Anexo:Imprimir/Confissões de uma Viúva Moça

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Ha dous annos tomei uma resolução singular: fui residir em Petropolis em pleno mez de Junho. Esta resolução abrio largo campo ás conjecturas. Tu mesma, nas cartas que me escreveste para aqui, deitaste o espirito a adivinhar e figuraste mil razões, cada qual mais absurda.

A estas cartas, em que a tua solicitude trahia a um tempo dous sentimentos, a affeição da amiga e a curiosidade de mulher, a essas cartas não respondi e nem podia responder. Não era opportuno abrir-te o meu coração nem desfiar-te a serie de motivos que me arredou da côrte, onde as operas do theatro Lyrico, as tuas partidas e os serões familiares do primo Barroso devião distrahir-me da recente viuvez.

Esta circumstancia de viuvez recente acreditavão muitos que fosse o unico motivo da minha fuga. Era a versão menos equivoca. Deixei-a passar como todas as outras e conservei-me em Petropolis.

Logo no verão seguinte vieste com teu marido para cá, disposta a não voltar para a côrte sem levar o segredo que eu teimava em não revelar. A palavra não fez mais do que a carta. Fui discreta como um tumulo, indecifravel como a Sphynge. Depuzeste as armas e partiste.

Desde então não me trataste senão por tua Sphynge.

Era Sphynge, era. E se, como Œdipo, tivesses respondido ao meu enigma a palavra « homem » descobririas o meu segredo, e desfarias o meu encanto.

Mas não anticipemos os acontecimentos, como se diz nos romances.

É tempo de contar-te este episodio da minha vida.

Quero fazêl-o por cartas e não por boca. Talvez corasse de ti. D’este modo o coração abre-se melhor e a vergonha não vem tolher a palavra nos labios. Repara que eu não fallo em lagrimas, o que é um symptoma de que a paz voltou ao meu espirito.

As minhas cartas irão de oito em oito dias, de maneira que a narrativa póde fazer-te o effeito de um folhetim de periodico semanal.

Dou-te a minha palavra de que has de gostar e aprender.

E oito dias depois da minha ultima carta irei abraçar-te, beijar-te, agradecer-te. Tenho necessidade de viver. Estes dous annos são nullos na conta de minha vida: forão dous annos de tedio, de desespero intimo, de orgulho abatido, de amor abafado.

Lia, é verdade. Mas só o tempo, a ausencia, a idéa do meu coração enganado, da minna dignidade offendida, puderão trazer-me a calma necessaria, a calma de hoje.

E sabe que não ganhei só isto. Ganhei conhecer um homem cujo retrato trago no espirito e que me parece singularmente parecido com outros muitos. Já não é pouco; e a lição ha de servir-me, como a ti, como ás nossas amigas inexperientes. Mostra-lhes estas cartas; são folhas de um roteio que se eu tivera antes, talvez, não houvesse perdido uma illusão e dous annos de vida.

Devo terminar esta. É o prefacio do meu romance, estudo, conto, o que quizeres. Não questiono sobre a designação, nem consulto para isso os mestres d’arte.

Estudo ou romance, isto é simplesmente um livro de verdades, um episodio singelamente contado, na confabulação intima dos espiritos, na plena confiança de dous corações que se estimão e se merecem.

Adeos.


Era no tempo de meu marido.

A côrte estava então animada e não tinha esta cruel monotonia que eu sinto aqui através das tuas cartas e dos jornaes de que sou assignante.

Minha casa era um ponto de reunião de alguns rapazes conversados e algumas moças elegantes. Eu, rainha eleita pelo voto universal... de minha casa, presidia aos serões familiares. Fóra de casa, tinhamos os theatros animados, as partidas das amigas, mil outras distracções que davão á minha vida certas alegrias exteriores em falta das intimas, que são as unicas verdadeiras e fecundas.

Se eu não era feliz, vivia alegre.

E aqui vai o começo do meu romance.

Um dia meu marido pedio-me como obsequio especial que eu não fosse á noite ao theatro Lyrico. Dizia elle que não podia acompanhar-me por ser vespera de sahida de paquete.

Era razoavel o pedido.

Não sei, porém, que espirito máo sussurrou-me ao ouvido e eu respondi peremptoriamente que havia de ir ao theatro, e com elle. Insistio no pedido, insisti na recusa. Pouco bastou para que eu julgasse a minha honra empenhada n’aquillo, Hoje vejo que era a minha vaidade ou o meu destino.

Eu tinha certa superioridade sobre o espirito de meu marido. O meu tom imperioso não admittia recusa; meu marido cedeu a despeito de tudo, e á noite fomos ao theatro Lyrico.

Havia pouca gente e os cantores estavão endefluxados. No fim do primeiro acto meu marido, com um sorriso vingativo, disse-me estas palavras rindo-se:

— Estimei isto.

— Isto? perguntei eu franzindo a testa.

— Este espectaculo deploravel. Fizeste da vinda hoje ao theatro um capitulo de honra; estimo ver que o espectaculo não correspondeu á tua expectativa.

— Pelo contrario, acho magnifico.

— Está bom.

Deves comprehender que eu tinha interesse em me não dar por vencida; mas acreditas facilmente que no fundo eu estava perfeitamente aborrecida do espectaculo e da noite.

Meu marido, que não ousava retorquir, calou-se com ar de vencido, e adiantando-se um pouco á frente do camarote percorreu com o binoculo as linhas dos poucos camarotes fronteiros em que havia gente.

Eu recuei a minha cadeira, e, encostada à divisão do camarote, olhava para o corredor vendo a gente que passava.

No corredor, exactamente em frente á porta do nosso camarote, estava um sujeito encostado, fumando e com os olhos fitos em mim. Não reparei ao principio, mas a insistencia obrigou-me a isso. Olhei para elle a ver se era algum conhecido nosso que esperava ser descoberto afim de vir então comprimentar-nos. A intimidade podia explicar este brinco. Mas não conheci.

Depois de alguns segundos, vendo que elle não tirava os olhos de mim, desviei os meus e cravei-os no panno da boca e na platéa.

