Anexo:Imprimir/História do Futuro

  • Ao imprimir esta página, selecione a opção de Versão para impressão do menu lateral esquerdo. Notarás que desaparecerão este quadro, os cabeçalhos e elementos de navegação entre páginas que não seriam úteis em uma versão impressa.
  • Clicando primeiro em atualizar esta página estará se assegurando de obter as últimas atualizações feitas no livro antes de o imprimir.
  • Se preferir, podes exportar o texto em um dos formatos a seguir:


Índice editar

Volume I editar

Volume II editar

Livro I editar

Livro II editar

Plano da História do Futuro editar

Nenhuma cousa se pode prometer à natureza humana mais conforme ao seu maior apetite, nem mais superior a toda a sua capacidade, que a notícia dos tempos e sucessos futuros; e isto é o que oferece a Portugal, à Europa e ao Mundo esta nova e nunca vista história. As outras histórias contam as cousas passadas, esta promete dizer as que estão por vir; as outras trazem à memória aqueles sucessos públicos que viu o Mundo; esta intenta manifestar ao Mundo aqueles segredos ocultos e escuríssimos que não chega a penetrar o entendimento. Levanta-se este assunto sobre toda a esfera da capacidade humana, porque Deus, que é a fonte de toda a sabedoria, posto que repartiu os tesouros dela tão liberalmente com os homens, e muito mais com o primeiro, sempre reservou para si a ciência dos futuros, como regalia própria da divindade. Como Deus por natureza seja eterno, é excelência gloriosa, não tanto de sua sabedoria, quanto de sua eternidade, que todos os futuros lhe sejam presentes; o homem, filho do tempo, reparte com o mesmo a sua ciência ou a sua ignorância; do presente sabe pouco, do passado menos e do futuro nada.

A ciência dos futuros — disse Platão — é a que distingue os deuses dos homens, e daqui lhes veio sem dúvida aquele antiquíssimo apetite de serem como deuses. Aos primeiros homens, a quem Deus tinha infundido todas as ciências, nenhuma lhes faltava senão a dos futuros, e esta lhes prometeu o Demônio com a divindade, quando lhes disse: Eritis sicut Dii, scientes bonum et malum. Mas ainda que experimentaram o engano, não perderam o apetite. Esta foi a herança que nos ficou do Paraíso, este o fruto daquela árvore fatal, bem vedado e mal apetecido, mas por isso mais apetecido, porque vedado.

Como é inclinação natural no homem apetecer o proibido e anelar ao negado, sempre o apetite e curiosidade humana está batendo às portas deste segredo, ignorando sem moléstia muitas cousas das que são, e afetando impaciente a ciência das que hão de ser. Por este meio veio o Demônio a conseguir que o homem lhe desse falsamente a divindade, que o mesmo demônio com igual falsidade lhe tinha prometido. E senão, pergunto: Quem foi o que introduziu no Mundo, sem algum medo, mas antes com aplauso, a adoração do Demônio? Quem fez que fosse tão freqüentado e consultado o ídolo de Apolo em Delfos? O de Júpiter em Babilônia? O de Juno em Cartago? O de Vênus no Egito? O de Dafne em Antioquia? O de Orfeu em Lesbo? O de Fauno em Itália? O de Hércules em Espanha, e infinitos outros em muitas partes? Não há dúvida que o desejo insaciável que os homens sempre tiveram de saber os futuros, e a falsa opinião dos oráculos com que o Demônio respondia naquelas estátuas, foram os que todo este culto lhe granjearam, sendo certo que, se Deus, vindo ao Mundo, não emudecera (como emudeceu) os oráculos da Gentilidade, grande parte do que hoje é fé, fora ainda idolatria. Tão mal sofreram os homens que Deus reservasse para si a ciência dos futuros, que chegaram a dar às pedras a divindade própria de Deus, só porque Deus fizera própria da divindade esta ciência: antes queriam uma estátua que lhes dissesse os futuros, que um Deus que lhos encobria.

Mas que direi das ciências ou ignorâncias das artes ou superstições que os homens inventaram desde a terra até o céu, levados deste apetite? Sobre os quatro elementos assentaram quatro artes de adivinhar os futuros, que tomaram os nomes dos seus próprios sujeitos: agromancia, que ensina a adivinhar pelas cousas da terra; a hidromancia, pelas da água; a aeromancia, pelas do ar, e a piromancia, pelas do fogo. Tão cegos seus autores no apetite vão daquela curiosidade, que, tendo-se perdido na terra os vestígios de tantas cousas passadas, cuidaram que na água, no ar e no fogo os podiam achar das futuras.

No mesmo homem descobriram os homens dois livros sempre abertos e patentes, em que lessem ou soletrassem esta ciência. A fisionomia, nas feições do rosto; a quiromancia, nas raias da mão. Em um mapa tão pequeno, tão plano e tão liso como a palma da mão de um homem, inventaram os quiromantes não só linhas e caracteres distintos, senão montes levantados e divididos, e ali descrita a ordem e sucessão da vida e casos dela, os anos, as doenças e os perigos, os casamentos, as guerras, as dignidades, e todos os outros futuros prósperos ou adversos; arte certamente merecedora de ser verdadeira pois punha a nossa fortuna nas nossas mãos.

Deixo a astrologia judiciária, tão celebrada no nascimento dos príncipes, em que os genetlíacos, sobre o fundamento de uma só hora ou instante da vida, levantam ou figura ou testemunhos a todos os Sucessos dela. Nem quero falar na triste e funesta nicromancia, que, freqüentando os cemitérios e sepulturas no mais escuro e secreto da noite, invoca com deprecações e conjuros as almas dos mortos para saber os futuros dos vivos.

A este fim excogitaram tantos gêneros de sortilégios, como se na contingência da sorte se houvesse de achar a certeza; a este fim observaram os sonhos como se soubesse mais um homem dormindo do que sabia acordado; a este sentido consultavam as entranhas palpitantes dos animais, como se um bruto morto pudesse ensinar a tantos homens vivos. Com o mesmo apetite pediam respostas às fontes, aos rios, aos bosques e às penhas; com o mesmo inquiriam os cantos e vôos das aves, os mugidos dos animais, as folhas e movimentos das árvores, com o mesmo interpretavam os números, os nomes e as letras, os dias e os fumos, as sombras e as cores e não havia cousa tão baixa e tão miúda por onde os homens não imaginassem que podiam alcançar aquele segredo que Deus não quis que eles soubessem. O ranger da porta, o estalar do vidro, o cintilar da candeia, o topar do pé, o sacudir dos sapatos, tudo notavam como avisos da Providencia e temiam como presságios do futuro. Falo da cegueira e desatino dos tempos passados, por não envergonhar a nobreza da nossa Fé com a superstição dos presentes.

Finalmente, a investigação deste tão apetecido segredo foi o estudo e disputa dos maiores e mais sinalados filósofos, de Sócrates, de Pitágoras, de Platão, de Aristóteles e do eloqüente Túlio, nos livros mais sublimes e doutos de todas suas obras. Esta era a teologia famosa dos Caldeus; este o grande mistério dos Egípcios; esta em Roma a religião dos áugures; esta em Judéia a seita dos Pitões e Aríolos; esta em Pérsia a ciência e profissão dos Magos; esta enfim do Céu até o Inferno, o maior desvelo dos sábios e maior ânsia e tropeço dos ignorantes; uns injuriando o Céu, e dando trato às estrelas para que digam o que não podem; outros inquietando o Inferno (como dizia Samuel), e tentando os mesmos demônios, para que revelem o que não sabem. Tanto foi em todas as idades do Mundo, e tanto é hoje, na curiosidade humana, o apetite de conhecer o futuro!

Mas o que mais que tudo encarece a tenacidade deste desejo, é considerar que, enganados tão profundamente os homens pela falsidade e mentira de todas estas artes e seus ministros, não tenha bastado nenhuma experiência, nem haja de bastar já para mais os desenganar e apartar dele: Genus hominum potentibus infidum, sperantibus fallax, quod in civitate nostra, et vetabitur semper et retinebitur, disse Tácito. O mesmo Saul, que desterrou a Pitonisa, a foi buscar e se serviu de sua má arte; e os mesmos que mais severamente negam o crédito às cousas prognosticadas, folgam de ouvir e saber que se prognosticam, sinal certo que não buscam os homens os futuros, porque os achem, senão que vão sempre após eles, porque os amam.

Para satisfazer, pois, à maior ânsia deste apetite e para correr a cortina aos maiores e mais ocultos segredos deste mistério, pomos hoje no teatro do Mundo esta nossa História, por isso chamada do Futuro. Não escrevemos com Beroso as antiguidades dos Assírios, nem com Xenofonte a dos Persas, nem com Heródoto as dos Egípcios, nem com Josofo a dos Hebreus, nem com Cúrcio a dos Macedônios, nem com Tucídides a dos Gregos, nem com Lívio a dos Romanos, nem com os escritores portugueses as nossas; mas escrevemos sem autor o que nenhum deles escreveu nem pôde escrever. Eles escreveram histórias do passado para os futuros, nós escrevamos a do futuro para os presentes. Impossível pintura parece antes dos originais retratar as cópias, mas isto é o que fará o pincel da nossa História.

Assim foram retratos de Cristo Abel, Isaac, José, David, antes do Verbo ser homem. O que ignorou o mundo antigo, o que não conheceu o moderno e o que não alcança o presente, é o que se verá com admiração neste prodigioso mapa descrito: cousas e casos que ainda lhes falta muito para terem ser quanto mais Antigüidade.

A história mais antiga começa no princípio do Mundo; a mais estendida e continuada acaba nos tempos em que foi escrita. Esta nossa começa no tempo em que se escreve, continua por toda a duração do Mundo e acaba com o fim dele. Mede os tempos vindouros antes de virem, conta os sucessos futuros antes de sucederem, e descreve feitos heróicos e famosos, antes de a fama os publicar e de serem feitos.

O tempo, como o Mundo, tem dois hemisférios: um superior e visível, que é o passado, outro inferior e invisível, que é o futuro. No meio de um e outro hemisfério ficam os horizontes do tempo, que são estes instantes do presente que imos vivendo, onde o passado se termina e o futuro começa. Desde este ponto toma seu princípio a nossa História, a qual nos irá descobrindo as novas regiões e os novos habitadores deste segundo hemisfério do tempo, que são os antípodas do passado. Oh que de cousas grandes e raras haverá que ver neste novo descobrimento!

Aqueles historiadores que nomeamos e foram os mais célebres do Mundo, escreveram os impérios, as repúblicas, as leis, os conselhos, as resoluções, as conquistas, as batalhas, as vitórias, a grandeza, a opulência e felicidade, a mudança, a declinação, a ruína ou daquelas mesmas nações, ou de outras igualmente poderosas, que com elas contendiam. Nós também havemos de falar de reinos e de impérios, de exércitos e de vitórias, de ruínas de umas nações e exaltações de outras; mas de impérios não já fundados, senão que se hão-de fundar; de vitórias não já vencidas, mas que se hão-de vencer; de nações não já domadas e rendidas, senão que se hão-de render e domar.

Hão-se de ler nesta História, para exaltação da Fé, para triunfo da Igreja, para glória de Cristo, para felicidade e paz universal do Mundo, altos conselhos, animosas resoluções, religiosas empresas, heróicas façanhas, maravilhosas vitórias, portentosas conquistas, estranhas e espantosas mudanças de estados, de tempos, de gentes, de costumes, de governos, de leis; mas leis novas, governos novos, costumes novos, gentes novas, tempos novos, estados novos, conselhos e resoluções novas, empresas e façanhas novas, conquistas, vitórias, paz, triunfos e felicidades novas; e não só novas, porque são futuras, mas porque não terão semelhança com elas nenhumas das passadas. Ouvirá o Mundo o que nunca viu, lerá o que nunca ouviu, admirará o que nunca leu, e pasmará assombrado do que nunca imaginou. E se as histórias daqueles escritores, sendo de cousas menores antigas e passadas, se leram sempre com gosto, e depois de sabidas se tornaram a ler sem fastio, confiança nos fica para esperar que não será ingrato aos leitores este nosso trabalho, e que será tão deleitosa ao gosto e ao juízo a História do Futuro, quanto é estranho ao papel o assunto e nome dela.

Mas porque não cuide alguma curiosidade crítica que o nome do futuro não concorda nem se ajusta nem com o título de história, saiba que nos pareceu chamar assim à esta nossa escritura, porque, sendo novo e inaudito o argumento dela, também lhe era devido nome novo e não ouvido.

Escreveu Moisés a história do princípio e criação do Mundo, ignorada até aquele tempo de quase todos os homens. E com que espírito a escreveu? Respondem todos os Padres e Doutores que com espírito de profecia. Se já no Mundo houve um profeta do passado, porque não haverá um historiador do futuro? Os profetas não chamaram história às suas profecias, porque não guardam nelas estilo nem leis de histórias: não distinguem os tempos, não assinalam os lugares, não individuam as pessoas, não seguem a ordem dos casos e dos sucessos, e quando tudo isto viram e tudo disseram, é envolto em metáforas, disfarçado em figuras, escurecido com enigmas e contado ou cantado em frases próprias do espírito e estilo profético, mais acomodadas à majestade e admiração dos mistérios, que à notícia e inteligência deles.

Do profeta Isaías, que falou com maior ordem e maior clareza, disseram S. Jerônimo e Santo Agostinho que mais escrevera história que profecia. A sua profecia é o Evangelho fechado; o Evangelho é a sua profecia aberta. E porque nós, em tudo o que escrevemos, determinamos observar religiosa e pontualmente todas as leis da história, seguindo em estilo claro e que todos possam perceber, a ordem e sucessão das cousas, não nua e secamente, senão vestidas e acompanhadas das suas circunstancias; e porque havemos de distinguir tempos e anos, sinalar províncias e cidades, nomear nações e ainda pessoas, (quando o sofrer a matéria), por isso, sem ambição nem injúria de ambos os nomes, chamamos a esta narração História e História do Futuro.

Sós e solitariamente entramos nela (mais ainda que Noé no meio do dilúvio) sem companheiro nem guia, sem estrela nem farol, sem exemplar nem exemplo. O mar é imenso, as ondas confusas, as nuvens espessas, a noite escuríssima; mas esperamos no Pai dos lumes (a cuja glória e de seu Filho servimos), tirará a salvamento a frágil barquinha: ela com maior ventura que Argos, e nós com maior ousadia que Tífis.

Antes de abrir as velas ao vento (oh faça Deus que não seja tempestade!), em lugar da benevolência que se costuma pedir aos leitores, só lhes quero pedir justiça. É de direito natural que ninguém seja condenado sem ser ouvido; isto só deseja e pede a todos a nova História do Futuro, com palavras não suas, mas de S. Jerônimo: Legant prius et postea despiciant: «Leiam primeiro, e depois condenem» — assim dizia aquele grande mestre da Igreja, defendendo a sua versão dos sagrados Livros, então perseguida e impugnada, hoje adorada e de fé.

No capítulo passado falamos com todo o Mundo; neste só com Portugal. Naquele prometemos grandes futuros ao desejo; neste asseguramos breves desejos ao futuro. Nem todos os futuros são para desejar, porque há muitos futuros para temer. «Amanhã serás comigo», disse Samuel a Saul, o profeta ao rei, o morto ao vivo. Oh que temeroso futuro! Caiu Saul desmaiado, e fora melhor cair em si que aos pés do Profeta. Mas era já a véspera do dia da morte; e quem busca o desengano tarde, não se desengana. Outros reis houve, que por não temer os futuros, quiseram antes ignorá-los.

...Cessant oracula Delphis,
Sed siluit postquam reges timuere futura,
Et Superos vetuere loqui...

Disse sem murmuração o satírico que taparam os reis a boca aos deuses, e não queriam consultar os oráculos, por não temer os futuros prósperos e adversos, os felizes e os infelizes. Todos fora felicidade antever, os felizes para a esperança e os infelizes para a cautela.

O maior serviço que pode fazer um vassalo ao rei, é revelar-lhe os futuros; e se não há entre nós os vivos quem faça estas revelações, busque-se entre os sepultados, e achar-se-á. Saul achou a Samuel morto e Baltasar a Daniel vivo, porque um matava os profetas, outro premiava as profecias. Declarou Daniel a Baltasar a escritura fatal da parede, anunciou-lhe intrepidamente que naquela mesma noite havia de perder a vida e o império. E que lhe importou a Daniel esta tão triste interpretação? No mesmo ponto - diz o texto- mandou Baltasar que o vestissem de púrpura e que lhe dessem o anel real, e que fosse reconhecido por Tetrarca de todo o império dos Assírios, que era faze-lo um dos quatro supremos ministros ou governadores da monarquia.

Só isto fez Baltasar nos instantes que lhe restaram de vida; e premiado assim o profeta, cumpriu-se a profecia e foi morto o rei, digno só por esta ação (se não foram as suas culpas sacrilégios) de que Deus lhe perdoara a vida.

Se tanto vale o conhecimento de um futuro, ainda que tão infeliz; se tanto prêmio se dá a uma profecia mortal e que tira impérios, que seria se os prometera?

Não faltou a este merecimento Dario Hidaspes rei dos Persas e dos Medos. Sucedeu vitorioso este príncipe na coroa de Baltasar, e confirmou sempre a Daniel na mercê e lugar em que ele o tinha posto porque assim como profetizou que havia de perder o império o rei dos Assírios, ajuntou também que o havia de ganhar o dos Persas e Medos: Divisum est regnum tuum et datum est Medis et Persis.

Eu, Portugal, (com quem só falo agora) nem espero o teu agradecimento, nem temo a tua ingratidão. Porque, se me não contas com Daniel entre os vivos, eu me conto com Samuel entre os mortos; se nas letras que interpreto achara desgraças (bem poderá ser que as tenhas), eu te dissera a má fortuna sem receio, assim como te digo a boa sem lisonja. Mas é tal a tua estrela (benignidade de Deus contigo deverá ser), que tudo o que leio de ti são grandezas, tudo que descubro melhoras, tudo o que alcanço felicidades. Isto é o que deves esperar, e isto o que te espera; por isso em nome segundo e mais declarado chamo a esta mesma escritura Esperanças de Portugal, e este é o comento breve de toda a História do Futuro.

Mas vejo que o mesmo nome de Esperanças de Portugal lhe poderá com razão suspender o gosto, assustar o desejo e embaraçar os mesmos alvoroços em que o tenho metido com estas esperanças: Spes qae differtur, affligit animam, disse a Verdade divina e o sabe e sente bem a experiência e paciência humana: ainda que seja muito segura, muito firme e muito bem fundada a esperança, é um tormento desesperado o esperar.

Muito seguras eram, e tão seguras como a mesma palavra de Deus (que não pode mentir nem faltar)`, as promessas dos antigos Profetas; mas cansava-se tanto o desejo na paciência de esperar por elas, que vinham a ser fábula do vulgo em Jerusalém as esperanças das profecias. Assim conta esta queixa Isaías no capítulo XXVIII, que pelas ruas e praças da corte se andavam cantando por riso as suas esperanças, e que a volta ou estribilho da cantiga era:

...expecta, reexpecta,
Expecta, reexpecta.
Modicum ibi,
Modicum ibi.

Esperavam, reesperavam e desesperavam aqueles homens, porque em muitas cousas das que lhes prometiam as profecias, primeiro se acabava a vida do que chegasse a esperança. Deixaram os pais em testamento as esperanças aos filhos, os filhos aos netos e nem estes, sendo então as vidas mais compridas, chegavam a ver o cumprimento do que tão longamente tinham esperado. As esperanças da Terra de Promissão deixou-as Abraão a Isaac, Isaac a Jacob e Jacob aos doze Patriarcas; mas todos eles morreram e foram sepultados no Egito. A quem há-de cobrir a terra do Egito, que lhe importam as esperanças da terra de Promissão? No cativeiro de Babilônia pregavam e prometiam os Profetas que Deus havia de levantar mão do castigo e restituir o povo à sua antiga liberdade; e se lhes perguntavam quando, respondiam e afirmavam constantemente que dali a setenta anos.

