Anexo:Imprimir/Aventuras de Diófanes

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Índice editar

Leitor prudente, bem sei que dirás ser o melhor método não dar satisfações; mas tenho razão particular, que me obriga a dizer-te, que não culpes a confiança de que me revisto, para nele basta que o natural instinto observe os preceitos da razão, para satisfazer ao ardente desejo, com que procuro infundir nos ânimos daqueles, por quem devo responder, o amor da honra, o horror da culpa, a inclinação às ciências, o perdoar a inimigos, a compaixão da pobreza, e a constância nos trabalhos, porque foi só este o fim, que me obrigou a desprezar as vozes, com que o receio me advertia a própria incapacidade; e como em toda a matéria pertence aos sábios advertir imperfeições, quando reparares em erros, que desfigurem esta obra, lembre-te que é de mulher, Que nas tristes sombras da importância suspira por advertir a algumas a gravidade de Estratônica, a constância de Zenóbia, a castidade de Hipona, a fidelidade de Polixena, e a ciência de Cornélia. Também é certo, que para pintar Majestades me faltam os pincéis de Apeles, e não tenho a pena de Homero; mas como sou estrangeira, tenho visto bastante para poder contemplar soberanas propriedades, assentando em que não há vapores tão elevados, que possam formar sombras na grandeza do Olimpo. Se esta empresa não produzir efeito correspondente ao meu desejo, já me tem pago o trabalho, pois a tomei, como remédio para divertir cuidados, que principiavam a debilitar-me o sofrimento com todo o gênero de contratempos; pelo que foi preciso que a memória contradissesse a vontade, que de melancólicas apreensões se alimentava; e seguindo cegamente o partido da confiança, chegou a entrar em alheios domínios: e assim se neste pequeno livro achares cousa, que te contente, não entendas que são adoções, pois confesso que da pequena esfera deste entendimento só nasce o inútil, e quando mais, o indiferente; e ainda que me lembro de que pelo muito que Fálaris considerou no ajustado de suas cartas, não as pode escurecer a sua maldade, pois tinham estimação em todo o Mundo, em me não embaraço em considerar ser mal desempenhada a imitação dos que dão à estampa os seus escritos, pois não tenho mais tempo, que para refletir no alívio, que recebo, discorrendo em trabalhos, que aos meus excedem, quando se me representa a maior grandeza na grandeza abatida; a formosura sem indecentes adornos, adornada de virtudes; o sábio virtuoso, que entre os inimigos da verdade não se lhe apoucam as luzes, que conduzem para a glória das Majestades; o prazer dos pais, que chegam a ver bem sazonadas os frutos da boa educação; o horror, com que os justos sabem ver o indigno aspecto da lisonja; e as mudanças do tempo, que sempre vem a dar o seu a seu dono. Para ser sofrível o meu atrevimento, adverte que a morte me há de separar dos meus, e que (só assim) ainda depois de me haver reduzido a alheios desenganos, lhes ficarei advertindo o que lhes convém; e tenho tão disposto o ânimo para sofrer os inimigos desta obra, que já espero a crítica, assim como os valerosos, que têm por maior o trabalho de fugir, que o de esperar; pois me anima o sólido prazer, de que sobre as minhas ignorâncias se formem polidos edifícios com acertadas medidas para se praticarem científicas doutrinas. Acham-se as gentes tão dominadas de paixões particulares, que muitas vezes só se estimam as obras para as forças do engenho, e sutileza em destruir as da razão não é vencer os esplendores da verdade. Eu não tenho mais armas, que o meu bom ânimo, e verdadeira sinceridade, e com o maior prazer sofrerei que me repreendam os sábios; mas para tolerar néscios mal intencionados, será preciso refletir, que com instrumentos grosseiros também se apuram os sofrimentos. Mais cruel foi a guerra dos Romanos com os Penos, que a dos Gregos com os Troianos, porque estes pelejaram pela injúria de Helena, e os outros sobre qual ficaria com o senhorio do Mundo; porque faz maior estrago a inimizade que nasce de paixões desordenadas, que aquelas, a que as ofensas dão causa, porque estas cura o temor de Deus com o tempo, e a vil emulação raras vezes se descuida. Um dos defeitos, que alguns acharão nesta obra, será a idéia fantástica, podendo aplicar-se o mesmo tempo à história verdadeira; ao que respondo, que me persuadiram os Espanhóis, Franceses, e Italianos, que entendem ser este método o que produz melhor efeito, e como de Grego não sei cousa alguma, e as mais línguas pouco melhor as entendo, por não mendigar notícias antigas, nem me arriscar mentir errando, me resolvi a seguir o caminho desta idéia, em que são os eventos, e objetos fantásticos, mas não o essencial, que conduz para o melhor fim; pelo que não me achaquem mais culpas, que o consentir na tentação de uma demasiada curiosidade; porque ainda que a minha debilidade, engolfando-se em tristezas, resistia a aplicações divertidas, desprezei o descanso, que me afligia, lembrando-me de ser incomparavelmente- te melhor sofrer o mal, que ter idéias para o fazer; e ainda que o justo receio, e o próprio conhecimento me persuadiam a que estes produtos do meu divertimento fossem (como outros) reduzidos a cinzas, o sentir os influxos de uma benigna Estrela, a quem sempre seguirá a minha escravidão, e reverente afeto, me anima a dar ao prelo esta Aventuras de Diófanes. Não estranhes que em uma serrana coubessem soberanos pensamentos, pois sabes que em uma Aldeia nasceu Pirro, que venceu os Epirotas; em outra Cipião, que venceu os Africanos; em outra Otávio, que venceu os Germanos; e em outra Tito, que venceu os palestinos: mas no caso que a enchentes das críticas engrossem tanto, que cheguem a sátiras, nem assim creias que me chegarão à notícia, porque vivo na minha choupana vizinha da Serra da Estrela, aonde não chegam novidades da Corte; mas se houver quem se resolva a maltratar-me, eu lhe respondo com Demétrio, quando lhe perguntou Lâmia, porque estava triste, e não falava? Dizendo: Deixa-me, que eu faço bem o meu ofício, calando, como tu o teu, falando; e se a discrição degenerar, sendo ingrata às intenções desta obra, a infâmia de ser tal terei por satisfação do meu agravo.

{{d|Sumário

Embarcando os Reis de Tebas, Diófanes, e Climinéia, com seus filhos Almeno, e Hemirena, que se achava desposada com Arnesto, Príncipe de Delos, que pela ocasião dos jogos públicos, a que devia assistir, as esperava na mesma ilha com prevenidos festejos, para celebrarem as bodas, uma tormenta desbaratou a esquadra, que acompanhava a Diófanes, e o entregou aos de Argos seus inimigos, que no combate mataram a Almeno, e venderam Diófanes para Corinto; Climinéia, a Hemirena ficaram em Argos, ainda que muito distantes; e depois de três anos da mais cruel escravidão venderam Hemirena para Atenas, donde fugiu às estimações, e grandezas, por não desprezar os preceitos do decoro.}}

Determinava Diófanes achar-se na Ilha de Delos, para assistir à função dos jogos públicos, que ali se fariam em reverência de Apolo, em cujo Templo se devia contrair o himeneu de Arnesto, Príncipe da mesma Ilha, com a Princesa Hemirena, funções para que haviam concorridos muitos Príncipes Estrangeiros. Embarcou Diófanes, Climinéia sua mulher, e seus dous filhos Almeno, e Hemirena, levando uma esquadra em sua guarda, conforme pedia a decência. Em uma enganosa madrugada se despediram de Tebas, entregando as velas ao benigno Zéfiro, que aos matizados galhardetes animava com alegres movimentos. Soavam os instrumentos no mar ao compasso, em que as vozes repetiam em terra os viva daqueles Soberanos, que em grande extremo eram amados dos vassalos, porque em seus Domínios davam leis a justiça, e a clemência, e o seu exemplo a melhor direção para os costumes; e ainda que se entendia seguiriam o rumo das felicidades, e não seria dilatada a sua ausência, era grande a tristeza de seus vassalos, que só resignados nas vontades daqueles Príncipes queriam mostrar com cânticos, que as lágrimas eram nascidas do júbilo; mas na despedida se declaram filhas da saudade, a qual consolavam com o Príncipe Bireno, a quem os poucos anos dispensava a assistência daqueles jogos.

Apenas perderam de vista as saudosas praias, quando ensoberbecendo-se as ondas, pareciam que ameaçavam aos navegantes, indo a encontrar-se com eles. Pouco a pouco se foi cobrindo de feias nuvens o céu, se trocou o dia em noite, mostrando-se no furioso vento a formidável imagem da morte. Já aos marinheiros esquecidos das grinaldas de flores, com que haviam saído de Tebas, se representava, que Netuno, apertando o soberbo tridente, vinha contra eles irado, pelo que, dando vozes, queriam mover a sua compaixão. Diófanes com sossego animava a gente, e enxugava as lágrimas da filha, ao mesmo tempo, em que a prudente consorte, não obstante a gravidade do perigo, havia mandado o querido filho a tomar parte na fadiga, lembrando-se de que assim se faz aos servos menos pesado o trabalho, e que parece que os elementos respeitam os Príncipes, que não temem os contratempos, nem se negam aos seus rigores. Quando cessou a borrasca, descansou a maior parte da gente; porque não advertiam que a desgraça faz maior emprego, por andar vigilante nos descuidos; e depois de se haverem rendido a Morfeu, se acharam vencidos de duas naus Argelinas; que como aqueles Soberanos estavam destinados para os mais raros trabalhos, não foi muito que se desbaratassem as da sua esquadra, indo arribar a Tebas, onde com inexplicável sentimento choravam, persuadidos de que as ondas tragariam a seus amados Senhores; e como havia sido mais atrevida a desgraça, quando estes se viram em mão inimigas, querendo defender-se, foi inútil toda a diligência pela vantagem, que já lhes havia ganhado. Climinéia com igual valor, que piedade, animava os que pelejavam, e acudia aos feridos, não bastando a morte do amado filho, que acabara à vista de seus olhos, para dar mais lugar à mágoa, que à fortaleza, e com perda de muita gente os cativaram.

Passados dous dias da sua desgraça, chegaram os bárbaros ao seu porto, para onde o rigor da desventura havia conduzido à Diófanes, e sua desconsolada família, que tendo lugar para os magoados desafogos, choravam a morte de Almeno, suspiravam pela liberdade, e não perdiam a lembrança dos cuidados, e amantes delírios de Arnesto, que com finíssimos extremos havia pretendido a bela Hemirena. Não se ouviam naquele desembarque mais que os lastimosos clamores ao céu, com que uns se lembravam dos que havia deixado, e outros choravam sua triste escravidão. Diófanes e Climinéia (a quem mais magoava a filha, que levavam) com inexplicável conformidade a dispunham, para trocar os descansos pelas fadigas; e Hemirena discretamente aflita animava a mãe, dizendo:

Suspendei, Senhora, as correntes do amargo pranto, se acaso mais vos afligem a meu respeito os pesados grilhões da escravidão: nem seja cruel despertador do vosso cuidado a periga idade, em que me vedes; que eu juro aos Deuses, que me sustentam, fazer sempre ações dignas de quem teve lugar nas vossas entranhas. A este tempo, em que as lágrimas, e suspiros mais vivamente expressavam o sentimento, se repartiram os escravos, negando a filha aos olhos da mãe; e Diófanes, por chegar mal ferido, o venderam para Corinto por preço muito limitado, entendendo teria poucos dias de vida; e como via chegar o tempo da sua separação: Amada filha, (disse) já que a tão miserável estado te reduziu a minha cruel fortuna, conserva sem desmaios as sólidas doutrinas da tua educação, o exercício das virtudes, e a lembrança da distinção, com que nasceste, para sempre serem nobres as tuas ações, teme os Deuses, ama constante o decoro, despreza o ócio, e serve o teu destino. Ao que Hemirena só respondia com o pranto. E voltando Diófanes os tristes olhos para Climinéia: Consorte amada (lhe disse) vive, e conserva na fortaleza do ânimo o melhor instrumento para as vitórias, e resiste fiel aos assaltos da desventura. A estas palavras respondeu a aflita Climinéia, apertando a seus braços ora a Diófanes, ora a Hemirena: Consorte amado, querida filha, filha das minhas entranhas, eu vos deixo; mas não eu, que o fado adverso de vós me aparta. Ai de mim! Vivo, morro, sonho, ou que sinto? O Deuses benigno, o vosso poder me ampare. Chegava suavemente o rosto ora a um, ora a outro, que reciprocamente em lágrimas se banhavam, quando já aqueles tiranos enfadados de tão larga despedida os separaram; e deixando a Hemirena desmaiada, levaram Climinéia, que enquanto o permitiu a distância, voltava em contínuos soluços, buscando com os olhos o seu último alívio. Diófanes se recolheu a uma pequena casa, onde determinaram se lhe curassem as feridas; Hemirena mal restituída aos sentidos, foi levada a casa de Hortélio, Capitão de uma das naus.

Os pesares apostavam ver-lhe extinto o sofrimento, porque também lhe faltava a saúde; e quando a principiava a conciliar, entrou a cruel inveja no coração de Anquísia, filha de Hortélio, que, como de cada vez via resplandecer mais a sua formosura na agradável moderação, com que padecia os desprezos, os castigos, e a fome, excogitava com a sua ferocidade os meios, que podia haver, para quebrantar tanta formosura, e tão amável, como constante virtude. A compaixão, com que Hortélio observava as belas qualidades de Hemirena, lhe reforçava os tormentos, pelos novos trabalhos, que lhe causava a abominável inveja: o como os parentes daqueles bárbaros, e mais pessoas, que a viam, admiravam a sua beleza, e grata severidade, tomou Anquísia o acordo de a mandar trabalhar para o campo, recomendando aos rigores do tempo os desmaios da formosura.

Túrnio, Pastor dos rebanhos de Carmindo, irmão de Anquísia, namorado de Hemirena, pediu a Anquísia quisesse consentir que lhe desse a mão de esposa, e lhe disse: Sabei, senhora, que o amor, que nem perdoa aos Pastores, me traz à vossa presença, para que me concedais para esposa a bela Hemirena; pelo que me ofereço em seu lugar para vosso escravo; porque depois que eu a vi, as ovelhas como de noite o lobo, os cordeirinhos morrem, faltando-lhes o leite, as cabras fogem, e os carneiros se me furtam, porque só me lembro de Hemirena. Anquísia, que com enfado o estava ouvindo, lhe perguntou, qual era a causa de tanto excesso, pois haviam mais belas Pastoras, e Hemirena era soberba? Ao que lhe respondeu com verdadeira sinceridade: Ah, senhora, que vós não a vistes, como eu a vejo, ou creio que estás zombando, pois todos no campo dizem o mesmo, e que sois tirana em o mal, que a tratais. A primeira vez, que eu a vi, estava falando a um homem, que dizia ser seu pai, que aqui perto se curara das feridas, que havia recebido no combate, e que no dia seguinte havia de fazer jornada com seus senhores; e ainda que as meninas dos olhos de Hemirena se estavam lavando em lágrimas, ela estava tão formosa, que ninguém a via, que a não amasse: e vosso irmão Carmindo então mesmo dizia: Aquela beleza sem afetação, nem enfeites, aquela natural, e agradável modéstia, e aquela prudência discreta, em cada palavra das poucas, que diz, parece que dilata o seu império nos corações. E isto dizia ele lá a um da Cidade; mas eu tomei sentido, e não me esquece. Ah que se vós a vísseis no trabalho sem levantar os olhos; e quando o vento, e a chuva sem compaixão a perseguem, fazendo inveja às açucenas; ou sendo a injúria das rosas, quando o Sol, e o trabalho a cansam! Enfim vós me haveis de valer, porque eu morro sem remédio; e ainda que ela não me atende, e por lá todos a querem, eu lhe quero mais que todos: e Carmindo, que sabe quanto eu a estimo, não há de ser contra mim. Vai-te, que já me cansa o sofrer-te, lhe respondeu Anquísia: tu falas como rústico, e Carmindo como néscio.

Dizendo estas palavras, se retirou, deixando desconsoladíssimo o pobre Pastor, em que a sinceridade competia com o afeto; pelo que determinada buscava quem lhe tirasse a vida. A noite, em se recolhendo Hemirena para casa aflita, e de cada vez mais cansada, achou Anquísia em tal extremo colérica, que, tratando-a muito mal, a fez recolher a uma casa, onde determinava que a matasse a fome. Chegando pouco depois Carmindo, e lembrando-lhe o que ouvira a Túrnio, quis falar a Hemirena; e sabendo da cruel sentença, que ela tinha ouvido, originou tal desordem, que a todos fazia horror ouvir as palavras desconcertadas, e os desordenados gritos, que produziam a raiva, e ódio (disformes partos da inveja). Foi Hemirena tirada do cárcere privado, em que esteve três dias; e vendo a desunião, que ela sem culpa ocasionara, se lançou aos pés de Anquísia, a quem com muitas lágrimas disse: Castigai-me senhora conforme vos ditar a minha inutilidade. Eu vejo que não tenho sabido servir-vos, pelo que é bem justificado o vosso aborrecimento. Eu amo o vosso rigor, pois que o mereço, quanto me aflige que vosso irmão queira valer-me; e se tendes humanos sentimentos, por compaixão me tirai a vida, antes que os Deuses soberanos deixem de fortalecer-me. Ouvindo estas palavras Anquísia, gritou mais alto de confusa, dizendo: Vai-te da minha presença, pois que não sou insensível, como tu: e sabe que já nem quero dar-te a morte, por que nem assim descanses; e para que os teus olhos não dilatem o seu império em os corações, eu tos saberei tirar. E investindo furiosa como a tirar-lhos, Carmindo a deteve; e depois de um largo trabalho consentiu que se vendesse para fora do reino, por lhe ser oculto que a pretendiam uns estrangeiros, que por sua beleza a desejavam oferecer a Beraniza, Princesa de Atenas. Em o dia seguinte se celebrou a venda, indo Hemirena para outro domínio novamente aflita, e assustada. Túrnio, sabendo aquela novidade, e antevendo acabar a sua esperança, se queixava de sua desgraça, dizendo: Ai de mim! Que nome terá este mal, de que eu acabo a vida? Já não vejo a estrela da alva, os rios já correm turbos. Ditosos cordeirinhos, que não sentis o que eu padeço! Onde está a formosura, que fazia o dia mais claro? Eu me queixava pelo que via, agora vejo o de que morro. Não quero guardar os rebanhos, nem já me guardarei a mim, a ver se me matam os lobos. Onde estou? Não sei o que faço. Hemirena, Hemirena. A este tempo, ouvindo o eco, em mais delírios dizia desconfiado: Mais ai que estão zombando de mim outros Pastores! Zombe embora, que eu de todos me hei de rir, quando morrer. Mas que digo? Eu estou louco? Pois não me falam, e eu ouço vozes? Não sei onde está Hemirena; mas eu sinto comigo: e assim louco, ou perdido vou correndo a buscá-la. Chegando o pobre Pastor a casa, e sabendo que fora para os estrangeiros a inocente causa de seus desatinos, caminhou depressa, tomando o acordo de se não separar da porta daquela casa, para onde Hemirena se havia recolhido; e perdendo de todo a pequena parte, que àquele tempo tinha de entendimento, ora tocava na flauta pastoril tão fortemente, que parecia querer perder o alento; ora cantava canções, com que, quando guardava os rebanhos, lhe dizia o seu amor; mas tudo correndo-lhe as lágrimas e era tal a força, com que cantava, que pela muita distância, em que se ouvia, ninguém crera que era uma só voz, se não visse, e o sucesso o não acreditara. Em o quinto dia de seu lacrimoso canto se calou, rendendo o alento nas mãos da morte, sem que até ali pessoa alguma pudesse dele conseguir o tirar-se daquele lugar, ou que deixasse aquele exercício, que a sua amante loucura havia empreendido; pois não crendo na ausência de Hemirena, dizia que a escondiam, e queria que onde quer que ela estava ouvisse que ele se não esquecia, nem queria mais descanso, que em buscar a sua compaixão a qual esperava que a obrigasse a falar-lhe: e isto mesmo respondia cantando, porque nem perdesse aquele tempo.

Hemirena, que logo havia partido para Atenas, ignorando os efeitos de sua cândida beleza, chegou a ser oferecida a Beraniza, que mostrando-se agradecida a Artenisto, a aceitou com mostras de contentamento, e ordenou se lhe desse bom aposento, e fosse bem tratada; e como naquele dia estava para sair à caça, mandou fosse a descansar, e que no dia seguinte tornasse à sua presença, pois queria saber os costumes do seu país. Logo foram vê-la as servas de Beraniza, que com agrado a cumprimentaram, e proveram do preciso, pois não tinha mais que o bom vestido, com que fora oferecida. No dia seguinte foi levada à presença das Princesas Beraniza e Argenéia, e com aquele agasalho, e urbanidade, com que as Majestades fazem docemente escravos os seus vassalos, lhe perguntaram os sucessos da viagem, em que a cativaram: a que logo responderam as lágrimas de Hemirena, que com a melhor retórica faziam a narração de seus infortúnios; e como quem sabe mandar, não ignora a arte de obedecer, lhe disse: Nasci em Tebas; e indo ver uns jogos públicos de país estranho, uma tormenta me negou o porto, que buscava, e conduziu às mãos de bárbaros inimigos; e quando eu descansava, sonhando com a bonança, me despertou a desgraça, para chorar com acordo, que os trabalhos duram sempre, e é falso qualquer pequeno descanso. Os que podiam manear as armas, as tomaram, jurando não largá-las, enquanto lhes durasse a vida: o que sucedeu à maior parte da gente; mas não tiveram todos tanta fortuna, que não fôssemos cativos. Não se ouviam mais que os tristes clamores dos que pedíamos socorro aos Céus, sem que se movessem de nossas vozes, ou para que com horrendos trabalhos nos fizéssemos dignos de felicidades, ou porque não as gozássemos sem os méritos, que nas fadigas se alcançam. De que viviam teus pais? lhe perguntou Beraniza, parecendo-lhe que sabendo Hemirena explicar-se tão agradavelmente, não seria mulher ordinária. Ao que respondeu depois de um pequeno intervalo, em que mostrou a renitência, que tinha em dizê-lo: Duvido, Senhora, se meus pais me ordenaram, que o não revelasse, e assim espero que a vossa grandeza me dispense de responder-vos. Basta (lhe disse) Continua a tua história. Mas dize-me: Como consentiram separarem-se de ti os que haviam sido origem de tanta beleza, e discrição? Muito pediram aos bárbaros (lhe respondeu) que nos não dividissem: mas não quiseram deixar de fazer o primeiro ensaio da sua tirania, ou talvez deveriam fazer assim a cruel partilha. A meus pais naquele triste caso parecia se chegava o último transe, pois na precisa despedida mostravam as mais vivas representações da morte. Desejava eu perder ali os últimos alentos da vida, para diminuir a primeira causa de seu justo cuidado. Ambos com trêmulas vozes mostravam quererem dizer-me Adeus, mas sem acabarem de despedir-se. Nesta incrível consternação, vendo também que os bárbaros nos maltratavam enfadados de tão larga despedida, perdi os sentidos. Tornando à inteira restituição deles, me vi em uma casa sem pai, mãe, ou pessoa alguma de minha nação, e com repetido pranto, e mal articuladas palavras perguntava pelos meus, sem que eu de alguém fosse entendida. Eram contínuos clamores, com que se explicava a minha sem igual saudade; e sem alívio, consolação, ou esperança, perdi o amor da vida, porque só me lisonjeavam as recordações da morte. A luz do dia sempre me pareceu escura, e muito breves as sombras da noite, que me retiravam de ver uns racionais, que temia como brutos ferozes. Muitos dias passei, servindo-me só de alimento a água, que bebia; e principiando a experimentar uma desgraça melhora, me pareceu se faria imenso o meu mal.

Os dias passavam em contínuas lágrimas, e suspiros; as noites em mil sonhos, que com falsas alegrias me enganavam, crendo umas vezes que me via na suspirada pátria; e outras que encontrava a meus carinhosos pais, a quem dando logo os braços, dizia com incrível alvoroço: Chegou o enfim a ser ditosa a minha esperança, pois alcanço a felicidade de ver-vos. E como o coração, onde são domésticos os pesares, nem consente nas sombras de alegria, logo me advertiu o receio serem seus espíritos bem aventurados, que havendo compaixão a tantos infortúnios, talvez viessem a fortalecer-me dos campos ditosos, onde entre sólidos prazeres estão as almas gozando de suas virtudes: e com um mar de lágrimas se me fingia no desacordo voltar os olhos aos Céus, dizendo: Vós, que sabeis qual é a consolação, que recebo em vê-los, não consitais que eu deles me aparte. E inexplicável a alegria, que eu assim estava recebendo, a qual não era como as que dão os divertimentos, de que sempre ouvi dizer que se envenenavam as gentes, e se geravam os inquietos remordimentos; que como esta era a mais bem nascida filha da razão, tudo era aquela feliz tranqüilidade, que mais arrebata, quanto mais a ela nos entregamos. Nestas suaves considerações acordava, tornando novamente a chorar o terem sido mais ditosas aquelas que estas lágrimas: e então mais vivamente voltando para os benignos Deuses, lhes dizia: Antes me entregai ao poder das Fúrias, que naufraguem no turbo Letes os avisos de meus bons progenitores. Oh quanto são felizes os que chegam a ver todas as luzes da virtude, e lhe sabem dar o verdadeiro culto, deixando de perturbar a paz dos que a amam!

Foste bem tratada nessa casa? lhe perguntou Argenéia. Os primeiros meses (respondeu Hemirena), como a minha larga moléstia me não dava alento para servi-los, me assistia uma velha caritativa: e ali iam todos ver-me, como se fossem bicho de feito estranho, trazido dos mais remotos confins do Mundo; e como Hortélio, antes de ir continuar o seu corso, deixou recomendado a seus filhos Carmindo, e Anquísia, que se eu tivesse inteira melhora, me conduzissem à sua mesa; porque ainda que ignoravam quem eu era, deviam ter atenção à compaixão, e amparo, que se devem aos desgraçados, nos primeiros dias me chamava Anquísia sem repugnância; mas como me principiou a tomar aversão, já não sofria ver-me aquele lugar. Pouco a pouco se foi introduzindo o veneno, que a atormentava, até que chegou a um excesso de braveza formidável, em que furiosa parecia que dominavam nela as filhas de Aqueronte, sem mais razão para a sua loucura, que a compaixão, que Carmindo dizia ter de mim, julgando-me com prendas, que eu jamais havia em mim conhecido.

Franésia, que também ali vivia, por ser mulher de Gilarco, irmão de Carmindo, pelo mesmo estilo se perturbava. Principiavam entre si a desunir-se sobre questão, que altercavam; e continuando a disputa, se iam enfurecendo de sorte que a família nos primeiros dias acudia com susto aos gritos, e nos subseqüentes como a buscar um divertimento: uns se compadeciam do triste estado, em que me viam; outros se retiravam a buscar o desafogo do riso, e tornaram a ver o fim daquela desordem, na qual ordinariamente sucedia, que com a exasperação das fúrias as duas irmãs mordendo-se, e arrancando cabelos, faziam encolerizar tanto a Gilarco, e Carmindo, que com demonstrações da sua intolerância me deixavam entregue ao poder da sem razão. Deixo à vossa prudência o ajuizar os trabalhos, que àqueles se me seguiram.

Mas qual era a causa de tanta inquietação? lhe perguntou Argenéia, que de admirada parecia que imóvel a tinha estado ouvido. Quando eu pude entender bem as frases grosseiras, com que se explicavam (lhe respondeu), soube que em uma obravam zelos indiscretos, e em outra inveja dos louvores, que de mim se lhe diziam (vícios horrorosos bem costumados a alimentarem-se dos corações, que cegamente se deixam possuir deles). Mas eu nunca pude crer que só esta fosse a causa, porque para fundamento se zelos não havia nem o mais leve motivo; e para inveja, (além da vileza, que comunica a quem lhe dá entrada) nunca soube que em mim houvessem virtudes para invejar; porque a formosura, e mais prendas, se são sujeitas ao tempo, que multiplica os invejosos, ele cura o mal, que os atormenta.

Em os primeiros tempos, não me podendo capacitar do que entendia, reparava que uns se riam muito, outros com cautela, e que Anquísia, e Franésia investiam comigo; e nesta aflição levantava os olhos ao Céu, dizendo: O Deuses tiranos, de novo gênero de martírio é este? Como me haveis destinado a um tormento sem igual? Se eu não sei em que erro, para que o sofro? Inspirai-me vós os acertos. Tornava outra vez à mesa, e não comia, porque não me deixava o medo, e porque temia ser aquela bulha, porque eu havia comido, então me parecia que mais se acendiam (se pode ser). Outras vezes comia mais do que preciso, procurando com esta experiência o acertar na causa do que experimentava; mas de toda a sorte via quase sempre iguais efeitos; e lembrando-me de que os Céus queriam tirar a mais legal prova do meu sofrimento: Deuses poderosos, (tornava a dizer) que fostes convidados para o banquete de Tântalo, não precipiteis a estas no abismo das penas, a provarem da fome, e sede que eu padeço; e se não quereis tirar-me a vida, nem livrar-me da sua crueldade, a vossa grandeza me assistia. Não se animavam aquelas duas irmãs a sairem de casa pelos desprezos, que por aquela causa experimentavam; porque uns as tratavam mal de palavras; outros buscavam o modo de persuadi-las a que conhecessem a sua sem razão; e outros lhes fugiam, dizendo haverem enlouquecido, e estarem furiosas. Roguei à velha caritativa, que me havia assistido, que lhes pedisse me não admitissem à sua mesa, com o pretexto de evitar o reparo público: o que vim a conseguir depois de prolongados tormentos, ficando bastante causa para o meu cuidado na comiseração, que me mostravam os homens, e banhada em lágrimas me parecia ouvir no coração as últimas palavras de meu prudente pai, que retumbando dentro da triste esfera de meu peito, recomendavam ao meu cuidado os resguardos do decoro. Ouvia juntamente as primeiras, e sólidas instruções de minha discreta mãe, que não menos me lembravam os indispensáveis preceitos da modéstia; e depois de tão penosas considerações, dizia aflita:

Ai de mim! O fado tirano, que ordenaste o desamparo, em que padeço, executa os estragos da tua impiedade, que ou me queiras conservar a vida para emprego de teus golpes, ou com ela queiras lisonjear os de Parca, nunca poderás conseguir que me falte fortaleza para defender-me dos inimigos das virtudes; e assim me entregas às violências do ódio, mas não me renderá o teu poder às crueldades do amor.

Suspensa, e já aflita estou (lhe disse Beraniza) de considerar-te entre Cila, e Caribdis. E não te davam nesse tempo ocupação, em que empregar-te? Nos primeiros meses (lhe respondeu) em os empregos de servir a casa, de que eu não tinha nem a mais leve notícia, padeci inexplicáveis contratempos, porque haviam sido outros os meus exercícios, e não sabia servir em o que ali me mandavam. Que prendas tens? lhe perguntaram. Fui, senhoras, instruída (lhes respondeu) em a Música, Poesia, e alguma parte da Astronomia; mas quem renasce em novo ser tão desgraçado, perdendo de vista o gosto, se conserva as prendas na memória, é obrigada a vontade a desprezá-las como ruínas do tempo. Tornaste a ver teus pais? lhe perguntou Argenéia. Ao que respondeu Hemirena: Sim, senhora; porque como nos empregos, que em casa me dava Anquísia, eu não sabia servi-la, ordenou que eu com outras escravas, e mais gente do campo fôssemos aprender a cultivar as terras; o que ou seria porque a minha desgraça lhe dispôs o ânimo para aborrecer-me, ou porque a minha inutilidade não soube granjear o seu afeto, pois não tem lugar as melhores artes entre os rústicos: eu a servia onde me não maltratava a chuva, ou o frio, não me afligia o calor do Sol, nem me fatigava o trabalho, porque só me oprimia o ver-me entre homens rústicos, abatida até ao último grau da desventura. Enquanto me não costumei a ouvi-los, me atemorizavam as grandes, e descompostas risadas, que davam, vendo-me no campo trabalhar entre eles; e como a melhor resposta sempre foi negar-lhes a atenção, eu me empregava em meu trabalho, não só como quem os não entendia, mas como se também os não ouvisse; e se acaso com dissimulação os observava, os via fazer gestos, e ações tão ridículas, que ou fossem explicativas do seu brutal afeto, ou demonstradoras da sua admiração, eram dignas de riso, a quem não vivesse tão cheia de pesares como eu.

Assim ia passando os cansados dias do princípio da minha peregrinação, quando em uma tarde vi que um homem com pressa me buscava; e chegando-se a mim, conheci ser meu pai, que sabendo que eu estava naquela vizinhança, e determinando os que o compraram fazerem no dia seguinte a sua jornada para Corinto, lhe concederam licença, para que fosse a despedir-se de mim. Com muitas lágrimas de consolação, e alegria passamos aquele brevíssimo tempo; e perguntando-lhe por minha extremosa mãe; me disse não lhe havia sido possível saber como se achava, por ser muito distante para onde tinha ido; e assim discorrendo, as que haviam sido lágrimas de consolação, e alegria, se transformaram em nova dor, e mais viva saudade; e como desejava conciliar-lhe algum gênero de alívio, lhe ocultei os meus pesares, bastando para grave causa da sua mágoa o estado abatido, em que me viu; e repetindo as suas acertadas recomendações, me deixou tão fortalecida, quanto novamente magoada.

Cansada já a minha desventura pelas contínuas aflições, em que estavam Anquísia, e Franésia, pois não se atrevendo a tolerarem aquele mal, a que só elas davam causa, assentaram em vender-me a Artemisto. O pobre Pastor Túrnio, a quem enganava a fantasia, propondo-lhe em mim um objeto amável (que eu nunca fui), com os maiores excessos creu que poderia conseguir que eu lhe desse a mão de esposa; e vendo que achava o ânimo de Anquísia indisposto para favorecê-lo, buscasse quem o comprasse, dizendo que ele venderia a sua liberdade, para comprar a minha. Por aquele inocente sacrifício do rústico sincero se ordenou a sua morte; mas os Deuses, que não quiseram consentir em tão grande crueldade, me destinaram para servir-vos, para que se não executasse a bárbara sentença: e assim deixando o abismo de tantas penas, e cuidados, chego feliz aos vossos pés, pois tiveram os Céus compaixão de tão horrorosas fadigas.

Apenas entrei nos vossos Domínios, tive pelo melhor anúncio ver os campos férteis, as gentes compassivas, sendo as mulheres modestas, e os homens atentos: nas aves se me representava só, a que nestes Domínio pode anunciar-me o triunfar dos trabalhos na vossa presença.

Na verdade (lhe respondeu Beraniza) que me compadeço de ouvir os teus infortúnios; e sabe que o nosso afeto se move a favorecer-te, pois este é o mais preciso efeito da grandeza. Dize-me alguma cousa desejas no estado, em que te vejo, que no que couber nos limites do possível, serás satisfeita.

Eu, Senhora, não desejo a liberdade, (lhe respondeu Hemirena), porque esta perde o preço, quando a servidão é tão ditosa. Não apeteço riquezas; porque os Céus, que sabem dispor melhor o que nos convém, me afastaram de todas, talvez por me ser mais útil o servir-vos, que o possuí-las; nem que seja restituído aos meus olhos aquele a quem a esperança do consórcio havia unido o mais sincero amor; porque onde este é mais constante, quase sempre é a fortuna contrária: se pudera conseguir a liberdade de meus pais, só essa empresa faria feliz os meus infortúnios, ainda que eu de todo perdesse a esperança de vê-los; mas como não estão em Domínios do Rei vosso pai, não posso enganar-me com a esperança que a vossa grandeza podia animar. Como não queres nomeá-los, (disse Beraniza) não se pode intentar a sua liberdade. Descansa agora na minha proteção, que muito pode vencer o tempo. Hemirena, pedindo-lhe licença, se retirou ao seu aposento.

No dia seguinte ordenaram as Princesas que as acompanhasse à caça, divertimento, de que usavam em muitos, e subseqüentes dias. Beraniza se servia com excessivo gosto das gentis prendas de Hemirena, a quem não só folgava de ouvir, como também imitava sábia, instruindo-se gostosa. Passados alguns anos, disse Beraniza a Hemirena, que havendo inteiro conhecimento das suas singularidades , já era tempo para lhe dizer quem eram seus pais; e como Hemirena continuamente suspirava, sem que bastasse todo o tempo para curar-lhe tão viva chaga, se determinou a dizer-lhe:

Sabei, Senhora, que sou filha dos Reis Diófanes, e Climinéia; e que eu era levada a Delos, para se celebrarem os meus desposórios como o Príncipe Arnesto, que devendo assistir aos jogos públicos, (para o que também os meus concorreriam) partiu de Delos e esperar-nos: mas como os Numes não consentem muitas vezes nas felicidades dos mortais, para que purificando-se entre fadigas, se acrisolem para os descansos, eu não quero mais que este bem, que estou gozando; mas os trabalhos de meus pais nunca me deixam enxugar o pranto; e assim, quando parece que descanso, eu lhe assisto, e estou vendo a Arnesto morto, ou louco, e perdido, supondo que nas cavernas do mar nos daria Netuno sepultura; e muitas vezes depois de tristes representações, em mil delírios digo:

Como, ó forte ingrata, me conservas em tão duvidoso estado? Como é possível que com tão molestos cuidados se conserve uma vida frágil? Oh estrela cruel, que não foras tão, que não foras tão adversa, a ter-me criado entre as feras! E logo entrando em mim, torno a dizer: Mas se estes pesares qualificam o meu sofrimento, triunfe a constância, pois a resignação é o princípio da felicidade. Se Arnesto já rendeu o magnânimo espírito, mais breves foram os seus cuidados que os meus; e se vive, conserva com o alento a vida da esperança. Se meus amados progenitores são falecidos, descansam; e se vivem, trabalham para descansarem. Deixa-me pois, ó memória cruel, que sempre intentas destruir as obras do entendimento. Agora vejo (lhe disse Beraniza) que a tua beleza, e nobres sentimentos são ilustrados de tão grandes princípios. Teus pais serão logo buscados com os sinais, que deres; e se forem achados, virão com a ostentação, que merecem, para te acompanharem. Não quero dever (respondeu Hemirena) à vossa compaixão benefício mais estimável, que serem restituídos aos seus estados, ainda que eu de todo perca a esperança de tornar a vê-los; e bem considero o muito, que é difícil encontrá-los; mas aos Soberanos não se atrevem as dificuldades, quando as ações são generosas.


Beraniza cheia de admiração, que lhe causava o saber quem na verdade era Hemirena, se recolheu a falar a seu pai para as distinções, e grandeza, com que dali em diante se devia tratar, e juntamente dar-se providência à liberdade daqueles Soberanos; porque suposto que Arnesto, e os Tebanos os haviam buscado com a maior vigilância, e prometido prêmios importantíssimos a quem desse alguma notícia digna de crédito, como os piratas usaram da prevenção de pôr o fogo à nau, contentando-se com os cativos, e a pressa do preciso, com que se costumam servir tão altos sujeitos; e estes entre si tomaram o acordo de ocultarem quem eram, não só mudando de nomes, mas ordenando aos seus, (dos poucos, que haviam escapado do combate) que em nenhum caso os descobrissem, ainda que naquela Corte se havia também sentido a desgraça, que sucedera a Diófanes, por aquelas mesmas cautelas todos entendiam que a sua embarcação fora a pique.

Com imenso prazer recebeu o Rei aquela notícia, e logo determinou, que um dos melhores quartos de palácio fosse ricamente paramentado para assistência de Hemirena: e se lhe nomearam as pessoas, de quem se devia servir, conforme ao trato decente, que merecia. Tudo agradeceu, e recusou; e ainda que se lhe conservou tudo no mesmo estado, sempre dizia, que enquanto seus pais peregrinando pelo Mundo, como escravos, ela também como escrava devia conservar-se.

Passados alguns tempos, quando as interferências a faziam crer que seus pais seriam restituídos à sua pátria com a ostentação, e grandeza, que mereciam, como se havia determinado, mandou o Príncipe Ibério propor-lhe por Miquilenia, Dama das mais graves, que se haviam destinado para servir a Hemirena, que ele desejava contrair com ela o mais feliz himeneu; e que por se não embaraçarem com dúvidas, que poderiam ocorrer, o fariam secretamente, sem que se participasse esta notícia a Beraniza. Ao que respondeu Hemirena:

Dize ao Príncipe, que uma escrava não pode servir-lhe para esposa: que eu não declarei a minha origem para dar a mão encoberta: e que antes quero perder a vida, que mudar de estado, sem que os meus o determinem; assim como o afeto, e amizade, que na alma me imprimiu Beraniza, não consentem que eu admita nem a mais leve insinuação de seus intentos; pois faltarão nos Céus estrelas, e nos campos flores, primeiro que Hemirena, a ser grata, fiel, e soberana. Com esta desabrida resposta deixou confusa a mensageira, e o Príncipe sem esperança.

Continuava Beraniza as suas aplicações, que muito moderada e discreta indústria de Hemirena, pois temia que a delicada Princesa perdesse a saúde como já com reverente afeto, e verdadeiro zelo lhe havia ponderado. Passamos quatro anos, achando-se Beraniza gravemente enferma, principiava a desconsolação de Hemirena a anunciar a sua ruína; e vendo Beraniza que a sua vida não seria dilatada, disse: Amabilíssima Hemirena, não apaguem as tuas lágrimas a luz brilhante de teus belos olhos, temendo desamparos, pois ficas bem recomendada pelas tuas amáveis qualidades: não temas que a minha falta diminua na estimação de tuas prendas singulares, que as mulheres, que com virtudes adquirem o domínio das vontades, assim como à sua beleza se não atreve o tempo, também as respeitam os duros golpes da Parca, porque se imortalizam, não os sentidos da memória, e estimação das gentes, porque o espírito gentil, que não acaba, em cada ano lhes aviva com os méritos a formosura; mas pelo grande afeto que mereces, é preciso que eu deixe padrões para a tua memória, ordenando que te sejam entregues as minhas jóias; e como tão fielmente me tens acompanhado, será razão que a minha falta te descanse: para o que também deixo recomendado a Ibério que te faça conduzir à tua pátria com aquele esplendor, que é decente à tua pessoa.

Crede, Senhora, (lhe respondeu Hemirena) que mais me oprime o que vos ouço, que a separação daqueles, por quem choro: terei sem dúvida por mais severo o castigo da vossa falta, que os tolerei nos contrastes da fortuna. Os céus compassivos para mais esse pesar me não resguardem, porque do mal que passou, só me conservam na memória os vestígios; e para o que ameaça a vossa desconfiança, já desmaia a minha fortaleza: e assim vede, Senhora, que sendo momentânea a vida, que logramos, esta se dilata, quando esperamos com ânimo constante que os Deuses sobre nós determinem; porque é certo que as suas resoluções só são pesadas, a quem não sabe discernir entre o bem, e o mal. O mandarem-me restituir à minha pátria, onde pelas cautelas da vossa grandeza creio que meus pais já descansam, é jóia de tanto preço, quer nas que me oferece a vossa generosidade, aceitarei, por não ser ingrata, despertadores para a minha mágoa, ainda que os Deuses benignos espero que vos dilatem a vida tantos, e tão prósperos anos, como já viveu Nestor.

As muitas lágrimas, negando-lhes os termos, a obrigaram a retira-se, porque também não aumentassem a moléstia de Beraniza.

Passados alguns dias, acabou nos braços de Hemirena, que chegando-a estreitamente ao aflito peito, dizia com infinitas lágrimas: Quem será bastante a consolar-me neste mal, que todo é meu? Se tudo perco, quando tu me deixas, onde verei agradável a formosura, se no teu grato aspecto já não vejo mais que a pálida imagem da morte? Se haverá quem ponha a sua alegria em vida limitada? Se haverá quem deixe de conhecer os enganos de um Mundo inconstante, vendo que tão pouco dura a grandeza, o poder o soberano, e a formosura? Como é possível que à tua vista se possa dar preço a uma vida frágil? O Parca ingrata, como vivo eu, se acabou Beraniza? Ai de mim! Que estrela cruel é a que me segue, e me conduziu ao descanso, para me ser mais violento e desvelo? Que fado mudável me negou à escravidão tirana, e me trouxe a ver-te, para experimentar um desconto dos alívios, que me deste, o trabalho mais sensível em o golpe cruel da tua falta? Imprimam-se meus tristes lábios nesta nevada, e generosa mão, prêmio bem merecido, por te não haverem nunca, lisonjeado. Oh quanto te deram agradáveis os resplendores da verdade, conhecendo discretamente que foge dos Soberanos pelos aduladores que os servem! E como não podem as minhas lágrimas animar a tua formosura, eu me aparto de ti a sentir na tua ausência de cada vez mais perto a minha morte! Mas que digo? Eu deixar-te? Ai de mim! Oh! céus compassivos! Oh bárbara Parca! Adeus, Beraniza adorada. Adeus, minha perdida esperança. Os circunstantes no desacordo da sua pena davam lugar ao largo desafogo de Hemirena: e como ali se achava Ibério, em quem já cupido havia empregado as suas setas, temendo que Hemirena rendesse o espírito nas mãos da mágoa, lhe disse: É tempo de te separares de Beraniza, pois que já não a podem negar à morte os estragos da tua vida. E logo a fez retirar ao aposento, em que o semblante cadavérico era o melhor indício do quando estava gravada no coração aquela dor intensa.

Ibério, não podendo reprimir os violentos impulsos do seu afeto, foi vê-la, para moderar o seu justo sentimento. Amabilíssima Hemirena, (lhe disse) se o teu entendimento domina em a minha vontade, como é possível que não resista ao que discorre a tua memória? Eu te juro fé, pois com o mais firme rendimento confesso que te adoro; e não pretendo de ti mais que a boa aceitação de meus sacrifícios. Não temas agora novas adversidades, pois te servirá um Príncipe rendido, em quem os teus merecimentos têm o maior império. Não temo adversidades, (lhe respondeu Hemirena) porque só receio as prosperidades, que me prometes: e se queres dar fim a meus infelizes dias, continua com as expressões do teu rendimento; mas sabe que enquanto me durar a vida, não será menor o meu pranto, nem haverá tempo, que baste para as demonstrações do meu sentimento. Adverte, (replicou Ibério) ó bela ingrata, que, quando a paixão está próxima, só convida com a mágoa, a que não poderia resistir o peito humano, se em cada dia, que passa, não experimentara o benefício do tempo. Não desprezes uma vontade fiel, que não quer mais que diminuir-te uma causa para o cuidado: e não creias que eu queria deslustrar a tua estimável modéstia, que isso fora desmentir o soberano: nem te persuadas que no afeto, que te confesso, espero ver finezas agradecidas, porque estas regularmente são desprezadas: mas sabe que para as tuas especiais virtudes só o coração é lugar decente. Vive, e conserva a tua varonil constância; porém não temas os contrastes da fortuna.

Com estas palavras deixou Hemirena, a quem duplicou os cuidados, principiando já a experimentar a falta de Beraniza. Toda aquela noite passou vacilante entre horrores da morte, e crueldades do amor, considerando-se vizinha aos perigos; porque via em Ibério prendas estimáveis, e discrição tão poderosa, que temendo, passar da estimação das boas qualidades a algum desordenado afeto; e refletindo em que as forças do amor só pode vencer quem lhe sabe fugir, determinou ausentar-se em a noite seguinte para dever amparo às sombras, antes que lhe faltassem as luzes; e sem esperar que lhe fossem entregues as jóias, se dispunha para a fuga. Tornou Ibério a vê-la, pois o não deixava descansar um tirano cuidado. Hemirena logo atalhou a suas expressões, dizendo:

Não sei, Senhor, como te agradeça os excessos, com que me fazes mercê, diminuindo na tua grandeza; porque assim como os não sei merecer, também os não sei estimar; e é tão adversa a minha estrela, que quando me seguras os descansos, tenho na tua proteção o maior despertador para as fadigas; pois desde que a pesada mão de Atropos cortou o fio, que sustinha o meu amparo, principiei a combater com a desgraça no improporcionado favor, com que intentas lisonjear-me; e ultimamente digo, que se coubesse em mim maior pesar, que serem os meus braços triste ocaso de Beraniza, só o seriam os teus rendimentos, pois é certo que estes em seu mesmo excesso naufragam, e que nunca jamais serão pagos; porque as mulheres, como eu, nem chegam a agradecer, sem que lhes fiquem escrúpulos no decoro. Se não queres ver-me consternada, deixa-me viver em paz, ou correr com a tormenta do meu destino, que nas prisões de escrava, ou de mim fugindo pelo Mundo, qual pobre peregrina, conservarei sempre na alma a glória de vencer entre tão novos trabalhos os assaltos de meu fado. É sem igual (lhe respondeu Ibério) a admiração, que me causa a ouvir-te; porque quando não é o outro o meu designo, mais quer render cultos à tua formosura, a tua isenção me maltrata. Pois sabe que às tuas prendas sempre tributarei adorações, sem que espero mais ditoso prêmio, que permitires-me o ver-te, porque ao teu decoro levantarei padrões, para lhe gravares letras, que imortalizem o teu severo rigor. Bem sei, Senhor (tornou a dizer Hemirena) que a tua discrição é capaz de conquistar impérios mais poderosos, e que os preceitos da modéstia não dispensam inteiramente as obrigações de agradecida; mas como nasci para trabalhos, não estranhes que eu me negue às estimações, e descansos, que me segura a tua proteção. Se não queres acumular-me aflições, deixa-me agora descansar, porque a presença dos Soberanos é como a luz, que por demasiada também cega; e se queres fazer-me a mercê, que só desejo, não tornes a este pequeno aposento, onde não cabes, sem que se oprima a tua grandeza. Não pode a força da tua desatenção (disse Ibério) conseguir que eu te não veja, e deixe de amar-te; e como no teu sossego interesso, quanto arrisco em a tua ausência, eu me retiro, cedendo o meu gosto só a favor do teu alívio. Com estas palavras se retirou Ibério, deixando Hemirena com o maior empenho no cuidado da sua peregrinação, a que deu princípio em a noite seguinte, em que lavado com lágrimas aquela fúnebre assistência, recomendando ao silêncio da noite o livrá-la dos tumultos da Corte, saiu com vestido de homem, disposta com aquele fingimento a vencer os maiores assaltos de sua cruel fortuna.