Meu marido, tendo acabado o exame dos camarotes, deu-me o binoculo e sentou-se ao fundo diante de mim.

Trocámos algumas palavras.

No fim de um quarto de hora a orchestra começou os preludios para o segundo acto. Levantei-me, meu marido approximou a cadeira para a frente, e n’esse interim lancei um olhar furtivo para o corredor.

O homem estava lá.

Disse a meu marido que fechasse a porta.

Começou o segundo acto.

Então, por um espirito de curiosidade, procurei ver se o meu observador entrava para as cadeiras. Queria conhecêl-o melhor no meio da multidão.

Mas, ou porque não entrasse, ou porque eu não tivesse reparado bem, o que é certo é que o não vi.

Correu o segundo acto mais aborrecido do que o primeiro.

No intervallo recuei de novo a cadeira, e meu marido, a pretexto de que fazia calor, abrio a porta do camarote.

Lancei um olhar para o corredor.

Não vi ninguem; mas d’ahi a poucos minutos chegou o mesmo individuo, collocando-se no mesmo lugar, e fitou em mim os mesmos olhos impertinentes.

Somos todas vaidosas da nossa belleza e desejamos que o mundo inteiro nos admire. É por isso que muitas vezes temos a indiscrição de admirar a côrte mais ou menos arriscada de um homem. Ha, porém, uma maneira de fazêl-a que nos irrita e nos assusta; irrita-nos por impertinente, assusta-nos por perigosa. É o que se dava n’aquelle caso.

O meu admirador insistia de modo tal que me levava a um dilemma: ou elle era victima de uma paixão louca, ou possuia a da audacia mais desfaçada. Em qualquer dos casos não era conveniente que eu animasse as suas adorações.

Fiz estas reflexões emquanto decorria o tempo do intervalo. Ia começar o terceiro acto. Esperei que o mudo perseguidor se retirasse e disse a meu marido:

— Vamos?

— Ah!

— Tenho somno simplesmente; mas o espectactulo está magnifico.

Meu marido ousou exprimir um sophisma.

— Se está magnifico como te faz somno?

Não lhe dei resposta.

Sahímos.

No corredor encontrámos a familia do Azevedo que voltava de uma visita a um camarote conhecido. Demorei-me um pouco para abraçar as senhoras. Disse-lhes que tinha uma dôr de cabeça e que me retirava por isso.

Chegámos á porta da rua dos Ciganos.

Ahi esperei o carro por alguns minutos.

Quem me havia de apparecer alli, encostado ao portal fronteiro?

O mysterioso.

Enraiveci.

Cobri o rosto o mais que pude com o meu capuz e esperei o carro, que chegou logo.

O mysterioso lá ficou tão insensivel e tão mudo como o portal a que estava encostado.

Durante a viagem a idéa d’aquelle incidente não me sahio da cabeça. Fui despertada da minha distracção quando o carro parou á porta de casa, em Matacavallos.

Fiquei envergonhada de mim mesma e decidi não pensar mais no que se havia passado.

Mas acreditarás tu, Carlota? Dormi meia hora mais tarde do que suppunha, tanto a minha imaginação teimava em reproduzir o corredor, o portal, e o meu admirador platonico.

No dia seguinte pensei menos, No fim de oito dias tinha-me varrido do espirito aquella scena, e eu dava graças a Deos por haver-me salvo de uma preoccupação que podia ser-me fatal.

Quiz acompanhar o auxilio divino, resolvendo não ir ao theatro durante algum tempo.

Sujeitei-me á vida intima e limitei-me á distracção das reuniões á noite.

Entretanto estava proximo o dia dos annos da tua filhinha. Lembrei-me que para tomar parte na tua festa de familia, tinha começado um mez antes um trabalhozinho. Cumpria rematal-o.

Uma quinta-feira de manhã mandei vir os preparos da obra e ia continual-a, quando descobri dentre uma meada de lã um envolucro azul fechando uma carta.

Estranhei aquillo. A carta não tinha indicação. Estava collada e parecia esperar que a abrisse a pessoa a quem era endereçada. Quem seria? Seria meu marido? Acostumada a abrir todas as cartas que lhe erão dirigidas, não hesitei. Rompi o envolucro e descobri o papel côr de rosa que vinha dentro.

Dizia a carta:

« Não se sorprenda, Eugenia; este meio é o do desespero, este desespero é o do amor. Amo-a e muito. Até certo tempo procurei fugir-lhe e abafar este sentimento; não posso mais. Não me vio no theatro Lyrico? Era uma força occulta e interior que me levava alli. Desde então não a vi mais. Quando a verei? Não a veja embora, paciencia; mas que o seu coração palpite por mim um minuto em cada dia, é quanto basta a um amor que não busca nem as venturas do gozo, nem as galas da publicidade. Se a offendo, perdôe um peccador; se póde amar-me, faça-me um deos. »

Li esta carta com a mão tremula e os olhos anuviados; e ainda durante alguns minutos depois não sabia o que era de mim.

Cruzavão-se e confundião-se mil idéas na minha cabeça, como estes passaros negros que perpassão em bandos no céo nas horas proximas da tempestade.

Seria o amor que movêra a mão d’aquelle incognito? Seria simplesmente aquillo um meio de seductor calculado? Eu lançava um olhar vago em derredor e tremia ver entrar meu marido.

Tinha o papel diante de mim e aquellas lettras mysteriosas parecião-me outros tantos olhos de uma serpente infernal. Com um movimento nervoso e involuntario amarrotei a carta nas mãos.

Se Eva tivesse feito outro tanto á cabeça da serperite que a tentava não houvera peccado. Eu não podia estar certa do mesmo resultado, porque esta que me apparecia alli e cuja cabeça eu esmagava, podia, como a hydra de Lerna, brotar muitas outras cabeças.

Não cuides que eu fazia então esta dupla evocação bellica e pagã. N’aquelle momento, não reflectia, desvairava; só muito depois pude ligar duas idéas.