Boa esperança para um cativo, ainda que não fosse muito velho. De que me serve a esperança da liberdade, se primeiro se há-de acabar a vida? O mesmo podem argüir os que hoje vivem com estas esperanças, que eu lhas prometo. Grandes são essas esperanças de Portugal; mas quando há-de ver Portugal essas esperanças?

Ponto é este que depois se há-de tratar muito de propósito, e em que a nossa História há-de empregar todo o quinto livro. Por agora só digo que me não atrevera eu a prometer esperanças, se não foram esperanças breves. Deus na Lei Escrita, como notaram grandes autores, nunca prometeu o Céu expressamente, porque o que se não pode dar logo não se há-de prometer. Prometer o Céu para ir esperar por ele ao Limbo, são promessas em que por então se dá o contrário do que se promete. Tais são as esperanças dilatadas. Se nelas se promete a vida, são morte; se nelas se promete o gosto, são tormento; se nelas se promete o Paraíso, são Inferno.

O Limbo chamava-se Inferno; e porque? Porque era um lugar onde se esperava tantos anos pelo Paraíso. Não me tenha a minha Pátria por tão cruel, que lhe houvesse de prometer martírios com nome de esperanças. Para se avaliar a esperança, há-se de medir o futuro, e não é este o futuro da minha História.

São Paulo, aquele filósofo do terceiro Céu, desafiando todas as criaturas, e entre elas os tempos, dividiu os futuros em dois futuros: Neque instantia, neque futura. Um futuro que está longe e outro futuro que está perto; um futuro que há-de vir e outro futuro que já vem; um futuro que muito tempo há-de ser futuro — Neque futura — e outro futuro que brevemente há-de ser presente: Neque instantia.

Este segundo futuro é o da minha História, e estas as breves e deleitosas esperanças que a Portugal ofereço. Esperanças que hão-de ver os que vivem, ainda que não vivam muitos anos, mas viverão muitos anos os que as virem. Lignum vitae, desiderium veniens, disse no mesmo lugar alegado a mesma Verdade divina.

Assim como há esperanças que tardam, há esperanças que vem. As esperanças que vem são o pomo da árvore da vida: Lignum vitae desiderium veniens. A virtude maravilhosa daquele pomo era reparar e acrescentar a vida e remoçar aos que o comiam. As esperanças que tardam, tiram a vida; as esperanças que vem, não só não tiram a vida, mas acrescentam os dias e os alentos dela: Spes quae differtur, affligit animam. Lignurn vitae, desiderium veniens.

Que vida haverá em Portugal tão cansada, que idade tão decrépita, que à vista do cumprimento destas esperanças, não torne atrás os anos para lograr tanto bem? Vivei, vivei, Portugueses, vós os que mereceis viver neste venturoso século! Esperai no Autor de tão estranhas promessas, que quem vos deu as esperanças, vos mostrará o cumprimento delas.

Não é privilégio este de qualquer profecia, mas daquelas profecias de que se compõe esta História. Sim, porque são mais que profecias. Um profeta houve no Mundo mais que profeta, que foi o grande precursor de Cristo. E por que razão mereceu a singularidade deste nome S. João entre todos os profetas deste Mundo? Porque os outros profetas prometeram a Cristo futuro, mas não o viram, nem o mostraram presente; o Batista prometeu o futuro com a vez, e mostrou o presente com o dedo — Cecinit ad futurum, et adesse monstravit.

Se houve um profeta que foi mais que profeta, porque não haverá também algumas profecias que sejam mais que profecias? Assim espero eu que o sejam aquelas em que se fundam as minhas esperanças e que, se nos prometem as felicidades futuras, também as hão-de mostrar presentes. Agora as prometem com a voz, depois as mostrarão com o dedo.

Mas este grande assunto fique para seu lugar. Só digo que quando assim suceder, perderá esta nossa História gloriosamente o nome, e que deixará de ser História do Futuro, porque o será do presente.

Mas perguntar-me-á porventura alguma emulação estrangeira (que às naturais não respondo): se o império esperado, como se diz no mesmo título, é do Mundo, as esperanças porque não serão também do Mundo, senão só de Portugal? A razão (perdoe o mesmo Mundo) é esta: porque a melhor parte dos venturosos futuros que se esperam, e a mais gloriosa deles, será não só própria da Nação portuguesa, senão única e singularmente sua. Portugal será o assunto, Portugal o centro, Portugal o teatro, Portugal o princípio e fim destas maravilhas; e os instrumentos prodigiosos delas os Portugueses.

Vê agora, ó Pátria minha, quão agradável te deve ser. e com quanto gosto deves aceitar a oferta que te faço desta nova História, e com que alvoroço e alegria pede a razão e amor natural que leias e consideres nela os seus e os teus futuros. O Grego lê com maior gosto as histórias de Grécia, o Romano as de Roma e o Bárbaro as da sua nação, porque lêem feitos seus e de seus antepassados . E Portugal que com novidade inaudita lerá nesta História os seus e os dos seus vindouros, com quanto maior gosto e contentamento, com quanto maior aplauso e alvoroço será razão que o faca?

Portentosas foram antigamente aquelas façanhas, ó Portugueses, com que descobristes novos mares e novas terras, e destes a conhecer o Mundo ao mesmo Mundo. Assim como líeis então aquelas vossas histórias, lede agora esta minha, que também é toda vossa. Vós descobristes ao Mundo o que ele era, e eu vos descubro a vós o que haveis de ser. Em nada é segundo e menor este meu descobrimento, senão maior em tudo. Maior cabo, maior esperança, maior império.

Naqueles ditosos tempos (mas menos ditosos que os futuros) nenhuma cousa se lia no Mundo senão as navegações e conquistas de Portugueses. Esta história era o silêncio de todas as historias. Os inimigos liam nela suas ruínas, os êmulos suas invejas e só Portugal suas glórias. Tal é a História, Portugueses, que vos presente, e por isso na língua vossa. Se se há-de restituir o Mundo à sua primitiva inteireza e natural formosura, não se poderá consertar um corpo tão grande, sem dor nem sentimento dos membros, que estão fora de seu lugar. Alguns gemidos se hão-de ouvir entre vossos aplausos, mas também estes fazem harmonia. Se são dos inimigos, para os inimigos será a dor, para os êmulos a inveja, para os amigos e companheiros o gosto e para vós então a glória, e, entretanto, as esperanças.

O que encerra a terceira parte do título desta História só se pode declarar inteiramente com o discurso de toda ela, porque toda se emprega em provar a esperança dum novo império, ao qual, pelas razões que se verão a seu tempo, chamamos quinto. Entretanto, para que a matéria de uma vez se compreenda e saiba o leitor em suma o que lhe prometemos, porei brevemente aqui sua divisão.

Divide-se a História do Futuro em sete partes ou livros: no primeiro se mostra que há-de haver no Mundo um novo império; no segundo, que império há-de ser; no terceiro, suas grandezas e felicidades; no quarto, os meios por que se há-de introduzir; no quinto, em que terra; no sexto, em que tempo; no sétimo, em que pesca. Estas sete cousas são as que há-de examinar, resolver e provar a nova História que escrevemos do Quinto Império do Mundo.

Mas porque esta palavra Mundo, nos ambiciosos títulos dos impérios e imperadores, costuma ter maior estrondo na voz que verdade na significação, será bem que digamos neste lugar o que o título da nossa História entende por Mundo.

Os Faraós do Egito, e também os Ptolemeus que lhes sucederam, de tal maneira mediam a estreiteza de suas terras pela arrogância e inchação de seus vastos pensamentos, que, dominando somente aquela parte não grande da extrema África, que jaz entre os desertos de Numídia e os do Mar Vermelho, não duvidavam intitular-se Josés do Mundo. Essa foi a desigualdade do nome que puseram os Egípcios ao seu restaurador José: Vocavit eum lingua aegyptiaca Salvatorem Mundi. Não lhe chamaram Salvador do Egito, senão do Mundo, como se não houvera mais mundo que o Egito. Imitavam a soberba de seu soberbo Nilo, que, quando sai ao mar, se espraia em sete bocas, como se foram sete rios, sendo um só rio; assim era aquele império, e os demais chamados do Mundo, maiores sempre nas vozes que no corpo e grandeza.

Do império dos Assírios temos nas divinas letras uma provisão lançada no III capítulo do Profeta Daniel e mandada expedir pelo grande Nabucodonosor, cujo exórdio é este: Nabuchodonosor, rex omnibus populis, gentibus et linguis, qui habitant in universa terra: «Nabucodonosor, rei. a todos os povos, gentes e línguas, que habitam em todo o Mundo. E o mesmo Daniel (que é mais) falando a este rei e acomodando-se aos estilos da sua corte e aos títulos magníficos de sua grandeza, lhe diz assim no mesmo capítulo: Tu es rex qui magnificatus es et invaluisti, et magnitudo tua [...] pervenit usque ad Coelum, et potestas tua usque ad terminos universae terrae. Contudo, se lançarmos os compassos às terras que obedeciam a Nabucodonosor, acharemos que da Ásia então conhecida tinha uma boa parte, da África pouco, da Europa menos e do resto do Mundo nada. Mas bastavam estes três retalhos da terra para a soberba de Nabucodonosor revestir os títulos de seu império com o nome estrondoso de todo o Mundo. Tão grande era a significação dos nomes, e tanto menos 0 que significavam!

Do império de Assuero (que era o dos Persas) diz o Texto Sagrado no primeiro capítulo da história de Ester, que se estendia da Índia até a Etiópia, obedecendo àquela coroa 127 províncias. Esta era a demarcação das terras e estes os limites do império, mas os títulos não tinham limite. Assim nos consta por um decreto de Dario, que se refere no VI capítulo de Daniel, por estas pomposas palavras, semelhantes em tudo às de Nabuco: Tunc Darius rex scripsit omnibus populis et gentibus et linguis, qui habitant in universa terra: Pax vobis multiplicetur.

E o mesmo Assuero por outro decreto, no cap. XIII de Ester, não duvidou firmar por sua própria mão, que tinha sujeito ao seu domínio o orbe universo: Cum universum orbem meae ditioni subjugassem. De maneira que os reis persas, por serem senhores de 127 províncias, passaram provisões e decretos a todo o Mundo; mas quem desenrolasse o mapa do Mundo e pusesse sobre ele os pergaminhos destas provisões, veria facilmente que o Mundo, sem demasiado encarecimento, é cento e vinte e sete vezes maior que o império persiano: tão pouco se proporcionava a geografia dos títulos com a medida dos impérios!

Que direi do império dos Romanos? Os termos que lhe sinalam seus escritores são as raias do Mundo:

Orbem jam totum victor Romanus habebat
Qua mare, qua terra, qua sidus currit utrumque

disse Petrônio; e Cícero, que professava mais verdade que os poetas: Nulla gens est. quae aut ita subacta sit ut vi non extet, aut ita domita ut quiescat, aut ita pacata ut victoria nostra imperioque laetetur. Tal era a opinião que Roma tinha de sua grandeza e tal o estilo que guardava em seus editos: ...exiit edictum à Caesare Augusto ut describeretur universus orbis.

Mandou Augusto César matricular e: alistar seu império, e dizia o edito: Aliste-se o Mundo. Mas se examinarmos este mundo romano até onde se estendia, acharemos que pelo oriente se fechava com o rio Tigres, pelo ocidente com o mar de Cádis, pelo meio-dia com o Nilo e pelo setentrião com o Danúbio e Reno. Estes limites lhe prescreveu Claudiano, ainda que lhe deu por margens os Orientes:

Subdit Oceanum sceptris, et margine coeli
Clausit opes; quantum distant a Tigride Gades,
Inter se Tanais quantum Nilusque relinquunt.

Deixo o Mogor, o China, o Tártaro e outros domínios bárbaros do nosso tempo, que com a mesma majestade de títulos se chamam imperadores do Mundo, seguindo a antiquíssima arrogância da Ásia, em que o Mundo andou sempre atado aos títulos da monarquia.

O Mundo do nosso prometido império não é Mundo neste sentido: não prometo mundos, nem impérios titulares, nomes tão alheios da modéstia como da verdade. Bem sei que o império de Alemanha (envelhecidas relíquias, e quase acabadas, do Romano) em muitos textos de um e outro direito se chama império do Mundo; mas também se sabe que os textos podem dar títulos, mas não impérios. No livro sétimo examinaremos os fundamentos deste direito; entretanto, ainda que liberalmente lho concedamos, é certo que os impérios e os reinos não os dá nem os defende a espada da justiça, senão a justiça da espada.

A Abraão prometeu Deus as terras da Palestina mas conquistou-as a espada de Josué e defendeu-as a de seus sucessores. Estes são os instrumentos humanos de que se serve (ainda quando obra divinamente) a providencia daquele supremo Senhor que o é do Mundo e dos exércitos. Os que querem o ruído e encher de algum modo o vazio destes grandes títulos, dizem que se entende por hipérbole ou exageração, e por aquela figura que os retóricos chamam sinédoque, em que se toma a parte pelo todo. O título desta História não fala por hipérboles nem sinédoques, não chama a um pigmeu gigante nem a um braço homem. O Mundo de que falo é o Mundo, aquele Mundo, e naquele sentido em que disse S. João: ...Mundus per ipsum factus est, et Mundus eum non cognovit. O Mundo que Deus criou, o Mundo que o não conheceu, e o Mundo que o há-de conhecer. Quando o não conheceu, negou-lhe o domínio; quando o conhecer, dar-lhe-á a posse . universum terraram orbem — diz Ortélio — veteres [...] in tres partes divisere: Africam, scilicet, Europam et Asiam, sed in inventa America, eam pro quarta parte nostra aetas adjecit; quintamque expectat sub meridionali cardine jacentem: O Mundo que conheceram os Antigos se dividiu em três partes: África, Europa, Ásia; depois que se descobriu a América, acrescentou-lhe a nossa idade esta quarta parte; espera-se agora a quinta, que é aquela terra incógnita, mas já reconhecida, que chamamos Austral.»

Este foi o Mundo passado, e este é o Mundo presente, e este será o Mundo futuro; e destes três mundos unidos se formará (que assim o formou Deus) um Mundo inteiro. Este é o sujeito da nossa História, e este o império que prometemos do Mundo. Tudo o que abraça o mar, tudo o que alumia o Sol, tudo o que cobre e rodeia o Sol, será sujeito a este Quinto Império; não por nome ou título fantástico, como todos os que até agora se chamaram impérios do Mundo, senão por domínio e sujeição verdadeira. Todos os reinos se unirão em um centro, todas as cabeças obedecerão a uma suprema cabeça, todas as coroas se rematarão em uma só diadema, e esta será a peanha da cruz de Cristo.

Resolveu Augusto com o senado pôr limites à grandeza do Império Romano. Duvida Tácito se foi filha esta resolução do receio ou da inveja: Incertum metu, an per invidiam. Temeu César (se foi receio) que um corpo tão enormemente grande não se pudesse animar com um só espírito, não se pudesse governar com uma só cabeça, não se pudesse defender com um só braço; ou não quis (se foi inveja) que viesse depois outro imperador mais venturoso, que trespassasse as balizas do que ele até então conquistara e fosse ou se chamasse maior que Augusto. Tal foi, dizem, o pensamento de Alexandre, o qual, vizinho à morte, repartiu em diferentes sucessores o seu império, para que nenhum lhe pudesse herdar o nome de Magno. Não é nem poderá ser assim no império do Mundo que prometemos; a paz lhe tirará o receio, a união lhe desfará a inveja, e Deus (que é fortuna sem inconstância) lhe conservará a grandeza.

Aqui acaba o título desta História, e mais claramente do que o dissemos agora o provaremos depois. Entretanto, se aos doutos ocorrem instancias e aos escrupulosos dúvidas, damos por solução de todas a mão onipotente: Ut videant, sciant et recogitent, et intelligant pariter quia manus Domini fecit hoc...

§ I editar

Se o fim desta escritura fora só a satisfação da curiosidade humana, e o gosto ou lisonja daquele apetite com que a impaciência do nosso desejo se adianta em querer saber as cousas futuras; e se as esperanças que temos prometido foram só flores sem outro fruto mais que o alvoroço e alegria com que as felicidades grandes e próprias se costumam esperar, certamente eu suspendera logo a pena e a lançara da mão, tendo este meu trabalho por inútil, impertinente e ocioso, e por indigno não só de o comunicar ao Mundo, mas de gastar nele o tempo e o cuidado.

Mas se a história das cousas passadas (a que os sábios chamaram mestra da vida) tem esta e tantas. outras utilidades necessárias ao governo e bem comum do gênero humano e ao particular de todos os homens, e se como tal empregaram nela sua indústria tantos sujeitos em ciência, engenho e juízo eminentes, como foram os que em todos os tempos imortalizaram a memória deles com seus escritos; porque não será igualmente útil e proveitosa, e ainda com vantagem, esta nossa História do Futuro, quanto é mais poderosa e eficaz para mover os ânimos dos. homens a esperança das cousas próprias, que a memória das alheias?

Se em todos os Livros Sagrados contarmos os escritores de cousas passadas (como foram, na Lei da Graça, os quatro Evangelistas, e na Escrita, Moisés, Josué, Samuel, Esdras e alguns outros, cujos nomes ;e não sabem com tão averiguada certeza), acharemos que são em muito maior número os que escreveram das futuras: diferença que de nenhum modo fizera Deus, que é o verdadeiro Autor de todas as .Escrituras (sendo todas elas como diz S. Paulo escritas para nossa doutrina, se não fora igual e ainda maior a utilidade que podemos e devemos tirar do conhecimento das cousas futuras, que da noticiaria das passadas. E verdadeiramente que se os bens da ciência se colhem e conhecem melhor pelos males da ignorância, achará facilmente quem discorrer pelos sucessos do Mundo, desde seu princípio até hoje, que foram muito menos os danos em que caíam os homens por lhes faltar a notícia do passado, que aqueles que cegamente se precipitaram pela ignorância do futuro.

Em conseqüência desta verdade e em consideração das cousas que tenho disposto escrever, digo, leitor cristão, que todos aqueles fins que sabemos teve a Providência Divina em diversos tempos, lugares e nações para lhes revelar antecedentemente o sucesso das cousas que estavam por vir, concorrem com particular influxo nesta nossa História e se acham juntos nela. Esta é não só a principal razão, nas a única e total, por que nos sujeitamos ao trabalho de tão molesto gênero de escritura, esperando que será grato e aceito a Deus, a quem só pretende nos servir; e entendendo que foram vontade, inspiração e ainda força suave da mesma Providência os impulsos que a isto (não sem alguma violência) nos levaram, para que estes secretos de seu oculto juízo e conselho se descobrissem e publicassem ao Mundo e em todo ele produzissem proporcionadamente os efeitos de mudança, melhoria e reformação a que são encaminhados e dirigidos. A mesma Majestade divina, humildemente prostrados diante de seu infinito acatamento, pedimos com todo o afeto de coração, agora que entramos na maior importância desta matéria, se sirva de nos comunicar aquela luz, graça e espírito que para negócio tão árduo nos é necessário, conhecendo e confessando que sem assistência deste soberano auxílio, nem nós saberemos explicar a outros o pouco que por mercê do Céu temos alcançado e conhecido, nem menos poderemos descobrir e alcançar ao diante o muito que nos resta por conhecer.