{{d|Sumário

Com o suposto nome de Belino principiou a fugir Hemirena dos perigos, com que o amor ameaça a formosura, e chegou a admirar as cristalinas correntes de um rio, que resguardava um belíssimo arvoredo; na sua margem achou um velho cego, e leproso, cuja asquerosa figura lhe ocultou a Diófanes debaixo do nome de Antonior, o qual lhe conta parte de seus trabalhos; e Hemirena se retira, temendo ser conhecida.}}

Caminhando de noite, e descansando de dia, continuava Hemirena a sua derrota, sem que se passasse algum, em que os seus olhos não pagassem tributo às memórias de Beraniza. Já àquele tempo não chorava a infelicidade de Climinéia, e Diófanes, porque se havia persuadido que descansavam em Tebas.

Ibério, sabendo da sua fuga, falou frenético a seu pai, descobrindo-lhe as chamas, em que ardia, para que se mandassem fazer diligências, que aos seus olhos restituíssem a Hemirena; e como Rei lhe respondeu que não se devia perseguir aquela discreta resolução: e que em nenhum tempo sofreria que lhe desse a mão para esposa, a que havia sido escrava de Artemisto, porque se na sua escravidão respirava a grandeza, no seu consórcio delustraria a Majestade. Ibério, ouvindo estes últimos desenganos, deixou a Corte; e desprezando a esperança do trono, que renunciou a favor de Argenéia, tão amante, como resignado aos preceitos de seu pai, determinou retirar-se para uma casa de campo a esperar ali a morte, fazendo constantes sacrifícios às soberanas virtudes de Hemirena, que como Belino com o maior cuidado, e susto continuava em fugir; porque onde periga o decoro, equivocam-se as cautelas com os indícios do delito.

Chegando a Corinto, determinou ir com menos incômodo pelos sustos, medos, e horrores, que padecia, caminhando de noite. Em uma fresca tarde já cansado se recolhia em o oco de uma grande árvore, quando ouviu uma voz suave, que docemente cantava; e saindo a buscar a causa de tão suave canto, ouviu o brando sussurro de um rio, que vagaroso se espalhava pela relva: continuou a seguí-lo e por baixo de um frondoso arvoredo foi buscando os pertos daquela voz, que suposto ouvia melhor, parecendo-lhe ali sobrenatural, desconfiava de encontrar a sua origem. Assentou-se a descansar, vendo a glória da causa das maravilhas, que observava; e reparando nos líquidos cristais, dizia: Oh quanto és agradável, belíssima ribeira, que com majestosos movimentos despedes as cristalinas correntes que prendem, e guarnecem este ditoso bosque! E vós, aves inocentes fragrantes flores, e fugitivos desperdícios, gozai do solitário sossego deste ameno bosque. Oh quem pudera trocar convosco a sorte! Aumentando os regatos, corriam de seus belos olhos inumeráveis lágrimas: quando, sendo já quase noite, tornou a ouvir aquela suavíssima voz; e indo em seu seguimento, viu de longe um vulto, que principiava a tremer, não podendo bem distinguir se era humano; e vendo que daquele tal corpo é que saía a doce voz, foi devagar chegando para aquela parte, e observou que tinha figura de homem, e que estava da cintura para cima sem vestidura alguma; o resto do corpo se cobria com uma pele de urso; tudo, quanto tinha descoberto, era vestido de chagas; a barba crespa, e encanecida lhe chegava a cobrir o peito; os olhos, que pareciam sem luz, eram cobertos de carne, a cabeça calva, e da mesma sorte chagada, e as mãos ensangüentadas pela violência com que coçava as feias feridas, sentado sobre uma pedra junto à maior corrente do rio cantava, enquanto descansava de coçar-se. Suspenso Belino de ver o gosto, com que aquele em tão miserável estado se achava com o asqueroso semblante sumamente alegre, chegou a falar-lhe, e lhe disse:

Homem ditoso, que estás gozando desta amável soledade, como cantas tão alegremente, se te falta avista para lograres o mimo destas sombras? Como pode em ti haver alegria, se estás atormentado desse mal, que te consome? que fazes aqui distante de todo o remédio para o que padeces? Se aqui te deixou o engano, ou a tirania das gentes, eu te servirei, pois das gentes fujo. A estas palavras rindo com sossego, lhe respondeu:

Se me chama ditoso, porque estou gozando desta mágoa soledade, como reparas na minha alegria? Canto, porque já não posso ver as sombras, e só me disponho para as luzes. Como deixarei de estar alegre, se está para acabar o padecer deste mal, que me consome; e quando o que se consome, acaba, estou onde a distância dos remédios é o remédio do meu mal? Não me trouxe aqui o engano, porque aborrece as solidões, e é ocupado nas Cortes. Não me deixou a tirania das gentes, porque eu me resolvi a deixá-la. Quando muito me atormenta o rigor do que padeço, a fresca, e doce corrente me refrigera. Não quero mais cama, que a que me prepara a verde relva, nem mais saborosos manjares, que as ervas, para que me convida a fome. Quando os Pastores destes bosques vêm a socorrer-me, o leite, com que me regala a sua compassiva singeleza, me parece mais saboroso, que o suave néctar dos Deuses. Mas dize-me: Como te não fiz horror, e te atreveste a falar-me? A justa admiração (lhe respondeu Belino) que me causou o achar-se um tão nobre alegria em tão lastimosa figura, me obrigou afalar-te, para ver se aos meus males podia também achar remédio. Eu padeço mais que tu, pois é interno o meu mal; e como o fugir das gentes é hoje o que mais me convém, consentem-me na tua companhia, que a aspereza da vida, que aqui fazes, mais me agrada, que os regalos, de que fujo. Se te não é asquerosa (lhe respondeu) a figura, que em mim vês, repartirei contigo o maior bem na tranqüilidade que logro, e como a noite já estava adiantada, se acomodou Belino para descansar, encostando a cabeça sobre as raízes de um tronco; e para a outra parte o bom velho, que quando o despertavam as dores, principiava a cantar louvores a Júpiter; e invocava os Semideuses dos bosques, para que não consentissem que Esculápio, filho de Apolo, fosse ali a curá-lo, pois desejava que tivesse mais exercício a sua paciência.

Em amanhecendo, vieram uns Pastores, que vendo o belo mancebo, que em Belino se lhes representava, o levaram a ver a sua Aldeia, donde voltou obrigado à sinceridade, com que o trataram; e desejando saber quem era o velho enfermo, lhe disse:

Já a esta hora terás entendido em mim se não oculta algum inimigo teu, e quisera que me confiasses o teu nome, e a causa, que para aqui te conduziu.

Chamam-me Antionor: (lhe respondeu) os meus infortúnios não cabem, nem ainda em larguíssimos discursos, porque têm sido muitos, e os maiores, que até aqui puderam lembrar ao rigor da desventura; mas serás satisfeito com alguma parte deles. Antes que Anfiarau empunhasse o cetro de Corinto, vivia eu entre camponeses em um agradável retiro de Aganimedes seu pai, que lhe cedeu o governo, por se achar adiantado em anos, e falto de forças, pois conhecia as que eram precisas para reger a Monarquia. Quando deixou o governo, lhe recomendou que conservasse o conveniente, e reformasse o pernicioso: e também lhe advertiu que me ouvisse, pois era Filósofo e tinha notícia das melhores leis, e costumes das outras nações. Com este motivo fui levado a uma casa de campo à presença de Anfiarau, que determinou tiranizar assim a minha tranqüilidade, pois a perde quem é destinado para os empregos da Corte. Eu lhe disse, logo que ele me dispôs a deixar o campo:

Permiti, Senhor, que eu continue em guardar os vossos rebanhos, e escusai-me das estimações de valido. Principiaram no Mundo as guerras, por haverem muitos Deuses, muitas leis, e muitos Reis; e antes de as haverem, moravam os homens em os campos, comiam frutas, dormiam em covas, andavam descalços, e viviam do comum; eu quero só servi-vos, como até agora, acompanhando os vossos rebanhos no campo, sustentar-me das frutas silvestres, e reparar-me dos rigores do Inverno debaixo dos rochedos, já que o determinam os Deuses; porque o guardando a melhor lei, pobre, e descalço viverei em paz, que esta sempre nas inquietações da Corte. Oh quanto é melhor ouvir o que lá se passa, que o viver nela! porque os que não podem valer, estão esquecidos; os que muito valem, são perseguidos; os pobres não têm que comam: os ricos, porque o são, não os deixam comer sem sustos; são muitos os queixosos, e poucos os contentes; fazem muitos o que querem, e poucos o que devem; enfim todos murmuram, e quase todos seguem os mesmos erros, que condenam. Bem sei eu que os que procuram introduzir-se para validos, nem merecem ver a Majestade, pois estudam só lisonjeá-la, para fazer o partido de suas dependências; e que os Soberanos não podem com os olhos descobrir todas as luzes da verdade, porque trabalham em escurecê-la os que zelo aparente tratam de seus interesses, fingindo que amam os acertos de seu Rei, quando é certo que só estimam as suas grandezas. Se estes se castigassem com o silêncio eterno em pena do mal, que falam (visto se habilitarem para traidores os que mentem ao seu Rei, concorrendo para que seja injusto, ou em faltar a injustiça, ou em exceder a clemência), não sofreria enganos a Majestade, nem os vassalos descréditos; que ainda que se não descuidam as luzes do Sol em mostrar o que teve oculto a noite, são tão atrevidas as nuvens, que se opõem à verdade, que de seus horríveis defeitos nasce o muito, que temo o vosso preceito. Estas são as razões, por que espero dever à vossa compaixão e sepultares-me no esquecimento. Não foram admitidas as minhas escusas, e fui obrigado a fazer jornada no dia seguinte, dando mais um motivo para estímulo da desgraça. Antes que deixasse aquele amável sossego, chamei os rústicos, com quem vivia contente: despedi-me dos filhos, que comigo principiavam a observar os movimentos dos Planetas desse luzido Firmamento, de outros, que com mais adiantado conhecimento já iam colhendo os doces frutos de suas aplicações; e de outros, que como seus pais, aplicando-se à cultura dos campos, se recolhiam fatigados só para descansarem; e cantando em seu trabalho, esperavam a precursora do Sol, sem que lhes ficasse tempo para as murmurações, ou inquietações dos vizinhos, e com saudosas lágrimas lhe disse:

Eu sou obrigado, ó filhos, a deixar-vos, indo viver onde uns se alimentam do mal de outros; e já que os Céus vos têm mimosos, conservando-os felizmente neste amável sossego, aumentai para glória do meu trabalho o bom exemplo, com que vos hei dito, que os pais deveis persuadir os filhos e bem obrar: fazer que se não esqueçam do que lhes ensinei; e que uns admitam os outros em se aplicarem ao que lhes pedir a inclinação; e que os outros continuem seus trabalhos, temam o ócio, e todos exercitem as virtudes. Rogai aos Deuses que não me neguem as luzes, com que se amam os inimigos; que possa defender os amigos, amparar a pobreza, e tolerar os contratempos.

Logo que cheguei à Corte, fui à presença de Anfiarau, que com muitas honras me recebeu; e perguntando-me donde era, lhe respondi: Não podereis dizer-vos, se sou da grande Tebas, nem da Licaônia, nem da famosa Atenas, como respondeu um grande Tebano; e como ao sacerdote Arquitas vos respondo, que não sou de Tebas, como Tesifonte, nem de Atenas, como Agesilau, nem de Licaônia, como Platão, nem de Lacedemônia, como Licurgo; nasci em o Mundo, e sou natural de todo o Mundo. Como Anfiarau conheceu que tinha repugnância em dizer a minha pátria, não fez maior instância para o saber.

Toda aquela tarde passamos em conversação delicadíssima pela gostosa matéria, que se tratou; e quando foram horas, me conduziram a um aposento dentro em palácio, onde achei tudo com a polidez, que pedia o lugar, e fui servido com especiais distinções. No dia seguinte tornei à presença de Anfiarau, e se continuaram os discursos do que já se havia praticado no antecedente. Quisera dever-te (lhe disse Belino) que ao menos tocasses a matéria, em que se fundaram esses discursos, pois me seguras foram de gosto, e delicadeza. Discorremos (lhe respondeu) nas almas ditosas, que nos Elísios bem-aventurados gozam felizmente a paz, que não interrompe o receio de perdê-la. Nos espíritos desgraçados, que em contínuas penas se banham no triste rio do esquecimento. Na glória que adquirem nas heroicidades, quando se lhes não opõe a vaidade, que as deslustra. Na suave Poesia, e sua origem. Nas felicidades do século dourado, e admiráveis efeitos da razão.

Passados os primeiros dias, já não queria só divertir-se, mas que em a nossa conversação também se tratasse da utilidade pública; e que havendo-lhes satisfeito a curiosas perguntas, queria lhe dissesse em que consistia o melhor governo e obrigações do Soberano. Ao que respondi conforme os Céus me inspiraram. E logo me ordenou que observasse, como iam os costumes dos vassalos, se guardava a melhor ordem para o bem público; e se administrava verdadeira justiça. Eu lhe pedi que me comutasse aquele trabalho em outro, ainda que mais cansado fosse; e não foi possível que os meus rogos o conseguissem: e como saber mandar é mais difícil, que saber obedecer, sujeitando-me a tão pesados encargos, lhe roguei que ouvisse a todos, e cresse a poucos: e que estes fossem introduzidos mais pelo merecimento, que pela confiança, porque assim se evitaria que os comerciantes dos enganos servisse de escudo o seu agrado; e não haveria quem se atrevesse a ofuscar a glória, e candor de suas ações; e aprenderiam as gentes, qual era a verdadeira felicidade do melhor Príncipe.

Cantavam aqueles povos desoprimidos, florescendo as artes, e o bem público; mas ainda assim criei infinitos inimigos, ou porque a inveja não sofre alheios louvores, ou porque dos benefícios se gera a ingratidão, pois nasce com os homens, como caráter, que recebam de seu nome, sendo neles gênio antigo entregar as dívidas ao esquecimento. Dentro em palácio me acometeram alguns, de quem me defendi com honra; e quando caí ferido, se retiraram, talvez pensando que me deixavam morto. Fui visitado de Anfiarau, que com ânsia quis saber, se eu havia conhecido os que se atreveram àquele insulto, o que de mim não conseguiu, lembrando-me os padrões de imortal glória, que o Intrusco vinculou à posteridade, quando perdoou a Múcio, que o buscava para lhe tirar a vida. Em o largo tempo de minha doença concorriam as gentes sentindo mais que eu as próprias feridas; e dizendo uns no seu pranto que renasceriam as antigas maldades; outros que se enfraqueceriam as virtudes, e a justiça; e outros que seriam reduzidos às antigas opressões. Neste tempo o tiveram os malévolos para cultivarem o Real agrado; e com o falso zelo, com que os vassalos indignos traçam o engano de seu Rei, fingiram ter grande parte no sentimento do que me haviam feito; em um dia traziam à memória os perigos, a que eu me havia exposto; em outro lhe pediam (como obrigados da amizade, que eu merecia) que acudisse com algum reparo para os inimigos, pois estes nasciam do bem, que eu o havia servido; e discorrendo sobre a providência, que a isso se havia de dar, dizia cada um daqueles o seu parecer, e vinham todos a concordar, que Anfiarau desse a entender, que aquele tempo da minha ausência, me havia apartado de seu coração, e me não admitisse na sua presença, para se mitigar o ardor da inveja, do ódio, e do ciúme.

Acabada a cura das minhas feridas, me achei coberto de lepra, porque os Deuses benignos, que não se esqueciam de amparar os meus desejos, me faziam mimos com repetidas experiências da minha constância; e na presença de que, conhecendo a minha debilidade, me permitiram algum descanso, mandei pedir a Anfiarau, que me concedesse licença, para ir respirar para uma pequena casa de campo, que verias nessa Aldeia, a qual deixei, tanto que pude caminhar para este solitário retiro; e ainda aqui não se me dispensam as inquietações da Corte, pois há poucos dias, que fui consultado para negócio, em que a minha infelicidade fazia novo esforço, para combater o meu sossego; e é tal a força da minha desgraça, que podendo de todo ausentar-me, tendo o tácito consentimento de Anfiarau, o deplorável estado, em que me vês, não permite fazer maior caminho, valendo-me assim da companhia destes inocentes Pastores. Não repito algumas circunstâncias, que na mesma ocasião foram dignas de reparo, porque o mesmo falar me fadiga, nem um pequeno desafogo consente o fado aos perseguidos. Pois sabe que os meus infortúnios (lhe disse Belino) me obrigavam a acompanhar-te neste ameno bosque, tendo por certo que estarias livre dos que vêm feridos do contágio, que há nas Cortes; e como com horror tenho ouvido o veneno, que ocultam os corações, que ainda te ano deixam, eu me resolvo a continuar a minha triste peregrinação cheio de exemplos, que seguir, e documentos para publicar. Como sou quase insensível para alívios (lhe respondeu Antionor), não te persuado a que me acompanhes, mas sim que te retires dos que podem inficionar-te com seus vícios, se o teu ânimo é tão sincero, como se me representa nas tuas palavras. Oh! quanto (lhe disse Belino) é perseguida a virtude, e peregrina a verdade, que ocultam aos Soberanos, pois vejo resplandecer em ti o espírito gentil, que se despreza! Não te admires do que ouves (lhe respondeu), repara no que vês, para que te não enganem a gentileza, e estimações, pois são sujeitas às misérias que padeço. Vai, ó ditoso, e gentil mancebo, que estás em estado de buscar um lugar, que te contente, e descanse. Roga aos Céus que me assistam; que infundam em Anfiarau os acertos, o conhecimento da lisonja, a pureza da justiça, o aumento das virtudes, e ciências, e o resguardar o respeito do trono, sem perseguir a inocentes; e juntamente lhe inspirem o amar sempre os vassalos, para ser deles amado. Adeus, ó feliz Antionor, (lhe disse Belino) que como praça cheia do melhor socorro, não temes o sítio, nem as forças dos inimigos de fora. Os teus rogos mais depressa hão de chegar aos Deuses; e lhes pede que animem o meu desalento, que encaminhem os meus passos, e que antes me entreguem à mais cruel morte, que deixe a honra de reger as minhas ações.

Com esta admirável despedida tornou Belino triste, e aflito a continuar o seu caminho, e trabalhos, sem mais esperança, ou companhia que a razão, e o decoro, que o encaminhavam a temer justamente os homens, e seus venenosos enganos.

{{d|Sumário

Continuando Hemirena como Belino a caminhar para Argos, fugindo das povoações, entrou em uma brenha para descansar, e achou nela a Climinéia, que não conheceu; e tendo-a por Delmetra, a persuadiu a deixar tão áspera vida. Foram dar a uma Aldeia, onde se conservaram quatro anos, servindo aos Pastores. O disfarce de Hemirena deu causa ao rendimento de Atília, que procurandoa para seu esposo, as obrigou a deixarem as inocentes Pastoras, e continuarem a sua peregrinação.}}

Em uma fresca tarde, quando as aves cantando saudosas se despediam das luzes de Febo, saía de Belino Corinto, e entrava em Argos, onde determinava descansar dos trabalhos, com que havia caminhado desde que saíra de Atenas; e guardando a ordem de fugir ao porto, em que naquele Reino desembarcara cativo, por não ter conhecido, procurava ocultar a liberdade nas duras prisões do temor. Chegou à boca de uma brenha, que se compunha de grandíssimos penedos, pelo quê, fazendo-lhe horror a negra sombra, estava imóvel; e vendo que um vulto vinha de dentro como a buscá-lo, lembrando-lhe que podia ser alguma fera, o natural receio o inclinava a que temesse, e a recordação de sua pouca fortuna o aconselhava a que não fugisse. Quando ouviu uma voz, que dizia: Quem és, o que dúvidas entrar no frio centro deste rochedo, que eu habito? Não temas, nem fujas: se és racional, chega a consolar a quem nesta sepultura paga tributo à desgraça. Não seja maior em ti o efeito da covardia que o da compaixão, que merece uma infeliz.

A estas palavras entrou Belino naquela horrenda cova, e viu uma mulher, que mostrava no rosto quebrantado alguns vestígios de formosura, sumamente agradável, e parecia ter mais de setenta anos. Chegou a Belino; e apertando-o entre seus braços, lhe disse: Qual seria o astro benigno, que te conduziu à minha escura habitação? Talvez compadecendo-se já das minhas adversidades, encaminhasse para aqui os teus passos, porque nem sempre consentem que o fado triunfante dos mortais: aqui tenho vivido retirada das gentes, e só na sombra das pedras achei o melhor amparo. E ficando suspensa, e pensativa por algum tempo, lhe disse Belino; Confia-me o teu nome, continuando no desafogo dos teus pesares: porque quando se repartem comunicados, fazem menos violento o seu efeito: e porque a um infeliz, a quem atropela a desgraça, sempre servem se alívio os lastimosos ecos dos que também se queixam da fortuna. Bem quisera servir-me da ocasião para os desafogos (lhe respondeu); mas como poderei dizer-te quem sou, se da minha origem parece que nem as memórias conservo; que como apostou o destino a minha ruína, não me lembro da que sou, e me aborreço tanto, quanto da que fui vivo distante: mas eu te satisfaço, dizendo que me chamo Delmetra, a quem a desgraça roubou da pompa esclarecida, e arrojou a um abismo de misérias; e reduzindo-me ao mais vil estado, fui entregue a contínuos infortúnios. As gentes me aniquilaram, desprezaram-me os alívios, os descansos me desconheceram, e me desampararam as riquezas; mas como é mais poderoso o ânimo constante, que formidável todo o poder do fado, os trabalhos me vivificam, para resistir aos seus assaltos. Separei-me das gentes, e busquei entre as feras o amparo, que me negavam os racionais; e debaixo destes penedos tenho procurado com lágrimas contínuas abrandar a ira dos Céus. Nos primeiros dias parece que me alimentou o pranto; e nos horrores das noites o grande pavor, e inexplicáveis sustos me representavam todo o furor do inferno: nem sei dizer-te o medo, que me causavam os tigres, quando vinham abrigar-se dos rigores do Sol. Todo o cuidado era pouco para me fazer imóvel, temendo a sua ferocidade; quando os via junto a mim, em qualquer de seus movimentos se me figuravam os últimos instantes de minha vida; e ainda que de noite não assistiam aqui, não era menor o horror, que me causava o alarido de diversas vozes, e canto de aves noturnas; sem mais abrigo, consolação, luz, ou campainha que a das lágrimas, que produzia a minha desgraça. Assim me lembrava dos meus, e o estado, a que seriam reduzidos, e com vivíssima saudade tinha o desafogo de arrancar do peito magoadíssimos suspiros; e quando cansava o triste espírito, adormecia, ou vencida de cuidados, ou quebrantada de tristeza; quando as feras se recolhiam, saía eu com fome tão feia, que me serviam de alimento as frutas, e ervas amargosíssimas; e como pelo receio de que viesse alguém, me recolhia logo, não tinha sossego fora desta brenha, esperando dever mais compaixão aos brutos, que a habitavam, que os racionais, de quem eu fugia; e ainda que estou em sítio muito solitário, e distante de povoação, era tal o medo, que muitas vezes dei grandes carreiras fugindo, por se me representar que via ao longe algumas pessoas, que se encaminhavam para aquela parte. Passava todo o dia, e noite seguinte em contínuo susto; e quando chegava a sair com muito vagar, e temor, escondendo-me com as árvores, e com os montes, reparava para aquele lugar, e via que algumas pedras tinha dado alheio corpo a minha fantasia, e movimento o meu inexplicável medo: como aqueles culpados, que em parte nenhuma estão seguros, pois levam no delito o instrumento de seu castigo, porque se levantam as mesmas pedras a perseguí-los: assim me via eu atormentada; mas não era o remorso o que me condenava a tão contínuo desassossego; mas sim a crueldade dos bárbaros, a quem eu temia, sem haver cometido mais culpas para o seu ódio, que o entregar-me nas suas mãos o meu tirano destino. O decurso do tempo gastou em mim o horror da sepultura, em que vivo, o temor dos viventes, que me acompanham, e o receio dos que me perseguiam: a fome, o frio, a crueza dos alimentos, e a aspereza da cama, já tolero sem trabalho; porém nunca se diminuiu em mim a força da viva saudade, com que todos os dias lamento a ausência dos meus; e rompendo em tristes ais as entranhas deste rochedo, parece que o lastimoso som de meus inflamados suspiros brotam lágrimas cristalinas, que fugitivas correm murmurando de meus tristes desvarios.

Há seis anos que conservo aqui a vida para castigo de meus desacertos, que já a morte em tal estado fora mimo da fortuna: a rusticidade do país, e o estado brutal, em que me vês, já me não são violentos, porque o costume faz natureza; mas é sem igual o tormento, que me fabrica a memória; pois ainda o mesmo temor das gentes gastou o tempo, e não sei se a constância, com que sofri o rigor da tirania entre os homens, hoje degenera em obstinação entre os brutos; porque sendo já insensível para os males, e atormentando-se só a força de inocentes afeto, tenho feito tão domésticos os pesares, que nem me lembro de buscar alívios. Não me atemorizou tanto o ver-te, quanto me perturbaram as pedras, quando principiei a sair desta triste sepultura; e assim te digo, que se me buscas, eu já te peço a morte, pois me não lisonjeia a vida; se me és contrário, eu me não nego ao ódio, nem te resisto, pois que chego a apetecer os estragos; e se acaso te persegue a fortuna, conta-me qual foi a tempestade, que te arrojou a estas desertas brenhas, para que eu principie a louvar os justos Deuses, que te trouxeram para consolar-me.

Não venho a buscar-te, (lhe respondeu Belino) nem te sou contrário, mas antes sinto que o teu mal se me comunica; venho atropelado da fortuna, e buscava no seio destas brenhas um lugar, em que sem susto descansasse; e se fossem mais antigos os teus males, e talvez menos os teus anos, poderia suceder que dos teus trabalhos nascessem os meus; e como a jornada, que ultimamente fiz, me obriga a confessar-te o meu cansaço, dá-me licença, para que me encoste a descansar.

Delmetra o conduziu para a parte mais côncava da brenha; e logo lhe advertiu que, entrando as feras para aquele lugar, não falasse, nem se movesse, enquanto se não costumassem a vê-lo; e deixando-o acomodado como pôde, saiu a buscar algumas frutas silvestres, para ter mimoso o seu hóspede. Em despertando Belino, lhe apresentou aqueles asperíssimos regalos, que aceitou com mostras de verdadeiro agradecimento. Enquanto se recolheram os ferozes primeiros possuidores daquela agreste casa, esteve com atenção Delmetra reparando na agradável presença daquele mancebo; e o muito, que mudamente um olhava para o outro não lhes causava riso, como ordinariamente sucede, porque principiando Delmetra a banhar-se em lágrimas, Belino lhe correspondeu com outras tantas, e se explicavam assim os tristes olhos com as vozes mais claras, que podiam exprimir, o que um, e outro coração sentia. Belino pela grande novidade, que lhe fazia o ver-se tão perto daqueles animais, nem se resolvia a enxugar as lágrimas, que correndo por suas belas faces, paravam em seus lábios de nácar, e apostavam competir com seus claros, e bem organizados dentes. Quando de novo entrava mais alguma fera, ou davam aquelas alguns passos, era tal susto, que lhe parecia perder os sentidos; e quando principiaram a sair a pastar, respirou aquele oprimido coração; e escolhendo o continuar a sua derrota: E tempo, Senhora, (disse a Delmetra) para que me permitas continuar o meu caminho, tão admirado de ver-te, quanto agradecido à tua bondade; e ainda que te deixo, será inseparável da minha lembrança o teu agrado, pois na alma o levo impresso, e os prodigiosos efeitos da virtude, e temor do maus, pois fazes tão boa sociedade com as feras, que te respeitam, quando temes os racionais, em quem as iniqüidades agravam tanto os bons, quanto me confundem os sobrenaturais efeitos, que publicam nos desertos os prodígios dos Céus. Como tão apressadamente queres deixar-me (lhe respondeu Delmetra) sem que te mova a compaixão de uma triste, que debaixo destas pedras esconde a sua maldade? E como acompanhavam a estas palavras muitos milhares de lágrimas, não pôde Belino resistir à ternura, e determinou demorar-se ali mais alguns dias. No seguinte lhe pediu Delmetra quisesse comunicar-lhe seus infortúnios, ainda que mais lhe parecia transformação admirável ordenada pela sabedoria de Minerva, para a confortar, que criatura mortal; porque nas suas ações, e palavras admirava acertos superiores. Não é a minha lastimosa história para divertir-se, (lhe respondeu Belino) porque meus repetidos trabalhos só poderão aumentar tristezas; mas como queres ouví-los, direi parte deles para satisfazer-te.

Nasci em um país muito distante deste: fui socorrido de bens: bem visto entre as estimações, e assistido pelos melhores: mas como os justos Deuses não quiseram que eu colhesse os frutos dos regalos, porque quase sempre são venenosos, quando eu principiava a conhecê-los, fui reduzido a todo o gênero de trabalhos; e moderando-se o rigor deles, tomei força para as maiores fadigas. Os precipícios, a que me intentava encaminhar a violência de uma paixão, me obrigaram a fugir, vendo de longe os perigos; e como devo dirigir os meus passos a buscar a pátria, espero que não os queiras divertir, e se agrada ir correndo igual fortuna, deixa a sociedade das feras, e acompanha-me que ao rigor dos infortúnios só modera o achar neles companhia. Irás recomendada ao mesmo retiro, e segredo, de que pende a minha vida. Em acompanhar-te (respondeu Delmetra) buscarei o meu remédio, pois tu me hás renovado o mal, com que já não pode o ânimo enfraquecido; mas vou certa que pelos Deuses imortais juras acompanhar-me, como eu também a ti; e se na verdade tens humanos sentimentos, ou és aqui mandado por segredo da eterna sabedoria, espero que as tuas obras sejam iguais ao que influi o teu amável semblante. Nunca saberei deixar-te (lhe respondeu Belino), nem temas que perigue a fidelidade, atenção, e abrigo, que devem os bem nascidos às mulheres, a quem persegue a fortuna; porque consiste a maior honra em ser abrigo de honrados; e quando juras seres de mim inseparável, eu juntamente o servir-te; e se não há cousa alguma, que te embarace, é preciso que nos determinemos a deixar já estes rochedos, antes que minha vida experimente a ira das feras. Vamos (lhe respondeu Delmetra): e te agradeço, ó brenha compassiva, o amparo de tantos anos, de que saudosa me ausento, pois achei em ti o lugar, que me negaram os corações humanos: corram agora de ti, ó bela penha, os líquidos cristais, sem que os perturbe o ardor, que me refrigeram. De ti me aparto, ó bosque sombrio, pardo monte, e florescente prado. Aves inocentes, cantai sonoras, que já vos não interromperão meus tristes ais; e ficai ditosos brutinhos, que do ódio o mal; não conheceis, nem do amor o cruel efeito.

Saíram pouco antes de noite, sentindo uma tal consolação, que julgavam triunfarem dos passados trabalhos, com que ora caindo, ora tropeçando foram parte da noite; e ainda que algumas vezes iam com susto e cuidado, pelas vozes de estranhos brutos, que parecia pastavam por aqueles fragosos montes, contudo iam tão fortalecidos com a companhia, que tudo lhes era suave. Delmetra pelo costume de dar poucos passos, fazia o seu caminho com grande trabalho; assim forma sem mais guia que o conhecimento, que Belino tinha das estrelas; chegaram a uma Aldeia, onde as serranas eram formosas, e agradáveis; e como estavam fora de Argos, e já na campanha de Micena, se ofereceram ao serviço daqueles rústicos, e foram admitidos em casa de Leda, que vestindo a Delmetra, lhe encarregou a assistência de uma velha enferma, e entregou seus rebanhos a Belino; e suposto que da sua memória resultavam sempre saudosos efeitos, pois se lhe não separavam as causas, suspirando ausente da sua pátria, lembrando-lhe seus amados progenitores, e os últimos suspiros de Beraniza, entre a mágoa, e saudade lhe parecia não poder conseguir maior felicidade, que o sossego de ânimo, em que então se via. Quando apascentava o gado, cantava suavemente, fazendo que renascessem com a maior glória os antigos varões, de quem repetia os mais cadentes versos. A noite se recolhia o molhado a se reparar ao fogo, ou a descansar com Delmetra; e naquela tranqüilidade de espírito considerava mais rica, e suntuosa a choupana que os palácios, que havia deixado em Tebas; nem desejava mais que aquele maior bem de seus males, tendo por mui difícil chegar à suspirada pátria; que sempre os trabalhos fazem agigantando qualquer pequeno descanso. Delmetra, que era tida por mãe de Belino, consolando-se de tão boa companhia, e ignorando as obrigações, que lhe acresciam para esse fim, esperava acabar naquela Aldeia os poucos anos, que lhe restassem de vida. As Pastoras, querendo imitar o canto de Belino, se exercitavam em seus inocentes festejos. Delmetra juntamente animava aqueles divertimentos, tomando à sua conta o instruí-las; com o que viviam todos contentes, tornando-se os recreios em escolas de civilidade, economia e recato.

Celebravam-se as bodas de Learco, pastor velho, com a bela pastora Olímpia; e como havia causado a todos admiração a cega obediência, com que Olímpia se conformara com a vontade de seus pais, determinaram festejar três dias aos desposados. As pastoras vestidas de finíssima lã de seus cordeirinhos, levando-lhe nas inocentes ofertas os repetidos votos da mais pura amizade, a conduziram para uma fresca fonte, que guarnecida de arvoredo, convidava com a deliciosa sombra. Sobre a verde relva se assentaram, os homens a uma parte, e as mulheres a outra, menos os dous desposados, que no melhor lugar estavam juntos. Amartice, irmã de Learco, saiu do seu lugar, desafiando para o baile, depois do qual lhe cantaram galantíssimas canções, tudo sem mais arte, ou adorno, que o da agradável singeleza, e assim continuaram alternativamente; acabavam uns, recomendando aos Deuses o constante amor, e feliz conservação dos desposados; outros a pureza de suas obras, e aumento das virtudes; outros que se contemplassem, para que conservassem com alegria o gosto dos primeiros anos; e outros com muitas graças, elogiando a inocente beleza de Olímpia, e zombando das cãs de Learco, lhe diziam que servisse em boa paz a Olímpia para agradecer tão feliz consórcio.

Passadas estas primeiras disposições do festejo, quiseram ouvir a Belino, que lhe repetiu as cadências métricas, em que recomendava o esplendor dos noivo a Aglaia, o prazer a Tália, e a Eufrozine a formosura de Olímpia, para que a defendesse de desgraça, que ordinariamente se lhe atreve. Também quiseram que Delmetra concorresse para a função com alguma coisa útil, e lhes desse daquele novo gosto, que ali lhes havia levado; e assentaram proporem-lhe as dúvidas, e fazerem curiosas perguntas, ao que deu princípio Learco, pois era o mais ancião, e respeitado em tal dia; e erguendo-se, disse: Qual é a cousa, que o homem deve mais amar, e o que mais o aflige? Mais deve amar (lhe respondeu) a consorte bela, e virtuosa, que ele não merecia; e o que mais o aflige é a separação do que ama, e o perder por desgraça, o que adquiriu o desvelo. Com muito riso aplaudiram todos estas respostas, e lhe rogaram que não só respondesse, mas que continuasse a discorrer sobre as questões, ou perguntas, conforme lhe ocorresse. Em que consiste a verdadeira amizade (perguntou Pachina irmã de Olímpia)? Em sentirem dous sujeitos as adversidades um do outro (lhe respondeu), e se alegrarem igualmente com a prosperidades; e como é difícil achar-se uma com as qualidades de verdadeira, é preciso que a prudência faça a escolha para serem bem satisfeitos os preceitos da fidelidade. Não pode sempre desempenhar a boa amizade o sujeito, quer não for discreto, e entendido, pois se devem acompanhar com o conselho nas adversidades, e reparar dos golpes da inveja nas prosperidades; pelo que não há cousa, de que mais careça o coração humano, pois na presença adverte o afeto dos desacertos, e na ausência costuma a lealdade defender dos inimigos. Também a prudência, e segredo são condições precisas, em que deve satisfazer aos encargos da amizade: porque assim como o néscio não é capaz de aconselhar, também o falador arruína, quando menos o deseja. Há muitos, a quem se pode fiar a pessoa, a vida, e o dinheiro; mas o segredo só aos que com antiga experiência acreditam a amizade, a qual não só é obrigada a calar o que se lhe confia, mas guardar o que vir, e algumas vezes o que ouvir aos estranhos, pelo que só assenta bem nos sujeitos, que cuidam bem o que fazem, e sabem o que dizem. A pessoa, que mais ama, se conhece em ajudar com as forças, aconselhar com afeto, e estranhar com prudência, não esperando que a busquem para o socorro nos trabalhos, nem que as finezas se agradeçam; porque a amizade naturalmente é generosa, e não quer mais interesse que o prazer de cumprir com o que deve; e é sempre desaire da generosidade o esperar agradecimento.

Também reparai, ó serranos, que nem todos os conhecidos são capazes para amigos; porque os que não forem honestos, e benquistos, será melhor estimá-los, se em alguma cousa o merecem, que conservá-los particularmente; não só pelo mal, que podem obrar, mas também pelo que os maliciosos suspeitam dos maus; e porque vos não enganem os que adiantam muito os passos da amizade para chegarem à conversação particular, o que muitas vezes sucede com os moços mal precedidos, e ociosos. Esta cautela é muito mais precisa na Corte, onde há muitos, que merecem estimação, e muito poucos, que merecem estimação, e muito poucos, que mereçam se lhes confiem os sentimentos internos. Em toda a parte é o afeto da boa amizade mais permanente que o amor da sangüinidade: porque a cordialidade dos parentes poucas vezes dura, e o afeto da amizade rara vez acaba; as suas leis prometem muitos guardar, e as sabem guardar muito poucos, pois são indispensáveis os preceitos de prestar, defender, e acompanhar; pelo que é infelicidade o não ter uma, e grande o trabalho de ter muitas; e as que são verdadeiras, ou falsas, só se conhecem quando a fortuna se retira; porque a esta sempre seguem os mais, assim como à virtude os melhores. Conclui Delmetra este discurso, em que lhe deram os vivas com grande alegria. Qual é o pior trabalho das mulheres na Corte (perguntou Barnélia)? A eleição das cores, com que pintam a formosura (respondeu Delmetra), pois gastam a maior parte do dia em contínuas transformações, sem chegarem a conhecer que o natural lhes está melhor; e assim passam de desejo a desejo, querem, e não querem, mancham-se, e desmancham-se; fazendo-se aborrecer de perto, as que se fizeram amar de longe; e sem parecerem de manhã as que são à tarde, não têm mais constante estado que em conservarem aquela indiscreta opinião. Este mal inveterado se acha nas mulheres, que tomam contínuos os bailes, recreios, e conversações , em que na chusma desentoada falam muitas ao mesmo tempo; umas em dilatados cumprimentos, outras repetindo histórias mal aplicadas, com as sábias, falando nos Escritores, e dando a arte aos Poetas, e outras, que como estátuas da vaidade na contemplação da sua beleza, e bizarria, se estão revendo em si mesmas, e exercitando-se em visagens, e melindres; porque muitas ignoram que a formosura do rosto apenas nasce, tem mil contrários, que a arruínam, que só faz cara ao tempo, e aos trabalhos, a que consiste em um espírito aprazível, e modesto, que com suavidade as faz amáveis, e tão poderosas, que confundem a ousadia, tiram as armas ao atrevimento, e triunfam dos rendidos, sem mais trabalho que recomendarem-se ao silêncio, que costuma alegar a seu favor; e que em degenerado esta suavidade de espírito, perdem o preço para com os que lhe são superiores, se fazem enfadonhas aos iguais, insofríveis aos inferiores, e aborrecidas de todos; e quando preparam para outrem o veneno, bebem a maior parte.

Mais quisera que elas se divertissem na conversação do mesmo sexo, que admitirem os homens, porque são grandes os danos da ocasião; e ainda entre as mulheres se devem escolher as que forem graves, e comedidas; porque àquelas, que não têm estas circunstâncias, sucede algumas vezes serem mais prejudiciais que os homens, pois se não guardam dos inimigos domésticos. As casadas devem sempre acautelar-se na presença das donzelas, pelo que do exemplo se pode recear; assim como é em todas convenientes uma discreta elevação, com que não estimem uma as liberalidades, nem queiram mais grandezas que o desprezá-las; porque as que desejam mais que o que lhes permite a sua esfera, estado, e possibilidade, têm mais um inimigo para vencer o seu coração. O amor em algumas procede mais da vaidade do espírito que da fragilidade, porque se pagam do aplauso dos que só as estimam por seus interesses; sendo certo que as mais das vezes se não louvam aquelas formosuras com prodigalidade tão nobre, que não esperem o prêmio de tais louvores; a vaidade, e o amor-próprio, que concorrem para serem com muita leveza crédulas, também as obriga a trazerem na conversação os rendidos, que desprezaram, sendo isto grave descuido da modéstia, e desaire do próprio respeito; mas assim persuadem que são dignas de serem amadas: alegram-se de os verem prostrados, especialmente se têm qualidades para terem a estimação das gentes, recebem uma glória esquisita, em terem escravos, que mais estimam as prisões, que desejam a liberdade; e se por graça lhes principiam a aceitar os sacrifícios, as ofertas, as lisonjas, os protestos, e as finezas, muitos vezes deveras se acham vencidas; porque as discretas submissões, súplicas repetidas, e bem ornadas poesias costumam abalar os montes, pois se de assalto as não vencem, o recomendam a uma constância importuna; nem há muralha, que resista a esse fim, se não teme ao princípio. Há mulheres na Corte, que em oitenta anos, que viveram, nunca tiveram mais aplicação que a dos seus enfeites; e é cousa lastimosa que deixemos de enriquecer-nos dos conhecimentos necessários com a leitura de bons livros, que são companheiros sábios de honesta conversação. Nós não temos a profissão das ciências nem obrigação de sermos sábias; mas também não fizemos voto de sermos ignorante. Há mulheres, que em acabando os primeiros cumprimentos já não querem mais que dizer mal, e falar em enfeites, e outras semelhanças ninheiras; estas fora melhor que aprendessem a calar, se não sabem tratar conveniente; não digo que sejam sábias como as Musas e Sibilas; mas que conforme sua esfera, e possibilidade, se apliquem às ciências, e ao que sirva para a boa direção dos costumes, que como não são animais, que tirem das folhas, veneno, não podem abusar da celestial ambrósia, que nos livros se acha; porque o ignorar a gravidade da culpa, e os preceitos da modéstia, conduzem para o tropeço. Nem digo que seja útil o lerem toda a casta de livros, pois são perniciosos os que tratam das paixões, que insensivelmente costumam introduzir-se nos ânimos; porque ainda que se pintem com agradáveis cores, elevado estilo e invenções honestas, nem assim nos convém lê-los, e basta que nos apliquemos aos que nos enchem de documentos admiráveis fazem temer os efeitos do ócio. A paixão que se exercita em alguma boa obra diverte as mais, que podem inquietar o espírito, e na gostosa fadiga dos estudos tem a maior glória o entendimento, vendo pela memória desterradas as trevas da ociosidade, e ignorância, tirando os melhores exemplos de perfeição. Oh quanto será feliz a que guardar no coração estas ponderações! pois só as desprezam as que, como aves noturnas, não podem ver as luzes; estas são as que deixam o honesto, e generoso de nossos costumes, com o que nos tiram o crédito, pois vivem entre os deleites, e a inveja, que as negam às venerações, e lhes arruínam a alegria.

Vós, as serranas, que não podeis instruir as filhas nas ciências, basta que não as deixeis viver ociosas, pois é tão precioso o costumá-las com o trabalho cotidiano, como ao lavrador o arado, e ao militar as armas. A natureza dotou aos homens de mais forças e as mulheres de mais sutileza de espírito; e às que se servem dela entregues ao ócio incita paixões ardentes, que arruínam ao entendimento; que assim como não há cousa mais amável que a bondade, não a há tão segura como uma inocente, e dócil sinceridade, aplicando-se esta em repreender os Poetas, desmentir as fábulas, e vencer a ignorância, e a maldade, que nos tem por inimigas do sossego público; e persuadamo-nos de que é só bela, e admirável, a que se adorna de prudente moderação em todas as suas ações, e palavras, e só malquistas entre a gente civil, as que com a ociosidade, e aspereza de gênios a todos fazem horror, sem que jamais lhes lembre que o viver é trabalhar; nem que houveram povos, que puseram fora dos seus muros aos mesmos Deuses, que não assistiam ao trabalho, nem que não deixam de padecer ultrajes as mulheres, que só exercitam o inútil.

Assim concluiu Delmetra com inexplicável aplauso; e coube a Aminta o continuar o divertimento, que o fez perguntando com graça: Quantas são as qualidades, com que os homens dizem mal de nós? Ignorância, maldade, e loucura (lhe respondeu Delmetra). A primeira se acha em uma certa casta de néscios, que para se difamarem por novo estilo, dão a entender que têm grande experiência, e já crescido enfado; e como as frases dos satíricos sempre são aplaudidas (porque é grande o número dos ignorantes mal morigerados) fazem a conversação alegre, talvez porque nunca foram bem vistos; e gabando-se de favores, que eles dizem que receberam, fazem a vileza contagiosa, pois perdem as regalias de honrados os que ouvem, e celebram aquelas graças, indignas de que a sofram os bem-nascidos. E se os que tomam essa empresa, têm tintura de Filósofos, ou Poetas, são as sátiras tão feias, como os louvores suspeitos. A estes é o mais grave castigo o negar-lhes a atenção, porque as obras, que deixam ler no sobrescrito alguma desordem de paixões, é mais nobre a bizarria de as desprezar, que o empenho de lhes responder.

A Segunda qualidade se acha nos homens, que entregues aos vícios não podem digerir alguns trabalhos, que buscaram com a vaidade de queridos, ou com as diligências do atrevimento. Estes são como os cães, que mordidos por aqueles, com quem forma entender, correm morrendo a todos os que encontram; e como os que enganados de um pequeno alívio coçam a chaga, que acrescentam. Eu quero supor que alguma vez haja algum (se pode ser) a quem a dor tire com razão o sofrimento; mas nunca o poder ter em fazer geral o vitupério pelo erro particular.

A terceira ordem destes nossos inimigos são uns melancólicos furiosos, que têm pior afeto que a loucura, porque apenas declaram guerra a uma pessoa do nosso sexo, logo a intimam a toda a natureza, que nos defende no silêncio. Estes vendem a vingança como doutrina, e procuram persuadir a todos que o menor espírito de todos os homens, que há no Mundo, tem melhores qualidades que os das mulheres mais capazes de todo o Universo. Eu não intento louvá-las contra justiça, pois tem sido o meu empenho advertir-lhes os defeitos, que em muito poucas se acham; mas não haverá quem lhes negue a glória de que a mais rude está em mais alto grau que todos eles, só em conservar a sua moderação, e constância em desprezá-los. Para os desmentir basta saber-se que as suas presumidas quimeras têm a origem na loucura, e amor-próprio, como elementos proporcionados. Estes discursivos se não dizem que as almas têm sexo, para que forjam distinções, que não têm mais subsistência que na sua corrupta imaginação, pois foram igualmente criadas, e a disposição dos órgãos (de que me dizem provém a bondade do espírito) é tão vantajosa nas mulheres, como nos homens? Alguns há tão faltos de espírito, e capacidade, que se lhe tirassem um só grau, não lhes faltaria nada para brutas; assim como são inumeráveis as heroínas, que se têm visto inteligentes, que umas têm parecido milagre nas artes, e outras têm dado a entender que eles julgam ignorância, o que são efeitos da modéstia. Não resplandece em todas a luz brilhante das ciências; porque eles ocupam as aulas, em que não teriam lugar, se elas a freqüentassem, pois temos igualdade de almas, e o mesmo direito aos conhecimentos necessários; e o dizerem que as nossas potências são o refugo das suas, porque não sabemos entender, ajuizar, aprender, e queremos sempre pior, é sobra de maldade, e insofrível sem razão, quando há sempre neles mais que repreender, e nas mulheres muito que louvar, menos naquelas, que muito os atendem, porque eles a arruínam. Enfim digam o que quiserem, e fazei vós o que deveis; que as que souberdes encher as vossas obrigações, não achareis entre os bons algum, por mais insensato que seja, que vos negue a veneração; que eu só estou mal com as camponesas, que não cuidam mais que em comer, dormir, e falar, porque ainda às grandes senhoras não perdoa a nota, que façam vida de se não ocuparem em cousa alguma, porque são incuráveis os males, que produzem pensamentos levianos, e momentos ociosos.