Dous sentimentos actuavão em mim: primeiramente , uma especie de terror que infundia o abysmo, abysmo profundo que eu presentia atrás d’aquella carta; depois uma vergonha amarga de ver que eu não estava tão alta na consideração d’aquelle desconhecido, que pudesse demovêl-o do meio que empregou.

Quando o meu espirito se acalmou é que eu pude fazer a reflexão que devia acudir-me desde o principio. Quem poria alli aquella carta? Meu primeiro movimento foi para chamar todos os meus famulos. Mas deteve-me logo a idéa de que por uma simples interrogação nada poderia colher e ficava divulgado o achado da carta. De que valia isto?

Não chamei ninguem.

Entretanto, dizia eu comigo, a empreza foi audaz; podia falhar a cada tramite; que movel impellio áquelle homem a dar este passo? Seria amor, ou seducção?

Voltando a este dilemma, meu espirito, apezar dos perigos, comprazia-se em aceitar a primeira hypothese: era a que respeitava a minha consideração de mulher casada e a minha vaidade de mulher formosa.

Quiz adivinhar lendo a carta de novo: li-a, não uma, mas duas, tres, cinco vezes.

Uma curiosidade indiscreta prendia-me áquelle papel. Fiz um esforço e resolvi aniquilal-o, protestando que ao segundo caso nenhum escravo ou criado me ficaria em casa.

Atravessei a sala com o papel na mão, dirigi-me para o meu gabinete, onde acendi uma vela e queimei aquella carta que me queimava as mãos e a cabeça.

Quando a ultima faisca do papel ennegreceu e voou, senti passos atrás de mim. Era meu marido.

Tive um movimento espontaneo: atirei-mei em seus braços.

Elle abraçou-me com certo espanto.

E quando o meu abraço se prolongava senti que elle me repellia com brandura dizendo-me:

— Está bom, olha que me afogas!

Recuei.

Entristeceu-me ver aquelle homem, que podia e devia salvar-me, não comprehender, por instincto ao menos, que se eu o abraçava tão estreitamente era como se me agarrasse á idéa do dever.

Mas este sentimento que me apertava o coração passou um momento para dar lugar a um sentimento de medo. As cinzas da carta ainda estavão no chão, a vela conservava-se acesa em pleno dia; era bastante para que elle me interrogasse.

Nem por curiosidade o fez!

Deu dous passos no gabinete e sahio.

Senti uma lagrima rolar-me pela face. Não era a primeira lagrima de amargura. Seria a primeira advertencia do peccado?


Decorreu um mez.

Não houve durante esse tempo mudança alguma em casa. Nenhuma carta appareceu mais, e a minha vigilancia, que era extrema, tornou-se de todo inutil.

Não me podia esquecer o incidente da carta. Se fosse só isto! As primeiras palavras voltavão-me incessantemente á memoria; depois, as outras, as outras, todas. Eu tinha a carta de cór!

Lembras-te? Uma das minhas vaidades era ter a memoria feliz. Até n’este dote era castigada. Aquellas palavras atordoavão-me, fazião-me arder a cabeça. Porque? Ah! Carlota! é que eu achava n’ellas um encanto indefinivel, encanto doloroso, porque era acompanhado de um remorso, mas encanto de que eu me não podia libertar.

Não era o coração que se empenhava, era a imaginação. A imaginação perdia-me; a luta do dever e da imaginação é cruel e perigosa para os espiritos fracos. Eu era fraca. O mysterio fascinava a minha fantasia.

Emfim os dias e as diversões puderão desviar o meu espirito d’aquelle pensamento unico. No fim de um mez, se eu não tinha esquecido inteiramente o mysterioso e a carta d’elle, estava, todavia, bastante calma para rir de mim e dos meus temores.

Na noite de uma quinta-feira, achavão-se algumas pessoas em minha casa, e muitas das minhas amigas, menos tu. Meu marido não tinha voltado, e a ausencia d’elle não era notada nem sentida, visto que, apezar de franco cavalleiro como era, não tinha o dom particular de um conviva para taes reuniões.

Tinha-se cantado, tocado, conversado; reinava em todos a mais franca e expansiva alegria; o tio da Amelia Azevedo fazia rir a todos com as suas excentricidades; a Amelia arrebatava bravos a todos com as notas da sua garganta celeste; estavamos em um intervalo, esperando a hora do chá.

Annunciou-se meu marido.

Não vinha só. Vinha ao lado d’elle um homem alto, magro, elegante. Não pude conhecêl-o. Meu marido adiantou-se, e no meio do silencio geral veio apresentar-m’o.

Ouvi de meu marido que onosso conviva chamava-se Emilio ***.

Fixei n’elle um olhar e retive um grito.

Era elle!

O meu grito foi substituido por um gesto de sorpresa. Ninguem percebeu. Elle pareceu perceber menos que ninguem. Tinha os olhos fixos em mim, e com um gesto gracioso dirigio-me algumas palavras de lisongeira cortezia.

Respondi como pude.

Seguírão-se as apresentações, e durante dez minutos houve um silencio de acanhamento em todos.

Os olhos voltavão-se todos para o recem-chegado. Eu tambem voltei os meus e pude reparar n’aquella figura em que tudo estava disposto para attrahir as attenções: cabeça formosa e altiva, olhar profundo e magnetico, maneiras elegantes e delicadas, certo ar distincto e proprio que fazia contraste com o ar affectado e prosaicamente medido dos outros rapazes.

Este exame de minha parte foi rapido. Eu não podia, nem me convinha encontrar o olhar de Emilio. Tornei a abaixar os olhos e esperei anciosa que a conversação voltasse de novo ao seu curso.

Meu marido encarregou-se de dar o tom. Infelizmente era ainda o novo conviva o motivo da conversa geral.

Soubemos então que Emilio era um provinciano filho de pais opulentos, que recebêra uma esmerada educação na Europa, onde não houve um só recanto que não visitasse.

Voltára ha pouco tempo ao Brasil, e antes de ir para a provincia tinha determinado passar algum tempo no Rio de Janeiro.