§ II editar

Primeira utilidade.

O primeiro motivo e mui principal por que Deus costuma revelar as cousas futuras (ou sejam benefícios ou castigos) muito tempo antes de sucederem, é para que conheçam clara e firmemente os homens, que todas vêm dispensadas por sua mão. Arma-se assim a sabedoria eterna contra a natureza humana, sempre soberba, rebelde e ingrata, ou porque se não levante a maiores com os benefícios divinos, e se beije as mãos a si mesma, como dizia Job, ou porque não atribua a cousas naturais (e muito menos ao caso) os efeitos que vêm sentenciados como castigo por sua justiça, ou ordenados para mais altos e ocultos fins por sua providência.

Foram mostradas a Faraó em sonhos .as sete espigas gradas e as sete falidas, as sete vacas fracas e as sete robustas, e logo ordenou a Providência divina que estivesse em Egito um José (posto que vendido e desterrado), que lhe declarasse o mistério dos sete anos da fartura e sete de fome, para que conhecesse o bárbaro que Deus, e não o seu adorado Nilo, era o autor da abundância e da esterilidade, e que a ele havia de agradecer no benefício dos sete anos o remédio dos catorze. Como na terra do Egito não chove jamais e se regam e fertilizam os campos com as inundações do rio Nilo, disse discretamente Plínio que só os Egípcios não olhavam para o céu, porque não esperavam de lá o sustento, como as outras nações.

Oh quantos cristãos há egípcios, que nem esperando, nem temendo, levantam os olhos ao Céu, e em lugar de reverenciarem em ,todos os sucessos a primeira causa, só adoram as segundas! Por isso mostra Deus a Faraó, tantos anos antes, quais hão-de ser os da fome e quais os da fartura; para que conheça a ignorante sabedoria do Egito que os meios da conservação ou ruína dos reinos, a mão onipotente de Deus é a que os distribui, quando são, pois só ele os pode determinar antes que sejam.

Quis a mesma Providência, como acima dizíamos tirar o império a Baltasar e dá-lo a Dario; mas apareceu primeiro a sentença escrita no paço de Babilônia, e houve logo um Daniel (também cativo e desterrado), que interpretasse ao rei os mistérios dela, para que Baltasar, que perdia o reino, conhecesse que o perdia, porque Deus lho tirava; e para que Dario, que o havia de receber, entendesse que o recebia, porque Deus lho dava. Deus é o que dá e tira os reinos e os impérios, quando e a quem é servido. E não bastam, se Deus dispõe outra cousa, nem as armas de Dario para os adquirir, nem o direito e herança de Baltasar para os conservar; por isso quer a mesma Providência Divina que as sentenças estejam escritas antes da execução, e que haja quem as interprete antes do sucesso.

Os futuros portentosos do Mundo e Portugal, de que há-de tratar a nossa História, muitos anos há que estão sonhados como os de Faraó e escritos como os de Baltasar; mas não houve até agora nem José que interpretasse os sonhos, nem Daniel que construísse as escrituras; e isto é o que eu começo a fazer (com a graça daquele Senhor que sempre se serve de instrumentos pequenos em cousas grandes), para que conheça o Mundo e Portugal, com os olhos sempre no Céu e em Deus, que tudo são efeitos de seu poder e conselhos da sua providência; e para que não haja ignorância tão cega nem ambição tão presumida, que tire a Deus o que é de Deus, por dar a César o que não é de César, atribuindo à fortuna ou indústria humana o que se deve só à disposição divina.

Estilo foi este que sempre Deus usou com Portugal, receoso porventura de que uma nação tão amiga da honra e da glória lhe quisesse roubar a sua. Quem considerar o Reino de Portugal no tempo passado, no presente e no futuro, no passado o verá vencido, no presente ressuscitado e no futuro glorioso; e em todas estas três diferenças de tempos e estilos lhe revelou e mandou primeiro interpretar o. favores e as mercês tão notáveis com que o determinava enobrecer: na primeira, fazendo-o, na segunda restituindo-o, na terceira, sublimando-o.

Antes do nascimento de Portugal, apareceu o mesmo Cristo a El-Rei (que ainda o não era) D. Afonso Henriques, e lhe revelou como era servido de o fazei rei, e a Portugal reino; a vitória que lhe havia de dar em batalha tão duvidosa e as armas de tanta glória com que o queria singularizar entre todos os reinos do Mundo. E o embaixador e intérprete deste e de outros futuros, que depois se viram cumpridos, foi aquele velho, desconhecido e retirado do Mundo o ermitão do campo de Ourique; para que conhecesse e não pudesse negar Portugal que devia a Deus a vitória e a coroa, e que era todo seu desde seu nascimento. Antes da sua ressurreição, que todos vimos também, foi revelado o sucesso dela com todas suas circunstancias, não havendo quem ignorasse ou quem não tivesse lido que no ano de quarenta se havia de levantar em Portugal um rei novo e que se havia de chamar João. E o intérprete deste futuro que parecia tão impossível, e de tantos outros que logo se cumpriram e vão cumprindo, foi a nossa experiência, para que conhecesse outra vez Portugal que a Deus e não a outrem devia a restituição da coroa que havia sessenta anos lhe caíra da cabeça ou lhe fora arrancada dela.

Antes das glórias de Portugal, que é o tempo futuro, e muitos centos e ainda milhares de anos antes (como depois mostraremos), também está prometido este terceiro e mais feliz estado do nosso Reino, e prometidos juntamente os meios e instrumentos prodigiosos por onde há-de subir e ser levantado ao cume mais alto e sublime de toda a felicidade humana; e o intérprete deste último e glorioso estado de Portugal já tenho dito quem é, e quão indigno de o ser. e por isso mui proporcionado (segundo o estilo de Deus) para tão grande e dificultosa empresa; para que até por esta circunstancia conheçam os Portugueses que a mesma mão onipotente que há vinte e quatro anos conserva e defende tão constante e vitoriosamente o Reino de Portugal, é a que há-de levantar e sublimar ao estado felicíssimo e glorioso que lhe está prometido.

Considerem agora os Portugueses, e leiam tudo o que daqui por diante formos escrevendo com este pressuposto e importantíssima advertência: que, se alguma cousa lhes poderia retardar o cumprimento destas promessas, seria só o esquecimento ou desconhecimento do soberano Autor delas, quando por nossa desgraça fôssemos tão injuriosamente ingratos a Deus, que ou referíssemos os benefícios passados, ou esperássemos os futuros de outra mão que a sua.

Prometeu Deus de livrar os filhos de Israel do cativeiro do Egito, como tinha jurado aos seus maiores, e de os levar e meter de posse da terra da Promissão; e posto que todas viram o cumprimento da primeira promessa, conseguindo milagrosamente a liberdade, e sacudiram sem sangue nem golpe de espada a sujeição de tão poderoso domínio, sendo contudo mais de seiscentos mil homens os que triunfaram de Faraó e passaram da outra parte do mar Vermelho, de todos eles não entraram na Terra da Promissão nem chegaram a lograr a felicidade e descanso da segunda promessa mais que Josué e Calef, dois daqueles aventureiros que, escolhidos pelos Doze Tribos, foram diante a explorar a terra. Raro exemplo de severidade na misericórdia de Deus , mas bem merecido castigo; porque, se buscarmos no Texto Sagrado as causas deste desvio e dilação (a qual durou quarenta anos inteiros, sendo a distancia do caminho breve, e que se podia vencer em poucos dias) acharemos que foram ,três. Agora nos servem as duas, depois diremos a terceira.

A primeira causa foi atribuírem a liberdade do cativeiro a Moisés; assim o disseram no cap. XXXII. Moysi enim huic viro, qui nos eduxit de terra Aegypti, ignoramus quid acciderit. A segunda, e ainda mais ignorante (sobre ímpia e blasfema), foi atribuírem a mesma liberdade ao ídolo que de seu ouro tinham fundido no deserto. Assim o disseram também no mesmo capítulo e o apregoaram impiamente a altas vozes: Hi sunt dii tui, Israel, qui te eduxerunt de terra AEgypti.

Basta, povo descortês, ingrato e blasfemo! Que Moisés e o vosso ídolo foram os que vos livraram do cativeiro do Egito?! Por certo que o não disse assim Deus ao mesmo Moisés, quando lhe deu o ofício e a vara, e o fez com ,tanta repugnância sua instrumento de seus poderes: Vidi afflictionem populi mei in AEgypto et clamorem ejus audivi; et sciens dolorem ejus, descendi ut liberem eum de manibus AEgyptorum, et deducam de terra illa in terram bonam et spatiosam, in terram quae fluit lacte et melle: «Vi — diz Deus — a aflição do meu povo, e ouvi os seus clamores; e porque sei com quão justa razão se queixam, desci em pessoa a livrá-lo das mãos dos Egípcios e tirá-lo daquela terra para outra, que lhe hei-de dar, boa, espaçosa, abundante e cheia de todos os regalos e delícias». De maneira que quem tirou os filhos de Israel do Egito foi Deus, e quem fez os portentos e maravilhas foi Deus, e quem abriu o Mar Vermelho e afogou nele Faraó e seus exércitos foi Deus; e os que atribuem as obras de Deus e os benefícios (de que só a Ele se devem as graças) a Moisés e ao ídolo não merecem ter vida nem olhos para chegar a ver a Terra de Promissão; sendo muito justo e muito justificado castigo que morram e acabem todos antes de chegar o prazo das felicidades, e que, pois tão ingrata e impiamente interpretaram o benefício da primeira promessa, sejam privados de gozar a segunda.

Eu não nego que em bom sentido se podia chamar Moisés libertador do cativeiro, como também Deus pelo honrar lhe dava esse nome; mas nos homens que deviam dar a Deus toda a glória (pois toda era sua), referirem-se a Moisés, era descortesia; atribuírem-na ao ídolo, era blasfêmia, e não a darem a Deus toda, era ingratidão suma.

Já Deus, Portugueses, nos livrou do cativeiro, já por mercê de Deus triunfamos de Faraó e do poder de seus exércitos; já os vimos, não uma, mas muitas vezes, afogados no Mar Vermelho de seu próprio sangue. Imos caminhando pelo deserto para a Terra da Promissão, e pode ser que estejamos já muito perto dela, e do último cumprimento das prometidas felicidades. Se há algum tão invejoso dos bens da Pátria e tão inimigo de si mesmo, que queira retardar o curso de tão próspera e feliz jornada e acabar infelizmente, ainda antes de ver o fim desejado dela, negue a Deus o que é de Deus e atribua à liberdade as vitórias e o cumprimento das primeiras promessas que temos visto, ou a Moisés ou ao ídolo. Quem refere a glória dos bons sucessos ao seu valor, à sua ciência militar, ao seu braço, ao seu talento, dá a glória de Deus ao ídolo; por isso se vos escrevem aqui essa mesma liberdade, essas mesmas vitórias e esses mesmos sucessos, assim os que já se viram, como os que restam para se ver, tantos anos antes revelados por Deus. Para que conheça por nossa confissão todo o Mundo que são misericórdias suas e não obras do nosso poder; e para que nós, como efeitos da providência, da bondade e onipotência divina, a Deus só as refiramos todas, e a Deus só louvemos e demos as graças.

Os inimigos que mais temo a Portugal são soberba e ingratidão, vícios tão naturais da próspera fortuna, que, como filhos da víbora, juntamente nascem dela e a corrompem. A humildade e agradecimento, a desconfiança de nós, a confiança em Deus e o zelo e desejo puríssimo de sua glória, dando-lha em tudo e por tudo, sempre são os meios seguros que nos hão-de sustentar, levar e meter de posse daquelas segundas promessas. E este conhecimento tão grato a Deus, que aprendemos nas noticias de seus futuros, é o primeiro fruto e utilidade que da lição desta nossa História se pode tirar, tão importantemente para a vida como para a vista.

Breve Advertência aos incrédulos editar

Mas antes que passemos às outras utilidades, que ficarão para os capítulos seguintes, justo será que fechemos este com a terceira causa do castigo que ponderávamos, a qual refere o Texto Sagrado no cap. XIV dos Números, e pode ser de grande exemplo para outra casta de gente, que são os que a Escritura chama filhos da desconfiança.

Chegados os doze exploradores da Terra da Promissão, concordaram todos na largueza, bondade e fertilidade da terra; mas exceto Josué e Calef, que - facilitaram a conquista e animavam o povo a ela, os outros, conformemente, instavam que era impossível, assim pela fortaleza e sitio das cidades, como pela valentia, forças e corpulências dos homens, que, comparados com os Hebreus (diziam eles) pareciam gigantes. Enfim, prevaleceu o número contra a razão) (como as mais vezes sucede). Deliberou o povo eleger capitão e voltar-se com ele ao cativeiro do Egito, não bastando a experiência de tantas vitórias passadas e de tantos sucessos e prodígios inauditos, e sobre tudo as promessas divinas tão repetidamente inculcadas, de que Deus os havia de meter de posse daquela terra, para crerem e confiarem que assim havia de ser.

Esta tão covarde incredulidade foi a última ou a última sem-razão com que acabou de se apurar a paciência divina. E resoluto Deus a não sofrer mais tal gente, nem os perdoar ou dissimular como até ali tinha feito, resolveu que fosse executada neles a sentença de sua própria incredulidade; e pois criam que Deus os não havia de meter de posse da Terra da Promissão, que nenhum deles entrasse nela nem a visse, e que todos morressem primeiro e fossem sepultados naquele deserto. Assim o disse e assim se executou.

As palavras da queixa de Deus e da sentença, foram estas: Usque quo detrahet mibi populus iste? Quosque non credent mihi in omnibus signis, qae feci coram eis? [...] Vivo ego, ait Dominus, sicut locuti estis, audiente me, sic faciam vobis. In solitudine hac jacebunt cadavera vestra; [...] non intrabitis terram, super quam levavi manum meam, ut habitare vos facerem...

Leiam e pesem bem estas palavras de Deus os incrédulos e desanimados (vícios ambos, não sei se de pouco, se de mau coração) e vejam o perigo em que os pode meter ou tem metido a sua incredulidade:

Sicut locuti estis, sic faciam vobis. Os que pela experiência do que têm visto crêem o que está prometido, vê-lo-ão, porque são dignos de o verem; os que não crêem, ou não querem crer, a sua mesma incredulidade será a sua sentenc: já que o não creram, não o verão. Diz Santo Agostinho (cujas excelentes palavras adiante citaremos) que, depois de cumprida uma parte das promessas, não crer que se hão-de cumprir as outras, é não só pertinácia de incredulidade racional, senão crime de ingratidão grande contra o divino Autor dos mesmos benefícios; e a estes incrédulos e ingratos castiga justissimamente sua Providência, com que não cheguem a ver nem gozar o que não querem crer de sua bondade:

Quo usque non credent mihi in omnibus signis, quae feci coram eis?

Antes da experiência das primeiras maravilhas, alguma desculpa parece que podia ter a incredulidade na fraqueza do receio e desconfiança humana; mas depois de cumpridas e vistas com os olhos tantas cousas, tão grandes, tão maravilhosas e tão raras, não crer ainda as que estão por vir, é rebeldia de ingratidão e dureza da incredulidade, merecedoras ambas de que Deus as castigue com se conformar com elas: Sicut locuti estis, sic faciam vobis.

Quem quiser saber (segundo o estilo ordinário da justiça e providência divina) se há-de chegar a ver as felicidades que debaixo de sua palavra aqui lhe prometemos, examine o seu coração e consulte a sua fé; do nosso próprio coração nos conta Deus a sentença e de nossas próprias palavras a forma: Exore tuo te judico. Aos que crêem, como ao Centurião, diz Cristo: Sicut credidisti, fiat tibi. E aos que não crêem como os Israelitas do deserto, diz Deus: Sicut locuti estis. Quem crê que se hão-de cumprir aquelas ,tão felizes promessas, para ele será o vê-las e gozá-las: Sicut creditisti, fiat tibi. E quem não crê que se hão-de cumprir, será também para ele não gozá-las, nem vê-las. É lei da liberalidade de Deus pagar a fé com a vista, por isso havemos de ver no Céu os mistérios que vemos na Terra. E este estilo que Deus costuma guardar na glória da outra vida, guarda também ordinariamente nas felicidades desta, quando as tem prometido: os que as crêem, terão vida para as verem; os que as não crerem, morrerão, para que as não vejam. Assim o sentenciou o mesmo Deus outra vez em semelhante caso por boca do profeta Habacuc: Ecce qui incredulus est, non erit recta anima ejus in semetipso, justus autem in fide sua vivet. <O incrédulo - diz Deus - nem terá a vida segura; e ao que crê, a sua mesma fé lhe conservará a vida > Assim sucedeu, porque na guerra que Nabucodonosor fez a Jerusalém, os que creram aos profetas com el-rei Iconias viveram; e os que não quiseram crer, com el-rei Sedecias pereceram. Quem não crê, desmerece a vista; e para que não chegue a ver, tira-lhe Deus a vida. Olhem por si os incrédulos, e se não crêem que havemos de ver, creiam que não hão-de viver: Si non credideritis, non permanebitis — diz o profeta Isaías.

A segunda utilidade desta História, e mais necessária aos tempos próximos e presentes, é a paciência, constância e consolação nos trabalhos, perigos e calamidades com que há-de ser allito e purificado o Mundo, antes que chegue a esperada felicidade.

Quando o lavrador quer plantar de novo em mata brava, mete primeiro o machado, corta, derriba, queima, arranca, alimpa, cava, e depois planta e semeia. Quando o arquiteto quer fabricar de novo sobre edifício velho e arruinado, também começa derribando, desfazendo, arrasando e arrancando até os fundamentos, e depois sobre o novo alicerce levanta nova traça e novo edifício. Assim o faz e fez sempre o supremo Criador e Artífice do Mundo, quando quis plantar e edificar de novo. Assim o disse e mandou notificar a todo o Mundo pelo profeta Jeremias: Ecce constitui te hodie super gentes et super regna, ut evellas, et destruas, et disperdas, et dissites, et aedifices, et plantes.

Ó gentes, ó reis, ó reinos! Quanto arrancar, quanto destruir, quanto perder, quanto dissipar se verá em vossas terras, campos e cidades, antes que Deus vos replante e reedifique, e se veja restaurado o Universo! Maravilha é que há muitos anos está prometida para esta última idade do Mundo por aquele supremo Monarca, que tem por assento o trono de todo ele: Et dixit qui sedebut in throno: Ecce nova facio omnia. E porque ninguém o duvidasse como cousa tão nova e desusada, acrescenta logo o Evangelista Profeta: Haec verba fidelissima sunt et vera.

Se deste trabalho e castigo pode também caber alguma parte a Portugal, e se é ele um dos reinos da Cristandade que merece ser mui renovado e reformado, o mesmo Portugal o examine, e ele mesmo, se se conhece, o julgue, lembrando-lhe que está escrito que o juízo e exemplo de Deus há-de começar por sua casa: Judicium incipiet a domo Dei. Mas, ou sejam para Portugal, ou para o resto do Mundo, ou para todos (como é mais certo) nenhuma cousa poderão ter os homens de maior consolação, alívio, nem remédio para o sofrimento e constante firmeza de tão fortes calamidades, do que a lição e condição desta História do Futuro, não pelo que ela tem de nossa, mas pelas escrituras originais de que foi tirada. Este é o fim, diz S. Paulo, e o fruto muito principal .para que elas se escreveram: Quaecumque scripta sunt, ad nostram doctrinam scripta sunt, ut per patientiam et consolationem Scrip turarum spem habeamus.

A lição das Escrituras, do conhecimento e fé das cousas futuras, é a que mais que tudo nos pode consolar nos trabalhos, porque a paciência tem a sua consolação na esperança, a esperança tem o seu fundamento na fé e a fé nas Escrituras.