Acabando este discurso, que foi igualmente aplaudido, disse Belino: Qual é a pena condigna à culpa dos que voluntários se metem pelas setas de Cupido? Os zelos, (lhe respondeu) voraz incêndio, que abrasa toda a região do peito: é uma ira furiosa, um penetrante punhal, que de toda a sorte corta nas entranhas: é uma dor insofrível, com que desmaia a mais acreditada prudência: é um furor incitado, que mata sem remédio; é um frenesi sem melhora, que tira de si aos mais sábios: é uma desesperação sem alívio, e é um inferno de penas, onde as suspeitas fabricam sempre os tomentos, onde as desconfianças, apreendendo evidências, alimentam as chamas de juízos temerários, onde se fabricam vinganças, e forjam mortes ímpias: é um mar perigo, inquietações, e naufrágios, em que a razão não governa, a amizade não consola, nem a experiência alivia, porque tudo é confusão, e pesares, com que os zelosos buscam o que não querem achar. Esta infelicíssima paixão, que forma a fantasia, veste-se de suspeitas, aviva-se com sombras, sustenta-se da curiosidade levada de enganos pela murmuração: delustra castas amizades, rompe alianças, engendra monstros, alimenta furores, comendo a si mesma depois de haver atormentado a todos. Se os vossos maridos caírem nesta perigosa doença, por compaixão deles lhes tirai toda a ocasião, que passa alterar as suas imaginações; porque quanto é mais ardente o amor, tanto é maior a dor, que conduz para os delírios. O recato é o remédio, que só pode moderar tanto mal, porque os indícios costumam perturbar a razão, ainda aos mais nobres sujeitos; e reparai que nem Júpiter roubara a Europa, se ela se negara aos seus olhos; e cuidai em não cair naquela enfermidade, em a qual vos achareis sem mais companhia que o verdugo formidável, que nas entranhas se emprega; e quando para tão grande mal tenhais causa conhecida, não vos queixeis com indiscretos excessos; porque o silêncio, a prudência, e o sofrimento costumam repreender severamente aos culpados, e a indústria, e discrição vos devem revestir de agrado; com o quê vereis ou animar-se o amor, ou infundirdes; porque o desafogo das palavras não é mais que fartar de água na força da sezão, que não só não a cura, mas a aumenta.

Assim determinava Delmetra acabar a tarde, mas com aplauso maior a obrigaram a continuar aquele saudável divertimento; e levando-se um célebre velho chamado Anduvino, o qual era prezado de mais sábio que os outros; e fazendo visagens, como que se preparava para propor questão embaraçada, disse: Qual é a cousa, que mais insensivelmente atormenta aos que vivem na Corte, e em que se conhece mais o Rei prudente? Atormenta insensivelmente (lhe respondeu) o que quererem imitar os grandes a magnificência do Soberano; aos grandes os que se lhe seguem, e todos os mais trabalharem para o mesmo fim, e para fazerem mais bulha do que podem. Os ricos se cansam para gozarem com demasiado fasto as suas riquezas; os que o não são, se envergonham de o não parecerem. Os prudentes não se animam a estranhar os excessos, deixando de seguí-los, porque se não acham com forças para destruírem os costumes bem aceitos, e introduzidos; ainda que bem conhecem que assim se arruínam as Repúblicas, e é mais conveniente o serem peritos nas artes hábeis para os empregos, e amantes das virtudes; e que as delicadezas são tão fúteis, quanto é digno de glória o que se habilita para ganhar batalhas, libertar a pátria, e fazer honrar aos Deuses; mas seguindo todos o mesmo erro, os pobres tratam-se como ricos; gastam os ricos mais do que têm, todos usam de artifícios, e enganos para sustentarem aquela vã ostentação; porque se costuma as cousas supérfulas. Todos os dias inventam novidades, com que fazem crescer as suas opressões, e àquele excesso chamam bom gosto, perfeição da arte, e polidez da nação; sendo este o mal, que chega a inficionar até os mais íntimos da plebe. E quem haverá, que possa emendar aqueles erros, se não for o exemplo de um Rei prudente, que com a sua moderação, e sabedoria reprenda as demasias, animando aos que desejam usar temperança?

Assim respondeu Delmetra; e continuando a receber iguais demonstrações de estimação, disse Olímpia: Qual é o maior trabalho das casadas? Os maridos impudentes (lhe respondeu); e é tão grande a infelicidade das mulheres, que se lhes é preciso todo o sofrimento para os ouvir, mas também muito para os ver; advertindo que se entristecem com todas as sem-razões, ou os querem satisfazer em todas as queixas, para tão grande trabalho não bastam em uma todas as forças, que a natureza pelas outras repartiu, porque se são néscios, não os convencem ajustadas razões, antes os põem em pior estado. Se são coléricos, e os não emenda a discrição, com que os sofrem, nunca se emendam do que se lhes diz. Se são zelosos, ainda que conheçam que pelo caminho de as guardar, as levam a desesperar, correm com a sua tormenta, sem que se lembrem de que o melhor modo de as ensinar a serem honestas é fazendo delas inteira confiança.

Também eles aqui se queixam de trabalhos menores, dizendo de algumas que são preguiçosas, desgovernadas, pouco limpas, desconfiadas, faladoras a bravas; e ouço a algumas que os maridos são tão arrebatados, que nem vizinhos podem sofrê-los; porque de coléricos passam a furiosos, que quando vêm para casa dão nos filhos, gritam com as mulheres, descompondo-as de feias, e mal procedidas; outros, que vizinhas buscam alegres, servem cuidadosos, e festejam com gosto, e se aproveitam das mulheres próprias para lhes fazerem comer, criar filhos, e guardar a casa. Destas, e outras muitas coisas os casados se queixam nesta aldeia, e quisera saber qual foi o remédio, que deram a estes trabalhos as vizinhas, com quem se não fala em outra cousa; pois é grande leveza de juízo comunicá-los a quem os não pode remediar. Sofram-se os casados alternativamente, que se o silêncio não curar moléstias interiores, só a morte acaba porque assim como só ao coração toca o sentir os defeitos do que devemos amar também a ele pertence o ocultá-los; e só aqueles àqueles, que nos têm verdadeiro afeto se podem confiar interioridades; porque remedeiam o que podem, e nos ajudam a chorar, e a acertar; advertindo que entre os casados alcança os maiores créditos, o que em silêncio mais sofre. As mulheres se fazem conhecer faladoras, com que o confiam a um descuido da prudência, a que chamam desafogo, e os homens dão lugar aos confiados, para que se atrevam a falar-lhes mal de suas mulheres, devendo severamente repreender (senão castigar) aos que a isso se atrevem; porque quase todos anima o interesse de se introduzirem com o simples, que os ouve. Também há alguns tão indignos maridos, que mais as querem ver brincando que fiando, por se livrarem de lhes darem o preciso; mas nunca a pobreza deve fazer tão violento efeito no sofrimento das mulheres, que hajam de obrar ação indigna; porque o mal da pobreza remedeiam os bons; e o descrédito nem a emenda o cura; a mulher discreta não deve querer mais que o permitirem as posses do marido, ensiná-lo a ser moderado, sofrendo com galantarias as suas incivilidades, calar o que suspeitar, e dissimular o que souber; eles vieram primeiro ao Mundo, fizeram as leis, e tomaram para si as regalias; e já que são mais velhos, não há mais remédios que fazer gala da sujeição, viver com eles, e ter paciência; porque se advertirem que não são isentos de naufragarem na Estígia, ordenarão bem as suas ações; e as mulheres, que desempenharem as obrigações de seu estado, irão a descansar nas odoríferas sombras dos Elísios.

Acabando este discurso com muitos vivas, tornou a dizer Olímpia: (pela obrigarem a acabar o divertimento com outras perguntas suas, pois era seu aquele dia) Qual é a ciência, que exercitam os serranos? Qual é o homem mais néscio? e a perfeição dos casados? A ciência, que exercitam os serranos (respondeu Delmetra) é a experiência; porque a experimental faz inteira demonstração de todas as cousas e desterra a ignorância, que impede os êxitos favoráveis, ensina a verdade, e acautela erros futuros, porque é mãe dos acertos.

O homem mais néscio é o que mais cansado vive com o próprio juízo; pois quando intenta sustentar o que uma vez disse, querendo desmentir-se de ignorante, acrescenta os delírios por capricho, e vive com aquela sombra, que lhe impede o mais reto conhecimento; e se aprende que o Sol não é o maior astro, e tem limitadíssima circunferência, o sustenta com teimas, e futilidades, em que não diz cousa alguma, e cuida que deu a entender que sabia muito.

A perfeição dos casados consiste naquela generosa paixão de amor decente, que com sua boa ordem esmalta as virtudes, e alegremente conserva a felicidade dos matrimônios, porque os gosto dá sempre asas ao amor.

Disto se não lembram os pais, que cegos pela avareza, e encantados pela suavidade de seus interesses, casam as filhas dotadas de vivacidade, e mais graças do Céu, com maridos cheios de vícios, e achaques. Estas merecem que o aplauso universal lhes laureie o sofrimento, pois desde sua tenra idade se reservaram para amar um monstro; quando a lei da natureza permite desejarem bons maridos, e as do matrimônio exortam a sofrê-los: se os amam pelos Deuses, que determinaram facilmente o conseguem; mas se por si mesmas querem amá-lo, parece moralmente impossível. Têm-se visto donzelas inconsideradamente entregues pelos seus maiores a maridos tão asquerosos, que fora melhor conduzi-los ao leito, que encaminhá-los ao tálamo; porque em seus muitos anos, e mal ordenados costumes só se exercitaram em tudo o que destrói a saúde; mas nem assim deixam as prudentes consortes de lhes assistir, amá-los, e curá-los, sendo este um dos milagres do nosso sexo; e para evitar o trabalho da desunião, que entre estes é mais ordinária, não há remédio melhor que o de abraçarem os gênios dos maridos, que em lhes ganhando uma vez os corações, não se verá que resistam às vontades das mulheres; e com esta indústria haverá entre eles aquela obediência, que é como a liga admirável, que enlaça tão estreitamente, que há trabalho em discernir o que obedece, ou o que manda.

A esta palavras se ergueram todos, vendo que Delmetra concluía o seu último discurso: e é inexplicável a atenção, e gosto, com que a tinham ouvido pois lhes havia mesclado as veras com as graças; e dando-lhes as serranas mil agradecimentos, a tomavam entre os braços, parecendo que assim a queriam conduzir a casa. Atília, Pastora bela, inclinada ao gentil Belino, toda aquela tarde insensivelmente não podia apartar dele os seus olhos; e esperando-o no dia seguinte na mesma fonte dos festejos, lhe disse: sabe, amado Belino, que desde o primeiro dia que te vi, não sei quando sou triste, ou contente, porque na tua ausência sinto um não sei quê, que me aflige; e quando te vejo, o mesmo excesso de prazer me consome. Perdi o gosto de meus lindos cordeirinhos: as flores já não me alegram, nem folgo de ouvir as aves, porque choro, quando as ouço. Se em o teu nome se fala, eu sinto repetir em o meu peito o eco. Alegro-me quando te vejo, mas o coração sempre palpita, esse mal que eu padeço, é o bem de que falam todos quem pudera não o ter, pois é mal que tanto atormenta! Quando deixo de te ver, muito me lembra para dizer-te; mas parece que querem as Fadas más que em te vendo, tudo me esquece, e passa o tempo tão depressa que nunca tenho lugar, nem para dizer o que sinto, e fico tão doente, como antes. Oh desgraçadas Pastoras, se a este mal são arriscadas! Quem pudera dizer a todos o tormento, que eu padeço, para que se acautelem antes de cair doentes! que isto é morte, que dura sempre; agonia, que não acaba; dor, que de cada vez mais cresce, e a desgraça maior que todas. Onde irei, que não leve comigo a pena, que me acompanha? Pelo que eu me resolvo a dar-te a mão de esposa, a ver se me farto de estar contigo. Belíssima Atília, (lhe respondeu Belino) eu vos amo com tal extremo, que já de antemão tenho pago o vosso afeto; mas não é para mim a ventura, para que me destinais, porque não só fora erro mui grosseiro, porém execranda culpa o servir-me do que a vossa bondade me oferece, porque sempre é réu infame o criado, que nas ações do rendimento se acusa de atrevido. Em me escusar e tanta felicidade sabei que mais nobremente vos sou agradecido; porque tão altos favores mais me advertem o respeitar-vos; e assim perderei as maiores fortunas, para que não decline a vossa estimação. Bem sei que o afeto, que me tendes, é filho de uma inocente simpatia; mas quem a este dá entrada com excessos poderá passar a extremos viciosos. E certo que naturalmente nos amamos, e desejamos ser amados; mas é tão delicada a boa reputação das mulheres, que para se conservar o culto, que merece a sua estimável modéstia, não só devem ocultar bem nascidos pensamentos, mas nem confiá-los aos mesmos, que muito estimam. Ah ingrato! (lhe respondeu Atília). A quem senão a ti devia eu confiar o que sinto? Descansa-me ao menos, tirando-me a vida. Oh tristes mulheres, que se vos representam amáveis aos homens, cheios de misérias, e ingratidões para ser o remédio a morte! Acaba já de matar-me; porque me estará mais mal o teu desprezo, que o afeto inocente, que te confesso; que nas rústicas choupanas o ser amo, ou ser criado, é mais fortuna que nobreza. Adverti, senhora, lhe disse Belino, que é sempre o maior delustre do decoro o deixar ver as chamas daquele incêndio, em que é melhor reduzir as cinzas que mostrar as faíscas; porque se o confessais no peito, acometeu os sentidos, e sujeitou o entendimento; e assim se perde o rumo da razão, e a remora da modéstia, pelo que a amizade não se estima, nem se agradece o conselho. Se eu insensivelmente fui infeliz de amar-te, (lhe respondeu Atília) só é remédio o descanso de ser tua esposa, e não temas que Leda o embarace; porque ainda que sua vontade só devo sujeitar a minha, ela conhece o teu raro merecimento, e suspeita o que eu padeço; e como agora vem gente, amanhã tornarei aqui para falar-te.

A este tempo chegaram duas Pastoras, e se retirou Atília; e Belino mais aflito foi comunicar a Delmetra aquele impensado trabalho, e sem lhe descobrir o segredo de seu traje, determinaram retirar-se, antes que a tirania do amor fizesse maiores progressos; e não esperando a manhã, sairam a continuar a sua peregrinação.

Com muito vagar, e trabalhos descansavam uma tarde em o alto de um monte, donde descobriram uma grande povoação. No dia seguinte se determinaram a ir vê-la; e entrando nela, souberam que estavam em a nobilíssima Esparta. Andaram como renascidos em um Novo Mundo, por haver muito tempo que se negavam aos seus olhos os danosos estrondos da opulência, e os perniciosos luzimentos da ostentação, que mais folgam de ver os estrangeiros. Foram a uns passeios, e deliciosos jardins; e como ali era estilo prender-se a gente ordinária, que entrava em um deles, e alistar-se para servir nas campanhas, porque a multidão de povo, que a ele concorria, o tinha destruído, e sempre embaraçado, sendo o que estava em melhor situação, e mais abundante de água, Belino que o ignorava, ao sair dele foi preso pelos guardas, que não davam ouvidos a dizerem-lhes, que não sabia aquele costume; ao que só respondiam, que só respondiam, que para exemplo, e boa execução da lei não havia caso algum executado. Delmetra com mil lágrimas lhes dizia não ter mais abrigo, e companhia, que seu filho Belino: ao que não davam atenção; e como pelo socorro, que dali se mandava para Corinto, sucedesse no dia seguinte embarcar soldadesca, em a qual foi também Belino, ficou Delmetra em casa de um Cabo, que fazia aquelas expedições, onde fora a ver se com seus rogos o livrava de experimentar também os trabalhos da guerra; e como via mal sucedidas as suas súplicas, dando tristes suspiros, se queixava da desgraça; pelo que lhe mandou dizer Almerina, dona de casa, que se não desconsolasse, e que enquanto quisesse ali estar, lhe não faltaria cousa alguma.

Reparavam aqueles domésticos, que as palavras de Delmetra eram brandas, e acertadas; e que suavemente chega a si os meninos, que a ouviam com gosto, e atenção. Assim se foi justificado tanto a sua capacidade, que Almerina lhe encarregou a educação de três filhos, que tinha, e lhe disse: Vós sabeis, ó Delmetra, o cuidado, que deve dar a boa educação dos filhos, porque nos meninos, como cera branda, tudo se lhes imprime; e que se os maus costumes têm as raízes na educação, raríssima vez deixavam de ser os frutos monstruosos. A má criação, e o mau exemplo apostam entre si fazerem-se conhecer toda a vida. Bem sei que este cuidado só deve tocar aos pais; mas quando o estilo disfarçado em fantástica decência os retira de seus olhos a maior parte do dia, devem ter bem examinado o sujeito, a quem os encarregam, porque dos maus costumes dos servos insensivelmente se revestem; e como sei que é difícil achar tantas, e tão precisas circunstâncias em uns sujeitos, que eu me contentava de que tivessem bastante prudência para se acautelarem, ocultando para se acautelarem, ocultando aos meninos as suas paixões dominantes, reconhecendo em vós a mais própria capacidade para tão importante emprego, pelas virtudes, que em vós tenho observado, quero aproveitar-me do acaso, que para aqui vos conduziu, e colher este especialíssimo fruto de vos haver amparado sem interesse, só lembrando-me de que a compaixão com os perseguidos é indispensável obrigação do racional; mas agora vejo que o tempo afiança a fortuna dos que valem, porque vale muito a seu tempo.

Eu vos entrego nos filhos o tesouro, que mais desejo guardar e defender dos que intentam roubar-lhes a candidez, e inocência. Bem sei que quando é má a inclinação, não a vence a educação; mas é certo que se de todo não a destrói, sempre a modera; e quando não a vença, nem modere, eu satisfaço como devo, em buscar-lhes os meios úteis, e não consentir-lhes o pernicioso; quanto mais que o tempo, que se gasta em mortificar-lhes o espírito, bem paga o trabalho, não os deixando perder o equilíbrio, para que não caiam no abismo de vícios, em que se habituam os que correm com a liberdade, e má inclinação. O amor próprio, que quase sempre senhoreia os ânimos das mães, não é bastante, para que eu desconheça as vossas singularidades, as mais próprias para tal emprego, pois sei quanto é pesada esta obrigação, e que não consentir no que convém para a boa educação dos filhos é nascido de um aparente amor, que produz efeitos de ódio; e juntamente não quererem modificar-se, vendo com inteireza, e aparente sossego castigar os filhos.

Como tendes tão claro conhecimento, (lhe respondeu Delmetra) e seguis tão sólidas doutrinas, parece que onde estai, sou inútil para esse fim: e bem haveis de saber que melhor efeito faz do ânimo de um filho o severo olhar de seus pais, que muitas advertências de um bom criado. Bem reconheço (lhe respondeu Almerina) que em parte é assim o que dizeis; porém não me deveis negar, que há gênios, em que faz melhor impressão o conselho do bom criado, que muitas advertências dos pais; porque se as palavras do criado, que tem crédito, se ouvem com efeito, são mais bem sucedidas que as dos pais, que se ouvem com tédio, e horror. A maior parte destes vemos sempre entre dous extremos, de carinho indiscreto, ou rigor demasiado: o muito carinho foi sempre a ruína do respeito: e do rigor demasiado nasce horror, cresce aborrecimento, e quase sempre acaba em pouco caso, ou com os delírios da exasperação. E certo, Senhora (lhe respondeu Delmetra), que é difícil a arte da boa educação; porque por essas razões se não permite aprender errando.

Os tenros sentimentos da mãe os não devem conhecer os filhos, e convém não brincar com eles desde muito pequeninos, porque desde então principia a obrar o respeito. Bem sabeis que o vosso maior cuidado se deve aplicar em que tremam, sendo ameaçados convosco, e que uma vossa palavras, ou olhar severo, sintam como o maior castigo; e como há ocasiões, que no falar pode ser grosseiro o cuidado, é preciso que o vosso enfado também dos olhos o entendam, e com a maior vigilância os ensinam a tremer a ira do Céu, a amar a honra, a verdade, a pobreza, as virtudes, e as letras. Não consistais que lhes façam medos, nem contem histórias ridículas; porque se pode aproveitar o tempo, contando as generosas ações de Alexandre; as que se fizeram de honra, e valor, quando os gregos foram contra os Troianos, aquela mais ilustre grandeza, com que alguns Soberanos têm perdoado as ofensas; os honradíssimos créditos, com que acaba o vassalo, que expôs a vida, defendendo a do seu Rei; o rigor, com que a justiça costuma castigar os delitos, a nobreza, com que os ofendidos procuram fazer bem a seus inimigos, e quais são as felicidades, para que as boas obras conduzem, etc. Este é o melhor modo de se lhes fazerem amar, e decorar as ações mais nobres, porque as ouvem com gosto, e assim conservam na memória as melhores instruções, e máximas convenientes. Bem sei que de ordinário não sabem de tais histórias as pessoas, que lhe costumam contar as inúteis, de que toda a vida se lembram; mas assim como os servos, que entram de novo em uma casa, conforme a variedade, que há entre elas, aprendem os costumes, aprendam os costumes, aprendam também algumas histórias próprias para as repetirem aos meninos, como repetem as outras.

Pelo que toca aos danos do mau exemplo, bastantemente discorrestes, e com o costumado acerto. Ah que se muitos pais soubessem conhecer quanto são prejudiciais as más companhias , e o mau exemplo, não haveria famílias destruídas pelos vícios, que herdam uns dos outros! E não acabam de conhecer que o verdadeiro amor para com os filhos deve consistir em os não inabilitar para os aumentos, persuadindo-os com o bom exemplo a que procedem bem, e amem os livros, dos quais se fazem os tesouros mais seguros; porque se a inveja os intenta roubar, só dura a mentira enquanto a verdade não chega; são bens livres das penas dos delitos, morgados, que se não empenham , e dinheiro, que se transporta sem fadiga, quando uma desgraça obriga a mudar de uma para outra terra. Onde irá um sábio, que se não faça preciso; e esta melhor riqueza falta muitas vezes aos filhos, porque nunca seus pais com o exemplo lhes ensinaram a procurá-la. Há uma nação, em que é costume repreender-se o filho-famílias pelo primeiro delito; pelo segundo castigar-se com brandura; e pelo terceiro ser morto, e o pai desterrado: e é certo que os que os consentem viciosos, criam assim os seus piores inimigos; porque estes em muito tempo não matam, e em poucos dias acaba o pai, a quem o filho com um desgosto matou. Quando chegam aos quatorze anos, se encarregam mais que ao cuidado da mãe, aos olhos do pai, que lhes deve mostrar agrado prudente, para se animarem a falar na sua presença, para observar se falam demasiado, se não os seus discursos acertados, se descompõem com ações, e outra semelhantes miudezas, para os advertirem a que se hajam com modéstia, e tenham civilidade; mas de modo tal, que não tomem medo de falar na presença dos que os devem advertir. Vós vos sabeis com eles, discreta, prudente, e varonil, e não carecei do que me tem ensinado a experiência, porém não entendais que eu me escuso de servir-vos, porque o farei todo o tempo, que me demorar ausente de Belino; pois já sabeis que tenho determinado ir vê-lo; porque a saudade, que o trato das pessoas deixa nos corações, não tem mais corretivo que usar como remédio da causa do mesmo mal. Como vejo (lhe respondeu) que é justa a vossa resolução, não posso deixar de consentir em algum tempo da vossa ausência, contanto que tornei à minha companhia; mas vede que os sucessos da guerra são duvidosos, e talvez que vos seria mais conveniente esperar em descanso cantar a vitória. Conheço, Senhora (lhe respondeu Delmetra), que ao melhor me aconselhais; mas como a nação é indiferente, e contínuo o meu cuidado, permite que eu seja a mesma, que castigue a minha impaciência, no caso que os meus olhos vão a ver o desengano da minha esperança. Sem em vosso filho (lhe disse Almerina) resplandecem as vossas doutrinas, ide vê-lo; pois sendo compêndio de virtudes, é digno acredor a tão grande saudade. Com esta última resolução ficou Delmetra consolada, e com forças para continuar na assistência dos meninos, o que exercitou enquanto não houve embarcação, que a transportasse. Dominava de cada vez mais no ânimo de Almerina, vendo esta quão docemente infundia nos poucos anos o gosto da aplicação, e o desejo de crescer em virtudes, e ciências, vindo a conhecer que não são os muitos castigos os que dão a melhor doutrina aos meninos, se falta quem com prudência no trato familiar lhes infunda suavemente o que lhes convém; e admirada do que em Delmetra observava, dizia: Como é possível que em uma mulher vil hajam tão iguais, como ilustres sentimentos! Quem lhe disse que se deviam haver em tudo os que nascem de mais antiga origem? Mas já que os Deuses poderosos quiseram confiar à minha admiração este prodígio das suas obras, não será razão que eu negue a Delmetra a assistência do filho; que como estas são as jóias mais importantes, que só se devem guardar nos olhos das prudentes mães, eu lha não fiei, porque nem das luzes da virtude me devo persuadir, enquanto não as acreditam larguíssimas experiências; e já as que me deixa querem segurar-me senão um inteiro descanso (pois o não devo ter em matéria tão importante) ao menos alívio de meu preciso cuidado, quando torne a servir-me. Delmetra de ausentou, deixando a todos saudosos, ainda que na esperança de que tornaria ao serviço de Almerina pelo muito, que interessava no seu agrado, para o qual concorria o admirar tantas virtudes, que eram filhas de tão ocultos, como preclaros princípios; pois se as ações a estes não correspondem, renunciam os bens nascidos em o próprio vitupério toda a glória de seus antigos.

Sumário

Chegando Climinéia a Micenas, chorou a falsa notícia da morte de Hemirena, ou Belino; e sendo obrigada a continuar a viagem, chegou a Corinto, onde achou Diófanes, que com o suposto nome de Antionor se lhe ocultou, não obstante o conhecê-la, pelo que lhe conta seus trabalhos.

Embarcou Delmetra em Esparta com tão excessivo prazer, que este parecia querer descobrir-lhe o segredo pelo que amava a Belino; e como quando o afeto suborna com a esperança de alívio, não se temem os naufrágios, não a embarçaram distâncias, nem a demora, que aquela nau poderia ter em Micenas, onde ia incorporar-se com outras, que também transportavam aprestos de guerra para Corinto. Chegando a Micenas, onde não teve mais demora que dous dias, ouviu uma notícia, que pelos sinais a persuadiu que Belino havia acabado em um encontro, em que diziam foram mortos cinqüenta soldados. Triste, e magoada chorava de contínuo aquela funesta novidade, já sentindo haver deixado a brenha, as feras e os montes. Chegaram com boa viagem a Corinto; e quando desejava não fazer desembarque, esperando voltar para Esparta na mesma embarcação, foi obrigada a saltar em terra, onde nem se animava a perguntar por Belino, tendo por certo que era morto.

Um venerando ancião, que sobre a areia estava como observando o que se passava naquele porto, vendo as contínuas lágrimas de Delmetra, chegou a perguntar-lhe a causa de seu pranto, e a consolou, segurando-lhe ser falsa a notícia que chorava, porque tal encontro não tinha havido; e a encaminhou a uma camponesas, onde lhe dariam agasalho; e que ele mandaria fazer diligência por Belino, e avisá-lo, para que fosse falar-lhe. As camponesas a receberam com agrado, e repartiam com ela do pouco que tinham para se manterem.

Passados cinco dias, foi Belino falar-lhe, a quem com grandíssimo alvoroço disse: Não é crível, amado Belino, a consolação, que recebo em ver-te; como é possível que aos meus olhos se restitua com vida, o que eles tão deveras choravam morto? E são tão novos os meus pesares, que ainda que te estou vendo, tenho na alma impressa a mágoa da tua morte. E se as más notícias ordinariamente são certas, ainda não creio que estou contigo. Belino, que já não podia reprimir os impulsos de sua alegria, lhe respondeu com mostras de imenso prazer, afeto, e agradecimento, sendo o seu gosto, e alvoroço as testemunhas do quanto é ardente a saudade que justamente se imprime nos corações humanos; e imaginando que algum novo trabalho a encaminhasse para ali, lhe pediu o tirasse daquele susto. Já sabes, lhe responde Delmetra que fiquei na grande casa de Almerina, que com muita bondade me amparou, quando eu só a havia buscado, para que te livrasse daquele impensado trabalho o que segundo o estilo era impraticável. Passado algum tempo, tivemos um larguíssimo discurso sobre a boa educação dos filhos, e me entregou três, que tinha, determinado descansar no meu cuidado. Eu lhe não resisti àquele emprego; porque ainda que me falta a prudência aos pais, é de nenhum, ou mui pouco efeito a diligência, e vigilante cuidado dos bons servos, Almerina desejava acertar, e sabia sujeitar a vontade às resoluções do entendimento. Com grande repugnância ouvia falar no alívio da minha saudade, até que venceram as minhas instância, e embarquei sem companhia conhecida, valendo-me do privilégio dos meus anos; porque ainda que estes não dispensam a modéstia das mulheres, é certo que os mordazes não as consideram arriscadas, quando o respeito da ancianidade as defende. Chegamos a Micenas; e ouvindo contar de um encontro, que diziam ter havido, ou me persuadi por alguns indícios que tu havias ficado morto; e lamentando novamente o meu desamparo, e tua felicidade, rompia os delírios, pedindo aos Céus que me dispensassem de padecer, e com magoadas vozes dizia: O brenha compassiva, que me escondias a este novo gênero de penas: ó feras cruéis, para isto me respeitou a vossa ferocidade? Aves inocentes, fontes cristalinas, quem pudera trocar o triste estado, assim porque cantais no ameno prado, festejando o caçador, que vos dá a morte, como porque alimentais, e refrigerais aos que gozam a tranqüilidade soledade dos montes; e logo vencendo aquele primeiro assalto, dizia: Mas que indiscreto sentimento é esse, que me usurpa a liberdade? O afeto, que em mim produziram as virtudes de Belino, não é possível que me arraste a tanto excesso de pesar; a sua vida não foi estrago das feras, e acabou como os que renascem de ações de honra, e valor, aos quais a posteridade resguarda as glórias de seus nomes; nem devem ser bastante aquela morte para enfraquecer a minha constância. Foi à guerra, não viu o triunfo, mas deu por ele a vida, que os que morrem na batalha sempre vencem, como vítimas da vitória; e poderá ser que fosse melhor acabar a vida; porque para os homens, que respiram com o alento, que lhes infunde o ilustre ardor de seus honrados créditos, é glória o acabarem no combate, em que os seus ficam vencidos. Mas ai, tornava a dizer aflita, que pouco me confortam as razões do meu alívio! Como é possível que o amor Platônico livre de interesse, e cheio de benevolência, me arraste a um sentimento invencível? Se eu amava as virtudes de Belino, como me não alegram as notícias, de que posso inferir o seu eterno descanso?

Assim triste, e confusa passei os dias de minha viagem; e sentindo havê-la intentado, já se me representava agradável a brenha, que eu havia regado com lágrimas, conhecendo o bem, que de todo o mal se pode tirar, e mais vivamente recordava os primeiros infortúnios, como origem de tão repetidos contratempos, vendo se podia assim divertir o rigor da minha mágoa; mas eram inúteis as reflexões, porque sempre sentia mais viva a minha dor, e saudade. Cheguei a desembarcar com igual desconsolação; um venerado velho, reparando minhas lágrimas, me perguntou a causa delas, e me segurou ser falsa aquela notícia, porque não houvera encontro algum. Ele me conduziu a esta casa, onde muito me obriga a bondade, com que me favorecem. Agora dize-me, como tens vivido em terra estranha, e com gentes de diversos gênios, e costumes, porque em tais circunstâncias se exercita a prudência, se acrisola a virtude, e acredita o entendimento. Desde o primeiro dia, (lhe respondeu Belino) que nos separou o acaso, e a tirania do meu cruel destino, assistindote o meu cuidado, quis a providência que se me tirasse da memória tudo o mais, que podia afligir-me, por que um corpo não tivesse duas penas. O tempo não dá lugar a que eu conte meus primeiros cuidados, e as aflições, que nos primeiros dias me negaram toda a alegria, e esperança de alívio. O nosso exército se acha acampado não muito longe daqui, e não tem havido encontros, ou avançadas, porque antes de fazermos algum movimento, propôs o inimigo a paz. Ontem se falou na tenda do Generalíssimo, que destacaria um grande corpo de tropas para as fronteiras, onde se acha o Rei: e que a paz, que se propunha, era injuriosa. Não sei se eu serei mandado; e como a ocasião me não dá tempo para demorar-me contigo, é preciso (já que os Céus assim o querem) que eu vá acudir à obrigação, para que me destinou a minha cruel tortura: e roga aos Deuses, que antes me entreguem ao rigor das lanças, que me falte o valor, em que influi a honra: e tornarei a ver-te, quando tiver licença para demorar-me algum tempo mais em tua companhia.

Com estas apressadas palavras se retirou Belino, deixando a Delmetra em tanto sossego, como se fosse restituída a seu primeiro estado.

Passados alguns dias, veio o venerando velho a visitá-la; e festejando-se reciprocamente, perguntou Delmetra, se ajustaria a paz; e lhe respondeu que não; e entendia que com dissimulação se fazia novo esforço para irem de assalto sobre o inimigo. Reparava Delmetra na afabilidade, e grato estilo, com que explicava; e estando-lhe obrigada pela compaixão, que lhe deveram as suas lágrimas, lhe disse, desejava saber a quem devia tão repetidas atenções. Não duvidara dizer-vos quem sou (lhe respondeu), se não estribara a minha consolação em que me desconheçam as gentes. Eu vos conheço; e que são ilustres... Aqui se adiantou Delmetra assustada, dizendo: Vós conheço, e que são ilustres... Aqui se adiantou Delmetra assustada, dizendo: Vós não podeis conhecer-me, e alguma equivocação vos engana. Não vos perturbe (tornou a dizer-lhe) que eu saiba a vossa origem, pois só digo que conheço ser ilustre o vosso agradecido ânimo, que este sempre ostenta o mais nobre coração, assim como as ações, e o semblante contém a mais bem acreditada genealogia. Os Príncipes em toda parte se distinguem, não em a formatura do corpo, nem na especial imortalidade da alma; porque a natureza os organiza, e anima iguais aos outros homens, mas sim nas ações generosas, nas empresas de glória, em honrarem as gentes, no desejo de mostrarem o poder, em amarem a justiça, ampararem os pobre, e serem exemplo de virtudes; e quando se encontra sujeito, em que são as boas qualidades independentes da sua origem, pela raridade, se lhes multiplicam os quilates da estimação. Eu observo em vós o respeitável semblante, e palavras de brio igual ao mais bem nascido agrado; e como vejo que são poucas as mulheres, que cabem nas choupanas, sabendo guardar a boa ordem de seus costumes, creio que sois ilustrada pela alta sabedoria dos Deuses. Não quero ainda assim dizer-vos nisto, que por estas vizinhanças costumem todas desprezar o decoro, pois este devem zelar tanto as ilustres, como as Pastoras. Não sigo o vosso parecer, (lhe respondeu Delmetra) porque as que nascem em superior hierarquia, devem também nos créditos especificamente distinguir-se das de inferior nascimento; porque os encargos da nobreza mais gravemente lhes recomendam a honra, docilidade, e moderação, com o que se fazem distintas, e pelo que só lhes é permitida a vanglória de darem exemplos, às inferiores; pois pela decência senhoril, com que mais se negam aos olhos dos homens, as advertem de que o veneno, ainda que se disfarce em açúcar, sempre mata, se a quantidade não é pouca. Se a culpa, a natureza, e as paixões são iguais, (lhe respondeu) também deve ser igual a glória do recato, e a pena da indecência; porque a murmuração pública não considera que haja quem possa dispensar os preceitos da modéstia a nenhuma casta de mulheres; ainda que nas bem-nascidas um descuido é culpa grave, e nas humildes uma culpa é só descuido, porque a boa educação das senhoras tira o lugar à ignorância, que às outras desculpa: e é tão sublime o decoro, que as humildes com eles se enobrecem; e as distintas se fazem vis, quando o desprezam; e assim umas o devem conservar pelo que arriscam, e outras igualmente pelo que alcançam. Oh quanto são inadvertidas as que perdem o algarismo do preço inestimável da modéstia! que não só têm no ódio das gentes o seu castigo, mas o tempo lhes mostra, que os mesmos, que causaram a sua abominável ruína, as escarnecem, vituperam, e desprezam; e quando se demoram em não conhecer o seu enfado, se explicam com demonstrações de inteiro aborrecimento, e ódio.

Algumas mulheres encontro, que, vendo-se adiantadas em anos, deixam de ser comedidas nas palavras; o que será por entenderem que o riso dos ouvintes é efeito da sua graça; ou porque se persuadem que a soltura é privilégio da ancianidade, sem que advirtam que enquanto os delírios da velhice não as desobriga de comedidas, se lhes multiplicam as causas para a prudência; pois não têm a desculpa dos poucos anos, que conduz para errar os termos; ainda que estudar os acertos em tenra idade é merecer cultos, e adiantar estimações; assim como o respeito, que se deve aos velhos, é dívida contraída entre a falta de experiência, e o bom exemplo, e documentos, que devem dar aos moços.

Também vejo que as moças ou conversam demasiadamente, ou em vendo gente, fogem, como se fossem animais de outra espécie, sem que haja quem lhes diga, que o fugir ou é incivil grosseria, ou é tentar a curiosidade; e que a muita demora em tais conversações ou as faz ter por levianas, ou ociosas: e que em deixarem de responde a quanto se lhes diz, cabe o melhor conceito da discrição; porque o muito falar ou descobre toda a capacidade, ou publica a indiscrição, que estava oculta; e que o estranharem os próprios elogios, e lisonjas com a mudança de cor, é avisar os merecimentos da formosura: e que o abaixarem gravemente os olhos, negando-se à atenção dos rendimentos, é conquistar os ânimos, e vencer impérios na veneração das gentes. Estas, e muitas outras obrigações, que nas donzelas resplandecem tanto, quanto as deslustra qualquer pequeno descuido, vós melhor que eu as sabereis, e tereis ouvido que muitas aqui esquecem. Delmetra admirada de ouvir palavras tão cheias de acerto, e desejando que continuasse o discurso, lhe disse: São tão infelizes as mulheres, que bastando que os homens sejam bons, elas não basta que o sejam, porque é preciso que também o pareçam. Não devem aceitar, por não agradecerem; nem muito falar, por se não exporem a errar, e porque não digam, que a que folga de ouvir, dizer, e se deixar servir, não teme, ou não conhece o perigo, porque a algumas graças costumam os vizinhos chamar desgraça; e como a malícia humana já se adianta a adivinhar pensamentos, nem na conversação, e carinho de tratar os parentes deve deixar de haver cautela. Oh quanto é feliz a que melhor conhece o muito, que arrisca, e o pouco, que eles perdem!

Muitas vezes sucede que os pais têm toda a culpa nas inadvertências da filhas, pela muita delicadeza, e descuido, com que as criam; e são as duas deidades, em cujos semblantes vem a sua tormenta, ou bonança. A esta criação se segue o multiplicarem-se as loucuras, com o que se prende a razão, as paixões tomam forças, os desejos não têm medida, nem a vontade tem freio; e como um raio despedido vão do pátrio poder para a companhia dos maridos; e se alguma vez concordam com as suas vontades, é apoucando-lhes a autoridade, pois se não assemelham as qualidades do Sol com as da Lua, senão quando o tem eclipsado: pelo que vos ouço estranhar estes costumes, creio não será esta a vossa pátria, e talvez que (como eu) vos trouxessem aqui alguns contratempos. A minha pátria (lhe respondeu) é esse excelso Olimpo: não há dúvida que eu deixei o meu país constrangido, sendo recomendado aos mais duros grilhões, nos quais trabalhava de dia, e suspirava de noite pelos que de mim separou o fado adverso. Os anos, que assim passei, não bastaram para se moderar o pranto, que todos os dias consagrava às suas memórias, que as grandezas, fasto, e estimações, insensivelmente perde quem sabe conhecer o pouco que duram; e me consolava a consideração de ser menor o trabalho do pobre em buscar de que viva, que o do rico em reparar o que lhe sobra; porque é só um o que cuida em guardar, e são muitos os que pensam em o roubar; e também vendo que a riqueza, e autoridade quebrantam o juízo; pelo que é maior o trabalho de sustentar a loucura nas demasias do luzimento, poder, e respeito, que o que tenho em haver perdido tudo; pois as sobras do dinheiro, e o poder convidam para os vícios; mas os vínculos, que uniram à alma os preceitos do consórcio, se nem os pôde aniquilar a Parca, não haverá quem os extingua da lembrança.

Delmetra lhe rogou quisesse continuar em contar-lhes seus infortúnios; e vendo semelhantes aos seus as disposições daqueles trabalhos, lhe perguntou como se chamava Antinor (lhe respondeu); e não tenho dificuldade em dizer-vos os passos, que me encaminharam a este lugar.

Depois de haver sofrido impensados contratempos, guardava nos campos os rebanhos do Rei Aganimedes, a quem por sábio me havia oferecido Pafo, que se não animou a tirar-me a vida, conforme havia ajustado com o primeiro, que me vendeu, o qual por certas razões lhe oferecia grande some de dinheiro para executar aquela tirana. Ali gozava eu da saudável tranqüilidade, que ensinou aos Pastores o que guardou os rebanhos de Admeto; quando tendo notícia de uns escravos desconhecidos, que se achavam naquela vizinhança, lembrado-me que podiam ser alguns dos meus patrícios, para os ir ver, pedi licença a Aldino, que tinha a incumbência de administrar aquela Aldeia, o qual me concedeu acompanhada de cavilosos conselhos. Quando à noite me recolhi, me puseram em uma escura masmorra com ordem sua para se me não dar alimento algum, dizendo que fora avisado de que eu procurava ajustar com os meus compatriotas a sua, e minha fuga. Mas não consentindo os Numes nesta falsidade, quiseram que fosse o Rei àquela casa de campo por ocasião de montaria, e se lhe lembrasse que o escravo, que por Filósofo lhe ofereceram, ali vivia: pelo que ordenou que eu fosse à sua presença. Disseram-lhe aquele delito, que se me havia imputado; estranhou que se procedesse com tanto rigor, sem ser a prova suficiente. Logo fui solto; mas como fosse achado nos braços da morte, não tive alento para falar-lhe. Pouco a pouco fui restituindo-me, porque para lances mais trabalhosos me resguardavam os Céus. Assim passava sofrendo ultrajes e tiranias. Uma noite, em que a recordação da minha infelicidade reforçava o meu tormento, vi que a casa se ia enchendo de fumo. Temendo algum incêndio, saí daquele pobre aposento; e reparando que de outro, que estava místico, saíam horrendas labaredas, chamei gente, para que se apagasse; e ouvindo que todos se magoavam por Aldino, por ser o fogo no seu quarto, lembrandome do quanto é horrorosa a vingança, e que podia haver quem se persuadisse que eu lhe aplicara o fogo, pois ele cruelmente me quisera castigar da culpa, que eu não tinha, sem temer mais a morte que os juízos temerários das gentes, entrei atrevidamente, rompendo pelas chamas, a buscar Aldino: e quiseram os Deuses, (que sempre costumam amparar os acertos) que tomando-o às costas, tirando-o de entre as chamas, se ouvisse o estrondo da ruína apenas saí do perigo. Toda aquela família, que julgava obrar em mim a exasperação , vendo que eu trazia Aldino, com incrível alegria uns me apertavam nos braços, outros se me lançavam aos pés, outros intentavam beijar-me as mãos, e outros balbuciantes com lágrimas de gosto não podiam formar palavras. Eu em aplicava em usar de alguns segredos, para o tirar do letargo, em que estava: o que consegui logo, porque se lhe restituíram os sentidos; e contou que acordara ao primeiro rumor, que eu fizera; e que de uma luz, que deixara junto à porta, pegara o fogo, e se achara sem mais remédio que esperar a morte, pois já não podia respirar, nem tinha mais saída, que a que via embaraçada com as chamas. Voltando para o Rei que ali se achava, disse:

Agora sou constrangido a confessar-vos, Senhor, o que pode a minha maldade. Antionor vosso escravo me tirou das mãos da morte, rompendo pelas chamas, por valer-me a nobreza de seu ânimo para maior confusão da minha vileza; e como o remorso, a dívida, e a razão sempre obrigam, não posso deixar em silêncio o meu delito: não me negue ao castigo a vossa justiça; que quando a culpa é conhecida, deve ser tão abominável aos estranhos, quanto horrorosa aos que a comete; e se os Céus, e a vossa clemência me conservarem este alento, que respiro, e a distância do perigo ou me afaste dos bons propósitos, ou em retire de ser grato ao benefício, vos peço, Senhor, que a vossa grandeza me sepulte nesse abismo de penas. Aganimedes, desejando saber o fim daquele estranho caso, lhe ordenou acabasse de dizê-lo, o que todos com a maior admiração esperavam. Esperei, Senhor, (lhe respondeu) que é tão agigantada a minha maldade, quanto são sublimes as virtudes de Antionor, porque é sábio, é prudente , e é elevada a generosidade de seu nobre peito. Eu sem causa o fiz reduzir a masmarro, onde viu de perto os seus últimos dias, sendo falso o delito, que lhe imputou a minha cavilosa indústria; porque pedindo-me licença para ir ver os seus compatriotas, eu lhe aconselhei com a mais vil maldade, que se fosse, e não tornasse ao vosso serviço, pois era a fuga o único remédio de sua triste servidão. A esta proposta me respondeu, que nunca saberia fugir quem havia sustentado os brasões de tantos vencedores. Quando se persuadia que os Céus o não ordenavam. Tornei a instar, que como devemos morrer pela liberdade, aquele fugir era vencer. Respondeu com mais severo semblante, que os que temem os Deuses, não fogem aos trabalhos, porque se a eles o destinaram, também ordenariam o seu descanso. Perguntei como não amava a vida? e me respondeu: Os homens, como eu, mais devem conservar a honra, que resguardar a vida. A estes exemplos da mais rara constância instei, dizendo: Pois como a compaixão me obrigou a aconselhar-te, e a tua ingratidão despreza o que te ofereço, não será justo que venhas causar a minha ruína, comunicando a outros o que te aconselhei: assim te advirto que não tornes a voltar, ou te há de custar a vida. A isto mais sábio me respondeu: Eu não devo obrar mal, porque tu não obres pior, pois nem é bastante a tua sagacidade para diminuir a minha obrigação: quanto mais, que o que é verdadeiramente bom, tarde, ou nunca é infamado: e assim como regularmente a má fama é companheira da má consciência, sendo tu aqui também acreditado, ninguém culpará a tua fidelidade, pois são incontrastáveis as forças da virtude, e as da boa opinião; e como justamente nos não devemos fiar de quem não defender a própria honra, e eu resguardo-a mais que a mesma vida, não temas que te destrua, pelo que me confiaste. Assim me deixou trançando a sua ruína. Esta é a culpa, de que me está acusando Antionor na vida, que me deu: e com que chego a pedir que me seja perdoado o escândalo; que aos que conhecem a fealdade do próprio delito é mais horrorosa a vida, que os rigores do castigo.