Foi tudo quanto soubemos. Vierão as mil perguntas sobre as viagens de Emilio, e este, com a mais amavel solicitude, satisfazia a curiosidade geral.

Só eu não era curiosa. É que não podia articular palavra. Pedia interiormente a explicação d’este romance mysterioso, começado em um corredor do theatro, continuado em uma carta anonyma e na apresentação em minha casa por intermedio de meu proprio marido.

De quando em quando levantava os olhos para Emilio e achava-o calmo e frio, respondendo polidamente ás interrogações dos outros e narrando elle proprio, com uma graça modesta e natural, alguma das suas aventuras de viagem.

Occorreu-me uma idéa. Seria realmente elle o mysterioso do theatro e da carta? Pareceu-me ao principio que sim, mas eu podia ter-me enganado; eu não tinha as feições do outro bem presentes à memoria; parecia-me que as duas creaturas erão uma e a mesma; mas não podia explicar-se o engano por uma semelhança miraculosa?

De reflexão em reflexão, foi-me correndo o tempo, e eu assistia á conversa de todos como se não estivesse presente. Veio a hora do chá. Depois cantou-se e tocou-se ainda. Emilio ouvia tudo com attenção religiosa e mostrava-se tão apreciador do gosto como era conversador discreto e pertinente.

No fim da noite tinha captivado a todos. Meu marido, sobretudo, estava radiante. Via-se que elle se considerava feliz por ter feito a descoberta de mais um amigo para si e um companheiro para as nossas reuniões de familia.

Emilio sahio promettendo voltar algumas vezes.

Quando eu me achei a sós com meu marido, perguntei-lhe:

— D’onde conheces este homem?

— É uma perola, não é? Foi-me apresentado no escriptorio ha dias; sympathisei logo; parece ser dotado de boa alma, é vivo de espirito e discreto como o bom senso. Não ha ninguem que não goste d’elle...

E como eu o ouvisse séria e calada, meu marido interrompeu-se e perguntou-me:

— Fiz mal em trazêl-o aqui?

— Mal, porque? perguntei eu.

— Por cousa nenhuma. Que mal havia de ser? É um homem distincto...

Puz termo ao novo louvor do rapaz, chamando um escravo para dar algumas ordens.

E retirei-me ao meu quarto.

O somno d’essa noite não foi o somno dos justos, pódes crer. O que me irritava era a preoccupação constante em que eu andava depois destes acontecimentos. Já eu não podia fugir inteiramente a essa preoccupação: era involuntaria, subjugava-me, arrastava-me. Era a curiosidade do coração, esse primeiro signal das tempestades em que succumbe a nossa vida e o nosso futuro.

Parece que aquelle homem lia na minha alma e sabia apresentar-se no momento mais proprio à occupar-me a imaginação como uma figura poetica e imponente. Tu, que o conheceste depois, dize-me se, dadas as circumstancias anteriores, não era para produzir esta impressão no espirito de uma mulher como eu!

Como eu, repito. Minhas cireumstancias erão especiaes, se não o soubeste nunca, suspeitaste-o ao menos.

Se meu marido tivesse em mim uma mulher, e se eu tivesse n’elle um marido, minha salvação era certa. Mas não era asim. Entrámos no nosso lar nupcial como dous viajantes estranhos em uma hospedaria, e aos quaes a calamidade do tempo e a hora avançada da noite obrigão a aceitar pousada sob o tecto do mesmo aposento.

Meu casamento foi resultado de um calculo e de uma conveniencia. Não inculpo meus pais. Elles cuidavão fazer-me feliz e morrêrão na convicção de que o era.

Eu podia, apezar de tudo, encontrar no marido que me davão um objecto de felicidade para todos os meus dias. Bastava para isso que meu marido visse em mim uma alma companheira da sua alma, um coração socio do seu coração. Não se dava isto; meu marido entendia o casamento ao modo da maior parte da gente; via n’elle a obediencia ás palavras do Senhor no Genesis.

Fóra d’isso, fazia-me cercar de certa consideração e dormia tranquillo na convicção de que havia cumprido o dever.

O dever! esta era a minha taboa de salvação. Eu sabia que as paixões não erão soberanas e que a nossa vontade póde triumphar d’ellas. A este respeito eu tinha em mim forças bastantes para repellir idéas más. Mas não era o presente que me abafava e atemorisava; era o futuro. Até então aquelle romance influia no meu espirito pela circumstancia do mysterio em que vinha envolto; a realidade havia de abrir-me os olhos; consolava-me a esperança de que eu triumpharia de um amor culpado. Mas, poderia n’esse futuro, cuja proximidade eu não calculava, resistir convenientemente á paixão e salvar intactas a minha consideração e a minha consciencia? Esta era a questão.

Ora, no meio d’estas oscilações, eu não via a mão de meu marido estender-se para salvar-me. Pelo contrario, quando na occasião de queimar a carta, atirava-me a elle, lembras-te que elle me repellio com uma palavra de enfado.

Isto pensei, isto senti, na longa noite que se seguio á apresentação de Emilio.

No dia seguinte estava fatigada de espirito; mas, ou fosse calma ou fosse prostração, senti que os pensamentos dolorosos que me havião torturado durante a noite esvaecêrão-se á luz da manhã, como verdadeiras aves da noite e da solidão.

Então abrio-se ao meu espirito um raio de luz. Era a repetição do mesmo pensamento que me voltava no meio das preoccupações d’aquelles ultimos dias.

Porque temer? dizia eu comigo. Sou uma triste medrosa; e fatigo-me em crear montanhas para cahir extenuada no meio da planicie. Eia! nenhum obstaculo se oppõe ao meu caminho de mulher virtuosa e considerada. Este homem, se é o mesmo, não passa de um máo leitor de romances realistas. O mysterio é que lhe dá algum valor; visto de mais perto ha de ser vulgar ou hediondo.


Não te quero fatigar com a narração minuciosa e diaria de todos os acontecimentos.