Que maior trabalho ou perigo pode sobrevir a uma república, que ver-se cercada e combatida por todas as partes de poderosíssimos inimigos, só e desamparada, e sem amigo nem aliado que a socorra? Neste estado se viram muitas vezes no tempo de seu governo os Macabeus, de que Deus . sempre os livrou com maravilhosas vitórias e assistências do Céu, pelas quais lhes não foi necessário valerem-se da confederação que naquele tempo tinham com os Romanos e Esparcíatas; e dando conta disso aos mesmos Esparcíatas, Jónatas, que então governava o povo, diz assim em uma epístola: Nos. cum nullo horum indigeremus, habentes solatio sanctos libros qui sunt in manibus nostris, maluimus mittere ad vos renovare fraternitatem et amicitiam: «Mandamos renovar por este nosso embaixador (diz Jonatas) a antiga amizade e confederação» que convosco fizeram nossos maiores, não porque tenhamos necessidade dela e dos vossos socorros, posto que não nos faltam inimigos, guerras, opressões e trabalhos, mas temos sempre em nossas mãos os Livros Santos, em que lemos as promessas divinas, e com eles e com elas nos consolamos e animamos a resistir, pelejar e vencer, como temos vencido e vencemos a todos nossos inimigos.

No cap. VIII se verá que sem atrevimento ou demasiada confiança podemos chamar a esta nossa História do Futuro livro santo, se houver (como há-de haver primeiro) trabalhos, perigos, opressões, tribulações, assolações, e todo o gênero de calamidades, misérias e açoites, com que Deus costuma castigar, emendar e domar a rebeldia dos corações humanos.

Para esta ocasião, e tão apertada sai a luz e se oferece ao Mundo este livro santo, no qual acharão os aflitos alívio, os tristes consolação, os atribulados esperança, paciência, constância e fortaleza, tudo por meio da lição e fé das divinas promessas e consolação dos felicíssimos fins a que todos estes trabalhos e tribulações pela providência do Altíssimo são ordenadas.

É cousa muito digna de notar, que nunca no povo de Israel concorreram tantos Profetas juntos como antes do cativeiro de Babilônia e no mesmo cativeiro. Antes do cativeiro profetizaram por sua ordem Oseas, Isaías, Joel e Amos; no cativeiro profetizou Miqueas, Habacuc Jeremias, Ezequiel, Daniel e Solonias. De maneira que, sendo só doze os Profetas canônicos, os dez deles tiveram por assunto e matéria muito principal de todas suas profecias o cativeiro de Babilônia. Os quatro primeiros, que escreveram mais de seis anos antes daquele tempo, profetizaram que o povo por seus pecados havia de ir cativo, mas que por misericórdia de Deus seria depois restituído à sua pátria. Os outros seis, que profetizaram no tempo do cativeiro, insistiram constantemente em que ele havia de ter fim, determinando sinaladamente o ano da liberdade.

A razão deste concurso tão extraordinário de Profetas e profecias (nunca antes, nem depois visto) foi porque nunca o povo e reino de Judá padeceu tão grande trabalho e calamidade como o cativeiro ou transmigração de Babilônia, sendo cativos, presos e. despojados de seus bens, arrancados da pátria e levados a terras de bárbaros, e lá oprimidos e tratados como escravos em duríssima servidão.

Ordenou pois a providência e misericórdia divina, que naquele tempo e estado tão calamitoso, houvesse muitos Profetas e muitas profecias, uns que as tivessem escrito no tempo passado, e outros que as pregassem no presente, para que o povo não desmaiasse com o peso da aflição, e animado com a esperança da liberdade, pudesse com o trabalho do cativeiro. O cativeiro e o tirano os oprimiam; os Profetas e as profecias os alentavam. Cantavam-se as profecias ao som das cadeias, e com a brandura deste som os ferros se tornavam menos duros e os corações mais fortes.

Foi mui particular neste caso entre todos os outros Profetas o zelo e diligência de Jeremias, porque, tendo ficado em Jerusalém, onde padeceu grandes trabalhos, prisões e perigos da vida por pregar e profetizar a verdade (pela qual finalmente morreu apedrejado), no meio destas opressões e perigos próprios, não esquecido dos alheios, antes mui lembrado do que padeciam os desterrados de Babilônia, escreveu um livro das suas profecias, em que por termos muito claros e palavras de grande consolação lhes anunciava a liberdade e o tempo dela, como se pode ver no cap. XXIX do mesmo Profeta. Levou este livro a Babilônia o Profeta Baruch, companheiro de Jeremias, leu-se em presença de El-Rei Iconias e publicamente de todo o povo, que com ele vivia no cativeiro, e nota o mesmo Baruch que todos com grande alvoroço corriam ao livro. Assim o diz no primeiro capítulo da relação que fez desta jornada, e anda no Texto Sagrado junta com as obras de Jeremias: Et legit Baruch verba libri hujus ad aures Jechoniae, filii Joachim, regis Juda, et ad aures universi populi venientis ad librum

Não sei se terá a mesma fortuna, e se será recebido e lido com o mesmo animo e afeto este nosso livro da História do Futuro; mas sei que nos trabalhos calamidades e aflições que há-de padecer o Mundo e pode ser cheguem também a Portugal, nem Portugal nem o Mundo poderá ter outro alívio nem outra consolação maior que a freqüente lição e consideração deste livro e das profecias e promessas do futuro que nele se verão escritas. Ao menos não negará Portugal que, no tempo da sua Babilônia e do cativeiro e opressões com que tantas vezes se viu tão maltratado e apertado, nenhuma outra apelação tinha a sua dor, nem outro alívio ou consolação a sua miséria, mais que a lição e interpretação das profecias, e a esperança da liberdade e do ano dela, e do termo e fim do cativeiro que nelas se lia.

Lia-se na carta e tradição de S. Bernardo que quando Deus alguma hora permitisse que o reino viesse a mãos e poder de rei estranho, não seria por espaço mais que de sessenta anos. Lia-se no juramento de El-Rei D. Afonso Henriques e na promessa do santo ermitão, que, na décima sexta geração atenuada, poria Deus os olhos de sua misericórdia no Reino. Lia-se nas célebres tradições de Gregório de Almeida no seu Portugal Restaurado, que o tempo desejado havia de chegar, e as esperanças dele se haviam de cumprir no ano sinalado de quarenta; e no concurso de todas estas profecias se consolava e animava Portugal a ir vivendo ou durando até ver o cumprimento delas.

Falando no mesmo cativeiro de Babilônia o mesmo profeta Isaías, e do alívio e consolação que com suas profecias haviam de ter em seus trabalhos aqueles cativos, diz com igual brandura e eloquência estas notáveis palavras: Spiritus Domini super me [...] ut mederer contritis corde et praedicarem captivis indulgentiam [...] ut praedicarem annum placabilem Domino [...] ut consolarem omnes 1ugentes [...] et darem eis coronam pro cinere, oleum gaudii pro luctu... «Desceu sobre mim o Senhor, e ungiu-me com seu espírito, diz Isaías, para que como médico dos aflitos cativos de Babilônia, curasse com o talento de minhas promessas e profecias, a tristeza e desmaio de seus corações». E declarando mais em particular os remédios cordiais que lhes aplicava, aponta nomeadamente dois que mais parecem receitados para o nosso cativeiro que para o de Babilônia: o primeiro, era um ano de indulgência e redenção, em que o cativeiro se havia de acabar: Et praedicarem captivis indulgentiam, annum placabilem Domino; o segundo, era uma coroa trocada pelas antigas cinzas, com que os lutos e tristezas passadas se convertessem em festas e alegrias: Et darem eis coronam pro cinere, oleum gauudii pro luctu.

Assim o liam os cativos de Babilônia; a nas suas profecias, e assim o líamos nós também nas nossas. E assim como eles não tinham outro remédio na sua dor senão a esperança daquele desejado ano e a mudança daquela prometida coroa, assim nós, com os olhos longos no suspirado ano de quarenta e na esperada coroa do novo rei português, aliviávamos o peso do nosso jugo e consolávamos a pena do nosso cativeiro. E pois este remédio das profecias foi tão presente e eficaz para os trabalhos passados, razão tenho eu (e razão sobre a experiência) para esperar e confirmar que o será também para os futuros.

Eu não prometo nem espero infortúnios a Portugal; mas ou sejam de Portugal, ou da Cristandade, ou do Mundo os que pode causar nele a necessidade ou a adversidade dos tempos, para todos lhes prometo este remédio: melhor é que sobejem os remédios à cautela, do que faltem à providência.

E porque não pareça que argumento só de casos e profecias de tempos antigos, sejam os casos e profecias próprias dos nossos tempos e escritas só para eles.

Ninguém ignora que as profecias do Apocalipse e mais ainda as que estão por cumprir) são próprias dos tempos que hoje correm e hão-de parar no fim do Mundo. Assim o dizem Padres e expositores, e nós o mostraremos em seu próprio lugar. Mas a que fim, pergunto, ordenou a Providência Divina que S. João tivesse aquelas revelações e escrevesse aquelas profecias?

É pergunta esta de que foi respondida Santa Brígida, como se lê no Livro VI de suas Revelações. Querendo Cristo, por particular favor, que a santa ouvisse a resposta da boca do mesmo Profeta, apareceu ali S. João e disse desta maneira: Tu, Domine, inspirasti mihi mysteria ejus, et ego scrpsi ad consolationem futurorum, ne fideles tui propter futuros casus everterentur: «Vós, Senhor, me revelastes aqueles mistérios, e eu escrevi as profecias deles para consolação dos vindouros e para que os vossos fiéis com os casos futuros se não perturbassem», antes confirmados com as mesmas profecias, estejam neles constantes.

Este é o fim (posto que não só este) por que Deus revela as cousas futuras, e por que os Profetas antigos, e o último de todos, que foi S. João, as escreveram: para que se veja quão justa e quão útil é, e quão conforme com a vontade e intento de Deus, a diligência com que eu me disponho, e o trabalho de escolher entre todas as profecias que pertencem a nossos tempos, e de as ajuntar, ordenar e tirar à luz para o benefício público. E porque o fruto deste benefício se pode colher nas novidades que promete este mesmo ano em que. somos entrados, aplicando o remédio à ferida ou aos ameaços dela, digo assim com o profeta Amos: Leo rugiet; quis non timebit? Dominus Deus locutus est quis non prophetabit ? Está o leão bramindo? Sim, está; pois agora é o tempo de se ouvirem as profecias e de se saber e publicar o que Deus tem dito: Dominus Deus locutus est. quis non prophetabit? Falem todos nas profecias e entendam-nas todos, pratiquem-nas todos, que agora é o tempo.

Quando as bramidos do leão se ouvirem em suas caixas e trombetas, soe também em nossos ouvidos por cima de todas elas, o trovão de nossas profecias. Assim lhes chamei, porque são voz do Céu. Leo rugiet, quis non timebit? «Quando bramir o leão, quem não tremerá?»

Responderão com razão os nossos soldados que não temerão aqueles que tantas vezes os têm vencido; que não temerá Portugal, que é o Sansão que tantas vezes o tem desqueixado. que não temerá Portugal, que é o Hércules que tantas vezes se tem vestido de seus despojos; que não temerá Portugal que é o David que tantas vezes lhe tem tirado das garras os seus cordeiros. Esta é a resposta do valor, e esta pode ser também a da arrogância, de que Deus se não agrada.

Não confie Portugal em si, porque se não ofenda Deus; confie só no mesmo Deus e em suas promessas, e pelejará seguro. Oh! que bem armados esperarão o leão na campanha os nossos soldados, se tiverem nas mãos as armas e no coração as profecias! Leo rugiet, quis non prophetabit?

Estas são as trombetas do Céu, de cujo som tremem os muros de Jericó e a cuja bateria nenhuma fortaleza resiste.

Mas se acaso (que pode ser) houver algum sucesso adverso (que também depois do milagre de Jericó houve nos campos de Hai), não perca Josué nem seus soldados o animo; recorram a Deus e a suas promessas, que por isso nos tem prevenido com elas.

Costuma a Providência Divina começar suas maravilhas por efeitos contrários, ou para provar nossa fé, ou para mais exaltar sua onipotência. Ele pode mais que todos os poderes humanos, e só uma cousa não pode, que é faltar ao que tem prometido. Deixou Cristo aos discípulos lutar com a tempestade na primeira vigia, na segunda não lhos acudiu, nem na terceira; e quando na quarta, depois de os atemorizar com fantasmas, os socorreu com sua presença, ainda então os repreendeu de pouca confiança. Escureça-se a noite, brame o mar, rompa-se o céu, enfureçam-se os ventos, que Deus há-de acudir por sua palavra; seguro está o Reino em que ele e a palavra de Deus correm o mesmo perigo.

Finalmente (e é a terceira e não menor utilidade desta História), lendo os príncipes da Cristandade, e mais particularmente aqueles que foram ou estão já escolhidas por Deus para instrumentos gloriosos de ,tão singulares maravilhas e maravilhosas felicidades, lendo, digo, no discurso da História do Futuro, as vitórias, os triunfos, as conquistas, os reinos, as coroas e o domínio e sujeição de nações tantas e tão dilatadas, que lhes estão prometidas, na fé e confiança das mesmas promessas se atreverão animosamente a empreendê-las, sendo certo que, medidas só as forças da potência humana, sem ter por fiador a palavra divina, nenhuma razão haveria no Mundo que se atrevesse a aconselhar, nem ainda temeridade que se arrojasse a empreender a desigualdade de tamanhas guerras e a desproporção de tão imensas conquistas. Mas as promessas e as disposições divinas, antecedentemente conhecidas na previsão do futuro, tudo facilitam e a tudo animam.

Para testemunho desta tão importante verdade e alento dos que a lerem, porei aqui um só exemplo de guerras, outro de conquistas, mas um e outro os maiores que até hoje se viram no Mundo.

Tinham vindo sobre o povo de Israel os exércitos dos Filisteus com trinta mil carros de guerra e tanta multidão de soldados, que não só compara a Escritura Sagrada q número deles com o da areia do mar, senão com a areia muita: ...sicut arena, quae est in littore maris, plurima. Os Israelitas, reconhecendo sua desigualdade para resistir a tão superior e excessivo poder, diz o mesmo texto que se tinham escondido pelas brenhas, pelas montanhas, pelas covas, pelas grutas, pelas cisternas e por todos os outros lugares mais ocultos e secretos que .sabe inventar o medo e a necessidade.

.Neste estado de horror e miséria sai de noite o príncipe Jónatas, filho de el-rei Saul, trata de consultar a Deus por um modo de oráculo ou sorte, a que os Hebreus chamavam Phurim, pela qual a Providência divina naquele tempo costumava responder e significar os sucessos futuros; e encaminhando para os alojamentos do inimigo, disse assim ao seu pajem da lança, que só o acompanhava:

Se quando formos sentidos do exército dos Filisteus, disserem as sentinelas: — Esperai por nós — é sinal que responde Deus que paremos, e que não convém acometer; mas se as sentinelas disserem: — Vinde para cá — é sinal que responde Deus que acometamos, porque os tem entregues em nossas mãos, e que havemos de prevalecer contra eles.

Ajustados os sinais nesta forma, prosseguiram seu caminho, chegaram perto e foram sentidos. As sentinelas que deram fé dos dois voltos, falaram entre si, concordando em que eram hebreus dos que estavam metidos pelas covas; levantaram a voz e disseram para eles: — Vinde cá, que temos certa cousa que vos dizer. Não foi necessário mais, para que Jónatas entendesse a resposta do divino oráculo, interpretando-a (como verdadeiramente era) conforme o sinal que tinha posto; e na fé e confiança desta profecia, tendo por sem dúvida que havia de vencer, avança animosamente às tendas dos Filisteus, começa ele e o companheiro a matar nos inimigos, toca-se arma, cresce a confusão, perturbam-se os arraiais, trava-se uma brava peleja dos mesmos Filisteus uns contra os outros, cuidando que eram os soldados de Saul. Fogem, atropelam-se, matam-se. Saem das covas os Israelitas, seguem os Filisteus fugitivos, e voltam carregados de despojos. Conhecem-se enfim com imortal glória de Jónatas os autores de tão estupenda façanha, bastando só dois homens armados da confiança de uma profecia, para porem em fugida o mais poderoso exército e alcançarem a mais desigual e prodigiosa vitória.

A maior e mais nobre conquista que até hoje se intentou e conseguiu no Mundo, foi a famosa de Alexandre Magno. O homem que a empreendeu era o maior capitão que criou a natureza, formou o valor, aperfeiçoou a arte e acompanhou a fortuna. mas se não fora ajudado da profecia, nem ele se atrevera ao que se atreveu, nem obrara e levara ao cabo o que obrou. Bem sei que no dia em que nasceu Alexandre, ardeu o famosíssimo templo de Diana Efesina, onde prognosticaram os Magos que naquele dia entrara no Mundo quem havia de ser o incêndio de toda Ásia.

Também sei que a quem desatasse o nó gordiano que Alexandre cortou com a espada, estava prometido pelos oráculos de Apolo Délfico o império de todo o Oriente; mas não chamo eu a isto profecias, nem assento considerações e verdades tão sérias sobre fundamentos de tão pouca subsistência, como são os vaticínios da Gentilidade.

Conta Josefo, no liv. XI de suas Antigüidades, que entrando Alexandre em Jerusalém, saiu a o receber fora do templo o sumo sacerdote Jado, revestido dos ornamentos pontificais, e que Alexandre, vendo-o, se lançara a seus pés e o adorara; e perguntado pela causa de tão desusada reverência, tão alheia de sua grandeza e majestade, respondeu que ele não adorara aquele homem senão nele a Deus, porque reconhecera que aquele era o hábito, o ornato e a representação em que Deus lhe tinha aparecido em Dio, cidade de Macedônia, e exortando-o a que empreendesse a conquista da Pérsia, que naquele tempo meditava, lhe segurara a vitória.

As palavras de Alexandre (que é bem se veja a sua formalidade) são as seguintes: — Non hunc adoravi, sed Deum, cujus principa desse a resposta do divino oráculo, interpretando-a (como verdadeiramente era) conforme o sinal que tinha posto; e na fé e confiança desta profecia, tendo por sem dúvida que havia de vencer, avança animosamente às tendas dos Filisteus, começa ele e o: companheiro a matar nos inimigos, toca-se arma cresce a confusão, perturbam-se os arraiais, trava-se uma brava peleja dos mesmos Filisteus uns contra os outros, cuidando que eram GS soldados de Saul. Fogem, atropelam-se, matam-se. Saem das covas os Israelitas, seguem GS Filisteus fugitivos, e voltam carregados de despojos. Conhecem-se enfim com imortal glória de Jónatas os autores de tão estupenda façanha' bastando só dois homens armados da confiança de uma profecia, para porem em fugida o mais poderoso exército e alcançarem a mais desigual e prodigiosa vitória.

A maior e mais nobre conquista que até hoje se intentou e conseguiu no Mundo, foi a famosa de Alexandre Magno. o homem que a empreendeu era o maior capitão que criou a natureza, formou o valor, aperfeiçoou a arte e acompanhou a fortuna. mas se não fora ajudado da profecia, nem ele se atrevera ao que se atreveu, nem obrara e levara ao cabo o que obrou. Bem sei que no dia em que nasceu Alexandre, ardeu o famosíssimo templo de Diana Efesina, onde prognosticaram os Magos que naquele dia entrara no Mundo quem havia de ser o incêndio de toda Ásia.

Também sei que a quem desatasse o nó gordiano que Alexandre cortou com a espada, estava prometido pelos oráculos de Apolo Délfico o império de todo o Oriente; mas não chamo eu a isto profecias, nem assento considerações e verdades tão sérias sobre fundamentos de tão pouca subsistência, como são os vaticínios da Gentilidade.