Aquelas, e outras muitas palavras, que se haviam dito, ele as repetiu puramente, e eu não as digo por me faltar o tempo. Todos ouviam com grande admiração o acordo, e lembrança de Aldino, em quem os Deuses (parece que para culto da verdade) inspiraram todas as minhas palavras, se acaso o remorso lhas não tinham presentes na lembrança. O Rei, votando para mim, disse: É verdade o que diz Aldino? Não tenho mais que dizer-vos, lhe respondi. Pois como (me disse) arriscaste a vida por quem te havia prometido a morte, e te fazia suspeito contra a boa fé? Não sabes que não se deve conservar a vida do que é prejudicial ao público? e que sempre o é o mal intencionado? e que a própria vida devias resguardar ainda a pesar da do contrário? e que a ruína do crédito é mais sensível que os golpes da morte? Não receia o poder dos homens (lhe respondi) o homem, que só teme os Deuses; nem obrigam os resguardos da própria vida, quando as manchas do sangue do contrário tomam as cores da vingança: e ao que prejudica o público só pode castigar o que tem a incumbência de administrar a justiça. As suas maldades não me desobrigam de valer-lhe, pela mesma compaixão, a que me deve mover, quando determina vilmente a minha ruína. O crédito, que me quis abater a sua falsidade, assaz restituído fica pela ocasião de receber a vida daquele, a quem havia prometido a morte. Quanto mais, Senhor, que o primeiro conselho de Aldino parece filho de um coração sincero; e o desacerto nasceu do muito, que teme a vossa ira. Aqui furioso Aldino em mais alta voz disse: Não é assim o que diz, Senhor, porque sabe que os monstruosos partos da inveja me arrebataram àquela abominável esfera de desacertos: e para ser, ó Antinor, maior a tua vitória, e bem vista a minha confusão, será a minha morte o instrumento do teu triunfo. Oh, quem rendera já o espírito nos braços do arrependimento! E como o pálido semblante se lhe fazia cadavérico e os olhos se lhe cobriam de sangue, a voz trêmula, e rouca, não quis responder-lhe, e pedi ao Rei o mandasse a descansar; o que logo se fez. A este tempo já a gente do campo, e parte da família haviam apagado o incêndio, que não ateou mais que naquele quarto: nem se falava no que havia padecido aquela parte do palácio, porque a novidade do que se havia descoberto em Aldino, ocupava a admiração de todos, pois não só era servo antigo, mas tido pelo mais verdadeiro, e zeloso; sendo que estes os Deuses os conhecem, e os mostra o tempo. O que lhe causou tanto dano, foi o receio de que chegasse aos ouvidos do Rei, que os companheiros lhes entranhavam não ser eu posto em melhor ocupação, pois dava mostras de ser na verdade sábio, pelo bem que instruía os filhos daqueles rústicos; e que sendo oferecido por Filósofo, era odioso o emprego de guardar rebanhos: estas poderações lhe introduziam o veneno nas entranhas.

No dia seguinte fui à presença da Majestade, que me disse: Agora sei as virtudes, de que és ornado; e se queres a liberdade, confia-me verdadeiramente quem és, na certeza de que te saberei tanto estimar, como guardar os teus segredos. Não queiras saber quem sou, (lhe respondi) pois jurei não revelar jamais; mas sabei que vos sirvo, Senhor, obediente ao meu destino, que temo aos Deuses, e que amo as letras. Eu igualmente me obrigo ao teu juramento; (me replicou) e como igualmente me obrigo ao teu juramento; (me replicou) e como também me deves ser obediente, não é razão que não respondas ao que te pergunto; e vendo-me com mostras de aflito, mudando de parecer, disse: Mas não o digas, que é vil maldade empreender que se ofendem os Deuses, sem mais causa que uma curiosidade inútil. Quero que te exercite em dar escola a estes, a quem principiastes a instruir; e que o castigo de Aldino seja ao teu arbítrio. Que maior castigo (lhe respondi), quereis que se dê a um triste, que correr com a tormenta da sua culpa, entregue ao conhecimento das gentes, passando de estimações a vitupérios? Pois sabe, (me respondeu) que para se conservar como troféu da tua vitória, já eu lhe havia perdoado; e agora só quis tirar mais uma prova da nobreza de teu coração e ultimamente te digo que te não dou liberdade, por não tentar o teu retiro, mas que consideres tê-la em os meus Domínios, onde te não faltará cousa alguma.

Com estas palavras me deixou contente, e descontente, pois os descansos de bem visto me tiravam a esperança aos meus desejos. Quando quis recolher-me, conforme o costume, fui conduzido a umas casas da vizinhança, que achei bem ornadas, e com criados, que me servissem. A este tempo Delmetra estava ouvindo com grande alegria aquela repentina mudança da fortuna; e como quase era chegada a noite, Antionor, fazendo aqui ponto, se despediu; e Delmetra lhe rogou quisesse no dia seguinte continuar a sua história, já que a havia principiado; pois como ferida de trabalhos se consolava em ouvi-lo. Antionor se retirou, prometendo satisfazê-la. Delmetra toda aquela noite vacilava entre mil considerações, lembrando-lhe quanto aquele grato modo de falar era semelhante ao de seu querido Diófanes, que havia quatorze anos perdera. Também lhe corria o ver-lhe um sinal pardo na barba semelhante a um, que tinha o suspirado consorte; mas estas considerações despersuadia o reparar que tinha a cabeça, e o rosto cheio de cicatrizes, era totalmente falto de dentes, e tinha muito avermelhada a cor, e diversa da de Diófanes; e não se persuadia que tanta mudança, e estrago pudessem obrar os trabalhos, e o tempo. No dia seguinte saiu a esperá-lo antes de manhã, gastando aquelas horas nas mesmas considerações, em que havia passado a noite; e ainda que a fontezinha com seus risos cristalinos, e aquelas agradáveis representações a convidavam para alegrar-se, como desconfiava da fortuna, se persuadia que tudo era alívio imaginado, para sentir novamente os rigores da saudade: e assim tudo, quando havia reparado, lhe tornava a parecer pelo contrário; e cheia de nova tristeza adormeceu encostada sobre uma pedra da mesma fonte.

Chegando Antionor, e vendo que descansava, não a quis despertar para com mais individuação examinar o que lhe havia parecido em Delmetra; e conhecendo ser sua querida Climinéia, com imensas lágrimas de prazer explicava mudamente seu desmedido contentamento, como frase mais discreta dos que na verdade se amam; e assim imóvel, por lhe não usurpar o descanso, parecia dizer-lhe: Adorada consorte, se os Deuses benignos me confiam a incomparável consolação de ver-te, como prêmio da veneração, que consagro às tuas virtudes, permita-me o teu amor que eu me negue ao teu conhecimento, porque não vejam os teus olhos os golpes, a que está aqui exposta a minha vida, se acaso as ruínas, que tem obrado em mim o tempo, te não têm deixado ver quem sou: e já para acabar consolado, não me falta mais, que ver uma só parte da minha pena em a filha, que em ti adoro; e como a diminuição, que tinha na vista, o obrigou a ajoelhar para melhor a ver, quando foi a erguer-se, tocando na pedra, a que estava encostada, a despertou; e cheia de alegria, depois de agradecer-lhe a atenção, e repetido alívio, lhe pediu quisesse continuar a contar a sua história, pois desejava com ânsia saber se continuara a experimentar prosperidades, quem tanto as havia merecido nas adversidades; e tronando-se-lhe a excitar as espécies da semelhança: Não sei, (disse) ó sábio Antionor, que oculto destino, ou simpatia me influi o amar-te, e me não ocorre mais causa, que as semelhanças, que em ti observo, pois são de sujeito, que possui o meu coração. E como vos afastaste de quem tanto amáveis? (lhe perguntou Antionor) Porque da minha cruel sorte (lhe respondeu) fez entre nós o fado igual partilha; pois o laço, que só podia desatar a fria mão de Atropos, quebrou a tirania dos homens. Ah monstros de crueldade, que não sabem que é a morte menos dura, que separar a uma infeliz daquele, que lhe destinou a sorte! A estas palavras acompanhavam correntes de lágrimas, que eram novas prisões para o coração de Antionor, com as quais se sentia desfalecido, para se lhe não dar a conhecer; e quando ia quase a declarar-se, se reprimia, dizendo: Se eu, Senhor, não tenho palavras para conciliara a vossa alegria, ao menos mereça a vossa conformidade, e consolação a semelhança, que em mim achastes; e supondo que sou o mesmo, que o que a origem de tanta lágrimas, em desejar que se modere o rigor da vossa pena para glória dos Deuses, merecimento vosso, e justa vaidade minha. Ouvi meus trabalhos, porque os alheios conciliam forças para tolerar os próprios.

Já ontem ouvistes, como de servir passei a ser servido, e que com aqueles camponeses estive cinco anos bem assistido, e estimado; e lembrando-me daquela sabedoria, que ensinaram aos rústicos a terem cuidado na agricultura, que desprezavam por preguiça, e ignorância; e que Apolo instruía outros a gozarem mais docemente do sossego, e fertilidade de seus campos; eu os fazia colher os frutos, com que a terra enxuga suor dos lavradores, e aproveitar as flores da melhor Primavera nos anos, que nos ajudam para recolherem com que passem no Inverno de suas velhices; e como no mesmo trabalho guardavam a boa ordem, e proporções, eram estas agradáveis à vista, servindo-se dos deliciosos rios, e fontes, com o que parecia haver ali acabado o rústico, e que aquela montanha se transformava em deliciosos jardins. Os lavradores, vendo-se abundantes, esperavam no campo que os alegrasse a Aurora, prometendo-lhes o dia: assim cantavam alegres no trabalho, que os descansava, e cobriam os montes com seus rebanhos.

Também os admita a fazerem ofertas aos Deuses, e lhes protestarem nas vítimas a candez de seus corações. Ordenei que em dias determinados tivessem seus jogos, e danças pastoris; porque o moderado, e público divertimento faz que se não aborreça a fadiga quotidiana; pois se aos moços aplicados não se permitirem divertimentos públicos, os buscarão particulares, talvez com o escândalo; porque não é possível que todo o tempo se gaste em estudos, e ações heróicas: quanto mais que estas mesmas se aprendem nas ilustres que se representam. E vão tem o perigo (lhe perguntou Delmetra) de também aprenderem o pernicioso nesses divertimentos? Não, (lhe respondeu Antionor) porque os lances de amor a natureza os ensina; e os de fidelidade, constância de ânimo, honra, valor, e temor dos Deuses assim se infundem no ânimo da plebe, como me mostrou a experiência, pois não haviam ódios, murmurações, nem ociosos, porque suavemente os havia feito aplicar a exercícios de que se utilizavam; e lhes consentia divertimentos, em que também se instruíam no que lhe convinham; e assim faltava tampo aos mordazes e não haviam ociosos, que estabelecessem a escola dos vícios.

Os meninos, em que eu observava habilidade, também se aplicavam a estudos, tirando uma grande parte do tempo às suas travessuras; e os outros iam com seus pais dar princípio a desconhecer a preguiça. Assim me conservava sem mais trabalho, que as penosas recordações de meus primeiros infortúnios, quando me chegou um aviso para ir à presença de Anfiarau, que me ordenou o acompanhasse para a Corte, que muito resisti, mas sem efeito, e não tive mais remédio, que deixar a flauta aos Pastores; e depois de dispor a alguns, chamei a todos, e lhes disse: Já sabeis, ó mil vezes ditosos, que estais gozando as flores, e colhendo os frutos desta amável soledade, que sois mimosos dos Deuses, pois vos livram dos tumultos das Cortes, onde uns se alimentam do mal de outros, e que eu vivia em sossego, e vós experimentáveis a fertilidade, com que as terras, sem descansarem todo o ano, repartiam convosco todo os seus deliciosos frutos, que trabalháveis para lhos mereceres. Já tem sido tão grande o meu descanso, que sou obrigado a deixar-vos, ó ditosos Pastores, que em paz, e alegria ouvis repetir ao eco as vossas sonoras vozes: Oh quanto é feliz o povo, que é sujeito a Senhor sábio, pois busca todos os meios para lhes conservar a sua felicidade, e amando a causa do bem, que logra, come desoprimido o fruto de seus trabalhos, assim, como o Rei, que despreza o amor dos vassalos, tem mais que temer na falta deste, que os súditos no poder; e lembrando-me daqueles vínculos da natureza, que intentara destruir a crueldade das gentes, dizia mais tristes: Ai de mim, que nem cheguei a lograr inteiramente este amável sossego, pois já entro a pensar em máximas de governo; mas se nos trabalhos nasce da conformidade o merecimento, os Deuses sempre justos me hão de restituir a minha primeira felicidade. Bem vedes como entre vós acabou o rústico, e estais costumados a obedecer, a trabalhar, e a amar a aplicação: conservai-vos com fidelidade, desinteresse, desejo de honra, e temor dos Numes: diverti-vos inocentemente sobre a verde relva à sombra dos deliciosos arvoredos; e quando coroados de flores festejares a Ceres, e a Diana, lhes farei a melhor oferenda, em lhes levares os corações despidos de afetos nocivos, e conhecereis quão doces, e suaves são estes inocentes prazeres: não canseis de cultivar as terras e conservai a singeleza, para gozares felizmente a formosura de que estão adornados estes campos. Com recíprocas lágrimas me apartei triste, aflito, e saudoso. Tanto que cheguei à Corte, fui levado à presença de Anfiarau, que com demonstrações de urbanidades me recebeu.

São estimáveis, ó sábio Antionor (me disse), as tuas prendas, e direções, que experimentando-se nos bem morigerados costumes dos rústicos, e nos campos fertilizados com a tua assistência, e prudentes reflexões, foi justo que se pusesse de parte a conveniência daqueles, a quem com mais vontade acompanhavas: porque é razão, que prevaleçam dos interesses do público aos do particular, e aos do particular também os do Soberano; já as camponesas sabem como devem fazer sacrifícios ao decoro, já a agricultura experimenta os benefícios da natural Filosofia, ficam remediados os produtos da ociosidade, e entre aqueles camponeses bem estabelecidas as tuas doutrinas; que os documentos, que se ouvem com afeto, são leis, que jamais se viram quebrantar: é tempo, para que as tuas máximas, que estiveram tão desconhecidas, venham a ter exercício entre a estimação das gentes. Bem sabes que as ciências são o prêmio de si mesmas, como bens, que o tempo respeita: mas eu me lembrarei sempre, que os merecimentos só os exalta quem vê bem as suas luzes, aos quais tanto ama a virtude, como teme a maldade. Sinto, Senhor (lhe respondi), que vos dessem de mim uma idéia, que eu não saberei desempenhar; e como seja tão arriscado o perto do Soberano, quanto desconhecida a felicidade do rústico sossego, sem que seja o meu intento negar-me ao vosso serviço, vos peço que me escuseis às estimações da Corte. Não dando ouvidos a isto, principiou a fazer-me muitas perguntas com sutileza e engenho.

Em gostosos discursos se passaram os primeiros dias, e entre outras muitas perguntas, me disse, queria saber qual fora o primeiro Rei. E depois de lhe haver respondido, continuei, dizendo: Conforme a variedade de nações, costumavam nomear os povos aos seus Príncipes, os Argivos lhes chamavam Reis, os Bythinios Ptolomeus, os Egípcios Faraós, e os Sículos Tiranos, e assim as mais nações; mas é certo serem mortos os que foram, e que morrerão os que vierem, porque a morte tanto respeita o arado no campo, como o trono em Palácio. No princípio do Mundo ao mau Governador chamavam tirano, e ao bom chamavam Rei: daqui vereis, Senhor, como este homem de Reis está consagrado a pessoas, que são úteis ao bem público; os Romanos, que trabalham para senhorearem o Mundo, fazem Reis para os regerem, e Capitães para os defenderem. Entre os Gregos, Persas, Assírios, Medos, Troianos, palestinos, Parthos, e Egípcios houveram Príncipes muito ilustres; e estes não punham a sua glória em títulos, mas sim nas ações heróicas. Já que me tens dito o princípio dos Reis, (me disse) quero ouvir-te, como devem conservar, e reger o seu Reino, o qual é mais gloriosos Império? O mais glorioso (lhe respondi) é o que os Príncipes alcançaram, conquistando justamente; e contra o Real decoro o que com sem razões possuem, assim como lhes é injurioso largar a pacífica posse, quando as razões não são convincentes; pelo que é muito preciso fazer aplicação na arte de reinar, por não dilatar com os domínios o peso dos encargos, ou os não aumentar, largando com descuido o abrigo dos vassalos; porque se os Principados tirânicos se alcançam por força, e com as armas se sustentam; os que são bem possuídos com a razão se sustentam, e com os povos se defendem. São tão pesadas as obrigações dos Soberanos, que ainda que tenham o valor de Aquiles, a riqueza de Creso a prudência de Platão, e a constância de Catão, se a estas virtudes faltarem outras de que também se alimenta o bom nome entre seus súditos, lhes fará mais guerra a inveja, que se não descuida em procurar os descuidos dos que têm virtudes.

Não repugna a prudência, mas a acredita a bondade do Rei, que comunica as cousas árduas a seus fiéis, e sábios familiares; porque de sorte, que sabendo-se que os ouve, não se entenda que o governam: assim como é preciso ouvir aos vassalos, e não os tratar com desabrimento; porque não consiste a Majestade na aspereza de tratar as gentes, pois em quanto não são despachados, não é justo que vivam queixosos, e por que o Soberano se faz amável pela bondade, e não pela autoridade. Também é preciso refletir que a demasiada soltura tem arruinado muitas Repúblicas; pois nunca os Gregos, os Epirotas, e outras nações puderam sujeitar as que assolou, e perdeu a muita liberdade, porque esta não carece de menos prudência para conservar-se, que de valor para se ganhar. Nas Repúblicas mais bons infamam, e mais furtos fazem dous homens livres, que duzentos sujeitados. Não há riqueza na vida humana, que se iguale à liberdade; nem há também cousa mais perigosa, se não a sabem mediar. Esta sim se deve ganhar, comprar, procurar, amparar e defender; mas é preciso que só se consista usar dela, não como convida a vontade, sim como permite a razão, porque se não perca em poucos dias pelo muito uso, podendo conservá-la a moderação em toda a vida. A liberdade de Falaris perturbou os Gregos, e a de Catilina escandalizou os Romanos. Muitos são os que deixam de fazer mal, porque não podem, e poucos porque não querem. Com estas, e outras semelhantes ponderações determinava acabar o meu discurso; mas como Anfiarau me ouvia gostoso, ordenou que continuasse a discorrer sobre como se devia haver o Rei amável, e os costumes, que mais prejuízo fazem às Repúblicas. As despesas demasiadas (lhe respondi), e as praças guarnecidas de vagabundos. O que não devem consentir os Soberanos, porque hão de dar conta aos Deuses imortais dos costumes, e bens das suas Repúblicas, não como senhores, mas como tutores: e assim devem castigar aos que mal obram, e premiar aos que bem servem; porque ainda que não foram companheiros dos vassalos nas culpas, o serão nas penas. A perpétua estabilidade de um Reino só costuma conservar a reta distributiva de prêmios, e de castigos; porque assim como estes são remoras da maldade, costumam aqueles obrigar as vontades, e conciliar amor, animando para as heroicidades; e em se premiarem os merecimentos, se publicam leis para criar beneméritos; e castigando um réu, se põe o mais forte padrão, para que ninguém o seja; assim como ao Soberano tanto devem amar os bons, como temer os maus, fazendo que se não persiga a humildade, e que a ambição, e vingança acabem logo no suplício, com que os favorecidos da fortuna conhecerão que esta não é segura, não a afiançando boas obras; e aos que injustamente perseguir a desgraça, animará alguma justa esperança; e como é preciso mais ânimo para vencer os vícios, que valer para acometer os exércitos, o Rei que não for casto, é preciso que seja cauto, para não dar escândalo aos vassalos, com o que aumentaram as glórias de seus nomes Alexandre, Marco Aurélio, Cipião, e outros varões admiráveis. Também me lembro, que aconselhava Platão aos Atenienses, que elegessem Governadores, que fossem justos, constantes, verdadeiros, prudentes, e generosos, porque os grandes Senhores são temidos pelo poder, e amados pelo dar: pois é certo que os não seguem tantos pelo que devem, quantos pelo que esperam, assim como o bom exemplo, e as grandezas igualmente recomendaram aos vassalos, que os sirvam de boa vontade.

Um dos trabalhos dos que governam a República é o ajuizarem-lhes o que pensam, e repararem-lhes em tudo o que fazem: os Atenienses reparavam em Simonides, que falava muito alto, e não se lembravam, que vencera a batalha Maratônica: os Lacedemônios, que Licurgo não andava direito, e lhes esquecia que formara o seu Reino: os Romanos, que Cipião dormia roncando, e não faziam memória de que vencera Catargo; porque os homens, que vivem sem emprego, nem ocupação, não sabem conhecer o que os seus Soberanos heroicamente empreendem, porque só os descuidos conhecem. Vós bem sabeis, Senhor, que deveis eleger vassalos, para os empregos conforme seus talentos, porque o supremo governo só consiste em governar os que governam, e escolher os que tenham verdadeira idéia de governo, que sejam sábios, e bem morigerados, porque tenhais neles instrumentos hábeis para efetuarem os vossos desígnios, recomendando-lhes sempre que reparem, que dos pequenos receios alguma vez nascem os maiores acertos; e como sabeis o referido, parece escusado que eu o repita, sabendo que nem sempre é a verdade bem aceita. A isto me respondeu com enfado: Para usares da licença, que te dou, e obedeceres ao que ordeno, não é preciso que apures o meu sofrimento. Continuarei, Senhor, em dizer-vos a verdade do que alcanço, (lhe respondi) porque nos vassalos de honra ainda depois de mortos devem as memórias de seus nomes responder sempre as verdades.

Os melhores Reis não são os que melhor discorrem, mas sim os que trazem no coração escrita a Lei, sendo as suas obras a melhor prática da mesma Lei; assim como não devem permitir as regalias de valido aos sujeitos, a quem inabilitou o nascimento, se este se não enobreceu com as ciências, porque ordinariamente não são criados com horror à mentira, e estando fora dos encargos da nobreza mentem sem receio, e assim destróem os honrados, e de toda a sorte que podem, fazem mal aos bons; e porque poucas vezes deixa de ser soberbo o que chega a um auge de fortuna, que não espera, nem merece; estes por mais incapazes dão idéias de governo, como as podem dar os que ignoram as Leis, que são as que costumam governar; e como precisamente vos haveis de servir de homens, não vos esqueça que estes quase senore são enganosos: e vede, Senhor, que os Deuses vos não fizeram Rei com outro fim mais, que para serdes pai deste povo, a quem deveis dar o tempo com amor; que o que mais sacrifica o seu gosto ao bem público, é o que é mais digno de reinar, tendo mais confiança nas suas obras, que nas suas palavras, porque estas assustam, e as obras anima, pois é o bom exemplo o que melhor excita o exercício das virtudes, e mais severamente repreende os vícios; o que com inteireza só pode fazer quem não dá causa aos reparos. Oh quanto é feliz o Rei, que triunfa dos vícios, para que convidam os descansos, porque todos o ama, e servem de boa vontade! e se alguma vez erra, não o estranham, como culpa, porque o vêem, como descuido. Já mais se viu acertar (disse Anfiarau) quem se não aconselha com a suma razão, que nos inspira os acertos, e nos ensina a usar do entendimento; eu não tinha refletido em seus admiráveis efeitos, agora o conheço, vendo resplandecer a verdade no que me hás dito; e ordeno que te informes do que há no meu Reino, porque só quero que se conserve no antigo estado o que for conveniente.

Com estas palavras me deixou cheio de susto pelo que me encarregava; e como para dúvidas, os recursos assim me negou todos os meios, me recolhi ao meu aposento triste, aflito, e perturbado, pois devia condescender com a sua vontade em uma empresa tão árdua, como digna de receio. No dia seguinte saí com dissimulação a informar-me do que diziam os pobres, e como viviam os ricos, e os que administravam a justiça: depois de haver concluído esta diligência, procurei instruir-me nos livros, e Leis do Reino. Passado todo o tempo, que me foi preciso para averiguação tão importante, fui à presença de Anfiarau, e lhe disse: Sabei, Senhor, que o vosso Reino, que há pouco mais de três anos, que governais, se acha reduzido a um estado miserável; não há nele caminho algum, que seguro seja; não há lugar privilegiado, nem quem queira cultivar os campos; o comércio está arruinado, porque se lhe quebrantam os privilégios, e não há verdade; os que admitis no vosso agrado servem-se da vossa autoridade, arruinando os créditos, e corrompendo as vossa Leis: acudi às balanças da justiça, fazei mercês aos naturais, mandai que não saia para fora a vossa moeda, aliviai os tributos, e não dês créditos às vozes da vileza ignorante. Se tens considerado (lhe disse Anfiarau) os meios para evitar os danos, quero ouvi-los. É certo, Senhor, (lhe respondi) que não só nasce o Rei para defender os seus domínios com a lança, mas também para governar os seus vassalos com prudência; não só para destruir inimigos, como também para extirpar vícios; e não só para ir à guerra, como também para resistir na República , mantendo em boa ordem a justiça; e assim mandai guardar inviolavelmente as vossas Leis sobre os pleitos civis, e nos criminais que se moderem; porque as severas, e rigorosas se fizeram mais terror, que para se executarem sempre, pois que os justos Deuses mais nos remuneram serviços, que castigam delitos. Não consistais que sirvam as ocupações homens ambiciosos, pois não há na República animal mais perigosos, que o que serve com a ambição de se lhes comprarem as dependências. Também deveis cuidar em que só se dêem os cargos da justiça a homens doutos, e de conhecida prudência; porque os que principiavam a exercitar as letras só tem a ciência nos lábios, e antes que acertem, perturbam a República; porque sabendo o que dizem os livros, e não o que ensina a experiência, serão bons para advogar, porém não para julgar. Os juízes, de quem se deve fiar a República, devem ser retos no que sentenciam, compassivos no que mandam, honestos no viver, sofridos nas injúrias, e comedidos nas palavras. Entre os Romanos só podem servir de Censores os que passam de quarenta anos, tidos por honestos, medianamente ricos, e experimentados em outros ofícios da República, porque a arte de governar se acha com a prudência, se defende com a ciência, e com a experiência se conserva: não só devem ser sábios os Ministros, como também nobres; porque assim como aumenta a ciência o lustre da nobreza, também é esmalte da nobreza a ciência, que a acompanha. Para haverem bons soldados na guerra, basta que os homens sejam valerosos; mas para governar, e administrar bem a República, é preciso que tenham sabedoria, nobreza, e prudência, porque esta virtude sabe discernir entre o claro, e o escuro, entre o nocivo, e o útil, o que se deve apetecer, ou desprezar; e é tão própria virtude do Soberano, quanto precisa no que reger a justiça, assim como é da nobreza um grande efeito o vencer as paixões próprias. A primeira classe de nobres criou Teseu em Atenas, e lhes deu as máximas de bizarrias, a que a nobreza excita; e o que se esquece de executá-las tanto se desmente de nobre, como desmerece a sua classe, que não consiste só nas preclaras prosápias, pois o descansar na antiga origem, vivendo entre os vapores dos vício, é ofuscar as glórias dos antigos; e para empregos de alta ponderação, os que fazem vida com as maldades, ainda que sejam filhos de Júpiter, se devem reputar por indignos; porque a nobreza, que não declina, é costumada a dar o melhor lugar à razão, sendo obrigada a executar o mais sublime que a ilustra. Radamante, e Minos foram tido dignos desempenhos do Céu pelas ações, com que glorificaram a nobreza; mas para se gozarem seus privilégios, é preciso que com as obras, se mereça o ilustre esplendor da fidalguia. Não é regra geral, que todos os mecânicos se ensoberbeçam com os grandes aumentos, mas os bem nascidos são mais hábeis para tais empregos; muitas cousas se devem levar com o rigor, que pede a justiça, (como já disse) e em outras se deve moderar as leis, para o que é preciso que o Juiz seja sábio para determinar com acerto, e nobre para moderar o rigor do Direito. Muitos varões ilustres primeiro serviram as Repúblicas, administrando justiça, que empunharam os cetros, distribuindo tesouro, pois se não devem prover as pessoas de ofício, mas os ofícios de pessoas. Os soberanos podem dar riquezas, mas não a vara da justiça, que só se deve entregar a quem mais a merece. Se os jurisconsultos forem ignorantes, como poderão julgar os vossos vassalos? Mas poderão ser sábios, ambiciosos, e mal intencionados, (disse Anfiarau). Se forem apaixonados (lhe respondi) em arruinar os inimigos, ou favorecer os amigos contra justiça, será conjuração de maus, e não confederação de bons, como devem ser; e se os erros nasceram da sua má intenção, só eles serão culpados; mas se errarem por ignorantes, ou dementes, não será só sua a culpa. Havendo muitos sábios, não se consentirão nas ocupações os que forem mal intencionados, o que se não pode executar, quando faltam, ou são poucos, porque é necessário sofrê-los à custa do povo, pois há ocasiões, em que se fazem precisos; e como todas as leis humanas estão fundadas mais sobra a razão que sobre opiniões, muitas vezes mais acertará o rústico do campo, que alguns graduados nos estudos; pois há casos, em que mais se devem governar pelo que a verdade lhes ensina, que pelo que as leis determinam; para o que são precisas as circunstâncias, que vos hei ponderado, e que estas sejam regidas pelo temor dos justos Deuses, para que façam viva reflexão, em que só tem lugar o desobedecer ao Rei unicamente, para cumprir com a mais alta lei, e falar às leis, só por obedecer ao Rei, naquelas, que ele anima; e ainda que ordinariamente, quando o Rei é justo no que empreende, são os vassalos retos no que julgam, sempre é preciso que lhes dês ordenados, com que sustentem o respeito, e esplendor de seus lugares.

Se quiserdes, senhor, conservar a posse de distribuir riquezas, reger Estados, e ensinar animar o cetro, deveis acudir ao vosso Reino, mandando como soberano, e não isento de ouvir os vossos vassalos, e ver algumas vezes as provas da sua justiça; porque não consiste a grandeza da Majestade em os ter com a maior submissão aos pés, mas sim no vigilante cuidado de muito bem os governar, porque só os tiranos procuram ser temidos, e o melhor Rei também deve querer ser amado, vendo o muito que tem, e quanto deve dar às obrigações de seu ofício, tendo o maior prazer em socorrer a pobreza, fazer amar as virtudes, e conhecer os homens astutos, e avaros, que o rodeiam, pois que aos seus enganos estão sujeitos os mais sábios Monarcas; e como não basta para operar nos ânimos das gentes a autoridade Régia, e submissão dos vassalos, é preciso senhorear suavemente as vontades, para que os homens conheçam as grandes vantagens, que levam os que melhor servem.

Os homens grandes nas ciências se fazem com regalias, isenções, e boa renda. Se os mestres não tiverem grandes aumentos, estimações, riquezas, e privilégios, como haverão moços, que gastem os melhores anos de suas vidas em contínuos estudos, se para tanto trabalho os não subornarem grandes esperanças?

Também conseguireis facilmente haverem muitos peritos nas artes, e em todos os empregos mecânicos, fazendo-lhes maiores conveniências, que os mais Príncipes; e os que ou morrerem em vosso serviço, ou chegarem a um certo número de anos, vão a descansar com bastante, de que mantenham suas famílias, e com aumentos à proporção de suas ocupações; e determinando prêmios, e regalias para os que chegarem a um certo auge de perfeição em seus ofícios, todos se hão de esmerar para os merecerem, e desde o berço ensinarão aos filhos a seguirem os passos, em vão alcançar a sua felicidade; e a outros trará a fama de Reinos estranhos, vindo buscar os aumentos, e estabelecimento, que tiveram os primeiros, que lhe serviam de estímulo, e os discípulos aplicarão todo o cuidado, por chegarem ao estado de seus Mestres.

Ordenai que se castiguem os falidos, como réus de temeridade; e que ninguém possa comerciar, arriscando bens alheios, nem mais que a metade dos próprios; porque o meio para ter muito é não querer demasiado. Ajudai o aumento dos vassalos, privilegiando as companhias, e pondo penas aos que se lhe opuserem: daí inteira liberdade ao comércio com favoráveis direitos, e prêmios a quem o aumentar, de sorte que os vassalos sejam ricos, e os estrangeiros contentes; e que estes levem uns gêneros, tragam outros; e entre os comerciantes elegei alguns mais capazes para governarem o comércio, e a estes deveis honrar, e ressarcir a falta da sua negociação, pois toda lhes deve ser proibida; e ordenai que se castiguem severamente os Enganos, as negligências, e demasiado fasto, porque de tais imprudências se aproveitam as outras nações: favorecei as fábricas, e premiai aos que as intentarem, animando-os, para que não desmaiem, e para terem efeito os melhores inventos, e a estes defendei-os da inveja: mandai erigir outras, em que os cegos, e aleijados trabalhem nos lugares, onde forem postos, que assim se faz em alguns Reinos, onde florescem as artes, vivem melhor os pobres, e não se experimentam tantos efeitos da ociosidade: e vede que de repente se não podem emendar os erros da República, que se introduziram pouco a pouco; não consistais que se alterem os costumes, que não ofendem os Deuses, nem prejudicam ao bem comum, pois é preciso haver grande cautela em empreender novidades no governo; porque são os plebeus tão fáceis em se inquietarem, como as constantes águas do mar, que se com qualquer vento se alteram, a plebe com um pequeno motivo se perturba, pois é composta de muitos sujeitos, que ignorando os preceitos de honrados, e faltando-lhes as forças da nobreza, lhes sobram as das línguas para temerários delírios. Há muitos políticos, que dão arbítrios mais por conveniência própria, que pelo bem público: pois se são ambiciosos, procuram só fazer bom o partido de seus interesses; e se vingativos, cuidam sempre em satisfazerem os desejos de seus maus corações; e por esta causa havia uma Lei entre os Atenienses, pela qual não tinha voto na República o que queria ter conveniência no que aconselhava.

Vede, senhor, que por mar, e por terra é preciso que se tema o vosso poder, se respeitem os vossos vassalos, e deseje a vossa amizade; e para melhor se conseguir este fim, mandai que os vossos artíficeis trabalhem com mais cuidado nos estaleiros, porque é preciso que uma grossa armada conserve o vosso respeito; e porque se houver alguma ocasião, em que dissimuleis com os mais príncipes, conheçam que sois prudente, e generoso, certos em que não sofreis falto de forças; e mandai que os soldados sejam atendidos, e bem pagos, pois assim se formam exércitos de voluntários, que são os que melhor costumam servir.

Também é preciso que honreis os Templos, temais os deuses, e ampareis os pobres, que mais sentem que se não conservem em fiel equilíbrio as balanças da justiça; porque o Rei, em que resplandecem estas virtudes, dá exemplo aos amigos, e o não podem destruir os inimigos; e fazei que haja constância nos negócios, que forem convenientes ao bem público, porque não consiste a boa direção em se determinarem, mas sim em que tenham boa execução, e estabelecimento, revestindo-vos de sofrimento para com os importunos, e de prudência para dissimular com os descomedidos, porque o bom príncipe há de perdoar as ofensas próprias, e castigar as injúrias da República; e aconselhando-vos com a Majestade, sentireis grande prazer pelos que enriquecestes, e perdoastes, pois são condições do vosso ofício reger com amor os vassalos, perdoar-lhes, e remunerar serviços, recomendando sempre que não oprimam os pobres com a cobrança dos tributos, porque é maior a culpa de roubá-los, que o mérito de socorrê-los. E certo que o melhor Rei não cuida em adquirir tesouros, mas sim em assistir aos seus vassalos, tomando as armas só contra príncipes soberbos, e exércitos formados, mas não contra o general fugitivo, pois só se devem pelejar com os que resistem, e dissimular com os que fogem; porque não é para os generosos perseguir o pobre tímido, que noa se anima a esperar, nem se atreve a acometer.

Também deveis, senhor, reparar que o governo, que só faz a vontade, é o mais cheio de desacertos; e que o estilo mais alto de emendar, é saber ser exemplar; e que o melhor modo de estabelecer um suave Império, está em mandar, como quisera ser mandado, e não obrar em tudo, como senhor absoluto; porque entre os mortais não há autoridade tão grande, que não tenha sobre si os Deuses imortais; pois quem tem domínios para possuir, também tem uma só morte para esperar. Oh quantos lisonjeiros tem profanado a vossa presença com enganos, não a sabendo gratificar com a verdade! E refleti, senhor, em que os que ignoram as obrigações de bem nascidos, desconhecem a grandeza da Majestade, e por esta razão os grandes, e a nobreza são destinados para servi-la. Logo não em hei de servir (disse Anfiarau) com outra casta de homens, ainda que dignos sejam? Não só são grandes, (lhe respondi) e nobres os que procedem de antiga, e preclara geração, porque também as ciências fazem grandes, e enobrecem os sujeitos; e o admitir, e engrandecer este é preciso, para inspirar a todos o amor das letras, e infundir-lhes suavemente o espírito estudioso; e destes também os tereis, mandando moços nobres, e bem instruídos para Reinos estranhos, onde se apliquem ao político, e ao militar, e assim achareis sujeitos capazes, quando vos forem precisos, usando da cautela de os mandar à vossa custa para os Reinos, que não sejam dos vossos confinantes. Na Monarquia, que é falta desta qualidade de grandes, há muitas ocasiões, em que com desaire dos nacionais se lhes conhece a falta de tais forças, pois são tão precisos os Jurisconsultos para os cargos da justiça, como os políticos estadistas para o governo no que lhes toca; porque não basta que hajam soldados para formar exércitos, é preciso também o maduro conselho para arriscar os vassalos, defender os domínios próprios, ou castigar os alheios. O homem, que é valorosos, se lhe faltar a prudência, muitas vezes se arriscará degenerando a valentia em temeridade: mas o que é prudente, e valeroso, é invencível. E não havendo aquela qualidade de sábios, a quem ouvirá o Rei, quando for obrigado a fazer a paz, ou declarar a guerra? Não consiste só a felicidade do Soberano em ganhar vitórias, pois é a maior a conservação, e aumento do bem adquirido: para o que é preciso que as armas tenham pazes com as letras, pois onde assim não sucede, poucas vezes se cantam os triunfos; e pela mesma razão as palmas são tidas por gloriosas insígnas das mãos, que maneiam as armas, e das cabeças, que dão o maduro conselho, o que se nos ensina, quando em Minerva também adoramos Palas; porque invocando a Deusa das batalhas, nos assistirá também a da sabedoria, que conduz para as vitórias.

No que vos disse sobre as distinções, só quis mostrar que são indignos de verem de perto os Soberanos aqueles, a quem as primeiras doutrinas não fizeram aptos para lhes assistirem, pois que o serem bem vistos lhes infunde tal autoridade, que tratam mal as gentes, aborrecem as ciências; e por estas e outras razões, que tenho ponderado, domina o ódio, e a inveja na maior parte dos corações, as fábricas estão paradas, o comércio está arruinado, labora a ociosidade, os sábios se retiram, os bem morigerados se escandalizam, os pobres padecem, os vícios se aumentam, e os militares se desconsolam; sendo que uma sentinela fiel é a mais forte muralha de uma Cidade, pois não teme a praça invasões inimigas, se estão vigilantes os soldados. Não resplandece a verdadeira proximidade, que distingue dos brutos aos racionais, nem aquele santo temor dos justos Deuses, que é remora das paixões dominantes, e mais preciso tesouro dos corações das gentes, com o qual se adquirem os prazeres mais puros, a abundância, que é permanente, e aquela ditosa sinceridade, que infunde prudência, paz, justiça, e alegria. Oh quanto é feliz o povo, a quem governa um sábio Rei! e quanto é mais feliz o Rei, que é autor da sua felicidade, e que está vendo na virtude dos vassalos resplandecer a sua, sendo muita mais que temido, quando é amado, pois todos servem gostosos aos que dilatam docemente o seu domínio nos corações, que suspiram pela sua conservação, o que conseguem, sendo fiéis aos Deuses, cautos nos perigos, afáveis para os seus, benignos para os estrangeiros, e desprezadores dos próprios apetites, e imortalizando assim os seus gloriosos nomes, governam com tranqüilidade as suas Repúblicas: e quanto também é mais feliz, que o Rei, aquele vassalo, que descansa livre de tão pesados encargos, e se contenta de uma vida inocente, aborrecendo os prazeres da Corte, no melhor recreio de cultivar com as ciências o próprio entendimento, que a qualquer parte, para onde o arroje a desventura, leva consigo os cabedais, que se transportam sem risco, pois é incomparável a felicidade dos que em sossego tomam o sabor ao que acham escrito? Não entendais, senhor, que no que digo pretendo estabelecer-me no vosso agrado, quando sei que a verdade anda fugitiva, porque é mal vista; mas como não pude negar-me ao vosso preceito, não devo faltar em dizer-vos o que sinto, o que ouço, e o que convém: perdoai-me, se acaso vos desagradam as minhas ponderações, despidas de adornos, e cheias da mais brilhante verdade, que como é tão vil, e horrorosa a mentira, antes quero sujeitar-me a que me sepulte a vossa indignação nas ruínas de tal tempo, que ser cúmplice no vosso engano; e se me julgais algum merecimento, deixai-me senhor, fugir dos homens, porque me não enganem, que eu estimo renunciar às riquezas (no caso de mas prometer o vosso agrado), porque me não corrompam, e darei de mão às honras, porque me não ensoberbeçam; e se acaso tenho sido demasiado, ainda que as minhas palavras nascem de um coração sincero, e verdadeiro; a vossa bondade me desterre de uma Corte desordenada.

Com estas, e outras muitas coisas, que não repito, acabei aqueles discursos. Anfiarau com as lágrimas nos olhos me apertou entre seus braços; e ainda que de enternecido não pôde proferir palavra alguma, deu mostras de seu bem disposto ânimo. Foram conhecidos os aduladores, remedeadas as opressões do público, desterrados os vagabundos, os empregos repartidos pelos beneméritos, punidos os malfeitores, e amparados os pobres; as terras já se cultivavam, e abundantes repartiam com seus filhos os frutos à proporção de suas fadigas; contentavam-se as gentes em lhes não faltar o preciso, observava-se a paz, alegria, e concórdia, com que todos viviam; os pais ensinavam os filhos, costumando-os desde sua primeira infância a aborrecerem ócio, e desprezarem o supérfluo; e só os que se haviam mantido de enganos, traziam nos semblantes a culpa. As vozes do povo parecia quererem chegar à presença dos Deuses, pedindo-lhes me conservassem no agrado de Anfiarau, que até então havia perdido o tempo de se fazer amar, e com repetido contentamento dizia “Bem aventurada é a nossa pátria, que nos vê fartos, amando as virtudes, temendo os Deuses, e obedecendo suavemente às Leis! Bem haja quem se arriscou para favorecer aos pobres, que padeciam; aos ricos, que se despenhavam, e se castigar a maldade, que florescia, oprimindo a todos, e nos tem feito amas a vida sincera, e aborrecer os vícios. Assim diziam os que haviam chorado oprimidos, e necessitados. Os soldados viviam tão contentes, que parecia desejarem a guerra para se mostrarem gratos ao seu Rei, desprezando os perigos, e sacrificando a seu respeito as próprias vidas.

Não se ouvia falar em ladrões, falsários, ou homicidas, porque os primeiros foram logo castigados, e tirada na ociosidade a primeira causas de tais efeitos: era desconhecida a afeminação, que aos homens faz indignos, desprezados os soberbos, desterrados os efeitos da ambição, e avareza, e abominada a ingratidão. Não era culpa do soberano (disse Delmetra) a desordem, que chorava o povo, mas sim dos que lhe ocultavam as luzes da verdade. Os Céus (respondeu Antionor), que sempre são providos, criam aos Príncipes com alta capacidade para reinarem; mas é tal a maldade dos homens, que com seus enganos fabricam a sua própria ruína. Anfiarau era dócil, compassivo, magnânimo, e entendido; mas a estas, e outras virtudes escureciam o ser demasiadamente crédulo, e inconstante; o que produzia inclinações, e aversões pueris, que lhe deslustravam o talento; erros, que havia introduzido em seu ânimo, os que com atrevimento iam à sua presença cheios de vícios; e ainda que aqueles povos se consideravam naquela ditosa era de ouro, não sei dizer-vos, Senhora, os grandes trabalhos, a que me reduziram os produtos da inveja, e os impulsos da maldade, que rompendo em blasfêmias, conferiam uns com outros a minha ruína; e assim persuadiram a Anfiarau, que as gentes se riam de que ele me estivesse sujeito, e sem liberdade, pela muita confiança, que me permitia, para atrever-me a falar-lhe com demasiada soltura, e inteireza, transformando a ousadia, e repreensões em serviços do bem público. Como Anfiarau os atendia, pouco a pouco lhe foram introduzindo o aborrecer-me, pelo que já me não ouvia com o antigo agrado, que este é um dos males, que fazem os príncipes, em ouvirem os que totalmente ignoram quais sejam as mais importantes máximas, e primeira glória do Soberano. Uma noite indo da Real Câmara para o meu aposento, ao passar de um jardim, me saíram quatro homens; e como logo vi que iam a encontrar-se comigo, lhes disse ainda distante: Quem sois, amigos e que quereis? Se intentais tirar-me a vida, sabei que me usurpais o que eu menos estimo; e se quereis vilmente obrar alguma ação em meu ultraje, crede que a morte me é tão pouco horrorosa, quanto amável a honra, que sempre vereis em mim, enquanto no Mundo existirem as minhas cinzas. Sem tomarem a resolução de investirem comigo, estiveram algum tempo imóveis; e eu instei com sossego: Se quereis de mim alguma cousa, (lhe disse) eu não vos fujo, nem vos temo, quando não, deixai de tomar-me os passos, porque nem vós aí estais bem, nem eu aqui. A estas palavras se resolveram; e depois de largo tempo de pendência, me feriram gravemente, de que logo caí sem acordo. Acudiu gente, retiraram-se aqueles bárbaros, e eu ainda fora de sentidos fui levado para curar-me.

Tanto que Anfiarau soube esta novidade, me honrou , visitando-me, e com as maiores instâncias quis saber quais haviam sido os agressores daquele delito; e supondo que eu os conhecera, buscou todos os meios para obrigar-me a dizê-lo em confiança; mas como o abuso havia ali introduzido, que as Majestades podiam ceder os créditos da palavra a favor do seu gosto, e interesses, depois de lhe resistir quanto pude, me resolvi ultimamente a dizer-lhe: Nunca podereis, senhor, obrigar-me a dizer-vos quais foram os que me feriram; eu pudera dizer-vos, que os não conheci, mas nem em tal caso posso faltar à verdade; vós me prometeis honras, e riquezas, para que os entregue; as riquezas seriam padrões da minha injúria, e as honras estátuas para castigo de tal vileza, o que bastaria para dar forças aos meus inimigos, que sempre me verão constante para lhes valer, e perdoar; porque mais devemos amar a honra, e temer os Céus, que estimar as vidas, e buscar indignos aumentos. Se é zeloso do bem público, (disse Anfiarau), como não concorres agora, para que se castiguem os malfeitores? Não consiste só o castigo daqueles (lhe respondi) o conservar-se limpa a espada da justiça; se o Palácio estivera reparado da Guarda Real, que é precisa distinção dos soberanos, pois se deve compor dos melhores, a quem a nobreza faz fideldignos, não haveriam temerários, que usassem profanar o sagrado de vossos jardins; quanto mais, que se quereis castigar aqueles, reforçai as penas para a observância das novas Leis, e não vos deixeis persuadir de ignorantes, que este é o castigo mais próprio, e sensível, que podeis dar aos maus, que eu não só lhes perdôo, mas lhes farei todo o bem, que couber nos dias, que me restarem de vida, pois foram o motivo de que me honrásseis, e o serão de tomarem mais forças as vossas Leis a favor dos bons costumes, ciências, governo e pobreza; e se estas feridas me entregarem a morte, darei graças à mão, de quem as recebi, vendo que os Numes se servem de instrumentos vis para empresas de glória. Com demonstrações de compungido me disse Anfiarau: Estas foram as mais qualificadas provas da tua virtude, e constância; e por não cansar-te mais, me retiro novamente confuso, e admirado de tanta prudência. Com estas palavras me deixou Anfiarau consolado, pois fiquei crendo, que outra vez se esforçara a ser verdadeiro pai de seus vassalos.