Emilio continuou a frequentar a nossa casa, mostrando sempre a mesma delicadeza e gravidade, e encantando a todos por suas maneiras distinctas sem affectação, amaveis sem fingimento.

Não sei porque meu marido revelava-se cada vez mais amigo de Emilio. Este conseguíra despertar n’elle um enthusiasmo novo para mim e para todos. Que capricho era esse da natureza?

Muitas vezes interroguei meu marido ácerca d’esta amizade tão subita e tão estrepitosa; quiz até inventar suspeitas no espirito d’elle; meu marido era inabalavel.

— Que queres? respondia-me elle. Não sei porque sympathiso extraordinariamente com este rapaz. Sinto que é uma bella pessoa, e eu não posso dissimular o enthusiasmo de que me possuo quando estou perto d’elle.

— Mas sem conhecêl-o... objectava eu.

— Ora essa! Tenho as melhores informações; e demais, vê-se logo que é uma pessoa distincta...

— As maneiras enganão muitas vezes.

— Conhece-se...

Confesso, minha amiga, que eu podia impôr a meu marido o afastamento de Emilio; mas quando esta idéa me vinha á cabeça, não sei porque ria-me dos meus temores e declarava-me com forças de resistir a tudo o que pudesse sobrevir.

Demais, o procedimento de Emilio autorisava-me a desarmar. Elle era para mim de um respeito inalteravel, tratava-me como a todas as outras, sem deixar entrever a menor intenção occulta, o menor pensamento reservado.

Succedeu o que era natural. Diante de tal procedimento não me ficava bem proceder com rigor e responder com a indiferença á amabilidade.

As cousas marchavão de tal modo que eu cheguei a persuadir-me de que tudo o que succedêra antes não tinha relação alguma com aquelle rapaz, e que não havia entre ambos mais do que um phenomeno da semelhança, o que aliás eu não podia affirmar, porque, como te disse já, não pudera reparar bem no homem do theatro.

Aconteceu que dentro de pouco tempo estavamos na maior intimidade, e eu era para elle o mesmo que todas as outras: admiradora e admirada.

Das reuniões passou Emilio ás simples visitas de dia, nas horas em que meu marido estava presente, e mais tarde, mesmo quando elle se achava ausente.

Meu marido de ordinario era quem o trazia. Emilio vinha então no seu carrinho que elle proprio dirigia, com a maior graça e elegancia. Demorava-se horas e horas em nossa casa, tocando piano ou conversando.

A primeia vez que o recebi só, confesso que estremeci; mas foi um susto pueril; Emilio procedeu sempre do modo mais indiferente em relação ás minhas suspeitas. N’esse dia, se algumas suspeitas me ficárão, desvanecêrão-se todas.

N’isto passárão-se dous mezes.

Um dia, era de tarde, eu estava só; esperava-te para irmos visitar teu pai enfermo. Parou um carro á porta. Mandei ver. Era Emilio.

Recebi-o como de costume.

Disse-lhe que iamos visitar um doente, e elle quiz logo sahir. Disse-lhe que ficasse até á tua chegada. Ficou como se outro motivo o detivesse além de um dever de cortezia.

Passou-se meia hora.

Nossa conversa foi sobre assumptos indiferentes.

Em um dos intervalos de conversa Emilio levantou-se e foi á janella. Eu levantei-me igualmente para ir ao piano buscar um leque. Voltando para o sofá reparei pelo espelho que Emilio me olhava com um olhar estranho. Era uma transfiguração. Parecia que n’aquelle olhar estava concentrada toda a alma d’elle.

Estremeci.

Todavia fiz um esforço sobre mim e fui sentar-me, então mais séria que nunca.

Emilio encaminhou-se para mim.

Olhei para elle.

Era o mesmo olhar.

Baixei os meus olhos.

— Assustou-se? perguntou-me elle.

Não respondi nada. Mas comecei a tremer de novo e parecia-me que o coração me queria pular fóra do peito.

É que n’aquellas palavras havia a mesma expressão do olhar; as palavras fazião-me o effeito das palavras da carta.

— Assustou-se? repetio elle.

— De que? perguntei eu procurando rir para não dar maior gravidade á situação.

— Pareceu-me.

Houve um silencio.

— D. Eugenia, disse elle sentando-se; não quero por mais tempo occultar o segredo que faz o tormento da minha vida. Fôra um sacrificio inutil. Feliz ou infeliz, prefiro a certeza da minha situação. D. Eugenia, eu amo-a.

Não te posso descrever como fiquei ouvindo estas palavras. Senti que empallidecia; minhas mãos estavão geladas. Quiz fallar: não pude.

Emilio continuou:

— Oh! eu bem sei a que me exponho. Vejo como este amor é culpado. Mas que quer? É fatalidade. Andei tantas leguas, passei á ilharga de tantas belezas, sem que o meu coração pulsasse. Estava-me reservada a ventura rara ou o tremendo infortunio de ser amado ou desprezado pela senhora. Curvo-me ao destino. Qualquer que seja a resposta que eu possa obter, não recuso, aceito. Que me responde?

Emquanto elle fallava, eu podia, ouvindo-lhe as palavras, reunir algumas idéas. Quando elle acabou levantei os olhos e disse:

— Que resposta espera de mim?

— Qualquer.

— Só póde esperar uma...

— Não me ama?

— Não! Nem posso e nem amo, nem amaria se pudesse ou quizesse... Peço que se retire.

E levantei-me.

Emilio levantou-se.

— Retiro-me, disse elle; e parto com o inferno no coração.

Levantei os hombros em signal de indifferença.

— Oh! eu bem sei que isso lhe é indifferente. É isso o que eu mais sinto. Eu preferia o odio; o odio, sim; mas a indifferença, acredite, é o peior castigo. Mas eu recebo resignado. Tamanho crime deve ter tamanha pena.

E tomando o chapéo chegou-se a nim de novo.

Eu recuei dous passos.

— Oh! não tenha medo. Causo-lhe medo?

— Medo? retorqui eu com altivez.

— Asco? perguntou elle.