Conta Josefo, no liv. XI de suas Antigüidades, que, entrando Alexandre em Jerusalém, saiu a o receber fora do templo D sumo sacerdote Jado, revestido dos ornamentos pontificais, e que Alexandre, vendo-o, se lançara a seus pés e o adorara; e perguntado pela causa de tão desusada reverência, tão alheia de sua grandeza e majestade, respondeu que ele não adorara aquele homem, senão nele a Deus, porque reconhecera que aquele era o hábito, o ornato e a representação em que Deus lhe tinha aparecido em Dio, cidade de Macedônia, e exortando-o a que empreendesse a conquista da Pérsia, que naquele tempo meditava, lhe segurara a vitória.

As palavras de Alexandre (que é bem se veja a sua formalidade) são as seguintes:

Non hunc adoravi, sed Deum, cujus principatus sacerdotii functus est. Nam per somnium in hujus modi eum habitu conspexi, adhuc in Dio civitate Macedoniae constitutus. Dumque mecum cogitassem posse Asiam vincere, incitavit me ut nequaqm negligerem, sed confidenter transirem. Nam per se ducturum meum exercitum dicebat, et Persarum traditurum potentiam: ideoque neminem alium in tali stola videns, cum huc advertissem, habens visionis et probutionis nocturnae memoriam, salutavi. [...] Exinde arbitrar Divino iuvamine me directum Dariumque vixisse, virtutemque solvisse Persarum. Propterea et omnia quae meo.corde sperantur, pro ventura confido.

No mesmo templo de Jerusalém, refere também Josefo que foram mostradas a Alexandre as profecias de Daniel, particularmente aquela do cap. VIII. Conta ali o profeta que viu dois animais do campo: um, o maioral das ovelhas, com dois cornos muito fortes; outro, o maioral das cabras, com um só corno entre os olhos (o qual depois de quebrado se dividiu em quatro), e que este segundo animal, correndo da parte do Ocidente contra o primeiro, sem pôr os pés na terra, o investira e derribara e metera debaixo dos pés.

Nestas duas figuras é certo que estava profetizado, na primeira, o império dos Persas e Medos (como explicou o anjo a Daniel), por isso tinha a testa dividida em dois cornos; na segunda, o império dos Gregos, que no princípio esteve unido em uma só pesca, que foi Alexandre, e depois de sua morte se dividiu em quatro, que foram os quatro reinos em que ele o repartiu entre seus capitães. Saiu pois Alexandre da parte ocidental, que é a Macedônia, e sem pôr os pés na terra, pela velocidade com que vencia e sujeitava tudo, investiu, derribou e meteu debaixo dos pés o império dos Persas e Medos, acabando de se cumprir a profecia na última batalha do Tigranes, em que venceu e desbaratou de todo os exércitos de Dario e tomou ou se deixou saudar com o nome de Imperador da Ásia.

Não parou aqui Alexandre; porque não pararam aqui as profecias de Daniel na visão dos quatro animais referidos no cap. VII. O terceiro era Alexandre, significado no leopardo com quatro asas. Na visão da estátua de Nabuco, referida no cap. II, o terceiro dos metais, que era o bronze, significava também o império de Alexandre; e diz ali o Profeta que reinaria e se faria obedecer de todo o Mundo: Et regnum tertium aliud aereum, quod imperabit universae terrae.

Em seguimento e confiança destas profecias, partiu Alexandre vitorioso para a conquista que lhe restava do mundo oriental, o qual sujeitou e uniu todo ao seu império, passando o Tauro e o Cáucaso e chegando até os fins do Ganges e praias do mar Índico, que eram então os últimos da terra de onde Hércules e o padre Líbero os tinham colocado.

Mas foram ainda mais em número e grandeza as nações que venceu e sujeitou Alexandre com a fama mais que com a espada; porque, entrando da volta desta jornada em Babilônia, achou nela os embaixadores de África, de Cartago Espanha, Gália, Itália, Sicília, Sardenha, as quais províncias, em obséquio e reconhecimento de sua potência, se lhe mandaram sujeitar e entregar espontaneamente e entre elas os mesmos Romanos (nome já naquele: tempo famoso no Mundo), como é autor Clitarco, referido e louvado por Plínio no liv. III da História Natural. Tudo certifica ainda com palavras maiores o mesmo Texto Sagrado no exórdio do I Liv. dos Macabeus, dizendo: ...percussit Alexander [...] qui primus regnavit in Graecia, et Darium regem Persarum et Medorum, constituit et praelia multa et oblinuit omnium munitiones, et interfecit reges terrae, pertransiit usque ad fines terrae, et accepit spolia mulitudinis gentium, et siluil terra in conspectu ejus.

Porém o que mais admira nas conquistas e vitórias de Alexandre, é a desigualdade do poder e o limitado aparato de guerra com que entrou em tão imensa empresa; porque, como refere Plutarco e o prova com graves autores, saiu de Macedônia com menos de quarenta mil homens, bastimentos só para trinta dias, e com setenta talentos para estipêndios, que fazem da nossa moeda quarenta e dois mil cruzados.

Mas como Alexandre, antes de obrar todas estas maravilhas, com que mereceu o nome e se fez verdadeiramente magno, se tivesse visto a si mesmo melhor retratado nas profecias de Daniel, do que depois se viu nas estátuas de Lisipo nem nas pinturas de Apeles, não é muito que, animado e soprado do espírito das mesmas profecias e cheio da majestade delas, se atrevesse a tão árduas e dificultosas empresas, das quais justamente se duvida (como pôs em questão Justino) se foi maior façanha o intentá-las, ou vencê-las.

E de aqui se pode desculpar (cousa que não soube nem pôde advertir nenhum dos historiadores de Alexandre, sendo tantos e tão excelentes), de aqui, digo, se pode desculpar aquela mais temeridade que audácia (qualidade, posto que honrosa, indigna de um general prudente e muito mais de um rei, quando conquista o alheio e não defende o próprio), com que Alexandre empenhava sua pessoa e vida e se precipitava muitas vezes aos perigos por cousas leves, sendo a confiança ou o seguro de todos estes arrojamentos, não o domínio que ele tivesse sobre a fortuna — Quam solus omnium mortalium sub potestate habuit — como com discrição gentílica disse dele Cúrcio, mas a previsão e presciência de suas futuras vitórias e do império que lhe estava prometido, e havia necessariamente de conquistar, conforme as profecias de Daniel. E como tinha a vida e as empresas firmadas por uma escritura de Deus ou por três escrituras, e ao mesmo Deus por fiador de sua palavra e promessas, fé era e não audácia, confiança e não temeridade empenhar-se Alexandre nos perigos para conseguir as empresas, e dar exemplo de desprezo da vida a seus soldados para os animar às vitórias. Tanta parte teve a profecia nas ações deste grande capitão e no império deste grande monarca, o qual, se deve a Filipe o ser Alexandre, deve a Daniel o ser Magno!

Os exemplos que temos domésticos desta mesma utilidade, não são menos admiráveis que os estranhos, assim nas batalhas, como nas conquistas. Era tão inumerável a multidão de Sarracenos que debaixo das luas de Ismael, e dos outros quatro reis mouros, inundaram os campos de Guadiana com intento de tomar Portugal naquele dia fatalíssimo, o primeiro de nossa maior fortuna, que justamente estavam temerosos os poucos portugueses, e seu valoroso príncipe duvidoso se aceitaria ou não a batalha; mas como o velho ermitão, intérprete da Divina Providência, visto primeiro em sonhos e depois realmente ouvido e conhecido, lhe assegurou da parte de Deus a vitória, com aquelas tão expressas e animosas palavras Vinces, Alphonse, et non vinceris — socorrido o animoso capitão e fortalecido o pequeno exército com esta promessa do Céu, sem reparar em que era tão desigual o partido, que para cada lança cristã havia no campo cem mouros, resolveu intrepidamente dar a batalha.

Na manhã, pois, da mesma noite em que tinha recebido a profecia, acomete de fronte a fronte ao inimigo, sustenta quatro vezes o peso imenso de todo seu poder, rompe os esquadrões, desbarata o exército, mata, cativa, rende, despoja, triunfa; e alcançada na mesma hora a vitória, e libertada a Pátria, pisa glorioso as cinco coroas mauritanas e põe na cabeça, já rei, a portuguesa.

Isto obraram as profecias daquela noite na guerra, mas ainda mostraram mais os poderes de sua influência na conquista. Quem duvida que foram mais estendidas e gloriosas as conquistas dos Portugueses que as de Alexandre Magno na mesma Índia? Desta conquista de Alexandre disse o seu grande historiador ...Oriente perdomito, aditoque Oceano, quidquid mortalitas cutiebut, impleret. «Domado o Oriente e navegado o Oceano, cumpriu e encheu Alexandre tudo o que cabia na mortalidade.:> Que dissera, se vira as navegações dos Portugueses no mesmo Oceano e suas conquistas no mesmo Oriente? Obrigação tinha em boa conseqüência de lhes chamar imortais. Não chegaram os Portugueses só às ribeiras do Ganges, como Alexandre; mas passaram e penetraram adiante muito maior comprimento e terras do que há do mesmo Ganges a Macedônia, donde Alexandre tinha saído.

Não venceram só a Poro, rei da Índia, e seus exércitos; mas sujeitaram e fizeram tributárias mais coroas e mais reinos do que Poro tinha cidades. Não navegaram só o mar Indico ou Eritreu, que é um seio ou braço do Oceano, mas domaram o mesmo Oceano na sua maior largueza e profundidade, aonde ele é mais bravo e mais pujante, mais poderoso e mais indômito: o Atlântico, o Etiópico, o Pérsico, o Malabárico, e, sobre todos, o Sínico, tão temeroso por seus tulões e tão infame por seus naufrágios. Que perigos não desprezaram? Que dificuldades não venceram? Que terras, que céus, que mares, que climas, que ventos, que tormentas, que promontórios não contrastaram? Que gentes feras e belicosas não domaram? Que cidades e castelos fortes na terra? Que armadas poderosíssimas no mar não renderam? Que trabalhos, que vigias, que fomes, que sedes, que frios, que calores, que doenças, que mortes não sofreram e suportaram, sem ceder, sem parar, sem tornar atrás, insistindo sempre e indo avante, com mais pertinácia que com instancia?

Mas não obraram todas estas proezas aqueles portugueses famosos por benefício só de seu valor, senão pela confiança e seguro de suas profecias. Sabiam que tinha Cristo prometido a seu primeiro rei que os escolhera para argonautas apostólicos de seu Evangelho e para levarem seu nome e fundarem seu império entre gentes remotas e não conhecidas; e esta fé os animava nos trabalhos; esta confiança os sustentava nos perigos; esta luz do futuro era o norte que os guiava; e esta esperança a âncora e amarra firme, que nas mais desfeitas tempestades os tinha seguros.

Maiores contrastes tiveram ainda as conquistas de Portugal na nossa terra que nas estranhas, e mais fortes guerras experimentaram nos naturais que resistência nos inimigos. Quem quiser ver com admiração a tormenta de contradições populares , e de todo o Reino, que por espaço de dez anos padeceram os primeiros descobrimentos das conquistas, leia o grande cronista da Ásia, no IV cap. do I liv., e conhecerá quantas obrigações deve Portugal e o Mundo ao sofrimento, valor e constância do Infante D. Henrique, filho de El-Rei D. João I, autor desta heróica empresa, o qual, como religiosíssimo príncipe que era, e nela principalmente pretendia a glória de Deus, dilatação da Fé e conversão da Gentilidade, mereceu que o mesmo Deus com uma voz do Céu o exortasse a levar por diante o começado, com promessa de seu favor e luz dos gloriosíssimos fins, que por meio de tão dura porfia se haviam de alcançar.

Assim se conta e escreve por fama e tradição daquele tempo. Com este oráculo divino mais fortalecido o espírito do Infante, não só pôde romper e abrir as portas tão cerradas do Oceano e deixá-las francas e patentes aos que depois vieram, vencidas as primeiras e maiores dificuldades, mas dar animo, valor, guia e esperança aos que, seguindo seu exemplo e empresa, a levaram ao cabo. Desta maneira o Infante D. Henrique, que será sempre de feliz memória, nos ganhou com sua constância as conquistas, conquistando-as primeiro em Portugal, do que fossem conquistadas na África, Ásia, América, e contrastando com igual fortaleza o indômito furor do segundo e quarto elemento (que são o mar e o fogo), que não pudera conseguir sem o socorro da luz do Céu, animado nas contradições e contrariedades presentes com o conhecimento e certeza dos sucessos futuros, para que até nesta parte deva Portugal as suas conquistas aos lumes e alentos da profecia.

Finalmente, esta última resolução que no ano de quarenta assombrou o Mundo, posto que muito a devamos à ousadia do nosso valor, muito mais a deve o nosso valor à confiança de nossos vatícinios. Que valor sesudo, prudente e bem aconselhado se havia de atrever a uma empresa tão cercada de dificuldades, como levantar-se contra o mais poderoso monarca do Mundo, e restituir-se à sua liberdade, e aclamar novo rei, não longe senão dentro de Espanha, um reino de grandeza tão desigual, sobre sessenta anos de cativo e despojado; sem armas, sem soldados, sem amigos, sem aliados, sem assistências, sem socorros, só e até de si mesmo dividido em tão distantes partes do Mundo? Mas como havia outros tantos anos que a profecia estava dando brados aos corações, em que nunca se apagou o amor da Pátria, e a saudade do rei, e o zelo da liberdade, dizendo e publicando a todos que o desejado tempo dela havia de chegar no ano felicíssimo de quarenta, em que o novo rei seria levantado; a promessa que sempre a conservou nos corações, a levantou a seu tempo nas vozes, e ela foi a que deu o rei ao Reino, o Reino à Pátria, a Pátria aos Portugueses, e Portugal a si mesmo; e este seja entre todos o maior exemplo, assim das nossas guerras como das nossas conquistas, pois tudo o que tínhamos vencido e conquistado em quinhentos anos, alentados das promessas do Céu, o pudemos restaurar um dia.

E se tanto tem valido e importado a Portugal o conhecimento de seus futuros, em todos os casos maiores que podem acontecer a um reino; se debaixo desta fé nasceu, quando recebeu a coroa. se debaixo desta fé cresceu, quando lhe acrescentou as conquistas; se debaixo desta fé se restaurou, quando as restituiu a elas e se restituiu a si mesmo, oh! quanto mais necessário lhe será a Portugal, e quanto mais útil e importante esta mesma fé e conhecimento de seus futuros sucessos para aquelas empresas novas, e muito maiores, que nos tempos que hão-de vir (ou que já vêm) o esperam! Não se poderá compreender a grandeza e capacidade desta importância senão depois de lida toda a História do Futuro, na qual só se medirá bem a imensidade do objeto com a desigualdade do instrumento.

Mas quem quiser desde logo fazer de algum modo a conjectura desta desproporção, tome os compassos a Portugal e ao Mundo, e pergunte-se a si mesmo se se atreve a igualar estes paralelos. É porém, tão poderoso contra todos os impossíveis o conhecimento e fé do que há-de ser representado no espelho das profecias, que nenhuma empresa pode haver tão desigual, nenhuma tão armada de perigos, nenhuma tão defendida de dificuldades, que debaixo do escudo desta confiança se não intente, se não avance, se não prossiga, se não vença. Da conquista espiritual do Mundo se pode fazer bom argumento para a temporal, pois é mais forte a guerra e mais dura resistência a dos entendimentos que a dos braços.

Quis Deus que a Igreja, que é o seu reino, fundada pelos Apóstolos, se estendesse por seus sucessores em todo o Mundo; e quais foram as armas com que Deus os fortaleceu para que não temessem ou duvidassem a empresa e se dispusessem animosamente a tão estranha conquista?

Advertiu com profundo juízo Primásio que fora o Apocalipse de S. João, porque, lendo os soldados evangélicos naquelas profecias quão largamente se havia de propagar a mesma Igreja e quão prodigiosas vitórias havia de alcançar a Fé contra todos os inimigos, este mesmo conhecimento os animava a quererem ser (como foram) os instrumentos gloriosos delas. Segurou-lhes Deus as vitórias, para que não duvidassem cometer as batalhas: Post exortum autem Ecolesiae, quae jam fuerat apostolorum praedicatione funduta, revelari oportuit — diz Primásio — qualiter esset latius propaganda, vel quali etiam fine contenta, ut praedicatores veritatis, hujus cognitionis fidutia freti, indubitanter aggrederentur pauci multos, inermes armatos, humiles superbos, infirmi nobiles, vivi tamen spiritualiter mortuos. Não se pode dizer, nem mais certa, nem mais elegantemente, se exceptuarmos a desproporção de poucos a muitos, pauci multos. Em todas as outras considerações foi mais desigual esta empresa que as que eu prometo ou hei-de prometer; e se a esta se atreveram poucos homens sem armas, sem estimação, sem nobreza, sem poder, contra tantos armados arrogantes, nobres e poderosos, só porque no conhecimento das profecias tinham segura a felicidade e fim da empresa, porque se não atreverão à mesma empresa, e na confiança das mesmas profecias, aqueles em quem o poder se iguala com as armas, as armas se ilustram com a nobreza e a nobreza compete com a estimação e com a fama, ainda que sejam poucos contra muitos?

E digo na confiança das mesmas profecias, porque uma boa parte da nossa História (como veremos em seu lugar) são as do mesmo Apocalipse. Lerão os Portugueses, e todos os que lhes quiserem ser companheiros, este prodigioso livro do futuro, e com ele embraçado em uma mão e a espada na outra, posta toda a confiança em Deus e em sua palavra, que conquista haverá que não empreendam, que dificuldades que não desprezem, que perigos que não pisem, que impossíveis que não vençam?

Ao conhecimento antecedente dos futuros chamou discretamente S. Gregório escudo fortíssimo da presciência, em que todas as adversidades e golpes do Mundo se sustentam, se reparam e se rebatem: Et nos tolerabilius mundi mula suscipmus, si contra haec per prtescientiae clypeum munimur. Que vem a ser esta nossa História do Futuro, senão escudo da presciência - praescientia, clypeum? Armados com este escudo, que trabalhos, que perigos nos pode oferecer o mar, a terra e o Mundo, e que golpes nos pode atirar com todas as forças de seu poder, que não sustentemos nele com animosa constância? Quem haverá que debaixo deste escudo não empreenda as mais dificultosas conquistas, nem aceite as mais arriscadas batalhas, e não vença e triunfe dos mais poderosos inimigos, se as empresas no mesmo escudo vão já resolutas, as batalhas vão já vencidas e os inimigos já triunfados?

Fingiu o príncipe dos poetas latinos, que pediu Vênus, mãe de Eneias, ao deus Vulcano lhe fabricasse umas armas divinas, com que entrasse armado na dificultosíssima conquista de Itália, com que vencesse os reis e sujeitasse as nações belicosíssimas que a dominavam, com que vitorioso fundasse naquelas terras o famosíssimo Império Romano, que pelos fados lhe estava prometido. Forjou Vulcano as armas, e no escudo, que era a maior e principal peça delas, diz que abriu de subtilíssima escultura as histórias futuras das guerras e triunfos romanos, compondo e copiando os sucessos pelos oráculos e vaticínios dos profetas e pelas notícias próprias que tinha, como um dos deuses que era participante dos segredos do supremo Júpiter.