No largo tempo da minha moléstia senão descuidava a maldade, buscando o gênio do Rei para traçarem melhor os seus enganos (que a tanto se expõem os que deixam conhecer os seus dominantes), e como naquele tempo se fingiram com falso zelo pela compaixão, que mostravam terem de mim, lhe pediram que me não admitisse em sua presença, em quanto não sossegassem os malignos efeitos do ódio, e inveja. Quando acabei com os remédios de tão prolongado padecer, vendo-me quase cego, e coberto de lepra, mandei pedir que me deixassem ir para os montes, onde acabariam de curar-me a pureza do ar, a doçura das águas, os manjares inocentes, e rústica tranqüilidade; logo me concedeu a pedida licença, e me mandou para a casa de campo, na qual fosse assistido com todo o preciso. Não tolerei as assistências mais que os primeiros meses; tanto me principiei a ver alguma cousa, e tive forças para poder dar alguns passos, logo despindo o que da Corte me haviam levado, fui habitar para os bosques, onde via pouco as aves, as fontes, as flores, e mal os compassivos Pastores, que me socorriam mais do que eu havia mister, pois com a vida austera se curam os achaques da abundância; vestido de peles de brutos principiei a mudar o que tinha corrupta com as matérias da Corte; e refrigerando-me em uma fresca ribeira, curei a lepra; ou porque para curar o meu mal bastava tirar-lhe a causa, ou porque os Deuses para ocultos fins me querem vivo. Assim estive por aqueles desertos em paz, em quanto Anfiarau se não lembrou de me consultar sobre esta guerra, o que vos comunicarei na certeza da vossa prudência, e bom juízo; e se jurardes aos eternos Deuses, ficar imóvel, guardando o maior segredo a quantos vos descobrir. Crede (lhe respondeu Delmetra) que se preciso é, juro, e vos não culpo a cautela escusada, pois me não conheceis. Mandou Anfiarau (continuou Antionor) um confidente seu comunicar-me que o soberbo Ibério, seu confinante, lhe mandara propor, que se logo logo não fizesse conduzir com decência a seus Estados o grande Diófanes, Climinéia, e Hemirena, de quem se servia com soberba, e ultraje, havendo-se buscado tantos anos pelo Mundo com justa mágoa de seus vassalos, e amigos, passariam os seus exércitos a arrasar-lhe as praças, e assolar-lhe os povos; e suposto que havia lembrado o buscar-se aquela família por todas as Comarcas de Anfiarau, ainda que não havia indício algum de que vivessem em seus domínios; como aquela proposta acompanhava muita soberba, e falta de civilidade, haviam votos, que se aparecessem, se lhes cortariam logo as cabeças, e postas sobre as muralhas, iriam as tropas senhoreando-lhe as terras, e passando à espada quantos se lhe opusessem, pois só esta era a melhor resposta de tão injusta arrogância; mas que sempre queria ouvir as prudentes reflexões, que eu sobre este negócio faria, e vos repetirei o que me lembrar de uma carta, que no dia seguinte me escreveu.

“Esta é a ocasião, em que mais careço do teu conselho (me dizia), as tuas sábias ponderações me faltam para resolver com acerto. Já te fiz saber a arrogância do soberbo Ibério; agora te digo, que me fales com liberdade, e não te lembres de algum desabrimento meu, porque deste seria causa o desprezar do mal, que eu obrara, e não do bem, que tu me aconselhavas; porque sempre conheci que os príncipes interessam mais em um sábio, que na verdade é virtuoso, que em possuir mais um Reino; pois mais conservam os bons sábios com o conselho a República, que o aumentam os valerosos com o que conquistam; e agora vejo que os que tenho sobram para afligir-me, e para o conselho me faltam; porque vivendo muitos de os dar, os acertam muito poucos. Diz-me o que entendes, pois os Deuses te infundem o melhor, e me inspiram a ouvir-te.”

Eu lhe respondi: Estimo, Senhor, as mercês, com que a vossa grandeza me atende, no que me confiais; mas espero dever à vossa alta compreensão, que vos não ofenda em responder-vos, guardando as proporções à honra, com que devo obrar, pois é o mais alto bem da natureza, em cujas sagradas leis não têm império as Majestades, que sendo árbitras das vidas, e bens de seus vassalos, o não são só daquele, que a tudo o mais leva excelente vantagem. São grandes as conseqüências de um erro em negócio tão importante. Pelo que, contemplando na minha obrigação, e estado, em que me acho, só farei algumas reflexões, porque é justo o cuidado, que me dispensa de dizer-vos tudo o que entendo.

Os Monarcas da mais elevada prudência não receiam a guerra pelo que obrarão os seus exércitos, mas sim pelo que ordenará a fortuna, a qual não quer outro alvo para o seu cruel emprego, senão o que mais seguro se considera; porque a todos toma contas, e não as sabe dar a ninguém; nem se lembra dos vencidos, pois apura o seu rigor com os vencedores. Lembrai-vos de que os príncipes, que no Mundo houveram mais ilustres, mais nome tiveram por clementes, que por triunfantes, pois não há vitória completa, se não traz lances de clemência: porque o vencer é de humano, e o perdoar de Divino. Isto me lembra, Senhor, a respeito da inocente família, que onde quer que se acha, padece e não tem parte na soberba, de que tanto vos ofendeis: quanto mais, que usar de piedade, quando o rigor é incitado, aumenta a glória do generoso. Preparai-vos para as batalhas, tendo exércitos numerosos, e boas naus para as armadas; que poderá ser que isto baste para nos livrar da guerra; porque o Rei, que por mar, e por terra está pronto para ofender, e se defender, muitos concorrem para as suas satisfações, e alianças, pois que a todos serve a sua amizade, disfarçando algumas cousas, de que tomariam vingança, se o viessem enfraquecido. Não sei que contenha glória, valentia, ou razão o parecer de que se tirassem as vidas aos que mudamente padecem, quando na vossa, e dos vossos vassalos não só experimentaríeis os golpes da eterna justiça, como também as forças de seus súditos, e aliados. Eu morrerei sempre pela verdade, mostrando-vos com a razão que o sangue clamará, pedindo o castigo da tirania.

Também não é justo que sofrais ultrajes, que se opõem ao soberano culto da Majestade; mas antes que resolvais a castigar naqueles vassalos a imprudência de seu Rei, vede primeiro se lhes fizestes algum agravo, com que provocásseis a sua arrogância; porque o fazer guerra aos homens algumas vezes ensina a honra; mas o fazê-la à justiça é loucura: e se justamente sois queixoso, eu me persuado que fazendo saber o Mundo a vossa ofensa, depois de bem preparado para castigar a Ibério, este vos há de satisfazer, alcançando da sua indiscrição, admirado, e corrido da vossa moderação. Com este arbítrio se aumentará a vossa autoridade, respeitando-se a vossa clemência, e temendo-se o vosso poder, sem que se arrisquem os vassalos, nem estes passem pelo susto do vosso perigo; pois sabem quanto é difícil o conseguir num bom Príncipe; e que se as suas vidas se comprassem, muito dariam os Assírios pela de Belo, os Persas pela de Artaxerxes, os Troianos pela de Heitor, os Gregos pela de Alexandre, os Lacedemônios pela de Licurgo, e os Cartagineses pela de Aníbal, e que mais se devem reverenciar os sepulcros destes, que os palácios, que os maus habitam. Enfim, Senhor, eu me vejo perplexo para responder-vos: e mereça-vos o desvelo, com que vos hei servido, o livrar-me de tão grande embaraço, porque para aconselhar-me é preciso fazer muitas reflexões: e há ocasiões, em que é mais conveniente pegar nas armas, que esperar pelo conselho; quanto mais que para este em matéria tão importante é preciso prudência, bom juízo, lição, ancianidade, e desinteresse. Algumas circunstâncias destas se podem achar em mim; porém como me faltam as mais precisas, não levareis a mal a minha escusa, e receio, pois pelo que já os aconselheis, creio estar hoje entregue ao conhecimento, e ódio das gentes; e só vos digo que resguardareis as regalias do trono, de que são custódios os soberanos: e juntamente vos lembre, que o tirano põe o seu direito nas armas para fazer crueldades, e senhorear o alheio, e o Rei justo na Lei para castigar só os delinqüentes, conservar-se, e pedir o que se lhe deve.

Com estas, e outras semelhantes palavras dei fim à minha resposta; e como os meus inimigos temiam que esta ocasião novamente me introduzisse com Anfiarau, quando se rompeu a guerra, lhe disseram que seria mais conveniente que eu viesse para aqui para observar, e o avisar das desordens, que houvessem, porque o viam inclinado a levar-me em sua companhia para as fronteiras, onde se acha; quando me chegou o aviso, chorei com os cristalinos regatos, suspirei com as aves, despedi-me das flores, queixei-me dos montes, que se não abriam a esconder-me das gentes; e perdendo a sombra dos bosques, triste, confuso, vacilante troquei o vestido, que me curou, por este, que talvez me acabe a vida. Delmetra aflita disse: E tendes notícia que se busquem os que são a causa da guerra? Não (lhe respondeu Antionor); mas estou certo que os Deuses têm a sua conta o livrá-los das mãos da tirania, porque são obrigados a defender a inocência; se acaso tiverdes alguma notícia, não os façais conhecer, mas antes será justo avisá-los, para que se ouvirem falar de si, estejam tão advertidos, que os não acusem os semblantes, ou algum intempestivo retiro. Não sei, nem saberei, onde vivem, (respondeu Delmetra) ainda que muito os tenho ouvido nomear; e tomara saber qual foi a razão, por que Ibério tomou tão grande parte no que experimentavam? Entende-se (lhe respondeu Antionor) que faria liga com o príncipe Arnesto, quando saiu a buscar Hemirena, com quem estava desposado. Delmetra não podendo reprimir um efeito da sua pena, se banhava em lágrimas; e querendo disfarçar o que sentia: Não sei (disse) como Anfiarau em tal ocasião se deixou persuadir dos teus contrários. Antionor por lhe consentir o desafogo, passando pelo reparo das lágrimas, que bem entendia, lhe respondeu: Buscaram Armelinda, que era uma dama perniciosa, a quem o Rei por sua beleza, e vivacidade atendia; não lhe lembrando que os homens, que seguem os passos de tais mulheres, os dão para as suas ruínas, contentes de seu engano; porque quando entendem que os amam pelos dotes da natureza, elas só lhes estimam as generosidades; e assim livres das cruéis cegueiras do amor, os enganam, escarnecem, e entregam.

Mas reparo (lhe disse Delmetra) que muitos dos que dão remédios para os que amam, jamais souberam curar-se. Eu não falo (lhe respondeu) nos que lícita, e reciprocamente se amam, sim nos que primeiro se perdem inteiramente, que conheçam o fingimento, com que são enganados, podendo inferí-lo de que os tratem com mais carinho quando mais recebem, ou muito pedem: assim Armelinda foi obrigada com dádivas a dizer a Anfiarau que se compadecia do estado, em que me considerava; porque se eu fosse chamado para a Corte, seria entregue aos meus inimigos com grave perigo da minha vida; e se ele me levasse em sua companhia, também não era menor o risco, porque se ajuntaria matéria para o fogo, que se havia atalhado com o meu retiro; mas que se condoía de que estivesse fazendo vida tão áspera, sem mais causa, que amar a verdade, e desejar os acertos do Soberano. Anfiarau dizem que ficara triste, e pensativo, por lhe não ocorrer o remédio, ou a providência, que se devia dar em ocasião, que necessitava servir-se de mim. Armelinda, que com lágrimas havia acompanhado as suas ponderações, fingindo que lhe ocorrera meio próprio, e conveniente, disse, que me mandasse conduzir a este porto para o avisar de tudo o que se passasse, não chegando à notícia das gentes, que eu viera mais do que curiosamente. Este enredo, e outras mais circunstâncias dele me contou Balênio, criado de Armelinda, que para aqui me acompanhou, a fim de ir ganhar alvíssaras, quando levasse a certeza de que eu aqui ficava; desta sorte se traçavam os enganos da Majestade, que entendia assistir naquele coração, em que só tinha lugar o interesse.

Esta é a menor parte de meus trabalhos, e a que vos posso comunicar; e como não sei se me dilatei mais do que devia, perdoai o incômodo, e permiti que eu me retire, e em outro dia me contareis o que aqui vos trouxe com a mesma pureza com que eu vos disse os meus passos. Delmetra não consentiu que se retirasse, dizendo, que repartiriam entre si o que as serranas para ela houvessem reservado. Antionor aceitou a inocente oferta; e conhecendo-a melhor do que era conhecido, se sentia arrebatar de gosto, e consolação. Foi Delmetra a casa; e tomando o que lhe estava reservado, buscou algumas frutas, e preveniu o mais, que era preciso para hospedar Antionor, que não achara menos a Corte, e grandezas de Tebas, pois o servia Delmetra, que com o inocente asseio das serranas fazia competir o prazer de Antionor, e a sua tão pobre, quanto sincera vontade. Não lhe deu manjares delicados semelhantes aos que lhes haviam servido em Tebas, mas sim dos inocentes, em que não periga a saúde, compunha-se finalmente o jantar de ervas, frutas, leite, e favos de mel. Agora vejo (lhe disse Antionor) qual é o gosto dos que com alegria comem; porque estes manjares, que me permite a vossa bondade, me são mais saborosos, que os delicadíssimos, que de sua Real mesa me fazia participar Anfiarau, quando me havia recomendado o acautelar as desordens de seu Reino. Dizei-me: como vieste dar a estes domínios? Pois creio que sois de país distante, pelo muito, que vos queixais da fortuna. Tenho jurado aos Deuses (lhe respondeu Delmetra) não revelar todos os meus infortúnios, e só te digo, que têm sido tantos, que a vida já me é pesada, porque o meu cruel destino, retirando-me às grandezas, me entregou a crueldade dos bárbaros; pelo que fugindo das gentes, habitei as brenhas, fiz sociedade com os brutos, que me fizeram melhor companhia, que me haviam feito os racionais, e persuadia deixei as feras, que haviam sido compassivas, como se entendessem, que se deve ter compaixão de quem perseguida de todos busca abrigo debaixo das pedras.

Acompanhei a Belino, que com semelhante fortuna me havia encontrado entre os rochedos. Chegamos a Esparta, onde por ignorar um estilo, foi entregue aos trabalhos de Militar, e rapidamente o negaram à minha companhia: vendo aqui só a vê-lo; para a mesma Cidade, e deixar a alegria destes montes, onde não obstante as vizinhança da guerra, eu sentia o espírito em paz; e se houvesse acaso tão venturoso, que me confiasse aqui a companhia de dous sujeitos, dos quais há muitos anos que ando ausente, sem mais esperanças, ou alívio, que o permitem os tristes suspiros, e lágrimas ardentes, com que infelizmente lhes sacrifico a mais viva saudade, eu me retirara consolada, pois maior felicidade não espero, nem desejo; mas como com duplicados pesares me desengana a minha cruel fortuna, e poucos dias me restam de aqui estar, porque está acabado o tempo, em que prometi retirar-me, será preciso que o alívio de ouvir-te principie a despedir-me. Assim esperava Delmetra tirar uma última prova, com que totalmente desenganasse a sua quase perdida esperança, pois a desanimava o parecer-lhe, que aquelas poucas semelhanças, que a inquietavam, eram aqueles doces enganos, com que sempre sonha o desejo.

Que pode obrigar-vos (lhe disse Antionor) a voltar tão apressadamente a Esparta? Não me obrigam os parentes (lhe respondeu), porque dos que vive só conservo as imagens na memória para instrumentos da minha mágoa. Não me levam as amizades; porque como é difícil conhecer as verdadeiras, vivo conforme a vontade, que de todas me separou, porque não fosse enganada; não me chamam os bens, porque tenho experimentado que o maior de todos é depois de os possuir perdê-los com igual semblante; nem me levam negócios, ou dependências, porque depois da desgraça de perder tudo, tenho a felicidade de não desejar cousa alguma, conhecendo que é mais importante servir aos Deuses no estado, que eles determinam, pois são as felicidades uma vaidosa lisonja do tempo, que tem pronta a vontade para descuidos, e loucuras, sendo de todos bem aceitas, enquanto não tem inteiro conhecimento ou do pouco, que duram, ou do muito, que é estreita a vida para possuí-las; e ainda que estas, enquanto não chega a morte, pintam a vida com as mais agradáveis cores, apenas os dias se terminam, mostram entre sombras, que as que foram estátuas para idolatrias, se transformam em obeliscos para sentimentos, sendo igual ao peso de como se possuíram a dor penetrante de as deixar; pelo que vou só cumprir a palavra, que é todo o bem, que me abona, porque esta não só obriga aos homens, pois ainda que estes ordinariamente a sustentam para resguardo de seus interesses, não há entre eles, e as mulheres mais diferença, que terem eles mais forças para o trabalho, e campanhas, sendo tão dissolutos em suas ações, que já se lhes dispensou o reparo público, e elas naturalmente dóceis, compassivas, mais sujeitas a encargos, e mais fortes, e constantes na modéstia. Antionor, que a ouvia com gosto, sentindo o despertar da sua ausência, lhe rogou não apressasse tanto a sua partida, e ajustou tornar a vê-la no dia seguinte. Delmetra ficou sentindo de cada vez mais viva a sua saudade; e sem poder averiguar a verdadeira origem daquele excesso, dizia aflita: Qual é a causa da nova revolução, que dentro em meu peito sinto? Eu não tratava o racionais, e por isso os não amava? Mas não pode ser este o motivo, por que eu já havia tratado outros, e mais me inclinava a temê-los, que a amá-los. Pois qual é o incentivo deste afeto, que me prende, para não continuar os passos do acerto? Será a semelhança, que nos trabalhos tenho com Antionor? Também não, que de perseguidos está o Mundo cheio, e eu jamais me via arrastar tanto do afeto, como agora me vejo, mas eu também amo intimamente a Belino; porém com os seus trabalhos tem mais conexão os meus infortúnios, e somos companheiros. Ah que se os meus anos não fossem a melhor prova do inocente amor, que sinto, com razão me disputara sossegos o decoro!

É certo que Vênus, e Cupido só admitem moços, que os sirvam, liberais, que dispendam, néscios, que sofram, discretos, que falem, prudentes, que calem, fiéis, que agradeçam, e constantes, que preservem; em mim não há circunstâncias alguma destas, e sei que amo puramente a Antionor. Que juízos formaria eu, se visse entre os perigos dos poucos anos crescer tanto a violenta paixão do amor entre sujeitos estranhos? E que mal consideram as gentes, que dos interiores só podem julgar bem os Céus, que sabendo qual é o risco de ajuizar pelo semblante a culpa do coração, só para si o reservaram, pois ao mal muitas vezes oculta um aspecto agradável, e o bem debaixo de um melancólico semblante se aborrece; é certo que as virtudes são costumadas a desmentir sinais. Oh quanto são errados algumas vezes os juízos, que se formam pela estreita amizade dos sujeitos! Ave inocente, que em teu suave canto passas de um a outro raminho, gozando felizmente a fresca tarde, e os cândidos orvalhos da bela Aurora, sem que o teu amor perturbe o teu descanso; fonte cristalina, que murmurando corres, ameno prado, monte alegre, bosque sombrio, e belas flores, quando vos vereis, sem que as lágrimas contínuas tirem a luz aos meus olhos? Consorte amado, queridos filhos, Belino, Antionor, ai de mim! que estrela cruel é a que sempre vai acrescentando mais causas para o meu mal? pois parece que a suave convivência das gentes degenera no meu tormento. O Júpiter poderoso, se nessa esfera luminosa tendes poder nos Deuses, e o orbe estremece com os finais da vossa vontade, como não amparais uma infeliz, que noa acha lugar no Mundo? Mandai que Minerva, como parto da nossa cabeça, e em vós mesmos gerada, encaminhe os meus passos, como já fez, livrando aos bons mortais. Eu amo em Antionor as virtudes, que nele resplandecem, e não sou nesciamente, como Narciso era de si namorado, ainda que ambos somos estímulos da desgraça, e muito semelhantes na desventura; mas em tudo quanto vejo, e quanto alcanço, encontro desassossegos, pesares, e cuidados. Não receio que tenha o filho amado nas brenhas a cruel morte de Adonis, mas sempre o choro, contemplando nas suas cinzas frios despojos da sua vida. Esposo amado, se descansarás, nesse ditoso Olimpo, ou andarás pelas brenhas, como Alcides, devorando as feras? Querida filha, a que extremo te haverá chegado a crueldade das gentes? Se te lembrará que te adverti valerem mais os créditos da modéstia, que as posses de todo o Mundo; e que antes que perigue o decoro, convém primeiro acabar a vida, em que são contínuos os combates, a que ordinariamente é sujeita a formosura e discrição, ainda quando resiste às lisonjas com discreta, e prudente vivacidade, e que mais grata se conserva, e zomba do tempo, que intenta o seu deslustre. conservando a singela moderação, que sublima a beleza, e esforça o coração para as virtudes, pois o não admitir muitos adornos da vaidade, é repreender as que se fazem escarnecidas, fugindo com eles nas asas do tempo; e se acaso te esquecem, querida filha, os meus documentos, e deixas de servir a Diana, sejam destruídos pelos seus servos, que castigaram a Acteon, os instrumentos do teu desassossego. Ai de mim! onde ficou a tranqüilidade, com que eu gozava a sociedade dos meus? Onde está a que então era, e onde veio a que hoje sou? Com quanta mágoa se haverá lamentado em Tebas o meu trágico fim? Quem lhes dissera o estado, para que éramos destinados. Amado consorte, eu quis crer que te via, porque sempre a imaginação representa aquele bem, que te deseja; mas fui como o triste, que se acaso alguma vez sonha lances de alegria, quando acorda, mais chora o mal que sente. eu sonhava que te via, para renascer de um engano mais viva a mágoa de perder-te; mas se acaso hás passado a gozar o descanso imenso, mereça-te o ardente amor, que te consagro, que atraindo a ti este espírito atribulado, acabem as lágrimas de tão dilatada separação, e seja eu conduzida a ver-te entre os descansos.

Com estas lastimosas vozes parecia que Delmetra desafiava a compaixão dos mesmos irracionais no desconcerto, com que ora se lembrava de uns, ora de outros, tornando outra vez àqueles mesmos, mostrando assim que a memória lhes ministrava de cada vez mais de que magoar-se; e recolhendo-se a casa se lhe descontaram as horas de alívio pelos risos, com que as paisagens ou zombavam de sua ociosidade, ou sentiam mal de tão larga conversação; mas como não achava em si que acautelar, fez não as entendia por se não privar do último alívio, que só esperava ter no dia seguinte.

{{d|Sumário

Hemirena como Belino busca repetidas vezes a Climinéia, que tinha por Delmetra; e como o ódio não sabe descuidar-se para fazer suas presas; prendem a Diófanes, e Climinéia por traidores; foge Climinéia da prisão por indústria de Hemirena; e a Diófanes o permitem seus inimigos, que o mandavam ao suplício, por temerem as averiguações da verdade. Hemirena salva de um naufrágio e Climinéia, e a Arnesto, que com disfarce saíra a buscá-la; e continuam a caminhar para a pátria, sem se conhecerem, fugindo sempre aos inimigos da virtude, que por todo o Mundo andam dispersos.}}

Cantavam docemente as aves, festejando a Aurora, quando Delmetra, não obstante o que se lhe havia dado a entender sobre a conversação de Antionor, saiu buscando o benigno Zéfiro, que com a fragrância das flores conciliava alívio a seu triste coração; foi ao lugar do dia antecedente, e toda a manhã esperou com susto, e cuidado: voltou a casa a buscar alguma cousa, em que se ocupasse, porque abominava na ociosidade a primeira origem de vícios; e chegando Antionor, fizeram tréguas as suas apreensões. Bem sei (lhe disse) que estaríeis persuadida a que eu vos faltaria, pois vos vejo tanto de assento neste lugar; e ainda que tardei por vos diminuir o incômodo, perdoai-me, se julgais culpada a minha atenção. Seria ,ais sensível a demora (lhe respondeu Delmetra) a não estar eu costumada a negar-se-me todo o gênero de alívio; e como este é estimável pelos documentos, que tiro da tua conversação, será justo o meu pesar, quando me falte.

Estando nestas palavras chegou Belino, a quem o afeto obrigava a usurpar ao descanso as horas, que podia tomar, para que visse a Delmetra: passaram os três com grandes contentamentos o resto da tarde, Antionor perguntando a Belino, donde era. Não te direi donde sou, (lhe respondeu), porque basta que te diga, que nasci como um monstro, a quem a mesma natureza parece que desprezou, porque conjurando-se com a fortuna contra mim, me entregaram aos mais cruéis contratempos: fui usurpado aos meus, e perseguido dos estranhos; mas achei um coração tão nobre, que movendo-se à compaixão de tantas perseguições pelo mesmo, que me favorecia, entendo que experimentou o duro golpe da morte, e que fiquei assim como alma eterna para sentir, com razão imensa para chorar: fugi das gentes, e encontrei com os encargos Militares: e é tão igual a minha desventura, que não fazendo tréguas os meus pesares, conservo a vida para contínuos combates da desgraça. Antionor vendo como o gentil soldado deixava cair algumas lágrimas, a que acompanhavam as de Delmetra, com grande compaixão o consolou; e como os retiros do Sol anunciam os pertos da noite, se despediram ambos de Delmetra, que determinando fazer no dia seguinte a sua viagem, se recolheu à casa de cada vez mais triste, e saudosa.

Como o tempo da guerra é favorável para os desgraçados, a quem domina o espírito de vingança, os inimigos de Antionor, que se não descuidavam em excogitar meios para a sua ruína, sabendo que havia ido àquele lugar, e que se apartava largo tempo a comunicar Delmetra, o acusaram por suspeito de inconfidência. Na madrugada daquela mesma noite, dando repentinamente em casa dos paisanos, que haviam concorrido para tanto mal, pelo que murmuraram os seus reparos, prenderam Delmetra, que foi levada a um cárcere privado, e na mesma hora foi preso Antionor, não porque entendessem haver nele culpa, nem porque assim o pedissem as cautelas da guerra, sim porque com a sua última ruína conseguiam os maus a sua vingança, e outros ficavam livre de seus justos arbítrios. Deram conta a Anfiarau, que era fácil em crer, e transformar em ódio o afeto: o que ordinariamente consegue a maldade das gentes, quando se não descuida de recomendar a fingimentos, e enganos a ruína de seus próximos; mandou o Rei, que uma esquadra o acompanhasse até a Corte, onde vistas as provas da sua culpa fosse justiçado: chegou com aplauso de seus inimigos, e justo pranto dos que conheciam, e amavam as suas virtudes: determinaram logo tirar-lhe a vida, sem mais culpas, que o haver estado em conversação particular com Delmetra, que sabiam era mulher estrangeira, que não declarava a sua nação, e a quem falava largo tempo, e com cautela; e ainda que Antionor dizia o que continham os seus discursos, não lhe admitiam estas confissões, nem queriam dar crédito ao pouco, que lhe ouviam. Ao quinto dia de sua prisão foi avisado de que no seguinte iria ao suplício, para o que se dispôs com incrível ânimo; e vendo na sua fatal desgraça ser a desonra mais cruel, que horrível a morte, porque se nesta esperava os descansos, na causa sentia uma dor intolerável, e perdendo o acordo dizia: o tiranos, que perseguis a verdade, se intentais matar-me, não percais a ocasião de fazer bem a um desgraçado; aqui estou não invulnerável, como o forte Aquiles, pois tendes em meu peito o lugar mais pronto para as feridas; não demoreis os golpes da horrenda vingança, pois não sou invencível, como o Grego Alcides; mas se quereis matar-me com desonra, não poderá tolerar esse golpe o grande Diófanes, pois já vos confesso haver corrido a tormenta dos mais cruel destino, a qual me entregou aos bárbaros, que me venderam; e sabendo estes quem eu era, e que o príncipe Arnesto me buscava, receiando as circunstâncias deste caso, se o segredo se descobrisse pelo mesmo capitão, que me cativou, davam importante prêmio a quem me tirasse a vida, o que disseram se executara com os poucos, de que tiveram notícia, e que existiam da minha comitiva, crueldade, de que só reservaram o marinheiro, que lhes descobriu quem eu era; e como para maior infortúnio me reservou o fado, não se animando Pafo a fazer aquela impiedade, me ofereceu ao serviço do Rei; e ignorando a razão, por que intentavam matar-me pediu que me ocupassem fora da Corte, onde bastaria a proteção da Majestade para me defender daqueles contrários. Padeci mil infortúnios, sofri os contrastes, a que me sujeitou a maldade dos homens, não tendo alívio na mágoa, com que me lembrava da crueldade, que experimentaria minha amada filha, que havia ficado em casa do mesmo indigno capitão e igualmente havia chorado a desgraça da consorte, que é essa a quem chamais Delmetra. Não me foram insuportáveis os enredos, com que fui perseguido, nem as falsidades, com que já em outro tempo me culparam; mas não poderei tolerar, que me tireis a vida, padecendo o meu crédito: porque o sagrado culto, que se lhe deve, defenderei até o último instante, que tiver este alento que respiro, pois nasci recomendando-se os brazões soberanos de meus antigos; e sou ilustrado, para que minhas ações resguardem as glórias de seus nomes, o que consiste em não consentir manchas na honra, e grandeza de ânimo, me temer só aos céus, em amparar os perseguidos, e valer aos inimigos.

Eu não sei alterar a paz, nem perturbar a posse dos Monarcas, pois o defendê-los é o primeiro encargo da mais ilustre nobreza; eu estou inocente no que falsamente me impultais, se intentais matar-me, torno a dizer-vos, que espero sem susto a morte; mas se cuidais destruir o que só conservo de meus antigos predecessores, acabarei inseparável deste lugar, lutando convosco, ó bárbaros, que determinais dar-me, afrontosa morte, pois sei que primeiro se deve entregar a vida, que conspirar contra um Soberano, e que mais que o Rei só a honra se reguarda, e assim vede o que determinais; e sabeis que a minha consorte Climinéia ignora que em Antionor se oculta Diófanes, pois eu conhecendo-a, lhe não revelei o segredo, por lhe não duplicar os sustos, e cuidados, a que dava causa a maldade dos que me perseguiam; e não creiais que vos digo quem sou para negar-me à morte, pois buscáveis a Diófanes para lhe tirar a vida, mas sim para justificar a minha inocência, pois pelo mesmo, que descubro, intentareis fazer corpo ao delito, que não tenho; os justos Deuses, que me assistem, punirão a vossa crueldade, e se justificará ser bem nascida a resistência, que farei por não morrer, como vil, obrando sempre como Soberano.

A estas vozes de Diófanes não davam atenção alguma, dizendo serem sutilezas, com que esperaria, que o mandassem passar para o inimigo com a capitulação da paz. Estando já com poucos horas de vida, chegou um aviso de Anfiarau, que movendo-se aos clamores do povo, ordenava que se não justificasse, sem que fossem à sua presença as provas de seu delito. Com esta impensada novidade ficaram os malévolos cheios de susto, e terror; uns diziam, que se lhe desse veneno, outros lembravam o perigo de ser conhecido, e enfim assentavam, que só lhe seria conveniente dar-lhe lugar a fugir, o que com grandes despesas conseguiram; e como Diófanes não era sabedor do aviso de Anfiarau, logo que da prisão foi ajudado para a fuga, por mãos, que fingiam piedade, cuidou em retirar-se com pressa, e cautela. Neste tempo se achava Delmetra no cárcere privado, a fim de dizer o que o que continham as suas conversações, sem que fosse possível darem crédito à verdade, que lhes confessava; e como lembrasse que na última tarde lhe assistira também o soldadeo Belino, e crescia a curiosidade de investigar-se aquele segredo, concorreram os bem intencionados, para que se fizesse algum gênero de careações, para o que foi levado a um aposento vizinho ao em que estava Delmetra, e pela justiça lhe eram determinadas as perguntas, sem que houvesse incoerência alguma, que acusasse Delmetra, que ultimamente perguntou, se sabia o que era feito de Antionor? E ordenaram se lhe respondesse, que fora logo preso para a Corte, e que vendo-se condenado à morte, declarara ser o grande Diófanes, que sendo cativo pelos bárbaros, estes tiraram as vidas à mais gente de sua comitiva, pelo que também passara Hemirena, sua filha, e que isto descobrira, para que por outro motivo o matassem, porque os homens bem circunstanciados primeiro davam as vidas, que deixavam de ser fiéis aos Soberanos; e com ele se achava experimentando os rigores da mais baixa fortuna, só estava em estado de antepor (como príncipe, e bem morigerando) os resguardos da honra aos da vida; pelo que não o veriam ir ao suplício, como réu infame, vil, e indigno, pois em todo o evento era grande tão soberano, como infeliz. Qual foi o fim de tão cruel injustiça? (perguntou Delmetra). Que àquela hora seria morto (se lhe respondeu). A estas palavras rompeu aflita com o mais triste pranto; e sufocando-se em lágrimas, dizia:

Como será possível que eu possa tolerar este golpe maior que todos? O inumanos, qual foi o poder, que vos deu a tirania para me usurpares o que me haviam confiado os Deuses? Ai, amado consorte, eu temia amar em ti uma pequena sombra tua, e agora vejo que o mudar a vida, e descansos dela, destruiu a galhardia ilustre de teu amável semblante, e que eram em mim os receios delírios do gosto; e quem senão tu, falaria com tanta erudição, e certo? Como, ó Ministros do triste Reino de Plutão? deixas de tirar-me este pequeno resto de vida, que me deixaste? Confortem-me os Céus benignos ou me sepultem os montes.

Belino, que até ali ignorava o que se havia descoberto em Antionor, sabendo tão importante novidade, deixava cair de seus olhos infinitas lágrimas; os circunstantes se retiraram certos na inocência dos consortes; mas como a inveja, e ódio maquinavam estabelecer os seus enredos, disseram a Belino, que não destruísse a sua boa opinião em lastimar-se daquele pranto, porque os soldados valerosos se distinguem pelo sangue, que mostram, e os cobardes pelas lágrimas, que choram; e que se era Delmetra mulher de Diófanes, não provava a sua inocência, mas dava mais força para a suspeita do seu delito, e que brevemente veria executar em Delmetra a mesma sentença de Diófanes, ou Antionor. Ouvindo estes opróprios contra a verdade, imaginava Belino traças para valer a Delmetra; e aquela noite introduzindo-se com um servo daquela casa, que parecia compadecer-se do lastimoso caso, havendo-lhe observado os sentimentos, lhe rogou o encaminhasse para valer àquela infeliz, que perdeira a vida inocente; e como a boa persuação tem grande poder, e acode ó Céu com prodígios aos corações sinceros, conseguiram ambos mover o ânimo a Barnaxe, a quem estava recomendado o resguardo, e cautelas da prisão, para que na noite seguinte dessem liberdade a Delmetra, o que executaram com felicidade. O resto da noite caminharam com a pressa, que pedia o caso; e continuaram a ordem de caminhar de noite, e descansar de dia. Saindo daqueles domínios já iam com menos susto, sem que em todo aquele tempo deixassem as lágrimas de dizer a mágoa, com que lamentava a morte de Antionor. Uma noite (pela decadência de forças de Delmetra) tomaram o acordo de pedir agasalho a uma Pastora, que as recolheu para uns currais de gados, a qual era tão pobre, quanto generosa, e com incrível agrado as rogou, para que ali se demorasse, oferecendo os seus cabritos, e cordeiros.

Determinando Belino conciliar algum alívio à magoada mãe, lançando-se-lhe aos pés, rompeu nestas palavras: Senhora, e amada mãe da minha alma, não dura a desgraça mais do que em quanto não chega ao último grau, a que fomos reduzidas, eu sou a vossa filha Hemirena, os infortúnios me obrigaram a usar deste vestido, eu vos não conheci até o dia, que na prisão vos falei, e assim também ignorava quem me ocultava Antionor. As últimas desgraças de meu estimável pai me mostraram as luzes, que em vós escondiam as impressões de tão calamitoso tempo, tendo juntamente por certo que já ambos descansavam em Tebas; e quando nele choro a maior de nossas infelicidades, alcanço para consolar-me a fortuna de beijar-vos a mão.

Delmetra absorta com o gosto de ver ressuscitada a filha, que havia chorado morta, e com a mágoa do trágico fim de seu consorte, emudeceu sem saber resolver se era sonho, ou realidade o que ouvia, até que o gosto mesclado com a pena que decidiu a questão com um mar de lágrimas, a que correspondiam os apertados laços, e alegre semblante. Que nova primavera (continuou Belino) é a que em vós vejo, pois como o sol, e chuva ao mesmo tempo acompanham tantas lágrimas a vossa alegria. Como é possível (respondeu Delmetra) que eu possa explicar-te o que sinto, ó filha querida, se ainda estou duvidando, que para mim se guardasse um prazer tão grande? Que dissera que a dura mão, que desuniu de Antionor o feliz espírito de Diófanes, viria a mostrar-me a suspirada filha! Mas tu não és Belino? Sim, que a Hemirena já sepultou a crueldade dos bárbaros. Não zombes de mim, gentil mancebo, que eu te amo desde o primeiro dia, que teus infortúnios te mostraram aos meus olhos; e se tantos excessos devo à tua compaixão, para que me escarneces? Bem sei que as desordenadas ações, a que me obriga uma dor violenta, te poderão segurar a minha loucura, e esta desculpar as tuas graças; não te admires de ouvir-me, admira-te de que eu vivia, quando recebo golpes no coração. Levanta-te Belino, que te suspende? E reparando mais nele, e temendo alguma traição, continuou: Qual é a causa dessas lágrimas? Oh infeliz! não sei que sinto, que a cada instante me anuncia o temor novos trabalhos. Que crueldade te infundiria a maldade dos homens? Que me acode? Ai da mim! Não vos alieneis, Senhora (respondeu), com o que vos parece dissimulação: não deis vozes, temendo que eu seja algum traidor, que como me destes o ser, eu devo defender-vos à custa da própria vida. E possível que tal conceito façais de Belino? Como vos esquecem as qualidades, que dizeis haverem em mim, e em que tanto confiáveis? Estas palavras ouvia Delmetra com tanta atenção, que espantados os olhos, com o rosto pálido, e toda trêmula, ainda temia que ali executassem alguma tirania por mãos daquele mesmo, de quem tanto se fiava; pois ouvira, que se aparecessem aqueles, por quem se fazia a guerra, se lhes tirariam as vidas. Vós me haveis chorado morta, (continuou Belino), essa chaga quase havia curado o tempo; e que maior anúncio para novos cuidados vossos, que a vida, que eu ainda conservo. Lembrai-vos que me leváveis desposada com o príncipe Arnesto para assistir aos seus jogos; que o vosso primeiro filho caiu ferido no mar, que o sepultou; que eu fiquei desmaiada no porto dos bárbaros; que me recomendaste o conservar a candidez do decoro, e tivesse constância nos trabalhos; que eram muitos os da comitiva, com que saímos de Tebas. Basta, basta, (respondeu Delmetra, mudando inteiramente de semblante, e ações) filha minha, já vejo que assim como a muita alegria mata, eu saí do letargo de um prazer desmedido com os delírios de aflita. Graças aos Céus poderosos, que chega a bonança de tão larga tormenta, e se alegra o coração, em que só tem achado lugar há quatorze anos mágoas, sustos, horrores, e saudades. E possível que te vejo? Sim, que já vou descobrindo os vestidos da tua formosura, que escondia o traje, e ocultava a indústria. E possível que chegas a ser restituída à minha companhia? Já não temo os poderes da fortuna inimiga, pois me conforta para mais combates um alívio sem igual. Mais ai (dizia, mudando de cor, e deixando cair os braços, que apertavam a filha; a qual com susto receiava que aqueles intervalos fossem princípios de loucura.) Ai, consorte adorado, (continuava) como pode ser inteira a alegria, de quem foi a origem da tua injuriosa morte? Ah, que na vida de um infeliz sempre se alimenta a desgraça, se acaso impressa na alma não é com ela sem limite! Senhora, (lhe disse Belino) chegou a nossa desventura a dar os últimos passos, cheguemos também a dar as últimas provas da nossa resignação; e venham sobre nós os montes, ou se abra a terra para tragar-nos, e não se perca um escrúpulo de constância, para tolerarmos com fortaleza as eternas determinações; e acabam as lágrimas, porque o prosseguir no desafogo é querer a debilidade apressar os descansos com a morte; a minha dor e a medida da vossa mágoa, eu sei sentir as infâmias, como quem de vós nasceu: mas também conheço que o vencer as paixões é o triunfo mais ilustre: e pra buscar-vos alguma consolação, ouvi, Senhora, o que me há sucedido, e conhecereis que não há mal tão grande, que não possa haver outro maior; e refleti nos perigos, de que resguardam as Estrelas, para lhe serdes grata em moderar o vosso pesar.

Já sabeis como fiquei entregue aos bárbaros naquele cruel combate da desgraça, onde a perda dos sentidos eram bloqueios, com que o destino quis mostrar vencida a minha constância. Quando se me restituíram, as lágrimas eram contínuas; sem igual o medo, e inexplicável a dor, pelo que nos havia sucedido; continuamente chamava por vós, e só repetiam, como ecos da minha saudade, os magoados suspiros; as mulheres me maltratavam, os homens se compadeciam de minha aflição, e cansaço, pois eu fui destinada a trabalho grosseiro; mas como em cada hora ouvia repetir no meu coração os vossos documentos, não me afligia tanto o aborrecimento das mulheres, quanto me atormentava a piedade dos homens; e também observei fazerem-se elas escarnecer pelo muito, que falam, e pouco, que sofrem, sendo que pelo calar se amam, e pelo sofrer se veneram. Pelas contínuas desuniões, que haviam a meu respeito, entre os homens, e mulheres daquela casa, em que fiquei, me venderam a uns forasteiros, que me levaram a Atenas, e me ofereceram ao serviço da princesa Beraniza. Foram tantos os favores, e estimações, a que me chegou o agrado daquela Heroína, que eu já não sentia mais que os trabalhos, e ausência dos que me haviam dado o ser, e que tivesse aquela felicidade tão desgraçado princípio, que perdia de vista as em que eu havia nascido. Beraniza vendo-me sempre triste, instou, para que lhe dissesse a causa; e ainda que eu não tinha certeza do que ordenaste em a nossa separação, me determinei a comunicar a minha pena, pedindo a liberdade de meus progenitores, a qual as princesas Beraniza, e Argenéia pediram ao Rei seu pai, e com os sinais, que eu de vós dei, se passaram ordens para vos buscarem, e que com toda a decência fosseis restituídos ao nosso país, comprando-se a vossa liberdade, ou tirando-vos violentamente, onde quer que o impugnassem, e que fosseis conduzidos por mar, ou por terra, onde determinásseis, com a grandeza, e fasto, que pediam tais pessoas. Mas qual foi a razão, que tiveste, (perguntou Delmetra) para não pedir também a tua liberdade? Não foi outra (lhe respondeu) mais, que não querer Beraniza separar-me da sua companhia; e suposto que me ofereceu mandar-vos levar aquela corte, onde fosseis tratados com o maior esplendor, eu o não admiti, porque só quis conduzir-vos ao trono, porque distante dele sempre ficáveis sujeitos às contingências do tempo, e assim me sacrifiquei a servir toda a vida, porque não houvesse alguma ocasião, que vos disputasse o descanso, pois o não pode ter quem vive sujeito em Corte estranha, havendo nascido para faze-la em domínios próprios; assim determinei que a minha saudade incurável remediasse o pranto dos que talvez vos choravam morta, lembrando-se de vos ouvir dizer, que era nobreza de ânimo o arriscar o descanso próprio a favor do sossego público. Com esta razão vos consideravam no estado, que haveis perdido; e quando se me representavam os aplausos, com que seríeis recebidos na minha suspirada pátria, a alegria, que em todos me pareciam ver, me obrigava a banhar em lágrimas de gosto, e ternura, e na pena, que me restava daquele bem, que eu jamais lograria, só me animava a inocente vanglória de haver cumprido com os preceitos de minha obrigação; porque assim como devemos o ser aos pais, somos obrigados a tolerar todo o trabalho, que conduz para mais os honrar, Beraniza era sumamente agradável, tinha excessiva graça, desgarre, e afabilidade para com as gentes, e tão sabiamente ligava a estas amáveis qualidades o ânimo varonil, e os Reais pensamentos, que nos negócios políticos daquele Reino, e dos estranhos não se determinava cousa alguma, sem que o seu parecer aliançasse os acertos; porém tanto se entregava à dominante paixão dos estudos, que na gostosa conversação dos bons livros, e astronômicas observações passava insensivelmente os dias, e muitas noites, o que me obrigou a dizer-lhe:

Não sei, senhora, como não temeis uma aplicação tão excessiva, que suposto seja com moderação o mais decente realce de formosura, é no excesso insensível perigo de vossa vida; e já que a nossa bondade me permite o desafogo do que sinto, espero que a vossa benigna grandeza me desculpe, porque enquanto o afeto discorre, quase sempre o respeito esquece. O contínuo estudo, em que se emprega a vossa discreta curiosidade, tem degenerado em susto nosso; e ainda que parece que o tempo, e seus atrevimentos respeitam as heroínas, que já mais sabem temê-los, também não é razão que façais desperdiços da formosura, maltratando a vossa amável delicadeza, a que sempre é oposta a fadiga, e o desvelo, com que vos negais a todo o gênero de descanso. Compadecei-vos, senhora, deste povo, que ama tanto as vossas virtudes, quanto teme os vossos perigos, porque em vós descansam as esperanças, que lhes negam as moléstias de Ibério, e me perdoai, se acaso vos ofende a verdade, que me animo a dizer-vos sendo oposta às ações do vosso gosto; e ainda que assim satisfaço às obrigações, que me impõe o vosso agrado, se mereço castigo pelo ardente, e verdadeiro zelo, que me obriga a falar-vos com tanta liberdade, eu me não nego aos estragos, com tanto que não perca a vossa graça. Conheço (me respondeu) que é bem nascido o zelo, que te obriga, e assim farei ao público sacrifícios do meu gosto, moderado o meu primeiro divertimento, que como os dias dos mortais tem termo certo, não me devo conter por acautelada, mas sim como agradecida. Porém vede, Senhora, (lhe repliquei) que ao adorar o precipício se segue o cair nele, e que as vidas podem ter maior, e menor termo pelos decretos condicionais. Ultimamente conheceu que de uma vida precisa devem ser tantos os resguardos, quantos são os prejudicados na sua falta. Antes que se concluísse o discurso, chegou o princípio Ibério que também a persuadiu a moderar os excessos; e por não deixar em silêncio as admiráveis máximas, e documentos, que daquela conservação recomendei à memória, vos repetirei parte daqueles discursos, que trocando a natureza de precisos a carência particular com a conveniente utilidade pública, fizeram gostosíssima conversação. Creio, senhora (lhe disse Ibério), que a vossa prudente vontade dará o melhor lugar ao vosso claro entendimento, para que não haja circunstância, que dê a entender às gentes, que vossas prendas singulares sejam vaidoso desprezo da vossa vida. Eu sou sensível à ambição dos aplausos, (lhe respondeu) mas não ao horror das violentas paixões, que tomam corpo com o hábito da ociosidade; do exercício da útil aplicação se alimenta mais segura virtude; a esta mestra de acertos anda unido o espírito de prudência, e providência, o valor intrépido, e a moderação aprazível, pelo que pouco temo um perigo remoto, e muito receio um despenho próximo. Prossegui no que vos diverte, (lhe disse o Príncipe) porém moderai o que pode prejudicar-vos, assim como reconhecendo eu que é desonra dos príncipes o escusarem-se ao trabalho das campanhas, porque não sendo razão, que se ponha em dúvida a valentia do que manda, e deve ser modelo dos que obedecem, pois é o seu esforço o que infunde valor nos seus exércitos; também devo refletir que é igual a obrigação de não buscar os perigos, quando o não querer o Real decoro, e a utilidade pública; pois sendo virtude o valor, muda de natureza, se mais parece temerária vaidade, que zelo de honra, e amor dos povos; o que valerosamente se precipita, mais que bizarro, é furioso, e como o louco, que despreza a vida, jamais é senhor de si; altera a boa ordem militar, dá exemplos de temeridade, e arrisca exércitos, antepondo à segurança da causa comum a sua vangloriosa ambição, pelo que mais merece estátuas para o seu castigo, que padrões para as memórias das suas façanhas; e se conforme a precisão se desprezam os perigos e aumentam as providências, pela mesma razão se vos dispensam estes trabalhos, e cuidados, e a vossa delicadeza requer a moderação nos estudos. Eu não ignoro, (lhe respondeu Beraniza) que sendo em vós muito preciso o estudo, é em mim aplicação curiosa; mas como para os encargos dos soberanos não há distinção de sexo, pois que o tempo, casos, e acasos costumam repartir domínios, não deixa de ser conveniente, que se com a Astronomia me divirto, com a História também me instrua, pois nela observo que nem nos melhores homens se acha tudo o que é preciso para o bem público, porque em cada um deles há diversidade de gênios, idéias, inclinações, e aversões; e quanto mais povos há para reger, mais pessoas se necessitam para se lhes confiar o bem comum, e real autoridade, sendo inexplicável a dificuldade, que há em conhecê-los ao tempo de repartir os encargos; assim como a condição privada tem tal cautela em ocultar próprios defeitos, que ordinariamente só a morte os descobre, e pela mesma razão resplandecem os talentos dos que procuram dever à indústria o ocultar a própria ignorância, e sentimentos, enquanto não alcançam os lugares, a que aspiram; mas como a autoridade põe em prova toda a capacidade dos sujeitos, esta é a que descobre a maliciosa cautela, que os inculcou, porque os grandes postos, e lugares multiplicam, os objetos do merecimento, ou do escândalo; este só o tempo conduz à presença dos soberanos, porque as perniciosas políticas não dão todo o lugar é verdade.