— Talvez... murmurei.

— Uma unica resposta, tornou Emilio; conserva aquella carta ?

— Ah! disse eu. Era o autor da carta?

— Era. E aquelle mysterioso do corredor do theatro Lyrico. Era eu. A carta?

— Queimei-a.

— Prevenio o meu pensamento.

E comprimentando-me friamente dirigio-se para a porta. Quasi a chegar á porta senti que elle vacillava e levava a mão ao peito.

Tive um momento de piedade. Mas era necessario que elle se fosse, quer soffresse quer não. Todavia, dei um passo para elle e perguntei-lhe de longe:

— Quer dar-me uma resposta?

Elle parou e voltou-se.

— Pois não!

— Como é que para praticar o que praticou fingio-se amigo de meu marido?

— Foi um acto indigno, eu sei; mas o meu amor é d’aquelles que não recuão ante à indignidade. É o unico que eu comprehendo. Mas, perdão; não quero enfadal-a mais. Adeos! Para sempre!

E sahio.

Pareceu-me ouvir um soluço.

Fui sentar-me ao sofá. D’ahi a pouco ouvi o rodar do carro.

O tempo que mediou entre a partida d’elle e a tua chegada não sei como se passou. No lugar em que fiquei ahi me achaste.

Até então eu não tinha visto o amor senão nos livros. Aquelle homem parecia-me realisar o amor que eu sonhára e víra descripto. A idéa de que o coração de Emilio sangrava n’aquelle momento, despertou em mim um sentimento vivo de piedade. A piedade foi um primeiro passo.

— Quem sabe, dizia eu comigo mesma, o que elle está agora soffrendo? E que culpa é a d’elle, a final de contas? Ama-me, disse-m’o: o amor foi mais forte do que a razão; não vio que eu era sagrada para elle; revelou-se. Ama, é a sua desculpa.

Depois repassava na memoria todas as palavras delle e procurava recordar-me do tom em que elle as proferíra. Lembrava-me tambem do que eu dissera e o tom com que respondêra ás suas confissões.

Fui talvez severa de mais. Podia manter a minha dignidade sem abrir-lhe uma chaga no coração. Se eu fallasse com mais brandura podia adquirir d’elle o respeito e a veneração. Agora ha de amar-me ainda, mas não se recordará do que se passou sem um sentimento de amargura.

Estava n’estas reflexões quando entraste.

Lembras-te que me achaste triste e perguntaste à causa d’isso. Nada te respondi. Fomos á casa de tua tia, sem que eu nada mudasse do ar que tinha antes.

Á noite quando meu marido me perguntou por Emilio, respondi sem saber o que respondia:

— Não veio cá hoje.

— Devéras? disse elle. Então está doente.

— Não sei.

— Lá vou amanhã.

— Lá onde?

— A casa d’elle.

— Para que?

— Talvez esteja doente.

— Não creio; esperemos até ver...

Passei uma noite angustiosa. A idiéa de Emilio perturbava-me o somno. Afigurava-se-me que elle estaria áquella hora chorando lagrimas de sangue no desespero do amor não aceito.

Era piedade? Era amor?

Carlota, era uma e outra cousa. Que podia ser mais? Eu tinha posto o pé em uma senda fatal; uma força me attrahia. Eu fraca, podendo ser forte. Não me inculpo senão a mim.

Até domingo.


Na tarde seguinte, quando meu marido voltou perguntei por Emilio.

— Não o procurei, respondeu-me elle; tomei o conselho; se não vier hoje, sim.

Passou-se, pois, um dia sem ter noticias d’elle.

No dia seguinte, não tendo apparecido, meu marido foi lá.

Serei franca comtigo, eu mesma lembrei isso a meu marido.

Esperei anciosa a resposta.

Meu marido voltou pela tarde. Tinha um certo ar triste. Perguntei o que havia.

— Não sei. Fui encontrar o rapaz de cama. Disse-me que era uma ligeira constipação; mas eu creio que não é isso só...

— Que será então? perguntei eu, fitando um olhar em meu marido.

— Alguma cousa mais. O rapaz fallou-me em embarcar para o norte. Está triste, distrahido, preoccupado. Ao mesmo tempo que manifesta a esperança de ver os pais, revela receios de não tornar a vêl-os. Tem idéas de morrer na viagem. Não sei que lhe aconteceu, mas foi alguma cousa. Talvez...

— Talvez?

— Talvez alguma perda de dinheiro.

Esta resposta transtornou o meu espirito. Posso affirmar-te que esta resposta entrou por muito nos acontecimentos posteriores.

Depois de algum silencio perguntei:

— Mas que pretende fazer?

— Abrir-me com elle. Perguntar o que é, e acudir-lhe se fôr possivel. Em qualquer caso não o deixarei partir. Que achas?

— Acho que sim.

Tudo o que ia acontecendo contribuia poderosamente para tornar a idéa de Emilio cada vez mais presente á minha memoria, e, é com dôr que o confesso, não pensava já n’elle sem pulsações do coração.

Na noite do dia seguinte estavamos reunidas algumas pessoas. Eu não dava grande vida á reunião. Estava triste e desconsolada. Estava com raiva de mim propria. Fazia-me algoz de Emilio e doia-me a idéa de que elle padecesse ainda mais por mim.

Mas, serião nove horas, quando meu marido appareceu trazendo Emilio pelo braço.

Houve um movimento geral de sorpresa.

Realmente porque Emilio não apparecia alguns dias já todos começavão a perguntar por elle; depois, porque o pobre moço vinha pallido de cêra.

Não te direi o que se passou n’essa noite. Emilio parecia soffrer, não estava alegre como d’antes; ao contrario, era n’aquella noite de uma taciturnidade, de uma tristeza que incommodava a todos, mas que me mortificava atrozmente, a mim que me fazia causa das suas dôres.

Pude fallar-lhe em uma occasião, a alguma distancia das outras pessoas.

— Desculpe-me, disse-lhe eu, se alguma palavra dura lhe disse. Comprehende a minha posição. Ouvindo bruscamente o que me disse não pude pensar no que dizia. Sei que soffreu; peço-lhe que não soffra mais e esqueça...