...Clypei non enarrabile textum
Illic res Italas, romanotumque triumphos,
Haud vatum ignarus, venturique inscius aevi,
Fecerat igni potens: illic genus omne futurae
Stirpis ab Ascanio, purgnataque ordine bella.
(Virgílio, Aeneid . 8. )

O ofício e obrigação dos poetas não é dizerem as cousas como foram, mas pintarem-nas como haviam de ser ou como era bem que fossem; e achou o mais levantado e judicioso espírito de quantos escreveram em estilo poético, que para vencer as mais dificultosas empresas, para conquistar as mais belicosas nações e para fundar o mais poderoso e dilatado império, nenhuma arma poderia haver mais forte, nem mais impenetrável, nem que mais enchesse de ânimo, confiança e valor o peito que fosse coberto e defendido com ela, que um escudo formado por arte e sabedoria divina, no qual estivessem entalhados e descritos os mesmos sucessos futuros que se haviam de obrar naquela empresa. Assim armou o grande poeta ao seu Enéias ; e este mesmo escudo, não fabuloso, senão verdadeiro, e não fingidos depois de experimentados os sucessos, senão escritos antes de sucederem, é propriamente, e sem ficção, o que nesta História do Futuro ofereço, Portugueses, ao nosso rei.

Dobrado de sete lâminas dizem que era aquele escudo; e também o da nossa História, para que em tudo lhe seja semelhante, é publicado em sete livros. Nele verão os capitães de Portugal, sem conselho, o que hão-de resolver; sem batalha, o que hão-de vencer; e sem resistência, o que hão-de conquistar. Sobre tudo se verão nele a si mesmos e suas valorosas ações, como em espelho, para que, com estas cópias de morte-cor diante dos olhos, retratem por elas vivamente os originais, antevendo o que hão-de obrar, para que o obrem, e o que hão-de ser. para que o sejam.

Entre as utilidades próprias a dos amigos, não quero deixar de advertir por fim delas, que também a lição desta História pode ser igualmente útil e proveitosa aos inimigos, se, deixada a dissonância e escândalo deste nome, quiserem antes ser companheiros de nossas felicidades, que padecê-las dobradamente na dor e inveja dos êmulos. Lerão aqui nossos vizinhos e confinantes (que muito a pesar meu sou forçado alguma vez a lhes chamar inimigos, havendo tantas razões, ainda da mesma natureza, para o não serem) lerão aqui com boa conjectura as promessas e decretos divinos, provada a verdade dos futuros com a experiência dos passados: e verão, se quiserem abrir os olhos, um manifesto desengano de sua profecia, conhecendo que na guerra que continuam contra Portugal, pelejam contra as disposições do supremo poder e combatem contra a firmeza de sua palavra. Oh quantos danos, quantas despesas, quantos trabalhos, quanto sangue e perda de vidas, quantas lágrimas e opressão de naturais e estrangeiros podia escusar Espanha, se, com os olhos limpos de toda a paixão e afeto, quisesse ler esta História do Futuro, e com tanto zelo e desejo de acertar com os caminhos de seu maior bem, como é o animo com que ele se escreve!

Não entre só nos conselhos de Estado a conveniência e reputação, o apetite e o ódio, a vingança, o discurso militar e político; tenha também algum dia lugar neles a Fé; suponha-se que Deus é o que dá e tira os reinos, como e quando é servido; conheça-se e examine-se a sua vontade pelos meios com que ela se costuma declarar; e depois de averiguada e conhecida, ceda-se e obedeça-se a Deus por conveniência, pois se lhe não pode resistir com força.

Bem pudera conhecer Espanha, voltando os olhos ao passado, pela experiência, que Deus é o que desuniu de sua sujeição a Portugal, e Deus o que o sustenta desunido e o conserva vitorioso.

Quando se soube em Madrid do rei que tinham aclamado os Portugueses no primeiro de Dezembro do ano de 640, chamavam-lhe por zombaria rei de um Inverno, parecendo-lhes aos senhores Castelhanos, que não duraria a fantasia do nome mais que até a primeira Primavera, em que a fama só de suas armas nos conquistasse. Mas são já passados vinte e cinco Invernos, em que inundações do Bétis e Guadiana não afogaram a Portugal, e vinte e quatro Primaveras, em que sabem muito bem os campos de uma e outra parte o sangue de que mais vezes ficaram matizados.

Imaginou Espanha que na prisão do Infante D. Duarte atava as mãos a Portugal e lhe tirava a cabeça com que haviam de ser governados na guerra, e que com os muros de Milão tinha sitiado a Portugal. Morreu enfim (ou foi morto) aquele príncipe, e nem por isso desmaiou o Reino, antes se armou de novo a justiça de sua causa com a sentença daquela inocência, e se endureceram e fortificaram mais os peitos com o horror e fealdade daquele exemplo.

Voltou-se todo o peso da guerra contra Saul; maquinou-se contra a vida de El-Rei Dom João por tantos meios e instrumentos (e algum deles sobre indecente sacrilégio); parecia-lhe a Castela que, faltando a Portugal aquela grande alma, seria fácil a suas águias empolgarem no cadáver do Reino. Faltou El-Rei D. João ao Reino, sobre ter faltado de antes seu primogênito Teodósio, príncipe de tantas virtudes, opinião e esperanças; mas viu o Mundo, posto que o não quis ver Castela, que era o braço imortal o que defendia e conservava aos Portugueses. Sucedeu na menoridade do rei com tanta prudência e valor a regência da rainha-mãe, e à regência da rainha o governo felicíssimo de El-Rei D. Afonso, que Deus guarde, monarca de tão conhecida fortuna, que parece a traz a soldo nos exércitos.

Fez Castela neste tempo os maiores esforços de seu poder, e para os poder fazer maiores, assim como por esta causa tinha já concluído ou comprado, a preço da própria reputação, a paz de Holanda, ajustou também a de França . Desembaraçadas em toda a parte as suas armas, chamou os espíritos de todo o corpo da monarquia aos dois braços com que Castela cerca a Portugal. Viram-se juntas contra ele em um exército Espanha, Alemanha, Itália, Flandres, com toda a flor militar, ciência e valor daquelas belicosas nações. Mas que resultas foram as desta tão estrondosa potência e dos progressos que com ela se tinham ameaçado a nós e prometido a Europa?

Entrou a guerra dividida no ano de 62 por todas nossas províncias; em todas achou oposição igual e efeito superior. Uniu-se no ano seguinte com novo conselho o poder; acrescentou-se de gente de cavalos , de cabos, de aparatos bélicos ; escolheu-se para teatro daquela formidável campanha a província de Alentejo; começou a tragédia com prósperos e alegres passos, triunfando dos que não podiam resistir às armas castelhanas; mas o fim foi tão adverso, tão lastimoso e verdadeiramente trágico, como viu com admiração o Mundo e chorará eternamente Castela. Perdeu a batalha, o exército e a reputação; deixou a Portugal a vitória, a fama, os despojos, e só levou (como sempre) o desengano.

Estes têm sido em vinte e cinco anos os efeitos do poder. Passemos aos da indústria.

Entendeu Castela que não podia conquistar a Portugal sem Portugal; tratou de inclinar à sua devoção os grandes e os menores. Na constância houve diferença, mas nos efeitos nenhuma. O povo, cuja fortuna é inalterável, não padeceu alteração. Sendo tão livre e aberto em Portugal o mar como a terra, se não viu em tantos anos nenhum pastor que se passasse a Castela com duas ovelhas, nenhum pescador menos venturoso que aos seus portos derrotasse uma barca.

Basta por exemplo ou desengano a famosa resolução do povo de Olivença , que com partido de poder ficar inteiro com casas e fazendas, se não achou em todo ele um só homem de espírito tão humilde, que aceitasse a sujeição. Perderam todos a Pátria pela lealdade, triunfou Castela das paredes e Portugal dos corações. Não viu Roma semelhante exemplo, e assim o celebrou um Jerônimo Petrucho poeta romano, com este epitáfio:

Victor uterque manet, victoria dividit orbem:
Alphonsus cives, saxa Philippus habet.

Ainda deu muito a Castela em partir a vitória pelo meio: o vencedor conquistou pedras o vencido vassalos. De indústria se pudera perder á praça, só por lograr a fineza; e de indústria se pudera também não ganhar, só por não experimentar o desengano. Isto vence Castela, quando vence. e assim se rende o povo de Portugal, quando se rende.

A nobreza, em que tem maiores poderes o receio ou a esperança, como mais escrava da fortuna, não foi toda constante. Alguns grandes houve entre os grandes, uns que se passaram ao serviço de El-Rei D. Filipe, outros que com maior ousadia o quiseram servir em Portugal; a uns e outros castigou o mesmo braço da Providência, a estes com a vida, àqueles com o desterro. Até agora não tiveram outro prêmio, nem mereciam outro, porque Castela nem pode ressuscitar os primeiros, nem quis pagar os segundos.

É fama que foi respondido à sua queixa que tinham feito o que deviam, mas ainda devem o que fizeram: cá perderam o que tinham, lá não ganharam o que esperavam; entre os Portugueses réus, entre os Castelhanos portugueses, que também é culpa.

Isto é o que foram buscar a Castela todos os que lá se passaram — o desengano de seu discurso, o descrédito de sua resolução e o castigo de sua incredulidade; e ainda de lá nos mandam o exemplo de seu arrependimento. Levaram o que nos não faz falta, porque se levaram; e deixaram o que nos ajuda a defender, porque nos deixaram as suas rendas. A Portugal deixaram os despojos de suas casas, aos vindouros a memória de sua infidelidade e ao Mundo pregão de sua covardia. Tal foi o merecimento, tal o prêmio. Julgue agora Castela se terá esse interesse cobiçosos e este empenho imitadores.

Dizia um dos primeiros embaixadores de Portugal em França (quando ainda havia quem impugnasse a esperança da nossa conservação), que, no caso em que a desgraça fosse tanta, antes se havia de entregar ao Turco que a Castela. Era o embaixador ministro de letras, e como um grande senhor francês lhe pedisse a razão deste seu dito, sendo católico e letrado, respondeu assim: -Porque eu em Turquia, se defender a Fé, serei mártir; se renegar, far-me-ão baxá: e em Castela Monsieur, nem baxá nem mártir.

Foi muito celebrada a discrição da resposta, a que acrescentava galantaria a mesma pessoa do embaixador; porque era mui avultado de presença e tão bem lhe podia estar na cabeça o turbante, como na mão a palma.

Nada mais venturosamente lhe sucederam a Castela as indústrias estrangeiras que as domésticas. todas desarmou em armas contra si mesma. Em Roma, impediu o provimento das mitras. mas os bagos se converteram em lanças e o que haviam de comer os pastores das ovelhas, comem os que as defendem dos lobos. Em Holanda, comprou os estorvos da paz, mas esta se retardou somente quando foi necessário para se recuperarem as Conquistas. Caso grande e de providência admirável! Em Inglaterra, se empenhou por divertir o parentesco; em França, capitulou que não pudéssemos ser socorridos. mas teve uma e outra diligência tão contrários efeitos, que se vêem hoje em Portugal as suas quinas tão acompanhadas das cruzes de Inglaterra, como assistida das lises de França. Unidas e complicadas estas três bandeiras, fazem um silogismo político, de tão segura como terrível conseqüência. Se só Portugal pôde resistir a Castela tantos anos, ajudado dos dois reinos mais poderosos da Europa, no mar e na terra, como não resistirá? O maior contrário que tem Espanha é o seu próprio poder. Quando se quis levantar sobre todos, se sujeitou à emulação de todos. Estes terá por si Portugal, enquanto ela for poderosa; se o não for, não os há mister.

Os discursos da esperança (que é a última apelação de Castela) são os que mais lhe mentiram, porque os homens (quando assim lho concedamos) discorrem com a razão, e Deus obra sobre; ela. Todos os que nas matérias de Portugal se governaram pelo discurso, erraram e se perderam; e por aqui se perderam (ainda entre nós) os que na opinião dos homens eram de maior juízo. São obras e mistérios de Deus; quer Ele que se venerem com a fé e não se profanem com o discurso. Por isso todas as esperanças que se assentaram sobre esta fé foram certas e todas as que se fundaram sobre o discurso, erradas.

É natureza isto, e não milagre da palavra e promessa divinas: ...in verba tua super superavi — dizia aquele grande político de Deus, que não só esperava, mas sobreesperava nas promessas de sua palavra divina; porque há-de esperar nas promessas da palavra divina, sobre tudo o que promete a esperança do discurso humano. Assim o temos sempre visto em Portugal, com admirável crédito da fé e igual confusão da incredulidade.

No tempo em que Portugal estava sujeito a Castela, nunca as forças juntas de ambas as coroas puderam resistir a Holanda; e de aqui inferia e esperava o discurso que muito menos poderia prevalecer só Portugal contra Holanda e contra Castela. Mas enganou-se o discurso. De Castela defendeu Portugal o Reino e de Holanda recuperou as Conquistas.

Aquele fatal Pernambuco, sobre que tantas armadas se perderam e se perderam tantos generais, por não quererem aceitar a empresa sem competente exército, que discurso podia imaginar que, sem exército e sem armada, se restaurasse? E só com a vista fantástica de uma frota mercantil se rendeu Pernambuco em cinco dias, tendo-se conquistado pelos Holandeses com tanto sangue em dez anos, e conservando-se vinte e quatro.

Menos esperava o discurso que se conquistasse Angola com tão desigual poder enviado a tão diferente fim; e conquistou-se contudo aquela tão importante parte de África contra todo o discurso e antes de toda a esperança. E porque se saiba mais distintamente quão grandes significações se contêm debaixo destes nomes tão pequenos — Pernambuco e Angola — o que se recuperou em Angola foram duas cidades, dois reinos, sete fortalezas, três conquistas a vassalagem de muitos reis e o riquíssimo comércio de África e América. Em Pernambuco recuperaram-se três cidades, oito vilas, catorze fortalezas, quatro capitanias, trezentas léguas de costa.

Desafogou-se o Brasil, franquearam-se seus portos e mares, libertaram-se seus comércios, seguraram-se seus tesouros. Ambas estas empresas se venceram e todas estas terras se conquistaram em menos de nove dias, sendo necessário muitos meses só para se andarem.

Quem nestes dois sucessos não reconhecer a força do braço de Deus, duvidar-se pode se o conhece. Assim assiste a Portugal dentro e fora, ao perto e ao longe, aquele supremo Senhor que está em toda a parte e que em todas as do Mundo o plantou e quer conservar. Bendita seja para sempre sua onipotência e bondade!

Também esperava o discurso de Castela que os ânimos dos Portugueses, com a continuação da guerra e experiência de suas moléstias, se enfastiassem e suspirassem pela antiga e amada paz, cujo nome é tão doce e natural, e mais à vista de seu contrário; que as contribuições forçosas para o subsídio dos soldados e a licença e opressão dos mesmos soldados fossem carga intolerável aos povos; que os povos, depois de apagados aqueles primeiros fervores que traz consigo o desejo e alvoroço da novidade, com o tempo e seus acidentes se fossem entibiando, até se esfriarem de todo; que os pais se cansassem de dar os filhos e que a guerra detestada das mães (como lhe chamou o Lírico) fosse também detestada e aborrecida das Portuguesas, que, entre as outras mães, o costumam ser mais que todas no amor e na saudade. Mas também aqui mentiu a esperança e se enganou o discurso, porque os ânimos se acham hoje mais alentados, os fervores mais vivos, os corações mais resolutos, o amor ao rei, à Pátria e à Liberdade mais forte, mais firme e mais constante, e maior que todos os outros afetos da fazenda, dos filhos, da vida.

Lembram-se os pais que davam os filhos para as guerras de Flandres, de Itália, de Catalunha e navegação das Índias de Castela, onde os perdiam para sempre; e querem antes dá-los para as fronteiras de Portugal, onde os vêem, os assistem e os têm consigo; onde recebem a glória de ouvir celebrar as ações de seu valor e feitos galhardos, e vêem estampados seus nomes e estendida por todo o Mundo sua fama, honrando-se (como é razão) de serem pais de tais filhos; e que, se morrem na guerra, têm rei que lhes pague as vidas com larga remuneração de mercês e aumento de suas casas, sendo tão generosas as mães (nas quais este afeto é superior a toda a natureza), que com igual alegria os choram e sepultam mortos gloriosamente na guerra, do que os parem e criam para ela.

Os povos não se cansam com os subsídios e contribuições; porque sabem quanto maiores e mais pesadas são as que se pagam em Castela para os conquistar, do que eles em Portugal para se defenderem. Vêem o fruto de seus trabalhos e suores, e que concorrem com ele para o estabelecimento e honra de sua Pátria, e não para a cobiça de ministros e exatores estranhos.

Têm na memória que também antigamente pagavam, e que então era tributo do cativeiro o que hoje é preço da liberdade; sobretudo vêem a seu rei da sua Nação e da sua Língua, e que o têm consigo e junto a si para o requerimento da justiça, para o prêmio do serviço, para o remédio da opressão, para o alívio da queixa; rei que os vê e se deixa ver; que os ouve e lhes responde; que os entende e o entendem; que os conhece e lhes sabe o nome, sem a dura e insuportável pensão de o irem buscar a Madrid, não para o verem e lhe falarem, mas para o verem por fé. Conhecem a grandeza desta estimável felicidade, e que logram aquele estado ditoso de que se lembravam e falavam seus avós com tanta saudade e por que suspiravam seus pais com tantas ânsias; e todo o preço para a conservação de tanto bem lhos parece barato todo o trabalho leve toda a dificuldade suave, todo o perigo obrigação. Pelo contrário, todo o pensamento que não seja desta perpetuidade, horror; toda a conveniência, ruína; toda a promessa, traição; e toda a mudança impossível.

Isto é o que só tem Castela, e o que só pode esperar dos ânimos dos Portugueses. Finalmente, esperava o discurso que Portugal, como Reino menor e dividido em todas as partes do Mundo, com obrigação de alimentar aqueles membros tão distantes com sua própria substância, havendo de sustentar as guerras e oposição de seus inimigos em todos eles, natural e necessariamente se havia de atenuar e enfraquecer; que a gente, sendo toda da mesma Nação, se havia lentamente de diminuir; que o dinheiro e cabedais, não tendo minas nem Potosis, se havia de esgotar; e que não era possível aturar por muitos anos as despesas excessivas de uma guerra interior, tão contínua, tão viva e tão multiplicada em tantas províncias, cercado dela por todas as partes, contra os combates de uma potência tão desigual e superior como era a do maior monarca do Mundo; que quando o valor dos Portugueses se atrevesse sobre suas forças, seria como o de Eleázaro contra a grandeza e corpulência do elefante, que, ainda caindo, seria sobre ele, e ficaria oprimido e sepultado debaixo de seu próprio triunfo, sem mais diligência nem ação que o mesmo peso e grandeza de tão imenso contrário.

Verdadeiramente este discurso, humana ou gentilicamente considerado, e não entrando na conta desta aritmética o poder e assistência de Deus, tinha mui forçosa conseqüência, e antes da experiência mui dificultosa solução. E por tal julgaram ainda aqueles políticos que sem ódio nem amor esperavam e prognosticavam o fim e mediam a desproporção de tão desigual empresa. Mas Deus (a quem não queremos roubar a glória) e a mesma experiência natural e o concurso ordinário de suas causas, têm mostrado que só era sofístico e aparente, e em realidade falso, aquele discurso.