Também admiro como as ações dos que regem Impérios todo o Mundo as observa, e as julga com o maior rigor, supondo-os com mais forças, e neles juntas quantas perfeições a natureza repartiu por todos os homens do Universo, sem refletir que suposto sejam semideuses as Majestades, também as rege influxo infinito, que as sujeita a impossibilidades, e embaraços, porque assim castigam os Deuses poderosos aos povos ingratos, e que ainda o mais prudente, virtuoso, entendido, valente, generoso, e sábio sempre é homem, tem limites o seu entendimento, e mais virtudes; tem humores, costumes, e paixões; não és senhor absoluto delas, porque vive rodeado de pessoas astutas, e ardilosas, e que as forças humanas alguma vez hão de render os enganos, e trabalhos, que traz consigo a doce fadiga de reinar; e Ulisses, que foi o exemplo dos Reis da Grécia, teve erros, e defeitos, que muito mais avultariam, se Minerva o não levara pelos caminhos da virtude para fugir aos rigores da contrária fortuna; e que não obstante os defeitos, que teve, foi pasmo de toda a Ásia; pelo que basta que quando empunhardes o cetro, procureis imitá-lo, lembrando-vos sempre que as majestades ou de todo perdoam, ou com mágoa castigam, e que com os inferiores é o perdoar o mais sublime estilo de repreender, e se desmente de generoso o coração, que se não abranda às lágrimas humildes do arrependimento, e aos discretos rogos do atribulado, pois sem demora ensinam as aflições a melhor Retórica; mas também é preciso ver, que nem sempre a compaixão é virtude, porque a alguns agravos será igualo mérito de os castigar à culpa de os cometer; porque quando as injúrias são públicas, e repetidas, para exemplo se castigam, e pelo escândalo se não perdoam.

Para conservardes a opinião de ter amável docilidade, nunca desprezeis o conselho dos que tiveram para o dar as qualidades precisas; mas para os aceitar, consultai primeiro em vós aquela vigorosa virtude, que sabe separar do útil o pernicioso; e reparai que da excessiva aspereza alguma vez tem sucedido haverem mais homens que sirvam, que fiéis que guardem, e que os que sem zelo servem, sem afeto assistem, só por interesse defendem, ou por medo pelejam, nem como dádivas se aplacam, nem com pouco se contentam; porque os que se não animam com o escudo da justiça, ou com o valor, que o brio infunde, a cobardia os perturba, ou a ambição os muda. Vós sois bem instruído, e tendes aquela alta capacidade, com que profundamente contemplam os príncipes no seu Reino, quando se dispõem para o possuir; mas assim como com respeitosa atenção me repreendeis os excessos, quis mostrar-me agradecida com o que vos lembro; e porque sabeis que é igual a pena da culpa, que se comete, à do bem, que se detesta, as minhas reflexões alguma vez hão de servir-vos para não ser inútil parte da minha aplicação, que prometo moderar, mais por amar o conselho, que por temer as ruínas, Ibério, que com inexplicável gosto ouvira a Beraniza, a satisfez com demonstrações dos mais discreto carinho, e singular respeito, concluindo assim aqueles admiráveis discursos. Argenéia segunda Princesa também me amava, e moderamente se divertia com a música, e com a caça, em que Diana bela se exercitava. Assim passei cinco anos, consolando-me com entender, que havia sido a causa do vosso descanso. Principiou Beraniza a padecer de uns acidentes, que não puderam moderar os remédios, pois não impediram os cruéis passos da morte; e em tarde, estando nos meus braços, rendeu o espírito, deixando-me recomendada ao Príncipe Ibério, para que me fizesse conduzir a Tebas; e não obstante, este motivo da minha consolação, as invencíveis correntes das minhas lágrimas eram anúncios de que o coração antevia, que com aparato de fortuna se mascarava a minha desgraça. O Príncipe foi o instrumento de todas as que se seguiram, porque continuou a ver-me com excesso tal, que temi que do círculo imperfeito, que formava o seu cuidado, e compaixão, fossem os extremos viciosos; pelo que me resolvi a retirar-me, desprezando indecentes esperança no silêncio da noite, saí como o homem mais desprezível. Padeci sustos, fomes , perigos, e aflições; e quando buscava, onde escondia pudesse descansar, encontrei convosco, e principiantes outra vez a tomar parte nos meus infortúnios. Não me culpeis o haver usado da dissimulação de tais vestidos; porque como os maiores trabalhos, e desgraças, que acontecem às mulheres, são originados pelos enganos dos homens, que os cegos de amor, ou de seus desordenados costumes, lhes prendem a liberdade, e as encaminham aos precipícios, pareceu-me que só escondendo-me assim aos seus olhos, caminharia com menos riscos. Tão pouco tenho que culpar-te, querida filha (lhe respondeu Climinéia), que dou graças ao astro benigno, que te infundiu esse acerto, pois é sem dúvida que o recato é o melhor dote das mulheres, com que as formosas adquirem adorações, as bem parecidas amor, e as feias estimação; e assim como a modéstia deve ser o primeiro adorno, também os mesmos, a quem não lisonjeiam os escrúpulos da sisudeza, apenas lhes conhecem a facilidade, as tiram das mãos da fineza, e as entregam ao rigor do desprezo, e esquecimento: entre os resplendores do decoro se contemplam na formosura vislumbres de divindade; porque quando as mulheres pela loucura se facilitam, não só perdem o ser, a beleza, e a glória, mas se fazem abomináveis, e escarnecidas dos mesmos, a quem servem; pois é tão melindrosa a estimação de uma discreta dama, que de muitos anos de cuidado perde o merecimento em um dia de descuido; e quando não houvessem razões tão nobres para conservarem a senhoril gravidade, bastaria que refletissem, que em deixando de desprezar as oblações dos rendimentos, passam logo a ser indignas de bem nascidos sacrifícios, sendo nelas infame desaire, o que é neles timbre da mocidade. Já me não será dura a morte, pois sei como te houveste pelo Mundo, entre bárbaros sem amparos, nem conselho, de que sempre carecem os poucos anos, e mais, quando lhes assiste a formosura; lembravam-me as desgraças, que te podiam acontecer, os riscos, a quem podiam conduzir-te os dotes da natureza. Entre estas, e outras muitas considerações rompia os Céus com lastimosos suspiros, e lhes dizia: O Estrelas benignas, como me encaminhastes a tão grande tropel de aflições? Não me seria cruel a servidão, se não tivera que sentir mais, que a dureza das prisões, onde só me quebranta o pesado grilhão, que na alma sinto neste profundo pélago de penas, e cuidados, em que flutuo. Perdi o melhor consorte de quanto havíeis destinado a todas as mulheres; talvez porque eu não sabia merecê-lo, não o quis conservar a vossa grandeza: perdi o ser de tal sorte, que eu quase duvido se fui sempre a que estou sendo. Não participa das minhas saudades aquele fasto, em que sempre se respiram venerações, porque a opulência, o trato da Corte, os parentes, os servos, e divertimentos passou tudo por mim tão velozmente, que lhes não reserva lugar algum a minha memória, pois toda ocupa a filha, que dos meus olhos arrebatou o mais tirano destino, temendo mais do que a Parca os seus desacertos. Oh quem pudera a aconselhar-te, para que soubesses temer o venenoso afeto dos homens! Quem pudera dizer-te em que consiste a melhor formosura, para não ouvires lisonjas, desprezando a indiscreta vaidade! Quem pudera chegar com estas vozes a teus ouvidos, para que fosses na verdade desenganada do pouco, que vale uma vida inconstante, se não adquire um descanso imenso! Ai, filha das minhas entranhas, quanto é limitado o sensitivo dos pais, ainda para receiar os desacertos dos filhos! Quem dissera que os regalos com que foste criada haviam de degenerar em misérias, e desamparos, pois te considero escrava desprezível: em que parou o recato, e gravidade, com que foste educada? Eu te resguardava dos olhos das gentes, porque sabia que no teu estado são tão sublimes os esplendores da beleza em uma Senhora, que mais se contemplam, que se comunicam; agora sem resguardos te choro em mãos inimigas. Nestas considerações, e tristes vezes uma dor veemente; ou paixão radicada me rendia a Morfeu: mas como o cuidado é oposto ao descanso, tornava logo a despertar, dizendo: Mas como dos meus braços te arrebataram sem acordo? Talvez que o susto te usurpasse de todo o brando alento. O dura Parca! Uma vez seríeis benigna, se cortásseis por uma vida tão sujeita a contratempos. E assim só me sossegava o julgar-te nas mãos da morte; mas já vejo que os Numes compassivos te resguardaram, para que uma infeliz viesse a ter o maior alívio. Mas que digo, se morreu, como vil, o que tão adornado de virtudes me havia tocado por sorte? Quem me dissera, que aquele venerando ancião atraía a si o meu afeto, não só pelo que parecia, mas sim pelo que era? Quem poderá mais crer nos enredos do Mundo, que apenas acaba um susto, já vai dispondo outros maiores? Se haverá tempo, que me alegre, quando vejo que este só se conserva a constância nas cruéis mudanças? Quem estimará as distinções; com que uns nascem de nobres, outros de humildes, se todos são igualmente sujeitos aos contrastes da fortuna? Quem desejará riquezas, e estimações, se mil anos de tempo para as possuir tem tanto ser, como um dia, que passou para deixar tudo? Assim chorava até agora também as tuas ações; agora que te vejo, e me satisfaço de como viveste, já me parece que aquele pesar não senhorava o meu ânimo; porque as razões que encontro na morte de Diófanes, parece que intentam arrancar-me do peito o coração.

Não se choram as mortes dos que deixam vinculados à posterioridade os seus gloriosos nomes, só se sente a saudade, que de um dia para outro vai curando o tempo. O quanto se ultraja a inocência, que deixa padrões para o escarmento! Ah cegos ministros da maldade, que lhes não lembra que serão severamente julgado pelos que puniram, sem mais culpa, que as que lhes imputaram a inveja, avareza, e ódios! Como não advertem, que o rigoroso Averno os ameaça com um eternidade de penas em cada erro, que autorizam com justiça? Como roubam a honra das gentes, se é fruto, que não tem restituição? Como castigam falsos homicídios por paixões particulares, se as vidas, e desamparos nunca podem ressarcir? Como chegam a mandar ao suplício por estranhos interesses a um pai inocente, se a falta, que experimentam os órfãos, nunca tem restituição? Como vendem a justiça dos que não têm meios para os subornos, se a verdadeira Justiça os vê para os castigos? Ah cegos mais desgraçados, que eu, e todos os que sofrem as suas injustas crueldades, satisfazendo-as, como famintas feras, no sangue inocente de seus próximos, a quem tiram os créditos, vidas, e bens, tendo a maior ventura os que os sofrem com ânimo constante! Ah desgraçados, que não advertem quanto é estreita a vida para o logro de tão grandes roubos, e se contentam de que continuem os seus maus nomes nos filhos, que ficam abundantes, e introduzidos, como se não houvessem juizes superiores, que lhes arruínem os seus mal fundados edifícios! Diófanes sem culpa acabou vilmente, porque menor castigo não mereciam a minha soberba, e desordens; e como falta a nobreza do ânimo, em quem se consola com a destruição dos inimigos, e em mim se executou o maior golpe naquela crueldade, os Céus queriam haver piedade com os que cegamente o mandaram ao suplício, para que conhecendo agora os seus atrozes desacertos, administrem a verdadeira justiça. Belino, que suspenso ouvia as magoadas vozes da mãe, com muitas lágrimas lhe disse: Bem sabeis, senhora, que os bons são no Mundo desconhecidos, em quanto nele existem, e que desde seu princípio foram sempre os virtuosos perseguidos, e invejados os merecimentos, e que a resignação nos trabalhos é o que move a compaixão dos Céus: a vossa mágoa não ressuscita mortos, e da vossa vida depende a minha. Não vos seria mais violenta esta mágoa, se chorásseis com a injusta execução também a notícia, de que eu estava servindo ao recreio daquele Príncipe? Diverti essa triste recordação, e contai-me os passos, que destes para eu tomar a fortuna de assistir-vos. Os Céus me amparem (lhe respondeu Climinéia), que eu quero dispor-me para resistir ao pesar do que eles determinam.

O dia, em que nos dividimos, em levarem a uma casa humilde, pouco distante daquele porto; aquela gente incivil zombou toda aquela noite de minhas lágrimas, fazendo-me muitas visagens, como parece que entre eles era costume. Logo no dia seguinte me fizeram caminhar m companhia de um deles, e cinco marinheiros nossos; e depois de três dias de jornada, em que passamos muito mal os dias pelo cansaço, e fomes, e pior as noites, porque também faltavam as camas, chegamos a Cidade de Argos. Aqueles inumanos procuraram inteirar-se de quem eu era; mas como já o tinha prevenido, conforme o havia ajustado com Diófanes, não o puderam conseguir; os meus tinham o cuidado de me pouparem ao trabalho, dizendo ser perseguida de vários achaques, e que em me fatigando caía gravemente enferma. Com muitos da numerosa família daquela casa, que era uma das mais distintas da Cidade, sendo eu desprezo de todos; e como me tinham por inútil, se lembraram de me mandarem para uma casa de campo com o emprego de tratar de cães, e mais bichos curiosos. Não me era estranho o vil exercício, em que me via, mas sim que eu houvesse de gastar tão mal o tempo, vivendo sem aplicação alguma, lembrando-se das muitas vezes, que te dizia terem muito espírito as mulheres que se empregavam em coisas pouco úteis e em contínuos atos de divertimento, ou em alistarmos os que passam pela rua, não se lembrando de que as que pouco se deixam ver, não só logram privilégios de deidades, mas dão lugar aos clarins da fama, que as recomenda aos repetidos votos da veneração; e pelo gosto de serem vistas, e melindres da ociosidade, arriscam o bom conceito, que só alcançam as aplicadas, e as que gravemente se retiram; e como das ações das senhoras se revestem as servas, as que se não sabem regular, ficam inibidas da severidade, com que repreende quem não concorre para o mal, com o exemplo. Quando tudo isto me lembrava, tinha a consolação de estar livre de alguma parte daqueles encargos pelo muito, que é difícil conservar a perfeição da verdadeira mãe de famílias; ou seja pela educação dos filhos, em que todo o cuidado é pouco, ou pela modéstia, e bons costumes das pessoas, de quem se servem, de que muito dependem as grandes casas, para que o respeito as tenha por sagradas. Tanto que e acostumei àqueles, com quem vivia, busquei modo de ganhar-lhes as vontades, conforme seus gênios, para os persuadir a se governarem com melhor economia, para os filhos se sujeitarem aos pais, os moços respeitarem os maiores, e se aplicarem, e para as mulheres darem maior preço a sua estimação no resguardo de suas pessoas, em que se acautelarem no falar, e nos exercícios quotidianos, e eu às ensinava ao que elas podiam admitir, por ser grande a sua rusticidade. Assim ocupava o tempo, que me sobrava do que me haviam encarregado; e tanto lhes granjeei os ânimos, que quando as lágrimas caiam de meus olhos, não só se entristeciam, mas buscavam meios para consolar-me. Os campos pela maior parte não os cultivavam, porque os seus moradores fugiam ao trabalho; as mulheres usavam com muita demasia dos adornos, e não sabiam mais que cantar os louvores de Vênus; a formosura, graças, delicadeza, e alegria igualmente brilhavam nos seus olhos; e tudo tão afetadamente, que não se via a nobre severidade, e o estimável pejo, que é o que se faz mais agradável na beleza, porque tudo eram artificiosos enfeites, e adornos profanos, com os quais olhavam, buscando quem visse os graciosos desdéns, com que nos corações acendiam a mais violenta paixão; enfim quanto nelas se observava, era desprezível, demasiado, e enfadonho.

Fui ver o Templo de Vênus com os mais daquela casa, que todos os anos lhe iam fazer ofertas, onde admirei o primor da arquitetura. Ali concorria inumerável gente a fazer suas oferendas, e se queimavam sempre odoríferos aromas; usavam todos de tanta desenvoltura, que eu fugindo de vê-los me recolhia à casa, enquanto não fui para Argos, onde se haviam moderado muito os maus costumes. Poucos dias depois de haver chegado de Citéra, estando uma noite na pobre cama, a que me via reduzida, em uma casa sem luz, entraram duas pessoas daquela família, e acaso se chegaram para a parte onde eu estava, e inadvertidamente trataram certos negócios, que requeriam tanto segredo, que buscaram aquela hora para os comunicarem; mas os Céus, que a todos vêem, não quiseram que se retirassem com a certeza de não serem ouvidos; porque representado-lhes o medo, que entrava gente na casa, quiseram chegar-se mais para o canto, em que eu estava, e cairam, tropeçando em mim; e quando se certificaram de que havia sido ilusão o que se lhes representou, me perguntaram, se eu ouvira o que eles haviam tratado. Bem via eu que lhes seria duríssima a verdade; mas como sei que a todo o risco sempre se deve usar dela, que a mentira não se conserva, que a verdade é esmalte de bem nascidos, nobreza de humildes, e sustento de pobres, ainda que algum tempo me demorei em lhes responder quase tentada a mentir, ou porque com a falta dos indignos principiava a mudar-me os costumes, ou porque com a falta da conversação dos bem morigerados, que suavemente ensina a bem obrar, principiavam a esquecer-me os bons hábitos, quando irados repetiam a mesma pergunta, respondi: Eu tenho ouvido o que falastes, e me pasmo da traição, que havíeis urdido: rogo-vos que deixeis passar alguns dias antes de executardes os vossos intentos, porque nesse tempo chegareis a abrir os olhos da razão; e reparai como quis o Céu, que eu fosse informada das vossas maldades, para mostrar-vos que a nenhuma cautela esperem dever as gentes, que no silêncio os oculte ao castigo de seus delitos; o rigor do tempo me tirou da casa, em que sabeis que eu me recolhia; a bondade dos mais servos me consentiu em um canto desta; a minha pequenez me tem aqui, se mais luz, que a que tenho para mostrar-vos os feios despenhos, para que vos encaminham os vossos desígnios: temei a ira dos Deuses, e vede que não deve viver no Mundo o que com acordo erra tão horrivelmente, desprezando os avisos da razão, que costuma representar a fealdade dos delitos. Ouviram imóveis estas palavras; e afastando-se, estiveram falando, sem que eu lhes percebesse palavra alguma, até que em desunidos pareceres dizia um: Não, não há mais remédio, que tirar-lhe a vida. Respondia o outro: E muito violento, e faltam as forças, quando a cólera não ajuda. E se lhe respondia: Eu serei o executor, basta que o consintais. A que tornava o outro a replicar: não vos digo que o façais, mais dai-me tempo para retirar-me, e obrai o que quiserdes; mas vede que o sangue inocente algum dia há de acusar-vos. A estas palavras fiquei sem ouvir mais rumor algum, a cada instante esperava a morte, fechando os olhos; e abaixando a cabeça para os golpes, via com o maior horror o fim da minha tragédia, e ultimamente me resolvi a dizer: Onde estais, ó cegos, que para que nunca acerteis, as sombras vos escondem o alvo, que busca a vossa tirania? E já cansada de esperar-vos chamo: Aqui está quem não cometeu mais culpas para a vossa crueldade, que o nascer ditosa, para viver infeliz convosco: acabai de aliviar-me do mal imenso, que na vossa companhia padeço; e sacrificai uma vida inocente, oferecendo o meu sangue nos altares da vossa ferocidade. Ficaram ainda imóveis, e em tal silêncio, ou falando com tal cautela, que estando eu persuadida a que se haveriam retirado, se chegaram a mim, e me disseram, que se queria a vida, havia de ausentar-me dali, e me livrasse de ser vista, porque em qualquer lugar, onde fosse conhecida, seria entregue à morte cruel, e que me parte alguma me acontecesse falar no que lhes ouvira. Eu o prometi com verdadeiras expressões, e lhe disse: Fugirei com o maior cuidado, não por me livrar da morte, que em toda a parte lhe serei sujeita, mas para que vivais sem a inquietação dos receios; nem revelarei o que vos ouvi, não só por conservar os juramentos, que faço, mas por não aprenderem a idear os que só tem má inclinação, e lhes falta a sutileza para urdirem os seus enredos, que este é o perigo, que tem entre os maus a especulação da maldade, e entre os bons o muito, que os escandaliza. Interromperam o mais, que ia a dizer-lhes, segurando-me que os seus sequazes estavam espalhados, e a todos informaraiam com as circunstâncias para me tirarem a vida e, que logo logo saísse dali, pensando bem em não ser vista; e pegando em mim com tirania, me levaram às cegas, sem mais vestido, que a coberta da pobre cama, que me davam; assim me levaram à porta de um jardim, e me puseram na estrada.

Fui caminhando o mais que pude no pouco tempo, que restava da noite: recolhi-me em um bosque solitário, onde a fraqueza, e cansaço julguei dariam fim a meus infortúnios; porém não o consentiu assim o fado, pois não era ainda satisfeito de meus trabalhos. Continuando a fugir, não podia andar sem grande incômodo; porque pelo muito, que cansava, me era logo preciso buscar onde me escondesse. Era tal medo, com que me via no escuro da noite pelos campos, que algumas vezes me parecia ouvir desordenados gritos, extraordinários assobios, e medonhas vozes, tudo efeitos do medo, e esperava nas noites de luar não ir tão aflita; mas chegadas que foram, me sucedeu pelo contrário, porque via fantasmas, com que as deliciosas sombras dos arvoredos aumentavam o meu horror; enfim a fome era contínua, em quanto ela me não ensinou a comer frutas agrestes, e ervas, conforme as produzia a terra. Também aproveitava de alguns bichos, que se criavam nos rios, comendo-se logo que podia apanhá-los; os olhos transformados em vivas chagas pela contínua corrente das lágrimas, iam perdendo a luz, que me encaminhava; a cor do rosto estava tão destruída pelo contínuo pavor, e aflição de espírito, que uma tarde, chegando a um regato para refrigerar a sede, que me atormentava, e reparando no semblante, que mostrava o líquido cristal, gritei aflita: Ai triste! crendo ser alguém, que se chegava a mim; e voltando logo sem ver pessoa alguma, assentei ser eu a mesma, que me desconhecia, pelo deplorável estado, em que no pálido semblante se copiavam os meus trabalhos. Assim passei cinco meses daquele inexplicável tormento, até que achei a gruta, em que me viste, onde fiz assento, entendendo ser aquela a minha sepultura, pois me faltava o alento para continuar o caminho, e ignorava se ia a encontrar-me com os meus contrários, ou se me retirava deles; e nesta dúvida, sentindo vizinha a morte, me recolhi ao centro daquele rochedo, que se achava então livre das feras; mas quando principiou a ser imenso o calor, me vi em novos sustos porque começavam a entrar os moradores, que eu não esperava.

Não sei dizer-te o medo, que me causavam, quando reparavam em mim; uns raspavam a terra, outros como rosnando se chegavam tanto, que pegando com os dentes no pano, que cobria, me voltavam de uma parte para a outra, e ficava eu imóvel no mesmo lugar, onde havia caído. A este tempo vinham outros, que me passavam por cima, ora saltavam brincando, ora davam branidos horrendos, e principiando s morder-se enfurecidos, me representavam todas as Fúrias, e horrores do triste Reino de Plutão. Acabou aquele mais feio dia, e com as sombras da noite me foram deixando pouco a pouco: melhorei-me da figura, em que tinha ficado imóvel, porque o medo nem me deixava respirar com liberdade. Desejava antes caminhar, que sujeitar-me à ira daqueles brutos; mas não só se me embaraçavam a decadência de forças, e falta de vista, mas também a incerteza da situação, em que estava, e o caminho, que deveria tomar, e escolhi aquela morte, por me faltar todo o remédio.

Na casa, em que fiquei na Cidade chorando a tua ausência, me encarreguei, como sabes, da educação de uns meninos, que suposto lhes buscavam os meios, que lhes conciliassem a boa inclinação, os domésticos da mesma casa destruíam todo o efeito daquele trabalho, como ordinariamente sucede. Também quiseram ali saber da verdade, quem eu era, dizendo não se acharem nas mulheres humildes as circunstâncias, que para aquele emprego em mim se admiravam, como se para a educação tivessem aquelas menos pesada obrigação, não me entregaram a filha, porque é tesouro tão importante, que sem muito larga experiência não se confia mais, que ao chamado Antionor, de cujos discursos renascia de cada vez mais viva a minha saudade pela semelhança, que tinha com os de meu amado Diófanes; mas no semblante o achava muito diverso, sem refletir que a natureza não nos parece que pinta com as mesmas cores a todos, porque a uns dota com regalos, descansos, e palácios magníficos, e a outros só com forças para resistirem aos rigores do tempo, sem mais reparo que o da rústica choupana; sendo que não há mais diferença entre uns, e outros, que uma antiga posse de fortuna, que faz o estabelecimento, e recomenda aos respeitos, e resguardos as pessoas, a que chamados ilustres, e nobres; e aqueles, que destituídos foram sempre de bens na contínua fadiga do trabalho, que os sustenta, os maltrata o tempo, e os faz encarnecer de medo, são tidos por humildes, ainda que todo tivemos a mesma primeira origem; assim mo ocultaram as impressões do tempo, que também conduziram para o estado, em que me vês: agora convém determinar o caminho, que devemos seguir, ainda que me falta o alento para dar mais passos, porque me todos parece que me chego para os precipícios. O, feras cruéis, que se me houvésseis tirado a vida, já teria eu encontrado com aquele magnânimo espírito, que nos Elísios descansa! e agora sem alívio choro a morte infames, que padeceu; e não sei se é menos crédito da mágoa não sacrificar a vida nas aras do sentimento. Consolai-vos, senhora (lhe disse Belino) e reparais que os Deuses vos defendem, e poderão ofendê-los as vossas vozes; parece-me que continuemos este caminho, a ver se encontramos com algum descanso nas vizinhanças da pátria, ou se cansa a desgraça, que nos segue.

A graciosa pastora, que com o romper da manhã saía a apascentar o seu rebanho, chegou ali a cumprimentá-las, e com galanteria lhes ofereceu sua pobre choupana, para que se demorassem todo o tempo que quisessem. Dizei-me se descansastes, (lhe disse) e se vos agrada ficar na minha companhia? Eu me hei de alegrar muito, e agora bem sabeis que eu não posso estar convosco, porque hei de mister ir para o monte com os seus cordeirinhos, ou vinde comigo: tomareis o fresco, ouvíreis dos pastores as melhores cantigas, e a graça com que também cantando as pastoras lhes respondem: vereis as lindas aves, que alegres vão para os seus ninhos, e adormecereis ao som, que faz o correr da fonte: eu repartirei convosco da minha pobreza, fiaremos a lã, para o que nos for preciso, e assim em paz, sem a soberba dos ricos, nos costumaremos a viver contentes. Delmetra lhe respondeu agradecida: Por alguns dias aceitaremos o que o vosso bom ânimo nos oferece; e passados estes, iremos obrigadas só a continuar a nossa jornada, porque os Deuses poderosos não querem que tenhamos muito descanso.

Assim se demoraram só três dias, e no fim deles saudosas se apartarem da agradável pastora, continuando ambas a fugir das vizinhanças da maldade. Quando chegavam a alguma povoação, punham todo o cuidado no retiro, e não descansavam, enquanto se não viam longe dos ajuntamentos, que sempre conduz para inquietações; já principiavam a ver, como uma pequena luz, que lhes mostrava a esperança, no perto, que já estavam de Tebas; e como para este fim, a que só aspiravam, lhes era mais conveniente fazer um pequeno embarque, esperaram alguns dias, que houvesse embarcação; e cuidando que assim terminavam suas peregrinações, e infortúnios, viram que ainda não havia cansado a desgraça; porque tendo embarcado, deu logo a embarcação fortemente contra uma rocha, em que acabou a maior parte da gente. Sobre umas tábuas se salvaram pessoas, e entre estas escapou Belino, que reparando que Delmetra havia acabado com os mais, que faltavam, levantou os olhos aos Céus, dizendo: O Deuses poderosos, como ainda se não aplacou a vossa indignação? Como consentistes que acabasse uma vida tão precisa, e na minha sustentais a mais inútil? Eu me ia acostumando a perder o horror, que os primeiros dias senti na companhia dos homens dissolutos; e agora, que já me envergonho de vê-los, como me tirais a mais precisa companhia? Ah que parece que zombais cruelmente de meus trabalhos: O infeliz mocidade, que entre perigos se passa! E consentem os Deuses em uma vida enfadonha, para apurar merecimentos? O bárbara estrela, fazei que eu descanse já na sepultura; pois que assim como a cerva ferida corre com a força da sua dor, levando consigo o dardo, que a tormenta, sem alívio levarei impressa na alma e justa causa do meu pranto; mas uma, e mil vezes tornarei a pedir-vos, que me livreis por qualquer modo do ar, que é corrupto pelos vícios, pois são males, que se têm introduzido para oprimir o Mundo, onde os enfraquecidos, que se envergonham da virtude, querem tomar o lugar dos constantes para que a virtude, não cresça. Com estas justas considerações estava Belino naquela praia continuamente olhando para a rocha, em que havia acabado a sua consolação; e observando que sobre a mesma estavam dous pequenos vultos, que se moviam, ora lhe pareciam, enganos da vista, ora queria persuadir-se, que não eram corpos, que formava a sua fantasia, mas sim realidades o que observava, e vendo que aqueles penedos tinham estado mais descobertos de água, e que a enchente lhe fazia parecer de cada vez mais pequenos os objetos, comunicou o seu reparo a algumas pessoas, que ali ainda se achavam, uns chorando pelo que haviam perdido, e outros consolando-os, pois que tinham escapado com a vida; e tanto que assentaram que era gente, que para ali arrojaram as águas, correram aflitos a buscar quem os ajudasse a acudir aos que estavam vendo, como se lhes chegava a morte; e em uma lancha se aventuraram a sair, lutando com as ondas; e suposto que o vento, que causara aquela desgraça, estava muito mais brando, os mares estavam ainda tão levantados, que muitos tiveram por temeridade a resolução de irem salvar aqueles, com o perigo de se perderem todos; pelo que só quatro se animaram a irem com Belino a executar aquela ação de piedade, e louvável desprezo da vida: foram um grande risco; e quando com muito trabalho tinham vencido meia parte da distância, já temiam perder as próprias vidas, e não terem remédios os que intentavam livrar da morte, porque os mares de cada vez mais soberbos cruelmente os ameaçavam, e os penedos com pressa iam acabando de cobrir-se de água: eram contínuos os clamores, que já ouviam, dos pobres aflitos, que de uma para outra parte andavam sem sossego, pois a morte de cada vez mais se lhes avizinhava com a enchente; o perigo dos compassivos de casa vez era maior, porque lhes faltavam as forças para continuarem a manear os remos. Não parecia Belino dama delicada; porque como robusto soldado, animando os companheiros, se pegava com incrível valor ao seu remo, até que permitiu o Céu, que abrandassem os mares; com inexplicável trabalho tiraram os aflitos daquele lugar infausto, porque o rochedo em parte escorregava tanto, que não podiam segurar os pés; e em outras de muito ferido das águas tinha pontas agudíssimas, e conchas de mariscos, que os maltratavam. Achou-se Carpache, filho de um dos que se haviam, animado para ir também valer-lhes, e outro era um gentil mancebo, chamado Albênio: voltaram todos para terra, e com menor trabalho chegaram a desembarcar. Belino, havendo já satisfeito à nobre ternura de seu ânimo, tinha de alívio só a parte, que à sua mágoa acrescentavam aqueles dous, pois lhes valera, não valendo à sua dor, e sem esperança alguma chorava a infeliz morte de Delmetra, a quem ela havia conduzido àquele naufrágio, pois não consentira em ficar gozando em sossego a companhia da inocente Pastora; e encostado a um tronco, junto ao qual descansava Albênio das fadigas, e sustos, que tão de perto lhe haviam mostrado a morte, com lágrimas, e soluços moveu a compaixão de Albênio, que intentado divertí-lo com algumas histórias, que o podiam, consolar, também lhe perguntou os mais sucessos, de que ouvia lamentar-se, dos quais não conseguiu mais, que ouvir uma limitadíssima parte, porque os suspiros, e arrancos do coração magoado não davam lugar a proferir muitas palavras, pois quando a dor é intensa, a mudez melhor a explica; e vendo que se aumentavam as demonstrações do pesar, que no princípio estiveram reprimidas pelo pasmo, susto, e desacordo: E tal a vossa mágoa, (lhe disse Albênio) que já tenho tomado nela uma grande parte; e se não posso servir-vos de alívio, vos servirei de companhia, sendo de vós inseparável. Não posso admitir o que me oferece a vossa bondade, (lhe respondeu Belino) pois me resolvo a buscar uma brenha, onde acabe os meus tristes dias. Não podereis conseguir (lhe replicou) que eu de vós me aperte, pois é impiedade grande o desamparar um triste, deixando-o entregue aos estragos da pena; e assim vos digo, que eu estou de ânimo de sofrer os impulsos da vossa repugnância, com tanto que de vós me não aparte; vede para onde determinais caminhar, ou se quereis ficar aqui. Como vejo que a nossa porfia é tão nobre, (respondeu Belino) serão sem efeito as demonstrações da minha repugnância; eu determino continuar por estas praias buscando o cadáver, de quem é filha a minha mágoa, porque ao menos possa beijar-lhe a generosa mão, e dar-lhe sepultura; e vamos que eu assim louco, e perdido, nem mais terei um leve pensamento de alegria.

Partiram ambos, e a poucos passos lhe anoiteceu, ficaram naquela praias, em que toda a noite Belino suspirava, e Albênio discretamente o procurava consolar, lembrando-lhe (com histórias muito próprias) quanto somos sujeitos à inquieta rota da fortuna, ou vela, que busca as mudanças do tempo; e que aos magnânimos não apoucam infortúnios, nem afligem desgraças, vendo com fortaleza laurear-se-lhes o sofrimento com o aplauso dos prudentes: quando os principiou a favorecer a luz da Aurora, continuaram o seu caminho.

Passados sete dias, lhes disseram umas serranas, que ali tinham saído os cadáveres de umas mulheres, que pelos sinais entendeu Belino seria uma sua amada mãe, o que novamente chorou; e determinado ir ao lugar, onde se haviam sepultado para seu inteiro desengano, não o consentiu Albênio, ponderando-lhe o estado, em que já estariam. Despersuadido desta diligência, e sem determinações da parte para onde iria, continuou a prolongar-se por aquelas tristes praias, sem esperança alguma de alívio; e não se animando a deixá-las, se demorou dezessete dias; e em uma noite, descansando sobre a areia, quando a mágoa lhe despertava mais os sentidos, pois sempre aflito conversava com a sua pena, lhe parecia ouvir ao longe uns lastimosos gemidos. Comunicou o seu reparo a Albênio, e toda a noite vacilaram, sem assentarem donde vinham: corriam para a parte da terra a ver se os ouviam, como de mais perto, conheciam que mais se lhes retiravam: continuavam para uma, e outra parte da praia, igualmente lhes parecia que sempre ouviam os tristes ecos: e sem saberem formar juízo, só assentavam que vinham da parte do mar, o que tinham por impraticável; e com a luz da manhã, aplicando mais diligências para verdadeira averiguação, fizeram reparo, que ali haviam ao longe várias ilhas; mas como eram distantes, não podiam divisar, se havia nelas cousa alguma, e juntamente lhes parecia que já não ouviam as ditas vozes, sem o reparo de que esta falta sucedia, quando totalmente tinha acalmado o vento, o que não obstante, se resolveram a demorarem-se ali aquela noite, para se certificarem se fora ilusão, e as tornarem a ouvir ainda antes da noite; porque refrescando a tarde, o brando Favônio as tornou a conduzir aos seus ouvidos; porém se lhes representavam mais distantes, talvez por ser mais brando o vento. Assim passaram com igual confusão; e ouvindo o mesmo todo o dia seguinte, se determinaram a buscar de aportarem àquelas ilhas, pois lhes não ocorria que de outra parte pudessem nascer as tristes vozes. Os rústicos daquela montanha tinham por delírios o que diziam terem ouvido; e muito mais, que esperassem achar gentes em tais lugares, onde diziam não haver coisa alguma, em que se alimentassem mais viventes, que algumas aves, que esperavam o que lançava o mar; mas de toda a sorte resolutos foram em uma embarcação, que remediaram, como puderam, e na primeira ilha não acharam pessoa alguma. Indo aportar às outras com igual diligência, quando já quase viam que fora inútil o seu trabalho (na penúltima, que faltava de averiguar), e acharam a Delmetra; e um homem, que parecia estar dando os últimos alentos, também o trouxeram para terra, onde em poucos minutos faleceu. Os montanheses, que esperavam na praia, zombando daquele delírio, admiraram tão raro sucesso, e ajudaram a dar sepultura ao cadáver, sendo as honras funerais o cantar daqueles rústicos, que com fúnebres canções o conduziram à sepultura. Quando Delmetra entrou em si, disse: Filha querida, eu já não esperava mais golpes, que o que em mim estava para executar a morte. E possível que torno a ver-te, quando tinha por certo que acabaras no naufrágio? Não sei dizer-te, como me salvei em tão horrendo estrago, porque desde o instante, em que deu a embarcação contra a rocha, até que me vi sobre aquela ilha, tive perdido o acordo, ou a memória, entendo que pegados a um remo fomos arrojados àquele lugar; dois homens, que é um o que sepultamos agora, e outro, que logo faleceu, achando-se com uma ferida na cabeça, e com a maior pena o vi acabar sem remédio, alimento, ou consolação alguma; as aves de rapina foram logo ao frio cadáver, e lhe comeram os olhos, e mais carne do rosto, e mãos, pois não faziam caso da pouco força, com que eu as enxotava; e assim fui vendo com indizível horror tirar os galhardetes da gentileza, e ficar em árvore seca e horrenda figura da morte; já me sentia sem ânimo para aquele, que eu pensava ser o último trabalho da minha triste vida, e quase desfalecida dizia ao infeliz, que me acompanhava: a ira dos Deuses não tenho ainda aplacado com as lágrimas de outros pesares, que sempre chora, pois castigam minhas maldades com a vista deplorável desse horrendo espetáculo; e não sei se o que estamos vendo com tanto pavor, e desengano da vida, nos acusará de negligentes; e posto que nos faltam as forças, e instrumento para abrirmos sepultura, trabalhemos como pudermos, para que se execute esta ação de piedade, que os Céus nos hão de confortar, já que não foram servidos, que acabássemos no fatal conflito, para que em cada minuto de vida sentíssemos a mais ditada morte; e lembrando-me a causa de meus cuidados, dizia: ai, filha querida, consorte amado, que oculto arcano é este, que dilata a mais desgraçada vida, se enfraquecido o peito já não pode tolerar a força de tantos golpes? Com estas, e outras semelhantes vozes se explicava a minha pena: e bebendo lágrimas, fui trabalhando na sepultura, como pude. O triste companheiro, que de susto julgo havia emudecido, tendo o pálido semblante cadavérico, e os olhos sempre espantados, explicava a sua bárbara dor com ações, que me atormentavam; porque sendo sujeito a estar algum tempo, como em letargo, quando tornava a si, levantava os olhos ao Céu, e ora punha as mãos na cabeça, ora batia no aflito peito, e assim arrancava das entranhas os mais ardentes suspiros. Dois dias gastamos em abrir a sepultura, o corpo já com terrível fétido, e grande multidão de bichos, que também estavam nos lugares, que haviam escamado as rapinas, com grande trabalho o sepultamos; e recordando eu o nosso último fim, via como se arruinam os edifícios da vaidade naquele hediondo padrão, em que melhor estavam gravadas as letras do desengano; os dias passava, clamando aos Céus; as noites com medo inexplicável, ouvindo os bramidos dos monstros marinhos; e os soberbos roncos das ondas, que quando ali quebravam os montes da cristalina espuma, me faziam temer a sua soberba; e quando ouvia o severo rumor, que faziam ao longe, se renovava a minha sem igual saudade; a fome nos obrigava a comer toda a castra de bichos, que lançava de si o mar, sem mais esperança de alívio, que o que nos prometia a morte; então conheci ser aquele trabalho o maior de todos, pois quase tinha extinto a lembrança dos que no primeiro dia chorava, queixando-me do fado, que nos dividira, e ultimamente só me lembrava a feia presença da morte, que ao mesmo tempo, que a desejava para termo de tão cruel desamparo, a temia como último estrago do mesmo tempo; e à proporção, com que o gritar me enrouquecia, perdia também as forças; até que a sabedoria dos Numes, que assistem aos viventes, e acodem aos que desampara a fortuna, te inspirou o valer-nos, amada filha, meu único remédio, e alento da minha esperança.

A estas palavras, com que se explicava a alegria de Delmetra, aportando nos braços a bela filha, que reparava em que o desacordo, e alvoroço da mãe, quase faziam conhecer aos circunstantes o seu fingimento: Consolai-vos, senhora, (lhe disse) que aqui está o vosso querido filho Belino, já não há causa para os delírios; eu sou o mesmo, que sempre vos assistirá, enquanto o permitirem os Deuses: descansai para podermos continuar a buscar a desejada pátria, porque a constância no empreender é costumada a obrar prodígios; mas se acaso vos determinardes a desprezar a pouca distância, que nos convida, aqui podermos passar os últimos dias, gozando amável sossego destes desertos; e suposto que conheço ser aqui a paz mais permanente, desejara também que não perdêssemos o fruto de tão agigantados trabalhos, que tanto tem adiantado a nossa esperança. Não sei, filho, (lhe respondeu Delmetra) se castigam os Céus a nossa porfia, pois vemos que com desventuras atalham os nossos passos. Antes com infortúnios (lhe disse Belino) costumam experimentar os mortais para os fazerem dignos de felicidades. Como fostes quem agora me deu vida, (disse Delmetra) e estou para daquela, que em mim tiveste, governa os meus passos, que eu seguirei o que te for inspirado. Os montanheses ouviam admirados, estes discursos, e Albênio mudamente observava as bem ajustadas palavras da mãe, e do filho, e quanto se fazia amar o agradável semblante de Belino; e desejando não deixar a sua companhia, lhe disse: já que vos tenho acompanhado estes dias, e também vos devo a vida, sou obrigado a caminhar, e seguir os vossos passos. Não queirais (lhe respondeu Belino) participar de nossas desgraças; os nossos passos vai sempre contando o fado, e não será justo que também tome parte nos vossos eu sou o que devo confessar-vos toda a consolação, que aqui tenho, pois me tirou a vossa companhia das mãos da exasperação; e para vos ser agradecido, não consentirei que nos acompanheis, para não tomar parte nas nossas infelicidades. Não temo (lhe respondeu Albênio) os rigores da sorte mais adversa, porque dos maiores já eu tenho larga experiência, e me recolho para um país, que não é daqui distante; e quando chegar ao lugar, que seja oposto ao vosso caminho, serei obrigado a deixar-vos. Não poderemos fazer caminho continuado, (lhe disse Delmetra) nem talvez próprio para os vossos intentos, porque nos havemos de demorar, onde nos convidar a soledade com as sombras para o descanso; e não só vamos fugindo à desgraça, que nos segue, mas também como delinqüentes nos retiramos dos que nos buscam; este segredo vos confia a minha agradecida vontade, pois nos convém não levar mais companhia, ou rumo, que o que o nos permitirem as estrelas; mas sempre levaremos na memória a bondade, com que nos quereis acompanhar. A estas palavras cedeu Albênio, despersuadido de que o admitissem na sua companhia, e no dia seguinte se despediram, continuando Delmetra, e Belino e a sua trabalhosa jornada.

Em poucos dias chegaram a uma grande povoação; e ignorando onde estavam, lembrados do que lhes havia sucedido em Esparta, se houveram com a maior cautela; mas não bastou todo o cuidado para evitar o que lhes falta de padecer. Junto às muralhas descansavam, e não passando dali, entendiam livrarem-se das gentes; mas como havia grande cuidado, e cautela em averiguar quem entrava naquela Cidade, chegaram duas sentinelas para reconhecê-los; e julgando ser Belino desertor, o levaram logo a prisão, em que ficou para descobrir que eram; donde vinham, e que queriam. Delmetra com lágrimas dizia estavam descansando, e que lhe soltassem Belino para poder continuar a viajar, sem fazer ali demora; e como se não moviam a tão justas súplicas, lhe disse Belino: Vós me haveis reduzido a esta prisão injustamente, pois não advertis que aos que vão correndo o Mundo, não deveis castigar, porque ignoram os vossos costumes, e por isso nós descansávamos àquela sombra sem malícia; eu sou filho de Delmetra, vimos de um país amigo vosso; e se ainda assim nos querei maltratar, é mais abominável a vossa porfia, e sem razão, que insuportável a nossa desgraça, e trabalhos. Onde nos levareis, que os justos Deuses não vejam a nossa inocência? Onde iremos, que com justa causa nos não possamos queixar da vossa iniqüidade? Nós não prosseguimos a nossa peregrinação, mas vós caminhais para os castigos, que esperam as injustiças. A estas palavras enfurecidos, tratando-o muito mal, o deixaram na prisão, onde mais sentia o susto de Delmetra, que o próprio incômodo; ainda que tinha por um novo gênero de tormento o estar entre um ajuntamento de malfeitores, dos quais eram as ações, e palavras indícios de suas depravadas vidas; pelo que chegou a temer que conhecessem o seu disfarce; e reduzida a uma pena consternação, se resolveu a dizer ao Ministro Arnézio: Bem quisera eu, senhor, conservar um segredo, que me tem defendido da maldade dos homens; porém vejo-me precisada a estar com estes, que não temem a justiça, não amam os Deuses, nem respeitam o Soberano, já perderam os bens, e não desejam a vida; e como da companhia dos maus se faz contagiosa a maldade, receio demorar-me aqui; e assim sabei que eu nasci a que não pareço, que um naufrágio me trouxe aqui, e que a mulher, com quem fui achada, é minha triste mãe, que ali descansávamos, para no dia seguinte continuarmos a nossa jornada; assim vos peço, que se quereis demorar-me na prisão, me tireis da companhia destes, a quem temo imitar, ainda que seja mais escura, e estreita outra qualquer, para onde me mandeis. Como é tão nova (lhe respondeu Arnézio) a idéia, com que me intentas persuadir, não devo admitir a tua súplica. Vede, senhor, (respondeu Belino) que não pretendo escusar-me às averiguações do fim, que nos trouxe, pois só me aflige, que se me faça preciso ouvir a especulação de toda a casta de maldade entre rebeldes, e malfeitores. Já Arnézio voltava, fazendo pouco caso, quando Belino com mais resolução: Ouvi-me, senhor (lhe disse), e me valha a vossa compaixão: Eu sou uma mulher desgraçada, que me vali de vestido impróprio para viajar com menos perigo; não permitiam os Deuses, que vós reveleis a pessoa alguma este segredo, nem me deixeis entre culpados e perversos: ampare a vossa compaixão os meus bens nascidos sentimentos, e se vos inspire o meu resguardo, e a minha liberdade para consolação de quem mais aflita me espera. Arnézio ouvindo tão ajustadas reflexões, lhe disse passaria para sua casa (o que logo se executou), onde seria assistida com o preciso, em quanto se não determinava a sua soltura. Delmetra foi em seu seguimento, e ficou inseparável da porta daquela casa para onde a recolheram. Arnézio, que só sabia que o gentil Belino era a belíssima Hemirena, (ainda que ignorava este nome, e mais prerrogativas dele) persuadido de uma violenta paixão, uma tarde, em que já a vontade perdida de vista o entendimento: Adorada Senhora, (lhe disse) eu sacrifício à tua beleza o domínio de meu alvedrio, e serei com grande excesso satisfeito, se me não negares a tua benigna atenção. Belino com severidade, e arrogância lhe respondeu: Os vossos sacrifícios jamais serão bem aceitos, nem podereis desculpar para com os Céus o haver assim abusado do segredo, que vos confiei, não como a homem frágil, mas sim como a quem só deve empregar-se em incensar os altares da Justiça; não vos demoreis em ver-me, porque me será menos violento o viver com os maus, que estão em caminho de pagar a sua culpa conhecida, que com os que fingindo retidão, os reveste a hipocrisia. A estas palavras se apartou dali Arnézio triste, e confuso; no dia seguinte, ainda que lhe não fez mais confissões do seu néscio rendimento, para fugir daquele perigo, se lançou Belino de uma janela com tanta felicidade que sem receber moléstia alguma, encontrando-se logo com Delmetra, (que era inseparável daquelas paredes) prodigiosamente saíram da Cidade; e continuando a caminhar com cautela, e cuidado, davam graças a Minerva, a quem atribuíam aquele admirável sucesso.