— Obrigado, murmurou elle.

— Meu marido fallou-me de projectos seus...

— De voltar á minha provincia, é verdade.

— Mas doente...

— Esta doença ha de passar.

E dizendo isto lançou-me um olhar tão sinistro que eu tive medo.

— Passar? passar como?

-— De algum modo.

— Não diga isso...

— Que me resta mais na terra?

E voltou os olhos para enxugar uma lagrima.

— Que é isso? disse eu. Está chorando?

— As ultimas lagrimas.

— Oh! se soubesse como me faz soffrer! Não chore; eu lh’o peço. Peço-lhe mais. Peço-lhe que viva.

— Oh!

— Ordeno-lhe.

— Ordena-me? E se eu não obedecer? Se eu não puder?... Acredita que se possa viver com um espinho no coração?

Isto que te escrevo é feio. A maneira por que elle fallava é que era apaixonada, dolorosa, commovente. Eu ouvia sem saber de mim. Approximavão-se algumas pessoas. Quiz pôr termo á conversa e disse-lhe:

— Ama-me? disse eu. Só o amor póde ordenar? Pois é o amor que lhe ordena que viva!

Emilio fez um gesto de alegria. Levantei-me para ir fallar ás pessoas que se approximavão.

— Obrigado, murmurou-me elle aos ouvidos.

Quando, no fim do serão, Emilio se despedio de mim, dizendo-me, com um olhar em que a gratidão e o amor irradiavão juntos: — Até amanhã! — não sei que sentimento de confusão e de amor, de remorso e de ternura se apoderou de mim.

— Bem; Emilio está mais alegre, dizia-me meu marido.

Eu olhei para elle sem saber o que responder.

Depois retirei-me precipitadamente. Parecia-me que via n’elle a imagem da minha consciencia.

No dia seguinte recebi de Emilio esta carta:

« Eugenia. Obrigado. Torno-me á vida, e á senhora o devo. Obrigado! fez de um cadaver um homem, faça agora de um homem um deos. Animo! animo! »

Li esta carta, reli, e... dir-t’o-hei, Carlota? beijei-a. Beijei-a repetidas vezes com alma, com paixão, com delirio. Eu amava! eu amava!

Então houve em mim a mesma luta, mas estava mudada a situação dos meus sentimentos. Antes era o coração que fugia á razão, agora a razão fugia ao coração.

Era um crime, eu bem o via, bem o sentia; mas não sei qual era a minha fatalidade, qual era a minha natureza, eu achava nas delicias do crime desculpa ao meu erro,e procurava com isso legitimar a minha paixão.

Quando meu marido se achava perto de mim eu me sentia melhor e mais corajosa...

Paro aqui d’esta vez. Sinto uma oppressão no peito. É a recordação de todos estes acontecimentos.

Até domingo.


Seguírão-se alguns dias ás scenas que eu te contei na minha carta passada.

Activou-se entre mim e Emilio uma correspondencia. No fim de quinze dias eu só vivia do pensamento d’elle.

Ninguem dos que frequentavão a nossa casa, nem mesmo tu, pôde descobrir este amor. Eramos dous namorados discretos a ultimo ponto.

É certo que muitas vezes me perguntavão porque é que eu me distrahia tanto e andava tão melancolica; isto chamava-me á vida real e eu mudava logo de parecer.

Meu marido sobretudo parecia soffrer com as minhas tristezas.

A sua solicitude, confesso, incommodava-me. Muitas vezes lhe respondia mal, não já porque eu o odiasse, mas porque de todos era elleo unico a quem eu não quizera ouvir d’estas interrogações.

Um dia voltando para casa á tarde chegou-se elle a mim e disse:

— Eugenia, tenho uma noticia a dar-te.

— Qual?

— E que te ha de agradar muito.

— Vejamos qual é.

— É um passeio.

— Aonde?

— A idéa foi minha. Já fui ao Emilio e elle applaudio muito. O passeio deve ser domingo á Gavia; iremos d’aqui muito cedinho. Tudo isto, é preciso notar, não está decidido. Depende de ti. O que dizes?

— Approvo a idéa.

— Muito bem. A Carlota póde ir.

— E deve ir, accrescentei eu; e algumas outras amigas.

Pouco depois recebias tu e outras um bilhete de convite para o passeio.

Lembras-te que lá fomos. O que não sabes é que n’esse passeio, a favor da confusão e da distracção geral, houve entre mim e Emilio um dialogo que foi para mim a primeira amargura de amor.

— Eugenia, dizia elle dando-me o braço, estás certa de que me amas?

— Estou.

— Pois bem. O que te peço, nem sou eu que te peço, é o meu coração, é o teu coração que te pedem, um movimento nobre capaz de nos engrandecer aos nossos proprios olhos. Não haverá um recanto no mundo em que possamos viver, longe de todos e perto do céo?

— Fugir?

— Sim!

— Oh! isso nunca!

— Não me amas.

— Amo, sim; é já um crime, não quero ir além.

— Recusas a felicidade?

— Recuso a deshonra.

— Não me amas.

— Oh! meu Deos, como respondêl-o? Amo, sim; mas desejo ficar a seus olhos a mesma mulher, amorosa é verdade, mas até certo ponto... pura.

— O amor que calcula, não é amor.

Não respondi. Emilio disse estas palavras com uma expressão tal de desdem e com uma intenção de ferir-me que eu senti o coração bater-me apressado, e subir-me o sangue ao rosto.

O passeio acabou mal.

Esta scena tornou Emilio frio para mim; eu soffria com isso; procurei tornal-o ao estado anterior; mas não consegui.

Um dia em que nos achavamos a sós, disse-lhe:

— Emilio, se eu amanhã te acompanhasse, o que farias?

— Cumpria essa ordem divina.

— Mas depois?

— Depois? perguntou Emilio com ar de quem estranhava a pergunta.

— Sim, depois, continuei eu; depois quando o tempo volvesse não me havias de olhar com desprezo?