Porque as Conquistas (que era o primeiro reparo), membros tão remotos e tão vastos deste corpo político de Portugal, ainda que do Reino, como do coração, recebem os espíritos de que se animam, é tanta a cópia de alimento, e tão abundante, que eles mesmos com suas riquezas lhe subministram, que não só tem suficiente matéria para formar os espíritos que com os membros mais distantes reparte, mas lhe sobeja com que se sustentar a si e a todo o corpo. E a verdade desta experiência se tem provado com mais sensíveis efeitos depois da paz universal das mesmas Conquistas, as quais com igual liberalidade e interesse remetem hoje ao Reino toda aquela substância que o calor da guerra própria lhes consumia; com que se acha Portugal mais rico e abundante que nunca das utilíssimas drogas de seus comércios. E ou seja esta a causa natural, ou outra mais oculta e superior, o certo é que as rendas e cabedais do Reino, assim próprios como particulares, com o tempo c continuação da guerra, não têm padecido a quebra e diminuição que o discurso lhes prognosticava; antes se prova com evidente e milagrosa demonstração da experiência, que a substância do Reino está hoje mais grossa, mais florente e opu1enta que no princípio da guerra; pois, crescendo mais os empenhos sempre, e desposas dela, ao mesmo passo parece que ou crescem ou se manifestam novos tesouros, com que se sustentaram até agora, e se sustentam todos os anos, sempre mais e maiores exércitos, tão notáveis por seu nome é grandeza como bizarros por seu luzimento.

Nenhum ano se pôs em campo exército tão grande, que no seguinte se não pusesse outro maior; nenhum ano tão bizarro e tão luzido, que no seguinte se não excedesse na bizarria e nas galas. O ano passado, que foi o último, quando a Primavera se acabou nos campos, se renovou outra vez no nosso exército, tanta era a variedade das cores com que os terços se matizavam e distinguiam, para que pela divisa se conhecessem os soldados e ostentassem a competência de seu valor. O menor gasto nos vestidos é o que se veste; mais se gasta em cobrir os vestidos que em cobrir os corpos. A vulgaridade do ouro e prata só se estima pelo invento e pelo artífice, e não pelo preço; a pompa, riqueza e galhardia dos cabos mostra bem que vão às batalhas como a festas, e que se vestem mais para triunfar que para vencer.

Não me atrevera a falar com tanta largueza, se não pudera alegar por testemunhas os mesmos que podiam ser partes. Diga agora o algarismo de seu discurso, se pode haver falta no necessário, onde sobeja e se dispende tanto com o supérfluo? Mais temo eu a Portugal os perigos da opulência, que os danos da necessidade.

O mesmo que se vê na política bélica das campanhas, se admira na pacífica das cidades. Com a guerra, que tudo quebranta e diminui, cresceu e se aumentou tudo em Portugal. Nunca tanto se gastou no primor e preço das galas; nunca tanto no asseio e ornamento das casas; nunca tanto na abundância e regalo das mesas; nunca tantos criados, tantos cavalos, tanto aparato, tanta família. nunca tão grandes salários, nunca tão grandes dotes, nunca tão grandes soldos, nunca tão grandes mercês, nunca tantas fábricas, nunca tantos e tão magníficos edifícios, nunca tantas, tão reais e tão sumptuosas festas.

Passo em silêncio os imensos gastos do serviço e majestade do culto divino, porque só o silêncio os pode explicar, não encarecer. Que templo, que capela, que altar, que santuário, que neste mesmo tempo se não renovasse, desfazendo-se e arruinando-se (com lástima) obras antigas e de grande arte e preço, só para se lavrarem outras de novo, mais ricas, mais preciosas e de mais polido artifício? Tudo isto do que sobeja da guerra. Mas por isso sobeja. As usuras de Deus são cento por um, e estas são as minas do nosso Reino, estes os Potosis de Portugal. Destes comércios lhe vêm as riquezas com que pode pagar e premiar seus exércitos e com que os prêmios e as pagas sejam verdadeiras, e não falsificadas, sem injúria dos soldados, sem adultério dos metais e sem hipocrisia da moeda.

Bem sabem os doutos que o nome grego hipocrisia se deriva do fingimento do melhor metal, e parece que foi posto em nossos tempos mais para declarar o vício da moeda, que a mentira da virtude. Quem pudera nunca imaginar que chegasse a tal estado uma monarquia, que é a senhora da prata e de quem a recebe o resto do Mundo? Cuidou Castela que a Portugal havia de faltar o dinheiro, e vê em si o que cuidou de nós; e assim como o seu discurso errou as contas ao dinheiro, também as errou à gente. Com verdade se podia dizer de Portugal o que dos Romanos disse o seu poeta:

Per damna, per coedes ab ipso,
Ducit opes, animumque ferro.

Ou tenha Portugal a qualidade da hidra ou a natureza das plantas, por cada cabeça que corta a guerra em uma campanha, aparecem na seguinte duas; e por cada ramo que faltou no Outono, brotam dois na Primavera. Assim se foram dobrando e crescendo sempre os nossos presídios, assim os nossos exércitos: exército no Minho, exército em Trás-os-Montes, exército e dois exércitos na Beira, exército e florentíssimo exército, e sempre mais numeroso e florente em Alentejo. Assim se converte e se multiplica em nova substância tudo o que come a guerra. E: se Castela quer conhecer as causas naturais desta filosofia, sem serem os Portugueses dentes de Cadmo, saiba que a sua reparação foi o primeiro princípio deste aumento. Todos os Portugueses que povoavam suas Índias, que mareavam suas frotas, que lavravam seus campos, que freqüentavam seus portos, que trafegavam seus comércios, que inteiravam seus presídios, que militavam seus exércitos, ficam hoje dentro em Portugal, e o habitam e o enchem e o multiplicam, e assim se vêem hoje mais povoados seus lugares, mais freqüentadas suas estradas, mais lavrados seus campos, e até as serras, brenhas, lagos e terras, onde nunca entrou ferro, nem arado, abertas e cultivadas. As Conquistas com a paz não levam, nem hão mister socorros, antes delas os recebe o Reino com muitos e valentes soldados e experimentados capitães, que, ou vêm requerer o prêmio de seus antigos serviços, ou servir e merecer de novo, e justificar com os olhos do rei e do Reino as certidões mais seguras de seu valor.

Foi lei, e lei prudentíssima, no princípio da guerra, que não se alistassem nela senão mancebos livres. A sombra desta imunidade, muitos filhos por indústria dos pais se acolhiam na menoridade ao sagrado do matrimônio, com que as famílias se multiplicavam infinitamente, e os mesmos que então se retiravam da guerra, têm hoje muitos filhos com que a sustentam e os sustentam com ela.

Desta maneira se acha Portugal cada dia mais fornecido de muitos e valentes soldados, nascidos e criados entre o mesmo estrondo das armas, em que o pelejar e o morrer não é acidente senão natureza, todos dentro em si e nas mesmas províncias e climas, onde nada lhes é estranho, e não trazidos por força de Sicília, de Nápoles, de Milão e de Alemanha, comprados e conduzidos com imensas despesas e perigos, sendo muitos os que se alistam e pagam, e poucos os que chegam, uns para se passarem logo, como passam, a Portugal, outros para pelejarem sem amor e com valor vendido, como quem defende o alheio e conquista o que não há-de ser seu.

Os Portugueses, pelo contrário, com grande vantagem de coração pelejam pelo rei, pela Pátria, pela honra, pela vida, pela liberdade, e cada um por sua própria casa e fazenda, sendo a maior comodidade da guerra e multiplicação da gente a mesma estreiteza do Reino (que o discurso mal avaliava), por benefício da qual os exércitos e províncias se podem dar as mãos umas a outras, pelejando os mesmos soldados quase no mesmo tempo em diversos lugares, e multiplicando-se por este modo um soldado em muitos soldados, e aparecendo em toda a parte (como alma de Dido) aos Castelhanos com novo horror e assombro. Desta maneira não teme o valor português que lhe suceda como a Eleázaro com o elefante, ficando oprimido com a sua própria vitória; mas está certo que lhe há-de suceder como a David com o gigante, logrando vivo a glória de seu triunfo.

Desenganado por estas evidências o poder, a indústria, o discurso e esperança espanhola, bem pudera eu esperar do juízo mais político de nossos competidores e seus conselheiros, acabassem de desistir de tão infrutuosa porfia. Mas deixados à parte os argumentos da razão e experiência, subamos um ponto mais alto, e se até agora me ouviram como homem a racionais, ouçam-me agora como cristão a católicos.

Não duvido, nem alguém pode duvidar da fé, religião e piedade espanhola, que, se o seu católico príncipe e seus maiores conselhos se acabassem de persuadir que Deus tinha decretada a conservação e perpetuidade de Portugal, obedeceriam com suma reverência aos divinos decretos, abateriam a Deus, ainda que tremulassem vitoriosas suas católicas bandeiras, tocariam a recolher seus capitães e exércitos e confessariam, na mais levantada fortuna, a desigualdade de sua maior potência contra os acenos da divina.

Isto é o que eu agora lhes quero persuadir e demonstrar, e um dos fins principais por que escrevo esta História, para que, pelo conhecimento de nossos futuros, possam emendar o engano de suas esperanças presentes.

Sempre são falsas e enganosas as esperanças humanas, mas nunca mais certamente falsas, que quando se opõem e encontram com as promessas divinas. Veja e saiba Castela o que Deus tem prometido a Portugal, e logo advertirá a vaidade do que suas esperanças lhe prometem. Oh quantas guerras, oh quanto sangue, ou quantos tesouros baldados poderiam poupar os reis, se no meio de seus conselhos pudessem pôr um espelho em que se vissem os futuros! Tal é este livro, ó Espanha, que também a ti dedico e ofereço. Aqui verás os futuros de Portugal, e tudo o que podes esperar dele em sua conquista.

Levantou Deus no Mundo a Jeremias por seu ministro, e a comissão e ofício que lhe deu foi esta: Ecce constitui te hodie super gentes et super regna, ut evellas, et destruas, et dissipes, et aedifices, et plantes: «Hoje te ponho e constituo sobre as gentes e sobre os reinos, para que arranques, destruas e dissipes a uns; plantes e edifiques a outros.» Não quer dizer Deus que Jeremias há-de arruinar ou edificar reinos com a espada; mas que os há-de arruinar ou edificar com as suas profecias, profetizando a uns sua exaltação e a outros sua destruição e ruína. Se as profecias resolutamente dizem que os reinos se hão-de perder ou arruinar, aparelhem-se sem remédio para sua ruína; e se dizem que se hão-de estabelecer e exaltar, crelam sem dúvida sua conservação e aumento: Ecce constitui te super gentes et super regna. Estão os profetas e as profecias sobre às gentes e sobre os reinos, ou como astros benignos que influem e prometem suas felicidades, ou como cometas tristes e funestos, que influem e ameaçam suas ruínas. Levantem pois os reis e os reinos os olhos, olhem para estes sinais do céu, e se os virem estrelas, esperem; se os virem cometas, temam. Mas porque muitos reis esperam de onde deviam temer, por isso erram, e se despenham, e se perdem, e perecem muitos. Se Acab, rei de Israel, temera, como devia temer, a profecia de Miqueas, desistira da conquista de Ramoth Galaad, em que tão teimosamente insistia; mas porque quis antes esperar, como não devera nas promessas e lisonjas vãs de seus aduladores, em um dia perdeu a batalha, a conquista a coroa a vida. Não podem as armas dar a vitória a Acab quando nas profecias está segura Ramoth.

Clamava a profecia de Jeremias ao rei e príncipes de Jerusalém que se acomodassem com Nabucodonosor contra o qual não podiam prevalecer; mas porque El-Rei Sedecias, fiado na potência de suas armas, quis antes experimentar a fortuna da guerra que vir a honestos partidos com os Assírios, prevaleceram estes enfim como o profeta tinha prometido, e o rei conheceu tarde a temeridade de seu conselho.

Que diferente foi o de Ciro, prudente e famoso rei de Babilônia! Entendeu este mesmo excelente príncipe, pela mesma profecia que Jeremias e pelas de outros profetas, que o cativeiro e sujeição dos Israelitas que ele tinha debaixo de seu império não queria Deus que durasse mais de sessenta anos. E tanto que estes se acabaram (sendo gentio idólatra), sem partido, sem interesse, sem obrigação nem reconhecimento, os restituiu todos livres à sua pátria.

Contentou-se o gentio com o que Deus se contentava e não quis perpetuar a servidão, quando Deus tinha limitado anos ao castigo. Creu as profecias sem serem suas ou de seus oráculos, senão dos mesmos Israelitas, porque, tendo-as experimentado verdadeiras na sentença do cativeiro, fora cobiça e não razão tê-las por falsas na promessa da liberdade.

Oh que caso tão parecido ao nosso caso! Oh que ação tão digna de se santificar e fazer cristã, passando-a de um rei gentio a um rei católico! Quis Deus por seus altos juízos que Portugal perdesse a soberania de seus antigos reis, e que sua coroa, ajuntando-se às outras de Espanha, estivesse sujeita a rei estranho; mas esta sujeição e este castigo, não quis o mesmo Deus que fosse perpétuo, senão por tempo determinado e limitado, e que este termo e limite fosse o espaço só de sessenta anos. Assim o diziam as profecias, e assim o provou com admirável consonância o cumprimento delas.

Só faltou para total semelhança do caso de Babilônia e para imortal glória do Ciro de Espanha que a ação fosse voluntária e não violenta; sua, e não dos Portugueses. Mas vamos às profecias do cativeiro e ao termo dos sessenta anos dele.

S. Frei Gil, religloso português da ordem de S. Domingos, (de cujo espírito profético se dará notícia em seu lugar) diz assim: Lusitania sanguine orbuta regio diu ingemiscet; sed propitius tibi Deus insperate ab insperato redimet: «Portugal por orfandade do sangue de seus reis, gemerá por muito tempo; mas Deus lhe será propício e, não esperadamente, será remido por um não esperado.»

Gemeu Portugal muito tempo, porque gemeu por espaço de sessenta anos debaixo da sujeição de Castela; e foi ocasião desta sujeição ,e destes gemidos ficar o Reino órfão de seus reis, porque os dois últimos — D. Sebastião e D. Henrique — faltaram sem deixar sucessão; mas foi-lhe Deus propício, porque dispôs com tão notáveis sucessos a execução de sua liberdade e foi remido não esperadamente, porque muitos não esperavam, antes desesperavam desta redenção; e remido por um não esperado, porque o redentor, pelo qual geralmente se esperava, era outro e não el-rei D. João o IV.

No juramento autentico de El-Rei D. Afonso Henriques, em que se conta o miraculoso aparecimento de Cristo, quando por sua própria pessoa quis fundar o Reino de Portugal, são bem notórias aquelas palavras mandadas anunciar ao rei pelo mesmo Senhor, com o recado de que lhe queria aparecer: Domine bono animo esto: vinces, vinces, et non vinceris. Dilectus es Domino, posuit enim super te et super semen tuum post te oculos misericordiae suae usque in decimam sextam generationem, in qua atteniabitur proles, sed in ipsa attenuata ipse respiciet et videbit: «Senhor, estai de bom animo: vencereis, vencereis e não sereis vencido; sois amado de Deus porque pôs sobre vós e sobre vossa descendência os olhos de sua misericórdia até a décima sexta geração, na qual se atenuará a mesma descendência, mas nela atenuada tornará a pôr seus olhos.»

Até aqui a divina promessa, cujo cumprimento é tão manifesto, que quase não necessita de explicação. A décima sexta geração de El-Rei D. Afonso Henriques (contando as gerações, como se devem contar, de rei a rei e de coroa a coroa) foi o Cardeal D. Henrique, como se vê pelo catálogo seguinte:

  1. El-Rei D. Sancho I;
  2. El-Rei D. Afonso II;
  3. El-Rei D. Sancho II;
  4. El-Rei D. Afonso III;
  5. El-Rei D. Dinis;
  6. El-Rei D. Afonso IV;
  7. El-Rei D. Pedro I;
  8. El-Rei D. Fernando;
  9. El-Rei D. João I;
  10. El-Rei D. Duarte;
  11. El-Rei D. Afonso V;
  12. El-Rei D. João II;
  13. El-Rei D. Manuel;
  14. El-Rei D. João III;
  15. E1-Rei D. Sebastião;
  16. El-Rei D. Henrique.

Neste último rei se atenuou a descendência, porque ainda que não quebrou de todo, ficou por um fio, e fio tão delgado e atenuado como era a única casa de Bragança, descendente do infante D. Duarte irmão menor de D. Henrique. Mas neste fio único e tão delgado se veio a verificar que, depois da descendência de El-Rei D. Afonso Henriques, atenuada no décimo sexto rei, tornaria Deus a por seus olhos nela, porque nela se restituiu a coroa que Cristo então lhe dava, sendo restituída (como foi) ao Duque D. João, o II de Bragança, Rei D. João, o IV de Portugal e décimo sétimo dos reis portugueses descendentes do primeiro Afonso. Por outros modos também verdadeiros se faz esta mesma conta, mas este temos por mais natural, mais fácil e mais conforme à mente da profecia e às circunstancias em que naquela ocasião se falava.

S. Bernardo, em uma carta escrita a El-Rei D. Afonso Henriques, com quem tinha particular e íntima amizade e correspondência, a respeito das cousas presentes e futuras do Reino, profetizou com admirável clareza o termo dos sessenta anos de castigo e a continuação e sucessão de reis portugueses, antes e depois dela. A carta é a que se segue, conservada em muitos arquivos deste Reino e divulgada fora dele muitos anos antes da nossa restauração: «Dou as graças a Vossa Senhoria pela mercê e esmola que nos fez do sítio e terras de Alcobaça para os frades fazerem mosteiro em que sirvam a Deus, o qual em recompensação desta, que no Céu lhe pagará, me disse lhe certificasse eu da sua parte que a seu Reino de Portugal nunca faltariam reis portugueses, salvo se pela graveza de culpas por algum tempo o castigar; não será porém tão comprido o prazo deste castigo, que chegue a termos de sessenta anos. De Claraval, 13 de Março de 1136. Bernardo».

A condicional do castigo cumpriu-se por nossos pecados, que sem dúvida deviam ser muito grandes, mas também se cumpriu muito pontualmente que o castigo não chegaria a termo de sessenta anos, porque El-Rei D. Filipe o II foi jurado por rei de Portugal, nas Cortes de Tomar, em 26 de Abril do ano de I58I, El-Rei D. João o IV, nas cortes de Lisboa, em I3 de Dezembro de 640, que fazem 59 anos e cinco meses menos alguns dias, ou sessenta anos não completos, como S. Bernardo tinha profetizado. Outra carta temos do mesmo santo escrita ao mesmo rei, em que dá outro sinal manifesto (e também já cumprido), do tempo em que havia de faltar a coroa, que adiante poremos.

Finalmente, muitas pessoas (de cujo espírito, a respeito dos sucessos futuros de Portugal, trataremos larga e particularmente no cap. IX deste livro) não só predisseram a sujeição do Reino a Castela, e sua liberdade, mas que o fim de uma e princípio de outra havia de ser sinaladamente no ano de quarenta, e que naquele ano seria levantado novo rei de Portugal e que este se chamaria D. João, com todas as outras circunstâncias tão miúdas e particulares, como se verá no mesmo lugar.

De maneira que por todas estas profecias consta claramente que ao Reino de Portugal haviam de faltar os reis portugueses e que esta falta havia de suceder no décimo sexto rei descendente de El-Rei D. Afonso Henriques, e que havia o Reino de gemer debaixo da sujeição estranha, e que esta sujeição havia de ser a Castela, e que não havia de durar mais que sessenta anos não completos, e que o termo destes sessenta anos havia de ser no ano de quarenta, e que neste seria levantado pelos Portugueses rei novo, e que se havia de chamar D. João: as profecias o disseram e os olhos o viram.

