício que ou acabava ou dava com ele na cova.

Em aquele dia da sua desastrosa morte, amanhecera com todas as boas disposições. Dormiu em casa do padre velho. Acordou ao ruído aca­riciador de uma chuva no telhado, e depreendeu que iam-lhe quadrando bem os momentos. Afinou a viola, e, à corrida dos canários e de outros passarinhos presos, harmonizou a alvorada de um baião pelo brando, como se dançassem ali umas sílfides, uns espíritos de donzelas e de anjinhos, em idealidades de quem não vê com os olhos perecíveis.

O padre não saiu para celebrar, por via da chuva, o que rendeu ao cego fazer-lhe companhia no café e na isca.

Á medida que o sol esquentava, porém, o João ia ficando ruim de humor.

Costumava acocorar à sombra de alguma árvore da Feira, se não achava uma conversa que lhe sustentasse o ânimo.

Sempre que bebia, fazia ato de atrição depois de curtir a mona, por­que a aguardente servia de agravar-lhe a saúde e negregar-lhe o espírito, passada a excitação do veneno. Era um contínuo protestar vida chã e regrada, e um incessante desmentido.

Impressionava-o uma certa alteração que ele atribuía aos próprios ouvidos. Mouco, isso não estava, com certeza. Que diabo então? E logo esse o ouvido! que com gosto de comer e beber, constituíam o veículo por onde ao cego se comunicava a vida (pois que, desde a morte da Antônia, nunca mais sonhou de amores)! Os ruídos e sons lhe chegavam, não impressionando, não comovendo, não arroubando. Porventura não subiriam aos nichos? O João achava-se agora estranho a coisas que ele conhecia como as palmas das suas mãos.

Caminhando, pendia um pouco para o lado, como a galinha a que deu o ar do vento. Semelhava ao pignon das velhas casinhas de palha em meio s novas edificações.

Ia bolinando, mar em fora. A cabeça porém, em vez de fazer parte do barco, era um passageiro exigente.

Grande pesar o assaltava, quando sob as colunas do pórtico da As sembléia, recostado ao grosso umbral de cantaria, fazia por gozar da vida ambiente. Impossível identificar-se com o mundo exterior, por mais esfor­ços que empregasse! Para o chio das árvores, para o rodar de uma sege, para o bater de um saltinho alto, calçada acima, a vozeria dos passantes, os sons musicais, para tudo isso, que anteriormente lhe acendia no cer­rado do cérebro idéias, cores, grisódios, fisionomias, aromas, delícias até, hoje em dia ele era como o corpo de um ferido calcado indiferentemente na tropelia da refrega. A tensão e a contração dos músculos no andar,os movimentos da respiração, o trabalho do estômago e do ventre, iam as vezes como uma locomotiva desenfreada, ou ficavam em calmaria po­dre. A consciência teimava em não tomar conhecimento nem mesmo do trabalho corporal; como um fidalgo espadachim viveur e sibarita, que aban­donasse a direção dos bens ao mordomo, esbanjando as rendas, com­prometendo os imóveis na unha do usurário, e deixando a soldo da ruína completa ao mau êxito de um duelo de morte, em que entregasse a vida a um ligeiro pontaço de florete.

Ia o cego, na noite em que morreu, por volta de dez horas, pela parte sul do campo da Amélia, calçamento em fora, aproando para o cemitério Novo, que era justamente o termo daquela estrada empedrada. Havia espicaçado a viola num combustor, a um rompante desasizado. E dera-lhe no destino ir deitar sobre a sepultura da filha, como coisa que o cemitério não estivesse fechado. Mas havia de pular o gradil, e descer pela série de catacumbas ligadas à muralha. Acertaria com a cova da menina, que era bem debaixo de um cajueiro, quarenta passos a contar do fundo da capela. Deliberou que faria aquilo dali por diante, todas as noites; era o único desejo em que ele sentia o voto unânime de toda a sua pessoa. E largou, batendo com o bastão por aqui e por ali. Perto da linha férrea, tropeçou em umas achas de lenha, e sentou-se. Muito ao longe apitava o trem.

O homem da agulha, com o seu lampião de cor, ficava-lhe por trás do montão, de lenha e de estacas de sabiá, descarregadas pela manhã, de Maracanaú. O cego não fazia apreensão ao que ouvia e no que to cava. O seu espírito se despregara, e vinha na dianteira do trem, como o servo que foi a buscar uma sege para o amo. No Cemitério Velho as casuarinas gemiam longamente, com um silvo dolente e suave. O mar produzia o atrito de um tramway gigantesco. O homem da agulha assobiava na sua guarita. Se o João tivera vista, enxergaria atrás de si, desatan­do-se da praça, a bela iluminação da Rua das Flores, desenrolada cidade adentro, duas cintilantes cadeias de elos de estrelas, um lustre de festas.

O trem gritava mais perto, como se repetisse: Aqui vou.., aqui vou... em longo fôlego, dando a cada vogal o valor de três ou mais semibreves com ligaduras e com andamento largo. O homem da agulha viu apontar o farol. Faltavam dois quilômetros somente. Mais perto, o apito bradou forte. O cego entendia perfeitamente o apito gritar longamente: Já vou, já vou.

Se destacava o debater do monstro esbaforido, o ranger das juntu­ras, o atrito das rodas, o roçagar das ferragens, correndo por todo ele um arrepio ao ansiar do vapor escapando pela chaminé, a cada arranco dos pistões, a cada impulso dos chavantes. Uma fascinação apoderava-se do cego. Parecia subir ao paraíso, ver muita claridade, destacar vultos, reconhecer fisionomias... Iam-no carregando céu arriba... Positivamente,

a modo que dois braços macios e poderosos haviam-no erguido.., ele sustentou-se, como as rodas da máquina obedecem ao jorro dos cilindros. Fizeram-no caminhar, como a criança pelo carrinho que ensina a mudar as pernas... O trem internava-se pela cidade, como um furacão. A cidade adormecia entretanto. Faltava um nada.

O João argumentava equivalente a uma súcia de demônios; e con­cluía que não seria mau se atravessasse no trilho a sua existência aca­bada. Era apenas uma formalidade, que ele já não vivia. Podia ser que nem doesse. E depois, era tão rápido... Uma vertigem, apenas. Parecia que todo mundo estava com os olhos nele, como se ele fora deitar proeza em um circo. Amigos, desconhecidos, conhecidos, parentes, inimigos, estavam a admirá-lo, e depois do caso passado, o nome dele ia de boca em boca. Os espectadores queriam medir-lhe a coragem, para sair dizendo como foi. Mas o quê? ali não estava ninguém. Apenas o mendigo, enco­berto pelo monte de madeiras. Pois bem, o caso seria narrado por con­jeturas, e entrava o mistério, a maravilha. Aquele ser estava devastado por uma idéia fixa.

O trem vinha quase em cima. Uma passada mais, e o cego ficava-lhe debaixo. O homem teve um arranco de voltar. Era tarde! Caiu sorratei­ramente, e pelo manso, como um cadáver desce à sepultura. O trem pa­rece que soltou um urro, como um gigante que sofresse uma topada na unha. O limpa-trilho agarrara, mais breve que um relâmpago, o mole corpo do suicida, que por uma ligeira curva de repulsão, foi sacudi-lo para o monte de paus, onde a ponta aguçada de uma estaca de sabiá varou-Ihe o crânio pelo cerebelo.

FINIS, LAUS DEO.