— Desprezo? Não vejo...

— Como não? Que te mereceria eu depois?

— Oh! esse sacrifício seria feito por minha causa, eu fôra cobarde se te lançasse isso em rosto.

— Dil-o-hias no teu intimo.

— Juro que não.

— Pois a meus olhos é assim; eu nunca me perdoaria esse erro.

Emilio pôz o rosto nas mãos e pareceu chorar. Eu que até alli fallava com esforço, fui a elle e tirei-lhe o rosto das mãos.

— Que é isto? disse eu. Não vês que me fazes chorar tambem?

Elle olhou para mim com os olhos rasos de lagrimas. Eu tinha os meus humidos.

— Adeos, disse elle repentinamente. Vou partir.

E deu um passo para a porta.

— Se me promettes viver, disse-lhe, parte; se tens alguma idéa sinistra, fica.

Não sei o que vio elle no meu olhar, mas tomando a mão que eu lhe estendia beijou-a repetidas vezes (erão os primeiros beijos) e disse-me com fogo:

— Fico, Eugenia!

Ouvímos um ruido fóra. Mandei ver. Era meu marido que chegava enfermo. Tinha tido um ataque no escriptorio. Tornára a si, mas achava-se mal. Alguns amigos o trouxerão dentro de um carro.

Corri para a porta. Meu marido vinha pallido e desfeito. Mal podia andar ajudado pelos amigos.

Fiquei desesperada, não cuidei de mais cousa alguma. O medico que acompanhára meu marido mandou logo fazer algumas applicações de remedios. Eu estava impaciente; perguntava a todos se meu marido estava salvo.

Todos me tranquillisavão.

Emilio mostrou-se pezaroso com o acontecimento. Foi a meu marido e apertou-lhe a mão.

Quando Emilio quiz sahir, meu marido disse-lhe:

— Olhe, sei que não póde estar aqui sempre; peço-lhe, porém, que venha, se puder, todos os dias.

— Pois não, disse Emilio.

E sahio.

Meu marido passou mal o resto d’aquelle dia e a noite. Eu não dormi. Passei a noite no quarto.

No dia seguinte estava exhausta. Tantas commoções diversas e uma vigilia tão longa deixárão-me prostrada: cedi a força maior. Mandei chamar a prima Elvira e fui deitar-me.

Fecho esta carta n’este ponto. Pouco falta para chegar ao termo da minha triste narração.

Até domingo.


A molestia de meu marido durou poucos dias. De dia para dia aggravava-se. No fim de oito dias os medicos desenganárão o doente.

Quando eu recebi esta fatal nova fiquei como louca. Era meu marido, Carlota, e apezar de tudo eu não podia esquecer que elle tinha sido o companheiro da minha vida e a idéa salvadora nos desvios do meu espirito.

Emilio achou-me n’um estado de desespero. Procurou consolar-me. Eu não lhe occultei que esta morte era um golpe profundo para mim.

Uma noite estavamos juntos todos, eu, a prima Elvira, uma parenta de meu marido e Emilio. Faziamos companhia ao doente. Este, depois de um longo silencio, voltou-se para mim e disse-me:

— A tua mão.

E apertando-me a mão com uma energia suprema, voltou-se para a parede.

Expirou.

. . . . . . . . . .

Passárão-se quatro mezes depois dos factos que te contei. Emilio acompanhou-me na dôr e foi dos mais assiduos em todas as ceremonias funebres que se fizerão ao meu finado marido.

Todavia, as visitas começárão a escassear. Era, parecia-me, por motivo de uma delicadeza natural.

No fim do prazo de que te fallei, soube, por boca de um dos amigos de meu marido, que Emilio ia partir. Não pude crer. Escrevi-lhe uma carta.

Eu amava-o então, como d’antes, mais ainda, agora que estava livre.

Dizia a carta :

« Emilio. Constou-me que ias partir. Será possivel? Eu mesma não posso acreditar nos meus ouvidos! Bem sabes se eu te amo. Não é tempo de coroar os nossos votos; mas não faltará muito para que o mundo nos releve uma união que o amor nos impõe. Vem tu mesmo responder-me por boca. Tua Eugenia. »

Emilio veio em pessoa. Asseverou-me que, se ia partir, era por negocio de pouco tempo, mas que voltaria loco. A viagem devia ter lugar d’ahi a oito dias.

Pedi-lhe que jurasse o que dizia, e elle jurou.

Deixei-o partir.

D’ahi a quatro dias recebia eu a seguinte carta d’elle :

« Menti, Eugenia; vou partir já. Menti ainda, eu não volto. Não volto porque não posso. Uma união comtigo seria para mim o ideal da feiicidade se eu não fosse homem de habitos oppostos ao casamento. Adeos. Desculpa-me, e reza para que eu faça boa viagem. Adeos. Emilio. »

Avalias facilmente como fiquei depois de ler esta carta. Era um castello que se desmoronava. Em troca do meu amor, do meu primeiro amor, recebia d’este modo a ingratidão e o desprezo. Era justo: aquelle amor culpado não podia ter bom fim; eu fui castigada pelas consequencias mesmo do meu crime.

Mas, perguntava eu, como é que este homem, que parecia amar-me tanto, recusou aquella de cuja honestidade podia estar certo, visto que pôde oppôr uma resistencia aos desejos de seu coração? Isto me pareceu um mysterio. Hoje vejo que não era; Emilio era um seductor vulgar e só se differençava dos outros em ter um pouco mais de habilidade que elles.

Tal é a minha historia. Imagina o que soffri n’estes dous annos. Mas o tempo é um grande medico: estou curada.

O amor offendido e o remorso de haver de algum modo trahido a confiança de meu esposo fizerão-me doer muito. Mas eu creio que caro paguei o meu crime e acho-me rehabilitada perante a minha consciencia.

Achar-me-hei perante Deos?

E tu? É o que me has de explicar amanhã; vinte e quatro horas depois de partir esta carta eu serei ocmtigo.

Adeos!