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Continuando Climinéia, e Hemirena a caminhar ainda como Delmetra, e Belino, conforme costumavam, se recolheram a um bosque, onde acharam a Diófanes, que se lhes deu a conhecer, e com inexplicável alegria continuaram a viajar juntos; e estando para concluírem as suas jornadas, se encontraram com Arnesto, que fazendo completo aquele gosto, foram todos para Tebas. Os tebanos com infinito prazer festejaram os seus soberanos, e Arnesto se recolheu para Delos com sua consorte Hemirena, que com iguais demonstrações de afeto, e contentamento foi recebida, e principiaram nos descansos a colher os frutos de tão agigantados trabalhos.}}

Tendo caminhado Belino, e Delmetra com o vagar, que requeria declinação de forças, que lhe faziam sentir os anos, e trabalhos, pois ou já violento o espírito o animava, ou as destruídas forças não a deixavam andar mais, que muito poucas horas do dia, uma tarde se recolheram a um delicioso bosque, onde determinavam demorar-se, vendo-o agradável, e solitário. Sentadas junto a uma fonte, que docemente corria, recordavam seus passados infortúnios; depois de noite sentiram um rumor, como que da espessura saía uma grande gera; ouviram uma voz suave que cantava os louvores de Ceres, e Pomona, que fertilizam a terra; as glórias de Astréia, que sustentara a justiça; a origem de Minerva, que com sua sabedoria vinha a instruir os mortais; os cultos de Diana, que castigou a Acteon; e os horrores do Reino de Plutão; e querendo fugir de um vulto, que vinha buscando a fonte, foram sentidas, e lhes disse aquela fantasma com voz alta, e rouca: Quem sois, que a esta hora vos atreveis, a entrar na minha morada sombria? Não se animaram a responder-lhe, porque de medo quase perdiam os sentidos, pois entre as sombras o mais que podiam ver era um vulto preto, que lhes parecia ser de espantosa estatura, e que em uma das mãos trazia um curvo cajado; depois de um pequeno intervalo, continuou em cantar os sustos de Galatéia, que desdenhava a Polifemo; a desgraçada morte de Pocris, a quem Zéfalo tirou a vida, e os receios de Siques, tendo em seus braços Cupido, e finalmente invocava a poder de Júpiter, queixando-se dos homens; assim chegou à fonte, e encostando-se a uma pedra, adormeceu.

Quando o princípio do dia desterrava os horrores da noite, viram (daquela distância para onde se retiraram) um homem todo coberto de peles de ursos, menos os braços, que tinha nus, crespa, e branca a barba, e de aspecto venerando: muito devagar chegaram a vê-lo; e quando observavam a muita semelhança, que tinha com Antionor, despertou, e assustando-as com o repente de se erguer, não as deixou fugir; e fazendo um pequeno reparo em Delmetra, lhe disse: Esposa amada, que favorável acaso te conduziu aos meus braços? Graças a Júpiter soberano, que chego a ver-te sem as prisões, que me obrigavam a negar-me ao teu conhecimento. Delmetra emudecida de gosto ficou por alguns minutos, sem que a sua alegria se explicasse, e só com demonstrações de imenso prazer se saudavam os amantes consortes, até que Belino, lançando-se aos pés de Antionor, ou Diófanes: Aqui tens, Senhor, (lhe disse) a tua filha infeliz, que os Deuses compassivos, depois de tão repetidos trabalhos, encaminharam impensadamente à tua presença. Diófanes tão gostoso, como admirado, advertindo ser Hemirena o chamado Belino, parecia que em seu peito não cabia prazer tão desmedido; e olhando para a consorte, e para a filha, mostrava não dar crédito à grande consolação, que estava recebendo. Depois de dar graças aos Céus, por tão especial benefício, disse a Hemirena, lhe contasse os sucessos de sua peregrinação. Ao que respondeu até o tempo, que na gruta fez liga com Climinéia ignorando os vínculos da natureza. Climinéia lhe disse desejava muito saber, como se tinha livrado da morte? Já sabeis (lhe respondeu Diófanes) os trabalhos, que padeci por acudir ao bem público, e boa administração da justiça. Também não ignorais quais sejam os inconvenientes, que se seguem a ser o Rei frouxo, e de ânimo inconstante; os Deuses me livraram da morte por uma guarda, que afetando compaixão, me pôs em liberdade, jurando-lhe eu pelas frias águas da Estígia não ser visto, e guardar sempre o segredo, de como tivera liberdade naquele Reino. Passando às vizinhanças daqueles domínios, uma fresca madrugada, querendo refrigerar os ardentes efeitos do cansaço, cheguei a uma fonte, e juntamente uns serranos, que falando em mim, sem me haverem nunca visto, me contaram a minha mesma história; tendo eu levado impresso na memória aquele, que me livrara com tão rara compaixão, cheguei a conhecer que tudo foram máquinas da maldade, para se não averiguarem as falsidades, com que me queriam tirar a vida; e como agora já nos favorecem tanto os altos Deuses, parece que com este mimo querem mostrar-nos, que se aplacou a sua indignação.

Assim continuou Diófanes os mais dias, que tomaram para o descanso, pois com a sua agradável conversação divertia a consorte, e filha, por quem tanto havia suspirado, e as fazia ouvir os deliciosos frutos dos bons documentos, e gozar com alegria o mimo das flores: entoavam suavemente as três vozes os louvores da primeira causa de todas as coisas. Climinéia lhe contou os trabalhos, de que fora perseguida no largo tempo da sua ausência, dizendo: já em Corinto ouviste meus estranhos infortúnios, e agora direi, como depois de Hemirena me persuadir a deixar as brenhas, fiamos as vidas à rústica sinceridade, e ficamos em uma aldeia, servindo a uma serrana, que me encarregou o cuidar de sua mãe velha paralítica, e a Hemirena os seus rebanhos. Ali recordamos quanta semelhança tem com os bem aventurados campos do descanso o saudável retiro das montanhas; a maior parte daqueles rústicos viviam de seus gados, e colheitas, e eram de gênios dóceis, compassivos, livres de malícia, e naturalmente alegres; as mulheres tinham amável sinceridade, eram honestas, e cuidadosas. A proporção do conhecimento, que, iam tendo de nossos gênios, crescia o afeto, e respeito, com que nos tratavam, e em nós a compaixão de sua mal empregada rusticidade, porque, desejavam acertar, e não era invencível a sua ignorância; as horas, que são destinadas para o descanso em alguma parte do dia vinham buscar-me para uma sombra perto da minha assistência, onde as Pastoras cantavam as mais inocentes canções, e os Pastores alegremente prosseguiam em tocar os seus rústicos instrumentos entre as flores, e fragrâncias, que difundem a primavera, assim me lisonjeavam, para que os instruísse no conhecimento do quanto é feliz a vida rústica; uns discorriam sobre o Favônio agradável à vida humana; outros com termos próprios, e inocentes figuravam as fadigas, de quando a terra sequiosa espera que o inverno a satisfaça; outros com mais engenho discorriam nos frutos, com que o outono enxuga o suor dos lavradores; e outros com mais graça se lembravam, de como no inverno se recolhiam molhados, e descansando ao fogo, cantavam em desafio; assim se regozijavam com o gosto do que é mais admirável nas obras da natureza. Eu instruía as donzelas a contemplarem na modéstia, e recato, dizendo ser nelas tão igual a glória da sisudeza, quanto prejudicial, e desprezável qualquer descuido; às outras advertia, que a mulher, que mais estimação merece, é a que menos faladora se ostenta; porque os mesmos, que celebram as graças, e desembaraço, as murmuram de chacorreiras; e que é tão delicada a nossa gravidade, que não só devemos conservá-la nas obras, e em não falar o indecente, mas em não admitir a conversação do ilícito. Acabado este melhor divertimento, iam continuar o seu trabalho, e eu me recolhia a ver minha enferma. Hemirena na fresca madrugada saía com seus rebanhos, e cantando suavemente, louvava a sabedoria ditosa, que interrompeu a glória dos delitos, as virtudes dos heróis, e a sublime grandeza dos Deuses; acudiam a ouví-la as pastoras, que também cantavam com agradável singeleza, e as instruía para entenderem as poesias heróicas, em que se exercitava.

A bela Atília, filha de Leda, a quem servíamos enganada pela gentileza da que supunha ser Belino, lhe comunicou amantes pensamentos, determinaram com ela seus desposórios; e como eu não era sabedora daquele disfarce, Hemirena me comunicou o que se lhe havia dito, dizendo, que recusava a aceitação daquele favor, porque não queria sujeitar a liberdade aos contínuos cuidados do consórcio; e que para se livrar do perigo, a que podia condizí-lo a afto de Atília, seria conveniente fazer um retiro repentino; o que executamos logo aquela noite, deixando o amável sossego, antes que o amor tomasse mais forças.

Com os costumados incômodos de fugitivos fomos até Esparta, onde Hemirena, por entrar em um jardim, foi lavada para servir na campanha dos Corintos, a quem os Espartanos ajudaram antes do sítio (que os fingimentos ainda quando são precisos, não deixam de dar trabalho), daqui por diante sabes o que passamos, até que fomos presos. Eu te não tinha conhecido; e quando Hemirena me disse quem eras, o que ela também não saberia, se lho não dissessem os bárbaros Ministros de Corinto, novamente chorei os nossos infortúnios; e Hemirena conhecendo as maiores razões, que lhes acresciam para valer-me, conseguiu por um escravo a minha liberdade; passamos alguns dias sem descanso, nem alívio, chorando sempre a tua morte; embarcamos com o projeto de buscar-mos a pátria, pois já não tínhamos esperança de que tu nos buscasses; e como por ter estado Hemirena em Atenas era preciso que tivéssemos grande cautela, fazíamos aquele embarque para mais depressa fugirmos aos cuidado, e susto, com que ali devíamos estar; um naufrágio me conduziu a um lugar, onde perdia a esperança do socorro; mas como Hemirena havia escapado, me tirou daquele sítio infausto, onde os esqueletos da morte eram fiéis espelhos da minha pouca vida; continuamos no antigo projeto; e quando temíamos o que em ti se nos representava, e recordávamos os nossos contínuos infortúnios, o conhecer-te parece que acabou de afugentar a desgraça.

Assim acabou Climinéia a sua larga história, e Diófanes determinou com a Hemirena contasse o que lhe tinha sucedido, ao que obedeceu com a graça, e suavidade, com que costumam explicar-se; e muitas vezes os pais com lágrimas de sólido gosto ouviam como a filha se desembaraça de lances apertadíssimos. E acabando a narração de tantos trabalhos, e combates: Os Deuses te defenderam (lhe disse Diófanes) e têm tomado à sua conta a nossa felicidade; eles jamais desampararam aos que sabem glorificar as suas obras. Quem dissera, que esperando eu neste lugar solitário, que a cada instante me chegasse o último trago da morte, me esperava o primeiro prazer da minha vida?

As lágrimas, com que a ternura explicava o seu incomparável júbilo, não davam lugar a continuar com a expressão das palavras: e com a mais elegante frase de um brando coração dizia com os olhos, o que para expressar não chegam a dizer os termos. Depois destes primeiro efeito do gosto, se lembraram de Almeno, que falecerá no combate, e do que haveria discorrido Arnesto sobre a sua desgraça; que não pode haver tão seguro contentamento, que não envolva alguns pesares. Principiavam a caminhar determinados a embarcar, quando chegaram ao porto conheceram ali Albênio, que tinham deixado nas praias do naufrágio; fizeram sociedade aquela noite, em que ele fez as maiores expressões de contentamento a Diófanes, contando-lhe como devera a vida ao que supunha ser Belino, Climinéia, e Hemirena, lembrando-se de seus trabalhos, suspiravam por concluir aquela parte, que lhes faltava para chegarem a Tebas. Albênio, que não podia já encobrir os efeitos da mágoa, deixou cair algumas lágrimas, dizendo: Não seriam tão grandes os vossos trabalhos, não sendo tebanos; eu choro, e poderão corresponder a menor parte dos meus, mas serei contente, se os Deuses se servem do meu sofrimento. Diófanes cheio de curiosidade, que originaram estas palavras, lhes fez diversas perguntas: e vendo que Albênio lhe não respondia a algumas, como o que o oprimia o receio; não temais (lhe disse), ó Albênio vedes, pois sou um desgraçado, que indo a ligar-se com um dos vosso país, fui reduzido a este estado; e como não foi tão forte a pobreza, que pudesse arruinar aquele ânimo, que ainda conservo, se buscais abrigo, eu juro aos Céus amparar-vos, se me restituírem a Tebas. Albênio, mudando inteiramente de semblante, lhe disse: Vós sereis acaso algum dos da comitiva do infeliz Diófanes, que há mais de quinze anos, que foi entregue aos bárbaros? e entendendo-se que fora sepultado nas cavernas do mar os primeiro oito, não fizeram os seus vassalos e confederados mais que chorar a sua desgraçada morte; e depois de se passar todo aquele tempo, havendo indícios de que era vivo (pelo que descobria a sua alta capacidade, sabedoria, e virtudes), se espalharam alguns a buscá-lo. Eu sou (lhe respondeu) o mesmo Diófanes, que depois de tantos anos de letargo, torno a mim, pois já me considero em Tebas, onde há muito poderia estar, se tivera notícia de Climinéia, e Hemirena, que sempre buscava saber, onde as tinha a desventura, para me retirar, e tornar sobre os Argólicos, que mais deveriam fazer entregar, satisfazendo-se como o próprio sangue tão avultadas injúrias. Albênio, dando-lhes os braços, disse: Agora vejo as nossas culpas foram semelhantes na presença dos Deuses, ou estes igualmente nos amam, pois com iguais trabalhos nos purificaram, para que víssemos renascer também aqui igual a nossa esperança de facilidade. Diófanes, que com a maior suspensão ficou admirando o que podiam conter estas palavras, e não conhecendo Arnesto pelo muito, que estava quebrantada a sua gentileza, que também destruíam algumas cicatrizes, deu lugar ao reparo de Albênio, que continuou, dizendo: Como não conheceis o infeliz Arnesto? que depois de haver chorado uma perdida esperança, entendendo (como todos) que a tormenta do infausto dia e vosso embarque vos teria dado no mar a sepultura, sabendo que em Esparta havia quem dava notícias vossas, e que vos acháveis com vossa família em uma cruel servidão, fui consultar o luminoso Deus para sair a buscar-vos, o qual me respondeu, como Júpiter, quando saíste paras Delos, conforme se divulgou: vai, que o silêncio, e a fortaleza te hão de dar a vitória. Ajudando mais esta causa a meus bem nascidos extremos, para oferecer de cada vez mais vivos sacrifícios, embarquei em Atenas encoberto, indo para Esparta; como os que a impulsos de seu amor desprezaram as vidas, deixaram as pátrias, e abandonaram Impérios: cheguei a Esparta, onde gemiam os povos oprimidos com uma cruel fome, e peste. Achava-se aquele porto guarnecido de gente, que indo logo às embarcações, alistavam a todos os que vinham por seus nomes, e pátrias; quando foram à minha, perguntaram, donde eu era o Antreo, meu especial confidente, que lhes disse era Cretense; e principiando a desgraça a tomar-me os passos com fatalidades, apenas o ouviram, trataram de meu desembarque, e me levaram a Palácio com festivas demonstrações, acompanhado de sonoros instrumentos, e inumerável povo, que cheio de alegria se regozijava, dizendo que estavam acabadas as suas opressões, pois dissera o oráculo, que a fome, e peste se aplacaria com o sangue dos que tinham levado a peste, e que este enigma acusava três Cretenses. Neste cruel conflito invocava eu continuamente os Deuses, para que me inspirassem o salvar a vida. Cheguei à presença da Majestade, que com agradável soberania que disse:

Gentil Cretense, a quem os Céus haviam destinado para salvar ao meu povo, os do teu país trouxeram peste a Esparta; e tendo amanhã sacrificado, nos deixarás saúde, fazendo caminho para os Eliseos bem aventurados, pois foste aqui mandado para vítima de tão importante sacrifício. Não se verificam em mim, Senhor, (lhe disse) os Cretenses, que esperáveis, pois conforme o que dizeis devem ser três. Os Deuses (me respondeu) costumam servir-se de que os mortais dêem princípios a abrandar a sua ira; e como há dias, que observamos que os Céus com auspícios felizes anunciam o nosso remédio, não venha a covardia a disputar-te o merecimento. Vede, soberano Senhor, (lhe repliquei) que os Deuses não só se não servem deste sacrifício, mas com ele será mais crescida a sua indignação, pois são obrigados a defender-me; e que não basta que um astro me esteja prognosticando a morte, e que outros muitos me vejam com igual aspecto, se ao mesmo ponto as Estrelas desconhecidas com opostas influências destroem os que à morte me conduzem. Qual seria a glória de grande Tebas, se não nascera um Epaminondas, que soube melhor livrar de opressões ao seu povo; e se acaso determinais que se execute essa crueldade, vos juro pelos Deuses benignos, que se há de conjurar contra vós os Céus, e virão sobre vós os raios, que forjou Vulcano, para que vejais que o meu sangue não só não aplaca, mas aumenta a sua ira. Estas palavras ouviu o Rei, como que lhe faziam impressão, e mandou aos guardas, que me recolhessem: toda a noite se ouviram vozes acompanhadas de suaves instrumentos. No dia seguinte me foram revestidos para aquele ato, e me levaram para o Templo de Júpiter, onde já se achava inumerável povo, e o Sacerdote venerando, que devia fazer o sacrifício. Em chegando o soberano, não pôde Antreo, suporta aquela violenta dor, a que excita a verdadeira amizade, e lhe disse: Não permitam os Céus, que a minha culpa entregue à morte a Albênio. Eu fui, Senhor, o que disse, que ele era Cretense, eu por ele me ofereço ao sacrifício, não só amigo, como Teseo, mas por ter faltado à verdade, conhecendo ser a minha vida tão inútil, quanto a sua precisa; e assim juro na presença se Júpiter soberano que não é Cretense, como eu disse. Mandou-me perguntar, quem eu na realidade era, donde vinha, e se haveriam ali testemunhas da minha verdade. Ao que respondi em alta voz: Sacro Nume, vós que sabeis que não sou Cretense, que é preciso que eu gire o Mundo em baixa fortuna, sem delito algum, que me acuse, de que não devo descobrir quem sou, que decência soberana me ensinar a calar, a não temer à morte, e a sofrer contratempos, acudi pela verdade, pois sois a melhor testemunha do que sinto, e do que digo. Todo o povo principiando a inquietar-se fazia um tal rumor, que muito me afligia: o Rei, e o Sacerdote estavam suspensos, não sabendo resolver-se. Pouco a pouco foi o Céu cobrindo-se de feias nuvens, que parecendo determinavam acabar o dia, com infinitos relâmpagos, e raios ameaçavam aqueles tiranos. Vendo eu que os Céus se dispunham a favorecer-me, disse: Povo obstinado, como não temeis as vozes dos Céus, que repreendem o que determina executar em mim a vossa inqüidade? Eu não sou Cretense: mas se quereis tirar-me a vida, acabai com meu tormento, pois tenho menos que temer na morte, que vós nos novos castigos, que sentireis. A estas palavras respondeu o Céu com um raio, o qual caindo pouco distante do Templo com as ruínas, feriu três homens, que banhados em sangue, recolheram a ele, porque com balbuciantes vozes pediam que os levassem ao Sacerdote. Sacro Ministro, (disse um dos três moribundos) aqui como nos negávamos a este ato de piedade, principiaram os Céus a executá-lo. Oh povo feliz! que os Deuses se empenham pela tua tranqüilidade!

Assim rendeu aquele os alentos, tendo já acabado os outros, que ali chegaram com poucos vestígios de vida. E inexplicável a admiração, com que todos estavam em caso tão novo, que lhes acendia a curiosidade de indagar quem eu era. Com festivas demonstrações me levaram outra vez a Palácio, onde fiquei, e uns me veneravam, e outros me contemplavam. No dia seguinte me disse o Rei: E tempo, amigo, de me confiares quem és. Eu sou obrigado a favorecer os teus desígnios, e quero conservar a tua amizade, pois vejo que os Deuses te ouvem, e os Céus te defendem. Sou obrigado, senhor, (lhe respondi) a não revelar o segredo, que me tirou do meu país, e espero que não duvideis da pesada obrigação, que mo recomenda. Deixou a empresa, e com demonstrações iguais me tratou o mês, que ali me demorei.

As gentes respiravam já aliviadas, e me reverenciavam, tendo as minhas reflexões por predições infalíveis. Quando vi que já não existia ali quem desse notícias vossas, me ausentei, embarcando para Argos; e era tal a impaciência, com que vos buscava, que em cada minuto me parecia ver extinto o sofrimento, que há esperanças, as quais nas dilações falsamente chamam enganosas. Assim fui sem temer opostas contradições, como o Ateniense Codro rompia esquadrões contrários, buscando a morte; lembrava-me que não sem mistério o meu Nune consentira, que me ausentasse da pátria, pois que as plantas se fazem admiráveis transplantadas; e recordando a sua resposta, que me recomendava o silêncio, e fortaleza, que se figura na pesada coluna, que nos sanguinolentos assédios; antes que se largue, se perde a vida, saí com as mais constante resolução. No segundo dia de viagem uma densíssima névoa nos ocultou o rumo, e depois de alguns dias de contínuo susto deu a embarcação sobre a areia, pois não houveram forças, diligências, ou clamores ao Céu, que nos livrassem daquele perigo, de que só escaparam cinco pessoas. Quando vi que dos criados, que me acompanhavam, só existiam Antreo, e Arcidas, lamentava com a maior mágoa ter sido eu a causa de sua desgraçada morte, e que talvez que os Deuses já se ofenderiam de meus amantes excessos. Quisemos ver onde estávamos, e nos achamos em uma terra montuosa, de que não tínhamos conhecimento; fomos entrando por seu espesso arvoredo, e topamos com gente agreste, e tão inculta, que se sustentavam de caça, e frutos silvestres; abrigavam-se em mal armadas choupanas, e viviam em contínua guerra entre si; os primeiros chegaram com fúria a nós, perguntando quem nos dera licença para irmos ali. E como a sua rusticidade entendia melhor, lhes disse, que tivessem compaixão de nossa desgraça, pois havíamos naufragado, e buscávamos remédio à fome, que nos maltratava. Ao que responderam, que quem ali entrava, ou jurava viver com eles, ou logo se lhe dava morte, pois não queriam que sabendo-se de sua livre habilitação, fosse algum Rei avaro inquietar a sua liberdade, a qual não estavam em estado de defender; eu lhes segurei que viveríamos com eles, ao que me obrigou a falta de armas, e de mais alguma gente. Sem consolação chorávamos o nosso desterro, pois não víamos meio algum, que nos desse liberdade, e com ardentes suspiros me magoava da belíssima Hemirena, vendo castigados os delítos de buscá-la, não sabendo merecê-la; assim passava sem esperar mais alívio, que a morte. A preguiça daquela gente era incomparável; e como a da ociosidade não só se geram os vícios, mas se alimentam moléstias cogitações, Arsidas, e Antreo se ocupavam em tirar a lã de algumas peles, de que eram ali quase todos os vestidos; e os outros, conforme puderam, a ensinaram a fiar às mulheres: eu me aplicava em tristes poesias, e curiosas experiências das plantas, águas, e frutos, que faziamos recolher em estado de servirem de alimento, quando pelo rigor do tempo costumava padecer aquela agreste gente. O trigo, que só recolhiam do que no ano antecedente caía pela terra, guardávamos; e semeando-o no seguinte, a fertilidade o tornava com tanta abundância, que o repartíamos com os vizinhos, que também assim aprendiam. Desta sorte fomos fazendo vida com os pesares, e conciliando tão suavemente aqueles ânimos, que no segundo ano de sua tristíssima companhia já me ouviam com respeito, e me buscavam para tirar as dúvidas, que sempre tinham entre si; e como eu lhes ia fazendo saber quanto é importante a sujeição da gente, que é doméstica pela razão, se foram persuadido de ser mais conveniente sujeitar a uma cabeça, que ponha as outras sem ordem, que terem todas a maior desordem na mesma liberdade absoluta.

Já as mulheres fiavam, e teciam, e tinham gosto de se ocuparem em úteis curiosidades, aborrecendo a antiga ociosidade. Nestes melhores produtos da minha desgraça tinha eu por certo não teriam fim os meus suspiros; e ainda que ali muito me amavam, não havia dia algum, em que eu não procurasse mover a compaixão dos Céus, que viam meus internos sentimentos. Conhecendo aqueles bárbaros os danos da sua liberdade, me buscaram uma noite, e todos ao mesmo tempo queriam dizer-me, que me queriam obedecer, pois me escolhiam para seu Rei; eu lhes resisti a tão pesada incumbência, porque sabia quais eram os seus inconvenientes, e lhes disse: Já que assim vos ofereceis à sujeição, amando tanto a liberdade, não é razão que sejas por mim enganados, pois é certo que só o engano costuma trocar a seu gosto a ordem de todo o evento, a série da idade, e os nomes dos heróis: se entendeis ser este o maior obséquio, com que me agradeceis o ensinar-vos a viver, sabei que se não modera o rigor da contrária fortuna para com aquele, que vive exposto a seus furores, se não ordena essa esfera luminosa, que eu experimento inimiga, sendo obrigado a sofrê-la; e que o motivo cruel das paixões, que fizeram assento em meu desgraçado peito, é e será sempre o único objeto de meu emprego, e que a tormenta de violentos afetos é só o que pode agitar meus tristes espíritos, que para todo o mais exercício estão enfraquecidos. Para se efetuaram vossos justos intentos, careceis de eleger entre vós um sujeito de espírito ilustre, que não sustente o orgulho da soberba, que despreze os iracundos; não alimente as chamas do amor nocivo, que aborreça a vingança; que tema os Deuses, e seja capaz de sustentar a justiça, e amar a clemência, aconselhando pela indústria, que costuma emendar, desprezando os erros, e louvando os acertos; que assim como é objeto das Musas no louvor dos merecimentos convidar a merecê-lo, também há culpas, que de intentar pela violência a sua emenda sucede que em lugar desta se acham maiores ruínas. A virtude costuma ensinar agradavelmente, pois é instrumento oportuno para separar o verdadeiro do falso; e fazendo-se árbitra dos corações, empenha os afetos a obedecer docemente, e assim pelo melhor caminho encaminha, para que o bom não se oprima, nem o indigno se exalte; e levando a habitar com os Numes, a quem dá forças a favor dos costumes ajustados para triunfarem da maldade, o faz que a fortuna ampare aos que não são dominados pelo ócio; pois não pode haver sagrado, que resguarde, a quem a malícia dos ociosos não corrompa: eu conheço que errais no conceito, que formais de mim; e ainda que do louvor injusto alguma vez nasce a mais vigorosa virtude, porque excita a merecê-lo, sempre o deve temer a cautela; porque é tão venenosa a lisonja, que com seu doce encanto penetra os corações, tirando-lhe o conhecimento do muito, que é conveniente o aborrecê-la, e com extraordinária atividade se faz ofensa, que agrada, e engano, que alegra ainda aos mesmos, que o conhecem.

Se quereis viver em paz, ter forças, engenho, fama, e respeito, pedi a Astréia, que vos inspire o que deveis eleger, não vos deixando ao arbítrio da fortuna, que iníqüa, e desigualmente costuma repartir, ainda que também seria danosa a igualdade entre as gentes; porque o que entendemos ser a origem do ódio, e inveja, é o que quase sempre mais fortemente nos liga; porque o muito, que uns dependem dos outros, faz que seja necessidade o nosso afeto, pois carece o forte do sábio, para que o ajude; o sábio do forte, para que o defenda; o pobre do rico, para que o sustente; e este do pobre, para que o sirva; e do que parece interesse nasce a união, porque os créditos, a fé, a paz, e amizade de tais princípios se gerem; e assim como os elementos são entre si diferentes, também somos entre nós discordes; mas desta mesma diversidade se deriva a concorde harmonia, que com a eterna lei da razão nos conserva, e rege, não obstante o fazer-nos a desigualdade réus, loucos, e infelizes; réus, porque o alheio desejamos; loucos, porque entendemos merecer mais do que possuímos; e infelizes, porque não amamos a verdade, e nas adversidades acusamos a natureza, e o Mundo, porque aos nossos danos se conjuram; o que nasce de nos persuadir o amor próprio, a que nos são dívidas as prosperidades; mas este amor, que é assim indiscreto, seguindo o rumo da razão, é a fonte mais limpa de honestos desejos, pois quem a si não ama, a quem poderá amar? Do próprio amor bem ordenado nasce aquele afeto, que propaga tanto, que passa à prole, à pátria, à amizade, e aos conjuntos, o qual em seus motos se alarga; como quando na água se lança a pedra; formando um círculo, outros muitos se lhe seguem; que ainda que o primeiro seja o maior, sempre é tão igualmente nobre, que adorna o espírito; e quanto mais se alarga, tanto é no racional mais próprio. O ódio, a ria, a inveja, e outros afetos são os que nos fazem perversos, e de que nascem as desordens, que nos escondem o mais seguro porto, profanado o tribunal de Astréia, a escola de Minerva, e a palestra de Marte, mas assim como estes afetos com a soltura nos condenam, seguindo-se o rumo da razão, tudo é tranqüilidade, e mais esplendores da virtude, não sendo assim impossível que o homem viva contente da sua sorte, porque aos excessos opostos sabe conservar em paz, e ensinando a tolerar desigualdades, dilata os ânimos, ordena o amor, mostra o semblante da mentira; a maligna inveja, que com a compaixão quer esconder-se, a covardia, a que chamam prudência, a vingança tida por zelo de honra, e o ardil temerário, que como valor se aplaude, pois não há forças para separar os vícios da virtude, se não levam as luzes da razão, que sabem mostrar os danos, corrigir os blasfemos, amparar inocentes, castigar atrevidos, pagar bem a quem serve, defender a verdade, e guardar fé aos amigos. Esta insígne mestra de acertos tanto me assiste, como a vós, para elegerdes outro, que faça estudo de muito bem vos governar. Pois que mais vos pode enganar a pouca experiência, que de mim tendes, que a dos que nasceram dos que entre vós morreram.

Os que por geração, ou doutrinas descendem de Catão em Atenas, de Licurgo em Lacedemônia, e de Agesilau em Licaônia, são privilegiados não só pelo que merecem os vivos, como pelo que obraram os seus, que já são mortos, porque as suas gloriosas memórias são vivos despertadores, que os excitam às heroicidades; e ainda que o blazonar do que obraram os próprios antigos seja vaidade, e das próprias façanhas loucura, o blazonar destas é sofrível, e das outras só tem lugar, se servem de estímulo para os acertos, renascendo os novos créditos dos antigos; porque o trazer sempre à memória o descender de bons, e ser mau, é infâmia, e maior glória o ser bom, havendo herdado as virtudes; assim com os que têm ânimo para não fugir, generosidade para dar, moderação no falar, e clemência para perdoar são os que se habilitam para dignamente subirem ao trono, dos quais deveis procurar em entre os vossos nacionais para vos reger, porque são grandes, e algumas vezes irreparáveis os danos que se seguem de ser o Soberano estrangeiro: buscai quem seja capaz de conceder grandes pensamentos, e tenha constância para os pôr em execução. Dizeis que minha sabedoria é só capaz de governar-vos, a isto como um sábio vos respondo, que não sei cousa mais certa, que saber que pouco sei. E certo que os que na verdade são sábios, costumam atrair a veneração das gentes; porque sempre neles resplandecem as luzes, que por virtude de suas obras não pode apagar a morte; pelo que é tão lamentável nos sábios, como a vida nos néscios, o que nos ensinou Demóstenes, quando o tirano lhe perguntou, por que chorava a morte do Filósofo? sendo-lhe impróprio o chorar. Ai que lhe respondeu: Não choro que de Atenas mais choramos a vida doa maus, que a morte dos bons.

Vós venerais em mim as ciências, que não tenho, e as virtudes, que não exercito, quando é tão arriscada esta aparência, quando seguro tê-las, sem que pareça. Os homens naturalmente são mudáveis nos desejos, vários nos pensamentos, inconstantes nos propósitos, e nos fins indeterminados; pelo que sendo fácil entendê-los, é difícil o conhecê-los; e os que correm Mundo, lamentando descuidos de sua fortuna, se vivem de si descontentes, como poderão ser constantes em contentar os estranhos, pois não suspiram mais, que serem restituídos com honra ao seu país; porque a fortuna é mais cruel com aquele, que não deixa gozar o que tem, que com o que não tem que lhe pede: mereça-vos enfim a compaixão de um desgraçado, que o não façais reduzir aos erros, que costumam introduzir-se nas Cortes, onde as notícias ordinariamente são falsas, as amizades fingidas, sem termo as vaidades, as esperanças enganadoras, e as invejas contínuas; os que mais se visitam, pior se tratam; os que melhor se falam, pior se querem; buscam-se os que fogem, e menos que se paga a quem melhor serve; mas não obstante estes erros da Corte, são maiores os que devem obrigar-vos a buscar quem vos governe; porque não há superior, não há lei, sem esta não há justiça; se não há justiça, não há paz; e onde não há paz, tudo é guerra, e desordem: a autoridade, o poder, e a grandeza do Soberano é a escola de bons exercícios, e é centro de vícios o lugar, que é sem senhor. Não entendeis que eu me escuso à pesada carga de cuidados, desvelos, e mais trabalhos da Majestade, pois sei que não devo voltar a cara aos perigos; e desconhecendo o medo, sempre me lisonjeio dos que fazem maior vulto, e sei que não é alvo dos empregos do magnânimo o buscar aplausos às suas heroicidades, porque para os acertos só busca o ponto de cumprir com o que deve, cuidando mais em merecer, que conseguir louvores, assim com o não viu Aquiles o luzido trono, porque só atendia as suas conquistas.

Com estas, e outras escusas, e reflexões passamos toda a noite; e fazendo repetidas instâncias à minha renitência, se foram desconsolados, deixando-me ainda mais para temer novas prisões da minha tristíssima vida; mas foi inútil toda a minha repugnância, porque muitos dias, noites em disforme alarido procuravam persuadir-me, dizendo que o estranho sucesso de meu naufrágio lhes advertia, que os Céus me mandavam para os governar, e que eu havia de amparar seus desejos, pois lhe insinuara os admiráveis efeitos da sujeição. Com estas, e muitas outras mais razões me obrigaram a dizer-lhes, que lhes faria leis, a que obedecessem, e conforme elas tomariam seu acordo. Com grande alegria aceitaram este princípio do meu tácito consentimento; conforme pude, e me ocorreu, as escrevi; e quando se ajuntaram a ouví-las, com incrível consolação se me lançavam aos pés. Passados os dias, que lhes disse tomassem para se consultarem, vieram buscar-me para o pequeno palácio, que lhes ensinaram a fazer os meus, e outros, que (como nós) desgraçadamente ali se achavam. Com muitas demonstrações festivas me levaram primeiro ao seu oráculo, que era dedicado a Nemesis, e com seus rústicos instrumentos me ofereceram aquela deidade, e lhe sacrificaram cândidas vítimas; em Palácio me esperavam as mulheres, e filhos menores com repetidos vivas, e a proporção do afeto, e respeito, que me tinham crescia a minha obrigação e se aumentava a dor, com que nem lembrava, quanto eram diversos os fins, para que eu encaminhara os meus primeiros passos, e com lágrimas, que eles julgavam expressivas de ternura, exalava pelos olhos a mais viva saudade naqueles produtos de uma perdida esperança.

Assim tomei aquele encargo, a que não pude escusar-me, com a condição de que em os governando quatro anos para os pôr em ordem, largaria o governo a quem eles elegessem; e que acabando o subseqüente, me deixariam retirar. São inexplicáveis os admiráveis efeitos da união, pelo que observei no decurso de tão limitado tempo, todos se aplicavam com o maior cuidado aos empregos, que entre eles reparti: fiz que se transportassem a viver juntos a um delicioso porto de mar; e principiando a chegarem ali embarcações, os enriqueceram de artífices, levando os deliciosos frutos do mar, que a terra fértil lhes dava agradecida à cultura, que principiava a experimentar. Passo por muitas, e admiráveis circunstâncias daquele prodigioso tempo, porque não quero que o incompatível gosto de comunicá-lo degenere em incômodo vosso. Diófanes, que com sua amada consorte, e filha ouviam a Arnesto com inexplicável prazer, não lhes parecendo dilatada a narração daqueles sucessos, lhes rogaram continuasse em dizer-lhes, como se tirara de tão suaves prissões, e deixaria o resto de seus trabalhos para o dia seguinte. Passados aqueles anos (continuou), foi eleito Antreo, que sem dúvida tinha as mais próprias qualidades para a dignidade Real; e conforme havíamos ajustado, consentiram no meu retiro tão magoados, como conformes: eu me regozijava de meus trabalhos, vendo-os sociáveis, laboriosos, aplicados, e concordes. Antreo logo despediu os moços mais capazes a girarem o Mundo, uns para aprenderem costumes, e línguas, outros Naútica, outros as Ciências, outros a Milícia, e outros as Artes mecânicas.

Para comerciarem com honra, e felicidade, eu lhes havia introduzido o horror à mentira, ordenando que pela primeira vez, que faltassem à verdade, fossem advertidos; pela segunda privados de a metade dos seus bens, que se aplicariam às despesas das escolas públicas; e pela terceira perderiam tudo para o cofre do comércio, ou companhia, obrigada a defender aquele porto com a proteção Real, sendo proibidos de comerciar e tidos por indígnos de sociedade, e só se lhes permitiria agenciar de que se sustentassem em empregos vis. Naquele breve tempo lhe havia feito principiar Colégios para os distintos, pois sem eles não florescem em ciências as Monarquias; e também escolas para os inferiores, cujas distinções tinham princípio, conforme os talentos, virtudes, aplicação, valor, e fidelidade; e Antreo, seguindo as mesmas máximas, mandou conduzir Mestres dos outros países. Quando me despedi no Templo de Minerva, e no de Apolo, que foram as minhas primeiras empresas, lhes disse com lágrimas, obrigadas às muitas, que derramavam: Sabei, amados vassalos, que não sou ingrato em deixar-vos, pois devo ir honrar o próprio terreno, pelo que é preciso de que de vós me aparte: rogai aos Deuses, que me encaminhem, porque se achar o bem, que busco, vos saberei dizer quem sou; e como o afeto, com que me tendes tratado, fez liga ofensiva, e defensiva com a minha obrigação, tereis sempre, como amigos, a todos os que me seguirem.

Quando os casos forem mais que as leis, e máximas, que vos dei, lembre-vos que são tão limitadas as providências humanas, que ainda que muito discorramos, não se podem prevenir todos os eventos futuros; porque a idéia, que buscamos para estabelecer fortunas, muitas vezes em desgraças se transforma, no caminho da prosperidade se encontram adversidades, de alguns conselhos acertados observamos sucessos repreensíveis; o que trabalhamos pela paz, muitas vezes fomenta a maior guerra, pois só as determinações do Céu são inteiramente perfeitas; e tende diante dos olhos, que se alguma vez erra quem se aconselha; raríssima vez acerta o que só pelo próprio juízo se governa.

Lembrai-vos que os sucessos humanos seguem os passos do tempo, e que este como não é estável não são aqueles seguros, nem duráveis; assim o homem é naturalmente mutável, porque de alegre passa a estar triste, de pacífico a irado, de apetecer uma cousa a amar logo a que lhe é contrária, pois não mudou Proteo tantas vezes de semblante, como em um dia muda ao homem de conceitos. Para cumprirdes com os preceitos de vossas obrigações, tende presente que ao instante de nascer se segue o de acabar; que as delícias são inimigas da virtude; que só um prudente retiro de ocasião pode acautelar erros futuros; que entre os inimigos é mais nobre a generosidade, e fidalga a atenção, como com Dario nos ensinou Alexandre; que os que tomam os encargos da amizade, mostram que não há entre dous amigos mais que um só coração, de que devem fazer próprios os interesses da vida, e honra, pelo que os Cretenses pintam Júpiter com três olhos, querendo simbolizar nele a verdadeira amizade. Porque tendo-os triplicados, e dominando o Céu, a terra, e o mar, significam assim que contra o poder da verdadeira amizade não prevalecem os adversários mais fortes. Lembre-vos também, que nas ações dos pais de famílias não têm desculpa os descuidos, porque nos filhos reverbera a luz do vigilante cuidado, como as do Sol nos mais astros; e é tanto o que das boas doutrinas dependem os bons costumes, que muito mais se alegrou o Macedônio, tendo Aristóteles para instruir o filho, que quando vi nascido Alexandre, porque os documentos aperfeiçoam o ser ao homem, que nasce informe; e para gozardes felicidades no bem, que tanto procuraste, ultimamente vos digo, que de um entendimento obstinado, que faz liga com a vontade sem freio, nascem a inobediência, e a soberba, de que são vapores temeridades, e atrevimentos, que chegam a pôr em contingências, e perigos a glória, e tranqüilidade pública; e já que a sujeição, a que vos oferecestes, vos vai mostrando quais sejam as regalias da nobreza, procurai fabricar estátuas, que sejam por vós outros colocadas nos altares da honra, porque das heroicidades nascem os mais ilustres sujeitos, que como a Alexandre fez Magno o querer imitar a Aquiles, e as vitórias de Milcíades elevaram a Temístocles a tão superior esfera, que lhe puseram a coroa entre os melhores de Atenas; não vos desanime para aspirardes a grandes empresas o não procederdes de preclaras prosápias, que se estes são obrigados a se remontarem, como a Aguia, buscando a luz das mais altas façanhas, em vós serão mais vantajosos os créditos, buscando adiantar-vos em tão acreditadas glórias, sendo que no conceito de Homero são poucos os filhos que imitam as proezas de seus pais.

Com estas, e outras muitas advertências, que conservo, na memória, determinava dar fim à minha despedida: porém Antreo com saudosas demonstrações, lançando-se-me aos pés (não como o que era, sim como o que fora), possuído de veemente paixão, que nos ânimos costuma radicar a união da verdadeira amizade, me disse: Amado Príncipe, já que meu oculto destino de vós me aparta, mitigai a minha dor, confortando-me com as vossas virtudes, e soberanas máximas. Eu o tomei entre meus braços, e reciprocamente banhando-nos em lágrimas, lhe disse: Amigo fiel, resguarda os meus segredos, e em a nossa divisão façamos o maior sacrifício aos Numes, pois aqui nos encaminharam para remédio deste povo, que nos ama, e com docilidade te obedece. Bem sabes que eu sou obrigado a deixar-te por aquela decente causa, que eu espero merecer, peregrinando pelo Mundo à custa de trabalhos, ou oferecer-lhe a vida, qual vítima desgraçada nos altares da constância, pois é a ausência o bloqueio decoroso, que rende a fortaleza de um coração nem nascido; como as chamas tomaram forças em matéria epta, se um assopro antes podia apagá-las, hoje em cada minuto de saudade um suspiro as acende. Quem diria a Príamo, que para reduzir Tróia a infuastas cinzas, bastaria pôr os olhos para admirar a beleza de Helena? E quem advertiria a Dido, que a cortesania de tratar o forasteiro lhe havia de dar a sua mesma espada para castigar no próprio coração as culpas da leviandade, porque as nódoas da honra só se tiram com o sangue? Mas já que cheguei a tão infeliz estado, e é preciso que me ausente, não quero perder agora o tempo de ajudar-te, recomendando-te que advirtas a teus súditos, que para exercitarem o bem, se apartem do mal; e os que não caírem em público, repreende-os em particular; e como não tens forças bastantes, procura as da união, que costumam vencer formidáveis exércitos: adverte que haja compaixão dos pobres forasteiros, e vigilância em socorrer a quem buscar amparo; como em defenderem mais a pátria; que os parentes; que os que quiserem a coroa trabalhem por merecê-la; que os que andarem com os prudentes, chegarão aonde quiserem; que quando as inimizades sossegarem, não as despertem; que para refrear paixões, se lembrem de que hão de morrer; que não casem só pelas riquezas, que os que recebem benefícios, saibam que vendem a liberdade; que gastem o preciso, e no que puderem vivam consigo; que não dêem voto, enquanto duvidosos pensam; que para se saberem haver, reparem nas adversidades os que nas prosperidades foram fingidos; que desprezam os interesses, em que o crédito se arrisca; que quando escolherem mulher, vejam a que mais se retira, e se adorna de silêncio; que cerrem os ouvidos à murmuração; que não se alegrem nos males dos inimigo, favorecendo-os, ainda que o não peçam, pois quem quer o mais glorioso troféu, perdoa ofensas, procurando para as injúrias o remédio do esquecimento; que para gozarem os tesouros da paz, não ofendam, a ninguém; que para acabar bem, é preciso não principiar mal; que o calar tem seguro o prêmio, e que os maiores estão destinados para os que no bem persistirem; e não te esqueças que o Rei generoso é o que mais assiste nos corações, sendo mais rico, e feliz o que muito dispende, que o que muito recebe. Manda que o pastor tire a lã às ovelhas, não consentido que lhes tire a pele, nem que os Templos herdem os mortos, porque as casas sagradas não carecem de mais reparos para se sustentarem, que os alicerces da piedade, pois que os santos Ministros mais devem crescer em virtudes, com que edifiquem, que nos bens, com que ao povo enfraquecem; e quando vires resplandecer o efeito dos bons documentos, sentirás aquela incomparável consolação, que se reserva para o que sabe ser pai de seus vassalos, os quais em se julgando seguros no amor de seus Monarcas, tanto lhe juram fé pelos aumentos, com que os premiam, como lhe votam fidelidades, abraçando os grilhões, com que os castigam, para o que traze diante dos olhos, que para conseguir o amor dos súbitos, é preciso amar o bem comum, e não fazer o que proibes, medindo forças, antes que te declares, porque não cai temerariamente quem adiante olha.

Com estes, e outros muitos documentos conclui a despedida de Antreo, e porque era preciso que dali também saísse oculto, no silêncio da noite principiei a caminhar para um porto de mar, levando só Arsidas, e quatro servos paisanos, e como não era razão, que me ausentasse sem as distinções que naquele estado eram precisas, vendo que muitos estavam determinados a acompanhar-me, fingi deixar a partida para o dia seguinte, e antes de ver a Aurora, cheguei a um porto de mar, donde saía uma embarcação para Atenas, em a qual no mesmo dia embarcamos com grande alegria.

A primeira noite de meu embarque, como me ficava todo o tempo livre, pois não pensava em máximas de governo, principiei novamente a vacilar sobre o caminho, que haveríeis tomado, e se seria certa a notícia de estardes no serviço de Anfiarau, conforme publicaram as vozes do vosso engenho, e raras qualidades, pois não sabe o tempo sofrer, que um sábio esteja encoberto: lembrava-me se teríeis falecido, ou vossa consorte, e filha, que arrastava sem desmaios as minhas venerações, ou se vos haveriam separado os contratempos; e discorrendo neste vasto motivo de minhas tristes memórias, adormeci: talvez que Morfeu por compaixão de meu atribulado espírito ordenasse aquele misterioso descanso; mas como não descansa a alma, que vigilante ama, nem dorme o coração amante, sonhei que desembarcava em uma situação solitária, e que seguindo um vale agradável, fora dar a um lugar agreste, onde não se viam aves, nem plantas tomado de fumo de sulfútero, que saía de uma horrorosa caverna, e ouvindo um medonho estrondo, sentia tremer toda aquela terra, de que fora tal o meu pavor, que endurecendo-se-me os cabelos coberto de frio suor, um tremor no corpo me precipitava na caverna, onde me faltava o melancólico velho Caronte, e me diziam que o ter caído naquela escura habitação, não fora sem que o determinassem os Deuses, para ali também buscasse aqueles, por quem suspirava: e ainda que para este fim me oferecia a sua barca, eu não podia ver mais que multidão de mortos, e rogava a Caronte me encaminhasse a ver o trono de Plutão, ao que logo me satisfazia; e chegando a ver o seu pálido, e enrugado semblante, observava que seus úmidos e espantados olhos só empregava sem furor em sua esposa Proserpina, que estava a seu lado; o trono daquele Deus terrível era colocado sobre as vinganças, que vertiam sangue: o ódio cego, a inveja bebendo o seu mesmo veneno; as vontades, que incitam os danados zelos, e os mal nascidos desvelos; a um lado estava a cruel, e pálida devoradora afiando continuamente a foice comas feias companheiras, que não cansavam em seus empregos; as espantosas visões, e horrendas fantasmas, que maltratam os vivos, estavam ao outro lado sempre inquietas; Plutão fazendo-me estremecer com seu furioso olhar, e triste aspecto, me dizia com rouca voz: se os que buscas foram separados dos corpos, só os poderás achar naquela parte do meu Reino, que é destinada aos que foram poderosos; e já que chegas a violar este sagrado, não te demores em meus domínios. Fui com pressa para aquela parte; buscando um rio pelo impetuosos sussurro, que ouvia, cheguei a vê-lo com inexplicável admiração, pois só se compunha de fogo, e incendiadas pedras, e frenéticas serpentes, que ora submergindo-se nas chamas, ora voltando enfurecidas umas com outras, iam levadas do ardente incêndio: eu invocava a Júpiter, Minerva, e Apolo, para que me confortassem, e defendessem. Indo adiante via uma inumerável multidão de atormentados, por haverem procurado as riquezas alheias com enganos, traições, e crueldades; os adúlteros sem distinção de sexo, porque ali eram igualmente castigados; os filhos inobedientes, e os traidores, os quais ainda depois de venderem os preceitos da honra, e violarem os juramentos, padeciam menores penas, que os hipócritas, pois só as destes excediam a todas as outras, que assim o determinavam os três Juízes; porque não contentes os hipócritas de serem tão maus, como os ímpios, procuraram ser tidos por bons, arruinando os créditos das virtudes, e os frutos do bom exemplo; e os Deuses, de quem zombaram, empregavam o seu poder no castigo daqueles insultos. A estes se seguiam outros de culpas, a que o vulgo chama políticas; e os que no Mundo não são tidos por delinqüentes, ingratos, mentirosos, lisonjeiros; e os que julgaram temerariamente, ou falaram fingindo zelo, ou compaixão, arruinando a inocência por paixões particulares; e os que aos Deuses foram ingratos, tinham mais pena que as maiores inqüidades. Via finalmente os atormentados, que abusaram do poder; de um parte uma Fúria lhes representava seus vícios, ali viam as perversas inclinações, com que amaram os aduladores, a excessiva magnificência tirados dos povos; a ignorante altivez, com que maltrataram os homens, que deviam fazer felizes; a insensibilidades, a soberba, e falta de caridade, com que compraram com, sangue ou o terreno alheio, ou o temor dos vizinhos e ocupados só em regalos, não viam de que choravam os súditos. Logo outra Fúria os acusava, repetindo os injustos louvores, que tinham recebido; tudo ali os contradizia, os desprezava, e confundia, e nunca livraram da tristeza, e pavor, que de si tinham, pois não podiam despir a própria natureza, sem que fosse preciso mais para castigo, que os seus mesmos delitos. Outra Fúria lhes trazia presente os condenados, que produziram os seus descuidos, fazendo-os atormentar com as penas de todos eles, e assim estavam desgraçadamente divididos de si, e unidos à raiva, e dor que lhes comunicava a perdida esperança.

Também via castigados os que antepuseram as delícias de uma vida afeminada ao trabalho, e desvelo, porque se compram as diginidades, e com este motivo se improperavam uns aos outros, trazendo-se à memória os regalos, deleites, e descansos, em que se tinham persuadido, que eternamente seriam respeitados; e lançando-se as maiores maldições, eram severamente castigados, não pelo mal, que fizeram, sim pelo bem, que deixaram de fazer, imputando-lhes todas as culpas da ociosidade, negligência, e esquecimento da lei. Muito me admiro o ver entre penas os que haviam acabado com boa opinião, uns por se terem deixado dominar de malévolos, e outros males, que se haviam feito com o escudo da sua autoridade. Grande era a compaixão, com que os via, lembrando-me quanto lhes é difícil conhecerem a verdade, e a si mesmos, sendo sujeitos a tão pesados encargos em uma vida tão curta, em que também o foram as invejas, sustos, oposições, e misérias. A vista daqueles espelhos do meu perigo, dizia: Oh quanto é bem aventurada a vida sincera dos que estando perto do trono, não se apressam para subir a ele!

Assim ia buscando uma luz, que de longe via; até que cheguei à bem aventurada habitação dos justos, onde descansavam os bons Soberanos, que sabiamente governavam os vassalos, e separados dos outros justos, gozavam muito maior felicidade, e em deliciosos bosques matizados de belíssimas flores, guarnecidas de líquidos cristais, onde a fragrância, a frescura, e doce harmonia das aves formavam uma inexplicável delícia, assistiam aqueles bons Príncipes; ali parecia não chegar a aspereza do inverno, nem o ardente rigor da canícula. Não lembrava a guerra, pois tudo era paz, nem o dia se acabava, pois eram ali constantes os resplendores. Não se viam vestígios de ódios, vinganças, zelos, temor, ou inveja: junto aos bem aventurados se difundia a agradável luz, que as alimentava, a qual tanto a eles se interna, e incorpora que a respiravam, a viam, e a sentiam, de que nascia aquela tranqüilidade infinita, onde jamais se via a morte, enfermidades aflições, temores, ou remordimentos, nem podiam interromper aquela felicidade as esperanças, discórdias, ou pesares, porque era imutável; a alegria eterna, e a glória Divina, que sempre neles se renovava, recordando o auxílio, e favor dos Deuses, que os fizeram ir pela mão de virtude para acertarem o caminho entre tantos perigos. Todos lhe cantavam louvores, e faziam uma só voz, uma só felicidade, e um só pensamento: admirava-me ver os poucos, que descansavam, o que entendo será, porque poucos resistem ao poder, e desprezam adulações.

De uma parte para outra vos buscava; e vendo cheio daquela ditosa luz a Almeno, dando-lhe os braços, com inexplicável respeito, a regozijo: como te vejo aqui em figura mortal? (me disse) E querendo responder-lhe, não sei que ternura, ou prisão não me deixava pronunciar palavra. Já que os Deuses te amam, os resguardam, (continuou) adverte em seguir o estreito caminho das virtudes, prevenindo lugar nesta morada de interminável paz. Tu nasceste para reinar, e não te entregues ao descanso, e regalo, por não arriscarem o bem terno, e real reputação, porque esta não tem minuto de tempo, que não seja obrigada aos pesados encargos de seu ofício, pois quem o serve é devedor de si mesmo, sendo de infinito peso qualquer pequeno descuido: não basta não fazer mal, porque é preciso fazer todo o bem a favor dos estados; pelo que, amado Arnesto, arma-te de valor contra si mesmo, contra as paixões, e lisonjas, sendo no teu governo um vivo modelo de heróis soberanos, e bom pai dos súditos; porque os que enchem as suas obrigações, gozam aqui os maiores, bens, que lhe podem os Deuses outorgar. Perguntei-lhe quem eram os que estavam apartados dos que gozavam a mais soberana luz? São os heróis, (me disse) que recebem o prêmio do seu valor, e gloriosas empresas; e os mais que estão por esses deliciosos bosques, são os que nunca ofenderam os ditames da paixão; os que deixaram os tumultos, e nos retiros louvaram as Deuses, e não ofenderam as leis; os que choraram seus delitos, e os que a ninguém fizeram mal. O quanto será feliz, se tiveres sempre lembrança das penas, e dos descansos!

Com estas palavras, parecendo-me de que de mim se apartava, fui a dar-lhe os braços; e como a uma sombra, vi que não podia satisfazer meu interno afeto. Com este susto acordei, e tão fora de mim, que me pareceu ver em uma claríssima nuvem a sábia Deusa, que me oferecia palmas e a da beleza, que com o cego filho nos braços de mim se riam. Tornando inteiramente aos sentidos, achei Arsidas, e os companheiros, que com susto cuidavam em despertar-me, parecendo-lhes sombra da morte aquele dilatado descanso: logo me contaram, que um célebre comerciante, que ali ia, lhes dissera que havia tempo, que em Atenas se tinha descoberto a Princesa Tebana em Real serviço; e que o Príncipe Ibério, encantado de sua rara beleza, determinava desposar-me com ela, ao que se seguira desaparecer repentinamente; e que todos diziam, que a mandara matar o Rei, para se malograrem os instintos do filho, mas que a Tebana se achava com Ibério em um retiro; logo interrompi estas palavras com ardentes suspiros; e apartando-me dos que tais notícias me davam, não havia crueldade, que não me lembrasse, transportado em amantes delírios. Já me esqueciam as sombras horrendas, e a luz brilhante dos bem aventurados espíritos, e em meu lastimoso pranto dizia: Oh tirania lei de amor! Qual foi o néscio, que te deu de lei as sagradas forças que se a natural a todas as mais prevalece, e esta manda resguardar a própria vida, e atender ao bem comum, ao mesmo tempo é transeunte à tua essência tirar a paz ao comum, e ter ódio à mesma vida? Chore-se em Delos sem remédio a minha ausência, já que estas cruéis contradições me obrigam a desejar para alívio o instante de expirar neste instante, que respiro. Qual será a serpente, brasilísco, ou crocodilo, que não se encerre em mim, pelo veneno, que introduzem os zelos em um triste coração, pois só exalo furores, respiro vinganças, e mortes fulmino? Mas ai de mim! Se a ofensa não se prova, de que procede o que sinto? Ó vida infeliz, em que os contentamentos passa, como as sombras velozes, que nem os vestígios deixam, e aos tristes pesares só são permanentes! e neste pequeno teatro fazemos papel na tragédia da inconstância, que quanto de repente não acaba, o ter fim é infalível! E se a soledade dos montes é alívio de pesares, que os tristes diverte, os corações dilata, as aflições modera, os espíritos alegra, e os olhos recrea, sairei daqui só a buscar esse último remédio da minha total ruína, onde aprendendo a mais alta filosofia, me exercitarei naquela prática ciência, que conduz para o melhor fim, e ponha-se de todo o parêntesis entre a Majestade, e o associável de homem com os rústicos na sincera vida no campo. E tu, ó Nume infausto, que zombas dos mortais, negando assim as regalias de racional, e os domínios da razão ainda aos que são mais sábios, se te abrandar meu conforme padecer, executarás em mim na primeira ação da tua piedade o último golpe da tua tiranias.

Chegou Arsidas a lembrar-me, que o dia se passara, sem eu tomar alimento algum, ao que me queria obrigar o seu afeto, e cuidado. Bem conhecia eu que aquela notícia não era bastante para sustentar em mim tão veemente paixão; mas é tão ativo o amor, que é verdadeiro, que basta sonhar com a ofensa, para perder o sossego. Cheguei a desembarcar; e determinando esperar a morte nos campos de Micenas, como o mal sem remédio de cada vez tomava mais forças, me persuadirem a fazer viagem para Atenas, onde a verdade acabasse de matar-me, ou curasse os seus delírios; assim fui de cada vez mais magoado, e só tinha alívio em retirar-me dos meus, que quando me buscavam, não podia dizer-lhes mais, que: Retirem-se; pois a tão cruel tormenta era desafogo o meu pranto sucessivo; que os que são feridos de amor, entendem que só é alívio o chorar, e assim com estes indícios covardes me dava a conhecer amante, sem que fosse possível entrar em mim, por mais que em mim refletia, conhecendo que era oposto às minhas obrigações o afeminado afeto, a que me via rendido. Cheguei a Atenas, onde conheci que uma Fúria, para me abrasar o incêndio da ira, outra para acender em mim a vil inveja, que viva dor de perder a suspirada fortuna e outra para acusar impureza, onde assistia inocência, se haviam transformado no comerciante, que de tão falsas notícias, pois era ali indisputável a virtude de Hemirena, e fui informado da causa, porque Ibério declarara guerra a Anfiarau; que ainda era indício de seu rendimento, a fuga de Hemirena me segurava, que não fora correspondido; pelo que tão pouco respirava eu já pelo coração da vingança, que me levava a tirar-lhe a vida, que como aventureiro, fui ao campo, onde (debaixo das bandeiras de Ibério) tomei armas contra Anfiarau; e acompanhado dos meus, busquei satisfazer as vossas injúrias, lavando as armas no sangue dos Coríntios, aos quais me chegavam tão temerário esforço, que matando muitos, também muitas vezes fui ferido; e com ali se observasse o ardor, com que os buscava, entrando o Generalíssimo na dúvida do que faria para concluir o último sítio, e supondo em mim ocultas qualidades, que lhe lembravam ouvir-me, me fez conduzir à Real tenda para dar meu parecer; e depois de atenciosos cumprimento, lhe disse:

São atendíveis as razões, que originam a vossa dúvida; mas os sitiados têm perdido já uma grande parte de gente, pois tem sido contínuo o fogo; e como não têm socorro, ainda que era muito grande a guarnição, por força está diminuta. Bem considero quais são as suas muralhas, e que fazem frente sem resguardo a um exército crescido, mais que valor, será temeridade, e contra o pundonor das nossas armas dar lugar a que entre socorro; e porque poderão julgar ser fraqueza não os servimos desta ocasião, a todo o risco me parece que o assalto se deve dar sem demora. Assim se determinou para a madrugada do dia seguinte, em que os Céus com rios de água parecia que nos despertavam; e vendo eu que havia alguma omissão por causa daquele tempo, fui resoluto à presença de Ibério, (que mal sabia quem eu era) e lhe disse: Os Céus, Senhor, não querem tomar-nos os passos, mas antes nos chamam a tão soberana empresa; porque assim como Júpiter com os soberbos Titões pelejou com raios, e nos nossos corações infunde o bélico ardor, com celestial água, e fogo também nos adverte, que não devemos perder tempo: eu vou à muralha, mandai que me sigam. E tomando a minha bandeira, e espada, e Arsidas uma escada, subindo por ela, reparei que os assediados se tinham recolhido da tempestade. Apenas me vi sobre a muralha, batendo a bandeira, aclamei a vitória por Ibério, e em breve tempo se achou por várias partes coroada da nossa gente. Deixei cair a escada para morrer, ou vencer, os outros me imitaram; e para que o inimigo não desse junto sobre os que demos o assalto, partiram várias esquadras para diverti-lo por outras partes, e a mais gente se empenhavam na brecha, em que muito já se havia trabalhado. Entretanto que se disputava esta empresa, se adorava em Ibério uma animada imagem de Mavorte, pois não resguardando a vida, tomava sempre o lugar, onde havia maior risco era tal gritaria, que aqueles bárbaros faziam, que bastaria para assombrar o ânimo mais forte, se da nossa parte os estrondos marciais das caixas, e dos clarins não nos avivassem o mais ilustre furor, sendo Cupido o Comandante da parte superior do exército: mais de nove horas durou o sanguinolento combate, o inimigo deixando-nos vencer, acudia só à brecha; e os nossos não só com ânimo incrível se empenhavam em continuar na entrada; mas se haviam repartido, como bem disciplinados. Conseguimos entrar vitoriosos; e foi a mortalidade, que andávamos sem reparos sobre os mortos. Celebrada a vitória com reais demonstrações, publicavam dever-se a mim um triunfo: pediram os inimigos os preliminares da paz, e Anfiarau mandou justificar na presença de Ibério, que vós não existieis em seus domínios, e que quando vos conhecera fora depois da vossa fuga; a qual se provou, ficando bem castigadas as vossas injúrias. Na seguinte noite caminhei para seguir meu destino, pois se demoravam os exércitos, para se concluírem as satisfações: querendo sair de Atenas, fui preso, e reduzido a ferros, enquanto não se justificarem as minhas ações: continuei meu caminho, embarcando para Tebas com grande consolação, pois tinha por certo, que já lá estaríeis, por oculta insinuação de Anfiarau. Um naufrágio, que me teve entregue à morte, me deu a conhecer a Belino, a quem devo a vida, e Delmetra vos poderá contar os maravilhosos sucessos daquele contratempo; estes foram alguns de meus trabalhos, que os repito para satisfazer-vos, e não os poderei numerar, nem para agora é justo recordá-los mais, pois já permite o fado, que o prazer tome para si algum tempo, ainda que entendo que Hemirena, e Climinéia acabaram nas mãos dos bárbaros, e sufocado de mágoa ficou sem poder proferir mais palavra. Pois sabei (lhe disse Diófanes) que em Delmetra se oculta Climinéia, e em Belino a que para vossa esposa estava preconizada, que fugindo de horrorosos perigos, se valeu da dissimulação, que vedes. Arnesto com vivas demonstrações de inexplicável alegria, tendo ainda por impossível, que para tanta ventura estivesse destinado, se lançou aos pés de Climinéia, e Hemirena cheio de regozijo, amor, e respeito. O repentino contentamento lhe embargou a voz de sorte, que convertido em admiração, não fazia mais que admirar, como aquela beleza o havia conservado no engano, sem lhe confiar alívio em seu amante cuidado, quando naquelas praias acompanhou: e refletindo nas novas obrigações, que lhe acresciam para adorá-la, pois lhe havia dado a vida, rompendo em discretas expressões de seu júbilo, e justo amor, concluiu com os sentimentos de não ser eterna a sua vida, para com ela lhe renunciar uma felicidade infinita em que recebesse imortais cultos a sua formosura.

No dia seguinte cheios de imenso contentamento embarcaram ainda incógnitos: chegaram a Tebas, onde continuava Diófanes por sua Real sucessão em um filho pequeno, que tinha deixado, ao qual entre os aplausos acharam com dilatada prole. Foram ali os festejos os maiores, que se podiam considerar; já as lágrimas dos que choravam continuamente por aquela amável família tinham cessado; as gentes saíam de suas casas, rompendo os Céus com as vozes dos vivas, com que iam ver aqueles, que choravam sepultados nas margens do turbo Letes; os parentes ofereciam vítimas para os sacrifícios em reconhecimento do benefício, que dos Deuses recebiam; Diófanes, e Climinéia estavam patentes para serem vistos dos que não davam créditos ao que sucedia; ali lhes contavam as repetidas diligências, que por eles se haviam feito; e que não achando alguma, uns diziam que teria a nau ido a pique na tormenta, que naquela ocasião houvera; outros, que teriam dado em mãos de bárbaros, que lhes tirariam as vidas, depois de os roubarem; e as demonstrações fúnebres, que publicamente se haviam feito, ao que acompanharam as lágrimas, e clamores de todo aquele povo. Diófanes com inexplicável consolação vendo tão bem sazonados os frutos da sua ausência nas excessivas demonstrações de gosto, com que o recebiam, e estavam governados por Bireno, lhe recomendava, que para serem conduzidos às felicidades, conservassem nas adversidades a constância do ânimo, e a resignação por se lhes dificultarem, porque só o que é pernicioso não costuma ter muitos opostos; que temessem os Deuses, amando a lei, e aumentando os cultos da justiça, e fidelidade dos Soberanos, que enquanto lhes demoram os prêmios, lhes crisolam os merecimentos, sendo a demora dos aumentos realce da felicidade, que chega quando se espera, ainda que o desejo impaciente os anos transforme em séculos. Foram perdoados os delitos, e postos em liberdade os delinqüentes, menos os que estavam em pena de morte, porque estes foram exterminados; e se ordenou, que apresentando seu passaporte na raia, ou ao sair daquele porto se lhes desse certa porção de dinheiro para continuarem suas viagens, ou jornadas, e que a sentença de morte teria vigor, se algum dia tornassem a entrar naqueles domínios. Repartiram-se pelos órfãos, e viúvas grandes porções de dinheiro: deu-se liberdade a todos os escravos, que ali se acharam, que a uns a compraram os Soberanos, e a outros a deram os senhores com aquele exemplo: pagaram-se todas as dívidas aos vassalos, que mostraram não terem meios para satisfazerem a seus acredores; dotaram-se as donzelas pobres, e os meninos da mesma qualidade foram tirados às viúvas, e repartidos pelos Colégios de artes, e ciências.

Todo aquele mês, em que com um bando se noticiaram ao povo as mercês, que lhes fariam, continuamente estavam entrando na Corte os que viviam distartes, os quais chegavam tocando seus instrumentos, e cantando com agradável suavidade os triunfos de seus Soberanos, e as felicidades de Tebas; e com lágrimas de alegria apostavam expressivas demonstrações do mais terno contentamento. Os rústicos à vista de Palácio formavam com singeleza os seus bailes ao som de suas flautas, e logo depois se encaminhavam para o Templo, levando inocentes ofertas, onde os da Corte haviam oferecido grande parte de seus tesouros, e iam assistir aos cultos, queimando continuamente preciosíssimos aromas. A estas demonstrações gratulatórias assistiam de manhã os Soberanos, e de tarde a Academia das ciências, que em Palácio se fazia, onde eram admitidos homens, e mulheres a darem conta do progresso de seus estudos, sendo premiados conforme a vantagem, que se levavam, a uma parte da noite se passava em outros divertimentos, em que o prazer competia com a grandeza, e luzimento, os estrangeiros concorriam a admirar tão estrondosa festividade. Passados alguns dias, chegaram os de Delos com uma esquadra Real, e com igual admiração, que regozijo viram o seu Príncipe, e concorreram para os aplausos, formando jugos, em que com Marcial destreza, e bizarria levavam os prêmios, e davam os vivas aos seus Soberanos, que acabado aquele mês, foram embarcar acompanhados da Corte, milícia, e povo, que mesclava com a precisa saudade o discreto contentamento; depois de militares movimento, com uma salva geral se conclui a despedida.

Chegando felizmente a Delos, eram esperados com iguais demonstrações de prazer; a marinha não só se guarneceu logo de soldadesca, mas de magníficos carros de triunfo, onde suavemente se cantava, e de bem ordenadas danças, que se compunham de figuras ricamente vestidas: em se fazendo o desembarque luzidíssimo, foram assim acompanhados aqueles Príncipes, formando as vozes dos clarins, dos mais instrumentos, e dos vivas uma tão celeste melodia, que representava o Céu na terra; em iguais distâncias estavam arcos, bem formados, onde parece que agradavelmente as Musas exercitavam, e de alguns, que guarneciam os vassalos, em cujos corações havia Arnesto depositado os mais seguros tesouros, se lançava dinheiro ao povo. Foram ao Templo de Apolo, que com admirável grandeza, e pompa se achava adornado, e iluminado, e por não fazer enfadonha a narração daqueles cultos, e obséquio, se deixam à melhor consideração.

Depois de jurarem os Príncipes, e grandes, que jamais naquela Ilha se consentiria que houvessem escravos, porque seriam restituídos à inteira liberdade os que, como cativos, ali chegassem, se encaminharam para o Palácio, e as mais festas se repetiam todas as que se haviam feito em Tebas, e pelo mesmo tempo todas as referidas mercês. Passado aquele mês, destinado às graças, e festejos, se retiraram para Tebas os que tinham saído a acompanhar os Príncipes, e saiu Arnesto a visitar os hospitais; que ficaram ricos, pois deu o Príncipe generoso exemplo à piedade. Concluindo esta louvável diligência, foi ver os arsenais, onde repreendeu severamente os descuidos, e despertou os negligentes, para que se melhorassem. Quis ver as suas Tropas; e fazendo-as exercitar na sua presença, acrescentou os Militares, e despendeu com eles tanto, que mais parecia pai liberal, que senhor esquecido; pois conhecia com larga experiência, que a grandeza dos exércitos faz indeclinável o respeito das Majestades, a glória dos Soberanos, e a opulência dos vassalos; e a estes suave o peso das armas, o agrado do seu Rei, os honrados adiantamentos, e o soldo, que os sustenta; porque suposto que não haja cousa alguma, que possa ser inteiro equivalente da vida, o supre a honra, e a fidelidade, quando a fome não quebranta, nem o crédito padece.

Depois deste louvável, e mais preciso empenho, ou desempenho de suas máximas admiráveis, ordenou que o ministério devassasse dos Militares, e estes do ministério na sua verdade; e vendo que a vara da justiça muitas vezes se torcera com o peso dos subornos, e que os que se aproveitaram de uma injusta autoridade haviam desprezado os ameaços da culpa, e os vaticínios da razão, ordenou que fossem logo acabar no suplício, pois tinham sido o flagelo dos pobres, o escândalo dos bons, e o terror dos povos; porque como bramam aos Céus os clamores da verdade, ainda que o castigo se desfira, sempre o perverso tem a pena dos seus delitos. Com as cabeças daqueles se guarneceram as muralhas da Cidade, sendo padrões do exemplo aqueles despojos da vida, onde existindo as geladas cinzas da culpa, falava a mudez do horror aos corações compreendidos. Os que tinham dado inteira satisfação às suas obrigações, foram premiados com honras, e riquezas tão avultadas, que parecia querer aquele sobrano reservar para si só o prazer de repartir os tesouros, ou que apostava exaurí-los, depositando-os no amor dos seus vassalos, onde o Rei justo, e generoso tem o mais firme trono, e o Império mais seguro; e assim como contemplando em os aumentos exercitava as vozes, com que o povo pedia aos Numes que lhe eternizassem o seu Príncipe, também se ouviam os vivas, quando pelo patíbulo se desocupava o Mundo daqueles, a quem a ausência da soberano dilatara os castigos; pois é a morte dos maus a vida dos bons, e a prontidão dos remédios o melhor remédio para o mal.

Tendo Arnesto concluído todas as cautelas, com que o seu vigilante cuidado causava admiração aos estranhos, e animava o exemplo dos seus, pois distribuía gloriosos prêmios, e executava justos castigos, chegaram ali três naus vindas da ilha de Náscia, que com vozes de sonoros clarins vinham publicando contentamentos. Logo fizeram aviso da chegada de Isicles, Embaixador que Anteo mandava a cumprimentar Arnesto, e oferecer-lhes ursos, e leões em tributo dos benefícios, de que era devedor àquele povo. No dia seguinte se deu solene embaixada com grande luzimento, e pompa, tornando-se a renovar os júbilos da chegada de Arnesto, porque os vassalos contentes com o seu soberano não sofriam as recordações do mal passado, sem que expressando o bem presente repetissem votos das mais pura fidelidade, e festivas demonstrações do mais vivo contentamento. Depois que as Majestades foram cumprimentadas de formalidade, Arnesto com lágrimas de saudosa consolação recebeu uma carta de Anteo, a qual era escrita na forma seguinte:

“A vós, Príncipe Arnesto, enviamos nosso contentamento, amor, e respeito, pois vos devemos a nossa felicidade, e rogamos aos Deuses consoladores que vos assistam.”

“Ouvindo-se aqui as notícias de vossa chegada a Tebas, se revelaram todos os vossos segredos, e que os seus soberanos acharam bem experimentada a fidelidade dos vossos vassalos, e bem crescidos os frutos de os ter governado com amor, paz, e justiça (que tudo Bireno mantinha em boa ordem), e qual fora a vossa entrada em Delos, e a celebridade do vosso suspirado consórcio. Julgai qual seria a consolação, com que eu me lembrava de nossos misteriosos infortúnios, quando este povo agradecido rompia em vozes expressivas do mais fiel contentamento, dizendo na presença da sacra estátua de Apolo:

O Deus luminoso, já vemos que eram vossos influxos, com que amávamos a Arnesto! Já vemos que era imagem vossa a luz, com que nos atraía! Já vemos que eram suaves raios do Céu as vozes, com que nos persuadia a bem obra! Já vemos que era influxo Divino o ardor, com que amávamos as suas virtudes! E quem, senão uma imagem vossa assistida de Júpiter, e Minerva nos faria amar a concórdia, que é origem do aumento, e desprezar a discórdia, que tudo consome? Quem nos faria estimar a brilhante espada da justiça? Quem com a capa de uma desgraça fora argumento da mais elevada virtude? Só o que nascendo para reinar, e nos foi por vós enviado para o remédio de nossas dilatadas tribulações.

Donde viria homem mortal, que sem vislumbres de Divindade nos fizesse tão suavemente obedecer às leis, amar as letras, exercitar as virtudes, buscar a sujeição, contemplar nos soberanos, sujeitar aos trabalhos, e honrar os Deuses, mais que aquele, que concebendo os maiores pensamentos, não perdia instante de cogitar sobre o bem deste povo, que parecia respirava pelo coração de Arnesto? Ó luz eterna! Ó Deuses benignos, assisti-lhe, e defendei da contrária fortuna, para que seja sempre honra da pátria, e glória dos vassalos! — Com estas exclamações saíam do Templo, e não descansavam de cantar louvores vossos, reconhecendo as causas, de que procediam as vossas amáveis circunstâncias.

Muito me alegro, quando me lembro que vos exercitei nas armas, e ciências, que como honrado vos servi e como fiel vos acompanhei; e assim me lisonjeia a fama, publicando as vossas supremas virtudes, e me suavizam o pesado encargo de governar estes vassalos, porque vos reconhecem por senhor supremo; e já que vós me elevaste ao lugar, em que me vejo, é razão que façais felizes as minhas resoluções, pois juro aos eternos Deuses seguir sempre os vossos ditames. Bem sabeis que os varões, que admiraram as gentes, se fizeram dígnos mais pelo pouco preço, que deram aos grandes lugares, que pelas vitórias, que tiveram; porque para vencer inimigos na guerra muito concorre a fortuna; mas para desprezar a própria grandeza só a heróica magnanimidade: pelo que vos peço, senhor, que atendais à opressão, em que vivo, ajudando-me a descer do trono, onde o desvelo é contínuo, é pouco o mais dilatado tempo, o trabalhar é dívida, o descanso é culpa, o acerto é obrigado, o desacerto é sem desculpa, o perigo é sem limite, e é limitada a humana capacidade para o encargo, que finge doces fadigas para o possuir, sendo amargosíssimas para o responder. Oh quanto é indesculpável a vaidade dos homens, pois esta os caminha àquela sublime esfera, onde mais se encontram precipícios do sossego, que firmeza nos favores da fortuna! E quando não houvesse maior causa para fazer horror o falso prazer de reinar, basta ver que ordinariamente do de quem mais nos fiamos são as brechas, por onde se rende a fortaleza do mais justo Monarca, os sentinelas que vigiam os nossos descuidos, os espias do engano, os escudos dos maus, se as armas dos indígnos. E como é possível que resistamos ao fogo, que nos faz a malícia destes, se nos acham descuidados? Com a boa fé nos enganam, e com fingimentos nos prendem, conspiraram contra os nossos créditos lisonjeiros, mentirosos, traidores, e fingidos; porque (entre outros motivos) o degenerar a justa veneração, que se deve às Majestades, produzir o veneno do respeito, que desfigura a verdade em chegando à presença dos soberanos, que a desconheceriam despida, porque se a vêem é com adronos.

“Onde irei, senhor, que encontre quem desconheça a grandeza, e me diga quanto sente? Onde acharei um amigo tão nobre, que me aconselhe sem se haver aconselhado com o próprio interesse? Onde acharei um homem tão leal, que amando só os meus acertos, suspenda o peso, que me oprime, sem que faça maior preso arrastado pelo ódio? Onde acharei um sábio prudente, que creia o muito, que amo a verdade, e que a mentira aborreço? Onde acharei um justo compassivo, que me avise de que choram os pobres, de que se lastimam os que não têm valores, e de que se doem os queixosos? Oh mil vezes infeliz grandeza pois afugenta as luzes da verdade, e consiste em não desatar os laços do engano, em que docemente respira! Eu não posso ver tudo; e os que melhor vejo, menos merecem; os que menos se retiram, mais me afastam de acertar; o que mais amo, melhor me enganam; os mais capazes se me ocultam; e os incapazes os conheço, quando os danos os descobrem.

“As vossas doutrinas, e o meu desvelo tem produzido aqui homens excelentes; mas inteiramente perfeitos ou os não há, ou são raríssimos; porque o sábio soberbo parece quando é mais preciso, menos convém ocupá-lo; o que tem contra si o ódio do povo não sei se é mais útil entregá-lo ao esquecimento, que chamá-lo, para que sirva; o que estuda mais sobre a própria conveniência, que sobre o que convém à República, duvido se é menor a falta, que me faz, que o engano, a que me arrisco; e o que ou há de ser bem visto; ou há de maquinar vinganças, entendo que é mais conveniente buscar meios de contentá-lo, que dar-lhe emprego. Enfim dizei-me, senhor, o que entendeis, que eu desejo trocar a suprema grandeza da Majestade pelo simples sossego do livre pastor, pois que os Deuses nos criaram livres, e é em todos natural o amar a liberdade, ainda que a cegueira dos homens introduziu no Mundo que era mais para apetecer a escravidão mandando, que a liberdade obedecendo. Os Príncipes até a decência os sujeita, pois não consente que estejam, ou andem sem guarda, e assim são docemente prisioneiros dos seus, tendo liberdade para a dar, mas não para a tomar. O quanto é menor o trabalho de obedecer a um, que o de mandar a muitos debaixo dos preceitos de amparar, castigar, favorecer, sustentar, defender, aumentar, e dar exemplo! Mas sendo os homens em tudo inconstante, só o não são me buscar cegamente os Impérios, e procurar aquela falsa liberdade; pois é certo que os que mandam vassalos, passam de livres a escravos de sua pesadíssima obrigação, porque só os abomináveis tiranos pretendem reinar para terem descanso entre os regalos, e põem em esquecimento o cuidado de velarem sobre o bem de seus povos, sendo-lhes assim devedores da fiel obediência, que lhe juram, pelo interesse de que os governem, e amparem; e se aqueles ingratos incitam os Deuses, para que os castiguem, e despertam as gentes, para que os aborreçam, eu vou à vossa presença, clamando aos Céus, para que me descansem; e pois mais desejo servir-vos, do que estimo o ser servido, atendei-me, senhor, e como benigno me ajudai a entregar o cetro, porque é de peso tão excessivo que me faltam já as forças para o poder sustentar; e vos juro sobre os Altares de Minerva conservar a obrigação da mais pura nobreza em vos ser fiel, a honra ilustre em dizer-vos a verdade, e os créditos de bom vassalo em me não afastar dos vossos ditames, pois que os Numes vos assistem, e ireis felizmente a habitar com ele”.

Com estas atendíveis perturbações se mostrava o grande espírito de Anteo, e se enchia de prazer o coração de Arnesto, Isicles se demorou ali por tempo de dois meses, admirando o muito, que floresciam os bons costumes pelo amor, e humilde, com que se obedecia ao Rei; a concórdia, com que viviam os vassalos; a opulência, para que concorria o comércio; e a mais forte coluna de fidelidade em cada soldado contente; porém mais que tudo o admirou a inteireza, com que se administrava justiça, e a brevidade, com que esta evitava as desordens; porque ouvia que se os pleitos duravam mais de um ano, se castigavam rigorosamente os Ministros, que o consentiram, e assim os Advogados, os Solicitadores, e o litigante, que era interessado na demora; e querendo instruir-se, a na boa ordem, com que se defendiam, soube, que quando a causa era tão grave, que no tempo determinado não podia concluir-se, passavam para Tribunal supremo todas as alegações, e documentos de uma, e de outra parte, ao que com admiração dizia:

É possível que parece que venho achar neste pequeno distrito feita a paz entre a verdade, e a mentira, e que sendo estas inteiramente contrárias, se tratem, sem que a confusão dos recursos ponha em dúvida qual tem mais forças, e sem que por muitos princípios possa a mentira opulenta afugentar a verdade, quando é pobre? Sim, porque todo o amargo se adoça, onde um Príncipe prudente sabe amar o seu povo, e este cuida em merecê-lo. Eu tenho girado grande parte do Mundo, e visto admiráveis Monarcas, porém nenhum, que a este se iguale; porque os que são famosos por vencedores, se cansaram para adquirir glória; e os que são pacíficos, se desvelam por descansarem; mas Arnesto soube vencer, sustentar a paz, e moderar a mais danosa guerra, que pode haver, e se permite nas Repúblicas, pela qual as despesas são contínuas, a fadiga excessiva, o fogo cruel, e a fome certa, e quando a honra periga, ou a ambição se interessa, com desordens se acometem os contentores, sendo de toda a sorte prejuízos, ódios, e desaires os despojos daquela guerra, em que rara vez é vencido quem a pode sustentar, e sabe estudar-lhe os lances; nem jamais vi que acabasse, se a parte, que queria eternizá-la, tinha mais dinheiro para sustentar o enredo daquele jogo, que justiça para vencer a contenda (conforme sucede em toda a parte), pois nem o mais reto Ministro pode algumas vezes evitar as dilações, negando-as aqui a vigilante prudência do Soberano para ser o primeiro, que inteiramente mereça os altares, que lhe consagram os seus vassalos, pois são os dilatados pleitos a ruína dos bens, deslustre do brio, e desmaio da honra; porque se nos casos pouco importante é conveniente não mostrar o direito para evitar as despesas, não o permite o brio, não só porque parece frouxidão do ânimo, ou falta de meios, em que a estimação padece, mas também porque se entende, que os que não têm constância para prosseguir, não tiveram razão para negar, ou pedir, e assim pelo muito tempo degenera a carência de justiça em empenho do pundonor. A honra periga, porque os homens se costumam a sofrer que publicamente os trabalhos de falsários, ladrões, mentirosos etc. e se há alguma vez, em que tudo isto se diz com termos colorados, nem assim perdem tais palavras o amargo, que sempre devem os honrados sentir na calúnias, pois todos sabem qual é a valentia do conceito, e naquele prolongado tempo muitos perdem a sua esperança morrendo de cansados, e outros ganham as horrendas cavernas do Cocito.

Assim dizia Isicles com tão viva, quanto justa admiração. Poucos dias antes que se despedisse teve das Majestades um mimo especiosíssimo, e o fizeram condutor de outro, em que Arnesto enviava a Anteo um admirável vestido de armas, onde com o primor da arte estavam abertos ao buril os sucessos das suas peregrinações, a sua efígie, e de Hemirena, Diófanes, e Climinéia, os sacrifícios que celebraram em Tebas; e os carros de triunfo, que houveram em Delos, concluindo tudo no fúnebre espetáculo dos justiçados, para que se acabasse o escândalo, divulgando-se o horroroso efeito dos seus delitos; e também se viam as palmas, que se distribuíam pelos beneméritos, porque quando os conduzisse a morte à mais dilatada vida, se acabassem de viver, não cessasse a Fama de os louvar. Com este vestido de armas iam também de todos os petrechos de guerra, e alguns oficiais capazes para o exercício deles, e também leis tiradas das melhores, que se praticavam em toda a Grécia, proporcionadas ao país, e corretas pela prudente discrição, e experiência de Arnesto, e para a execução delas quatro sábios, que eram nobres, virtuosos, e independentes, que tanto é preciso, para que tenham as leis boa execução. Arnesto satisfazendo as razões de generoso, quis que não ficassem diminutas as demonstrações de amigo, respondendo à carta particular, em que depois dos primeiros cumprimentos continuava, dizendo:

“Já sabeis que os mesmos infortúnios, que me afastaram de Delos, procuraram que as casualidades me restituíssem à amável causa de minhas peregrinações. Logo que de vós me ausentei, ouvi venenosas notícias, que ferindo-me com a seta inflamadora, me reduziram aos delírios de uma invencível tribulação; e com aqueles a quem Deus vendado destina à cruel esfera de fingidos prazeres, tem por lances do entendimento as atrações da vontade, suspirei zeloso, e aflito busquei a morte; mas tomei alento as armas, que por desagravo de Diófanes banhei no indígno sangue dos Coríntios. Encontrei Hemirena, salvando-me de um naufrágio; e ocultando a formosura aos cultos do rendimento, me deu vida, sem saber que eu lhe havia consagrado. Tiramos Climinéia das mãos da morte, mas sem que nos conhecêssemos; porque como é o amor aquele doce tormento da alma, que no desejo consiste, não dispensava nas cautelas o disfarce. Encontramos também Diófanes nas vizinhanças de Tebas, e chegamos a ver quanto interessam os Soberanos em que os amem os vassalos, e que estes nem com lágrimas contínuas acabam de chorar a falta de um Príncipe, que com amor, justiça os governa, pois admirei o imenso prazer dos Tebanos: vi a inexplicável alegria deste povo, e a razão, com que na minha ausência se lamentava enfraquecido.

“As vossas letras me enternecem, e me enternecem, e me admiram vossas resoluções, que sendo filhas legítimas de um espírito puro, também é preciso atender a que, se é grande a glória de adquirir, não é menor a virtude de conservar; e como é precioso que eu vos aconselhe, tendo atenção ao respeito, que me confessam os que vos obedecem, e às doutrinas, que me destes, devo primeiro lembrar-vos que as Estrelas benignas quiseram que tivésseis emprego, para que vos servísseis da sabedoria, despertando os vassalos, para que a amassem; das virtudes, para que fosseis modelo de um Príncipe justo; do entendimento, para que o tempo admire um governo perfeito: da magnanimidade, para que désseis exemplos de fortaleza; e do esforço, para que animásseis os soldados mais com ações de generoso valor, que com palavras de vaidoso capricho.

“Os homens admiráveis, que têm havido no Mundo, quase todos se fizeram com os trabalhos, com os livros, e nos Reinos estranhos, porque os infortúnios dispõem para compadecer, e moderar as paixões: os bons livros fazem que o entendimento abra os olhos, que o homem se veja, e que aprenda a merecer; e a ausência da pátria castiga os ânimos afeminados, ensina com a experiência, faz crescer os homens, para que conheçam, e sejam conhecidos, Sócrates não consentia que os seus discípulos dissessem qual era a sua terra; e os bons insulanos Agitas não declaravam serem nacionais daquela Ilha, enquanto não faziam alguma ação admirável; assim que é mais louvável, que não torneis à pátria trabalhando, para que ela de vós se preze, que como é tão severamente nobre a lei da verdadeira amizade, não permite que vos aconselhe como quero, mas só como devo; reconheço que é maior a grandeza do encargo, que a fausta pompa de reinar; mas onde a empresa é difícil, é mais glorioso o triunfo. A vaidade, a cegueira, e o engano dos homens têm feito no Mundo as maiores guerras, não para obedecer, mas sim para mandar; e por este costume ao que larga o cetro bem possuído, sem que as armas o disputem, o avaliam por demente, ou covarde; e se o deixa, por não cair em erros de um ofício, de que depende a boa ordem de todos os outros, troca pelo descanso de prudente vassalo a glória de bom Monarca. Não penseis em deixar o governo, sim em ser grato aos Deuses, para que vos confortem; liberal com os vassalos, para que bem vos sirvam; prudente no obrar, para que vos imitem; comedido no falar, para que bem falem; e amai o bem comum, para que vos amem; pois que o varão justo não há de perturbar-se, impaciente por não ter tudo no estado, que deseja, mas sim se alguma coisa não obrou como devia; e vedes que os nossos antepassados não adquiriram em descanso a glória, que herdamos, porém servindo na guerra os seus Príncipes; e que sendo mais nobre o mostrar o próprio merecimento, que contar ações alheias, também é mais sublime ornar o palácio com armas ganhadas, que a casa com escudos herdados. Isto vos digo, para que vos não vençam os embaraços, que pensais, pois não experimenta o homem tanto dano, quando a fortuna o desampara, como quando o ânimo lhe falta. Se quereis que não seja o tempo estreito, cuidai muito em reparti-lo, não tirando para vós do que tocar aos vassalos; nem vos perturbe que seja dívida o nosso trabalho; porque assim como a este é obrigada s sujeição, a fidelidade, e os bens dos povos, também não somos devedores mais, que do que permitem a nossa possibilidade, e forças.

“Se o Príncipe não se descuida, o seu descanso é virtude, e não é culpa; e basta que trabalhe por acertar, e vencer as paixões próprias, para que as gentes conheçam, que quando assim desacerta, os Deuses o determinam para castigar os vassalos.

“Não julgueis que só para os Soberanos não tenham limite os perigos, pois é o seu distrito o Mundo, onde todo o racional deve temê-los, mas é certo que é limitada a humana capacidade, para que um se encarregue de responder por muitos; porém os Numes inspiram, as virtudes animam, e os bons ajudam. Estes, se quereis conhecê-los, observai profundamente os homens como falam, se têm nobre lisura no que tratam, se usam verdade, se acompanham com os melhores; e não são orgulhosos, porque rara vez deixará de ser bom aquele, em que resplandeceram estas virtudes.

“Nem vos aflijam os enganos, a que somos arriscados; porque se é gênio antigo dos homens o irem sempre contraminando para bem lograr os seus intentos, também a ingenuidade das virtudes sabe penetrar fingimentos, e conhecer a condescendência dos lisonjeiros; e como sabeis que há este gênero de guerra, mais vezes os haveis de concluir, que eles vencer-vos; porém é certo que todos erram, e não há algum, que não tenha defeitos, por mais sábio, e entendido que seja. Assim como não há senhor tão poderoso, que não possa ser vencido, nem sábio, que não ignore muito, nem benquisto, que não tenha inimigos; pois que todos podem menos do que desejam, têm menos amigos do que entendem, e sabem menos do que presumem.

“Também é certo que o respeito é um inimigo doméstico, de que a Majestade precisa, ainda quando é oposto aos seus acertos. Nós giramos o Mundo, e sabemos o que nos ensinou a plebe, com quem conversamos; vivemos entre os bons, e os maus; observamos os que tinham mais, ou menos nobreza; assistimos com os pobres, e choramos com os perseguidos; e quando agora chegamos a reinar, sabíamos o que ignoram os que como nós obram na face do Mundo. Ah que se pudessem despir por algum tempo a Real grandeza, e a presentânea, veriam os Soberanos provada a identidade da razão! Nós padecemos fomes, frios, sustos, desprezos, injustiças, e imensos perigos; isto conduz muito para servirmos melhor os nossos ofícios, que os que entendem que é fantasia o pranto dos que padecem que todos os homens do Mundo só nasceram para os servirem; que não há mais, que o que podem alcançar com a vista; e assim os haverem trabalhos, desamparos, pobreza, e injustiças, não lhes faz no ânimo impressão, pois alguma vez o ouviram de tão longe dos que apenas lhe chegaram amortecidos ecos de alguns dos que suspiram aflitos; e tudo bem ponderado, não tendes tanto que temer nos cuidados, como eu razão para desejar-vos no trono.

“Bem sabeis que os sábios soberbos, quando eram mais preciosos, maltratavam a gentes, e desfrutavam mais que o Rei a autoridade Real, sem que jamais fossem castigados os seus maus procedimentos; porque o que rodeiam aos Soberanos, o calam por se algum, que despreze o temor pânico, para dizer o que sabe, ou o Rei se desgosta, ou os servos o arruínam; e de toda a sorte melhor serve quem menos presume; se se desvela por acertar, tem bondade nobre; e mais teme os remorsos internos, que os ameaços da morte.

“Os que são mal vistos do povo, também sabeis que fazem ser o Rei suspeito nos erros, que lhe condenam, e que são a causa de que desmaie o zelo, e o fervor, com que os vassalos se empenham nas empresas, quando têm fé nos que dão o conselho; e assim se malogram os bons arbítrios, porque são postos em prática por mãos do ódio; porém estas, e outras muitas circunstâncias são menos ponderáveis, que outros danos, que podem resultar de servir-se o Príncipe (em cousas de alta ponderação) com homens, que são odiosos ao pública, pois não os ocupar não é mais que deixar de aproveitar-se de alguns homens capazes, e de atendê-los algumas vezes têm procedido sucessos lamentáveis.

“Os que estudavam mais a própria conveniência, que em servirem, como honrados, sempre vimos que vendiam tão caro o fruto de seus estudos, que nunca entendiam serem pagos, ainda quanto mais recebiam: estes em toda a parte roubam sem susto, e são como os que no tempo das dissenções procuram agradar a ambos os partidos, que nem a um, nem a outro servem.

“Os que deixando ser bem vistos maquinavam perturbações, lembro-vos que para eles eram reprovados os remédios brandos, e suaves; porque como é duvidoso o seu efeito, em casos graves, sempre obram melhor os que são áspero, e fortes, pois não se deve encomendar ao tempo o que toca à violência. Se assim recordardes o que vimos pelo Mundo, conhecereis os homens, servir-vos-ão os melhores, e vivereis com eles gostoso, tendo cuidado em evitar os danos, antes que sejais obrigado a castigá-los, e obrando como quiséreis que tivesse convosco obrado os Soberanos; advertindo sempre que não honrar a quem o merece, negar o que com razão se pede, e não premiar a quem com desvelo serve, muitos vimos que o sofriam, porém nenhum, que o deixasse entregue ao silêncio: pelo que é também preciso ver a quem dais, para que o tenha merecido; o que dais, por não dar pouco; e quando dais, por não ser tarde; porque ainda que de toda a sorte se aceita poucas vezes se agradece.

“Cuidai em que os vossos exércitos andem bem disciplinados, e os soldados contentes, porque estes são as melhores muralhas das Cidades: fazem a grandeza do Rei, conservam-lhe o respeito, defendem-lhe os domínios, resguardam-lhe os povos, seguram-lhe a coroa, castigam-lhe inimigos, e estão para dar por ela a vida; e quando se admira o bem formado corpo de um exército poderoso, não só se contempla como respira o seu Soberano, mas parece que o respeito chega a ver com assombro o grande espírito da Majestade.

“Também deveis pensar na educação dos filhos dos vassalos, pois pelo que servem, mais o são da República, e da vossa esperança, que dos seus próprios pais.

“Vós não procuraste reinar, oprimir, sujeitar, e preferir a todos, como ordinariamente desejam os homens, que tomam aquele vaidoso empenho da soberba, com que destroem a sua felicidade; e suposto que para bem obrar não careceis dos meus ditames, como as paixões costumam escurecer os mais claros entendimentos, vos torno a lembrar que os Deuses vos escolheram, para que fosseis amparo dos bons, terror dos maus, alento das virtudes, e pais dos vossos vassalos, pelo que vos rogo que os animeis como Príncipe virtuoso, pois eu vos respondo como verdadeiro amigo, vos aconselho com expressões de legítimo afeto, vos animo com leis de boa razão, e justiça, com armas, e homens, que vos descansem, e com memórias de meus trabalhos, para que vejais que se as fadigas fazem o descanso, também este entre nós faz guerra às virtudes, que em vós sempre aumentem os Deuses consoladores.”

Assim terminou Arnesto a sua admirável resposta, em que se ostentavam gloriosas as doutrinas de Anteo, para quem se reservaram estes sazonados frutos.

Isicles determinando a sua partida para Nácsia, se despediu das Majestades, e juntamente os Oficiais de guerra, e os Jurisconsultos, que deviam embarcar. Arnesto com suaves expressões, e discretos ditames os enriquecem de admiráveis máximas, que nos vassalos radicaram amor, e nos estrangeiros veneração.

Embarcando Isicles, se repetiram festivas demonstrações, e muitos àqueles Soberanos, até que entre o estrondo das salvas, e as sonoras vozes dos clarins, perderam de vista a Delos, levando a notícia do gosto, e paz, com que ficavam gozando o verdadeiro afeto dos súditos, e os descansos, para que haviam concorrido as fadigas, conhecendo todos, que sempre é vencedora a verdade, e que a formosura triunfa, quando é constante a virtude.