Pois se Deus não quis que a sujeição de Portugal a Castela fosse perpétua, porque hão-de querer e porfiar os homens em que o seja? Se Deus limitou esta sujeição ao termo de sessenta anos, porque se não hão-de conformar os homens com seus soberanos decretos? E porque se não hão-de contentar com o que Deus se contentou? Porque se não verá no católico Ciro de Espanha um ato de tanta justiça e generosidade, e de tanto rendimento e obediência a Deus, como se viu no Ciro de Babilônia? Se Deus lhe deu o usufruto de Portugal por prazo somente de sessenta anos, e estes são acabados, porque se há-de querer chamar ao domínio e prescrever contra o Céu? Se lhe parece cousa dura arrancar de sua coroa uma jóia tão preciosa como o Reino de Portugal, reparem seus prudentes e católicos conselheiros que o não era menos naquele tempo, nem menos conhecido e celebrado no Mundo o reino de Judá, e que Ciro, rei ambicioso, arrogante e gentio, nem duvidou de o demitir de seu império. Quanto mais que por este ato de consciência, religião e cristandade, e por este Reino que Castela restituir ou consentir a Deus (pois Ele tem já restituído), lhe pode Deus dar outros maiores e mais dilatados, com que enriqueça e sublime sua coroa e amplifique o império de sua monarquia, como sucedeu ao mesmo Ciro. Por aquele ato de generosidade e desinteresse, foi Ciro tão amado de Deus, que lhe chamava o meu rei, o meu ungido, o meu Cristo, o meu Ciro; e pelo merecimento deste obséquio e rendimento à-vontade divina lhe deu Deus em um dia o império dos Assírios, que era a primeira monarquia e universal do Mundo, como o mesmo Ciro reconhece havê-lo recebido da sua mão. Tão liberal é Deus com os príncipes que não regateiam reinos nem estados com Ele; e por um reino de tão poucas léguas de terra, qual era o de Judéia (igual com pouca diferença de Portugal), dá em prêmio e recompensa a monarquia de todo o Mundo!

Tais são os interesses (quando houvera algum maior que o de obedecer a Deus), que Espanha podia esperar do desinteresse deste ato, podendo de outra maneira (para que não calemos esta verdade), temer justissimamente que à resolução e porfia contrária sucedam efeitos também contrários. Se por um ato de justiça, desinteresse e obediência dá Deus uma monarquia, por um ato de justiça, ambição e desobediência também poderia tirar outra. E já a ordem das cousas naturais as teve menos dispostas a uma grande ruína.

Quero pôr aqui as palavras do Texto Sagrado, em que Ciro faz desistência do reino de Judéia e deixou aquele povo em sua liberdade, por serem mui dignas de toda a ponderação, imitação e memória. Dizem assim no I Livro de Esdras, cap. I, e são o exórdio de sua história: In anno primo Cyri, regis Persarum,ut cornpleretur verbum Dominini ex ore Jeremiae, suscitavit Dominus spiritum Cyri, regis Persarum, et traduxit vocem in omni regno suo, etiam per scripturam, dicens: Haec dicit Cyrus, rex Persarum: omnia regna terrae dedit mihi Dominus, Deus Caeli, et ipse praecepit mihi ut aedificarem ei domum in Jerusalem, quae est in Judaea. Quis est in vobis de universo populo ejus? Sit Deus illius cum ipso; ascendat in Jerusalem...

Lástima é que semelhante escritura não fosse de rei católico; e maior lástima será ainda que, posto algum rei católico na mesma ocasião, não queira imortalizar seu nome e religião com outro decreto semelhante.

«No ano primeiro de Ciro, rei dos Persas (quem assim começou a reinar não podia deixar de ter tão felizes progressos), para se dar cumprimento à palavra divina declarada nas profecias de Jeremias, levantou Deus o espírito de Ciro, rei dos Persas (que só podia fazer uma ação tamanha e tão real um rei de espírito e espíritos mui levantados por Deus), e mandou apregoar em todos seus reinos por escrito firmado de sua mão este decreto: «Ciro, rei dos Persas, diz: O Rei do Céu me deu e fez senhor de todos os reinos do Mundo e ele me mandou que lhe edificasse casa em Jerusalém, cabeça de Judéia; pelo que toda a pessoa que houver em meus estados pertencente àquele povo e reino, o mesmo Deus seja com ela, e se pode tornar livremente para Jerusalém, etc.».

Leiam este decreto os reis e monarcas do Mundo, aqueles principalmente que, sendo reis e possuindo os reinos, como dizem em suas provisões por graça de Deus, com tão pouco respeito ao mesmo Deus e à mesma graça armam seus exércitos contra os alheios. Se Deus deu tantos reinos a Ciro, porque não dará Ciro um reino a Deus, ainda quando fosse seu indubitavelmente?

Mas o que eu só quero ponderar, e peço por reverência do mesmo Deus aos Reis Católicos, a seus conselhos e a seus letrados ponderem, é o que Ciro, rei não católico, chama preceito de Deus neste seu edito. Não teve Ciro outro preceito ou mandado particular de Deus (como notam todos os expositores) mais que as profecias em que estava anunciado que, no fim de sessenta anos, havia de ser o reino e povo hebreu libertado do cativeiro de Babilônia e restituído à sua Pátria, coroa e liberdade; e a estas profecias chama o rei sem fé preceito de Deu; a este gênero de preceito assim escrito, posto que não intimado com outra autoridade ou solenidade, julgou que tinha obrigação de obedecer, e obedeceu com efeito, e observou em matéria tão grave e de tanto peso e interesse de sua coroa, como era demitir de si um povo e um reino tão notável, de que ele já era o terceiro possuidor, porque o primeiro foi Nabucodonosor, o segundo Baltasar e o terceiro Ciro.

Não sei que possa haver mais claro espelho do nosso caso. Se Espanha se quiser ver e compor a ele, leia as profecias que neste livro vão escritas e já cumpridas; veja quão legitimamente está restituído por elas, conforme o decreto ou preceito divino, o rei e reino de Portugal, e não me creia a mim, senão a seus próprios doutores e aos que mais duramente têm impugnado em nossos dias esta parte e defendido a contrária. Siga-se a sua doutrina e não a minha advertência.

D. João de Palafoz e Mendonça, bispo de la Puebla de los Angeles, do conselho supremo de Aragão na sua História Real Sagrada, escrita, como se vê em tantos lugares, mais para contradizer o novo Reino de Portugal, que para historiar o de Saul impugnando a eleição de El-Rei D. João o IV, cujo nome se dissimula, e ponderando augusta e doutamente os sinais com que se havia de justificar para ser legítima e de Deus, com maior elegância que decência, porque o afeto lhe fez corromper a pureza de seu estilo, diz assim:

Hazia-se una mudança tan grande en Israel, como acabarse el gobierno de los Juezes, que havia durado quinjentos años, y começar el de los Reyes escogiase para principe un hombre, que ayer era subdito y labrador; el que antes era compañero avian de venerarlo por rey. Pues para cosa tan grande, de tan rara y de tales y tan graves dependencias, vayanse a sus casas los Israelitas, duerman y piensem sobre ello; buelva otra vez Samuel a la oracion, digale el Senor a que hora vendrá el dia siguiente, el destinado al império; suceda la profecia buelva-se otra vez dezir que aquel es el hombre, llevele a su casa, conozcale y reconozcale; unjale, y ungido, justifique su vocacion con algunas profecias y senales de lo que le ha de succeder despues de ungido, coh que el Profeta quede con quietud y sossiego de que áquello le mandò el Senor; y elegido jostifique la jorisdiccion, y se tenga por principe legitimo y llamado de Dios al gobierno.

Três cousas requer Palafoz, ou três circunstâncias em uma, para que a vocação do rei se justifique ser de Deus e para que os ministros que o ungiram (como Samuel e Saul) fiquem com quietacão e sossego de ser aquele o que Deus mandou ungir, e para que o mesmo rei ungido e eleito justifique sua jurisdição e se tenha por príncipe legítimo e chamado por Deus ao governo. E quais são estas três cousas ou circunstancias?

As mesmas que intervieram e sucederam na eleição e unção de Saul: Primeira, haver profecia de ser Saul o destinado por Deus ao império; segunda, que a profecia não seja só uma, senão algumas; terceira, que essas profecias sucedam, assim como estavam preditas e profetizadas.

Verdadeiramente estas palavras do bispo Palafoz:

Cum esset pontifex anni illius, me parecem ditadas por algum espírito e intento superior, para que, sendo ditas como as de Caifaz, com tão diverso e contrário intento, fossem verificadas no mesmo príncipe e no mesmo Reino que ele queria impugnar e destruir, e sua mesma acusação seja um testemunho público e mais qualificado da justiça e justificação de nossa causa.

Se Palafoz pede profecias, damos a Palafoz profecias, e não profecias daquele dia. como as de Samuel, senão de cento, de trezentos e de quinhentos anos antes, que são as mais qualificadas e livres de suspeita, e que só podem ser ditadas e inspiradas por aquela sabedoria eterna a quem os futuros são presentes. E tais são as que pouco antes alegamos porque as últimas havia cem anos que estavam escritas, as de S. Frei Gil, trezentos anos e as de S. Bernardo e de El-Rei D. Afonso Henriques mais de quinhentos, e todas públicas, autênticas e justificadas com o testemunho universal do Mundo, que as tinha visto e lido.

Se Palafoz pede que a profecia não seja só uma senão algumas, como as de Samuel foram três, não só damos a Palafoz três profecias, senão trinta profecias, e três vezes trinta, as quais se poderão ver no cap. VI deste anteprimeiro livro, porque tantas são (se bem se distinguirem e contarem) as cousas diversas e profetizadas que ali se referem todas, não só futuras, mas de futuros livres e contingentes, que nenhum entendimento humano, diabólico ou angélico, podia tantos anos prever nem conhecer sem revelação de Deus, que são as condições que propriamente se requerem para a verdadeira, rigorosa e provada profecia, como é sentença comum dos teólogos e se provará larga e demonstrativamente em seu lugar.

Finalmente, se Palafoz pede que as mesmas profecias sejam provadas e confirmadas com o sucesso assim antes como depois de o rei ser eleito e ungido no alegado cap. VI se verão as mesmas profecias declaradas e ajustadas com o sucesso; algumas delas cumpridas antes da restituição e coroação de El-Rei D João IV, outras no mesmo caso e circunstancias de sua restituição, e as demais desde aquele tempo até o ano de 663, além de muitas outras que estão ainda por cumprir, que se lerão no discurso desta História, com cujo efeito, de que se não deve duvidar (como também provaremos), se irá cada dia confirmando reais e mais a mesma verdade, bastando e sobejando a décima parte das profecias já cumpridas, para se justificar superabundantemente, conforme a doutrina de Palafoz, com grande quietação e sossego dos ânimos, que a vocação daquele rei foi de Deus mandada e ordenada por ele e que a sua jurisdição é verdadeira e legítima, como de príncipe notoriamente chamado e destinado pelo mesmo Deus ao império. Tal foi a eleição de Saul; tal a de El-Rei D. Afonso Henriques, fundador do Reino de Portugal; e tal a de El-Rei D. João, seu restaurador.

Não deixarei também de lembrar aqui que não são tão novas e desconhecidas em Castela as profecias ou esperanças de Portugal, que não façam menção delas seus autores, aplicando-as a primeira parte deste mesmo caso nosso, e não duvidando que dele falavam e dele se haviam de entender.

D. João de Horosco e Covarrovias, arcediago de Cuellar na igreja de Segóvia, no seu Tratado de la verdadeira y falsa profecia, Liv. I, cap IV, diz assim: — «...desta manera tuvo yo noticia de [un çapatero en Portugal que fue tenido por propheta, y era aver leydo en] algunas prophecias como las de S. Isidoro, y [...] tengo notada una, en que a mi parecer se dixo mucho ha, el aver de jutar-se aquel reyno de Portugal con el nuestro, con harta particularidad.»

Até aqui no corpo do livro; e comentando à margem o seu mesmo texto, põe as trovas seguintes:

Vejo, vejo, do Rey vejo
(Vejo, o estoy sonando?)
Simiente de rey Fernando
Hazer un forte despejo,
E seguir con gran desejo,
Y dexar acá sua viña
Y decir, esta casa es miña,
En que aora acà me vejo.

A tradução não é muito limada, mas a explicação é muito própria, muito acomodada e muito bem deduzida; porque, sendo o intento e o assunto ou tema daquela profecia predizer os sucessos futuros de Portugal depois de sua restauração, como se tem visto foi princípio muito conveniente à ordem dos mesmos sucessos começar pela sujeição do mesmo Reino a Castela, e pela entrada dos reis castelhanos em Portugal. E se o verdadeiro profeta e primeiro autor desta profecia é Santo Isidoro, e não outro, tanto melhor, porque temos mais qualificado autor e mais autorizado profeta.

Mas vejamos de caminho que é o que diz Santo Isidoro, e como avalia esta ação do rei, semente de El-Rei D. Fernando, que foi seu neto Filipe II.

O nome que dá a esta ação Santo Isidoro é chamar-lhe despejo, que em tom castelhano quer dizer desverguença; e chamar-lhe despejo forte, porque foi despejo armado de poder e de exércitos, e não (como devera ser) de justiça; ou lhe chama também forte, porque às cousas feitas sem razão chamamos forte cousa, como se dissera: Forte cousa é, e despejo grande que estando em Portugal a senhora Dona Catarina, neta legítima de El Rei D. Manuel e filha herdeira do Infante D. Duarte, e devendo preceder a todos os pretensores da coroa, assim pelo direito comum da representação, como pela leis particulares do Reino, que não admitem à sucessão príncipe estrangeiro, um rei que era descendente de Fernando, por antonomásia chamado o Rei Católico, se viesse por força introduzir na casa alheia, sem mais razão nem justiça que meter-se nela e dizer: «Esta casa é minha, em que agora cá me vejo».

Basta, Rei católico e descendente de católico, que porque vos vedes metido na casa alheia, por isso haveis de dizer: «Esta casa é minha»?!

Não debalde o santo arcebispo se espanta tanto de uma tal ação, que depois de a estar vendo com espírito profético, ainda duvida se era visão ou sonho: Vejo, vejo, do rei vejo, vejo, ou estou sonhando? Mas o efeito mostrou que não era sonho, senão visão verdadeira, posto que visão de um caso tão dificultoso de crer. E pois o meterem se os Castelhanos em Portugal foi despejo, razão foi também que os fizessem despejar. Mas não é este o meu intento, nem esta ilação a que eu quero inferir.

Diz o Doutor Horosco e Covarrovias que nesta profecia está profetizado con harta particularidad, haver de juntar-se aquel reino de Portugal con el nuestro. Bem dito. Mas se este mesmo autor, e este mesmo texto, e este mesmo Santo Isidoro diz que o Reino se há-de restituir outra vez, e com muito maior particularidade, no ano de quarenta, e que o seu rei se há-de chamar D. João; se isto, digo, está bem profetizado, e profetizado no mesmo livro e no mesmo tempo, e alegado o mesmo doutor; porque não hão-de crer os Horoscos e Covarruvias castelhanos nesta segunda parte da mesma profecia, assim como creram na primeira? De maneira que, quando as profecias de Portugal profetizam que Portugal se há-de ajuntar a Castela, são profecias; e quando profetizam que Portugal se há-de tornar a separar de Castela e se há-de restituir à sua liberdade, não são profecias?!

Não o havia de julgar o mesmo Horosco e o mesmo Covarruvias, nem o julgou assim o mesmo Santo Isidoro. Forte despejo foi aquele, mas ainda esta conseqüência é mais forte. Ora, Senhores, acabemos de crer a Deus, que nem Ele pode mentir, nem nós o podemos enganar. Sei eu e sabe Portugal, e Castela também o sabe, quanto cuidado lá davam antes deste tempo e quanto temor se tinha de nossas profecias; e não entendo agora como, depois delas cumpridas e qualificadas com tão maravilhosos efeitos se lhos tem perdido a reverência. Em seu lugar, como tenho prometido, se verá tão demonstrada a sua verdade, que nenhum ódio nem interesse possa negar que são de Deus; e que, em conseqüência, será indigno de todo o juízo porfiar ainda contra elas depois de tão conhecidas.

Conhecia Herodes a verdade das profecias; inquiriu por elas o tempo, o lugar do nascimento do Rei profetizado, e logo armou contra Ele a crueldade de seus exércitos. Até aqui podia chegar a loucura e a cegueira de um mal aconselhado príncipe: crer a verdade das profecias, e esperar prevalecer contra elas por força de armas. Mas que efeito tiveram ou que façanhas obraram os exércitos de Herodes? Contra o rei e contra o reino que pretendia estorvar, nenhuma cousa. Só se afogou Belém em sangue e nadou em lágrimas; só se ouviram em Ramá e no Céu as queixas e lamentações de Raquel. Este é o fim sem outro fruto de tão desesperadas resoluções: sangue inocente derramado, lágrimas, queixas, lamentações, clamores, e não dos outros, senão dos próprios vassalos.

Vassalos eram do mesmo Herodes todos os que morreram em Belém: cobriu de luto o reino próprio, e não pôde atalhar com tantos rios de sangue os progressos do que procurava impedir, porque estava destinado por Deus ao domínio de seu verdadeiro Senhor e firmado com sua palavra.

Considere Castela contra quem peleja, e conhecerá quão impossível é a empresa a que aspira; acabe de entender que não peleja contra Portugal, senão contra a firmeza da palavra e promessas divinas. Talar as nossas campanhas, vencer em batalha os nossos exércitos, sitiar as nossas cidades, bater, minar, escalar e arruinar as nossas muralhas, bem pode ser; mas fazer brecha na firmeza da palavra divina é impossível. Não há muro tão gastado da Antigüidade e tão fraco em Portugal, em cujas pedras não esteja escrito com letras de bronze: Verbum Domini manet in aeternum.

Reparem os famosos capitães de Castela e considerem seus prudentíssimos e experimentados conselheiros, apartando os olhos por um pouco de Portugal, se se acham seus exércitos com forças e poder bastante para conquistar Europa, para sujeitar todas as quatro partes do Mundo e ainda para escalar, como filhos do Sol, o Céu, e tirar dele a Júpiter pois saibam que mais fácil será conquistar Europa, o Mundo e o mesmo Céu empíreo, do que vencer e sujeitar Portugal, defendido e armado como está com as promessas divinas: Coelum et terra transibunt, verba autem mea non praeteribunt. Pelejem primeiro contra a firmeza da palavra de Deus batam, abalem, derribem, desfaçam este castelo, e depois dele rendido, então poderão conquistar Portugal. Perguntem a El-Rei José e a El-Rei Acab com as forças de dois tão poderosos reinos unidos, porque não conquistaram a Ramoth? Perguntem a Benedad, rei de Síria, e aos trinta e dois reis que o acompanhavam, porque uma e outra vez não conquistaram Samaria, sendo tanto o número de seus soldados, que com um punhado de terra que cada um lançasse sobre ela (como eles diziam) a podiam sepultar? Perguntem ao soberbíssimo Senaquerib vencedor de tantas nações, com todo o estrondo de tantos mil carros de guerra e tão inumeráveis exércitos de pé e de cavalo, porque não chegou a meter uma seta dentro dos muros de Jerusalém?

Porque Ramath estava defendida com uma profecia de Miqueas; Samaria com uma profecia de Eliseu; Jerusalém com uma profecia de Isaías.

Mas deixados exemplos das Escrituras e profecias canônicas, ouçam também as nossas, que, sendo de inferior autoridade, também foram ditadas, como depois se verá, pelo mesmo espírito. Porque puderam romper os Portugueses os claustros impenetráveis do Oceano, e conquistaram nas outras três partes do Mundo, sendo um Reino tão pequeno, tantas, tão novas e tão poderosas nações, senão porque estava escrito? Porque, estando sujeitos a Castela e debaixo de seus presídios, sacudiram tão feliz e animosamente o jugo, e em um dia restauraram sua liberdade, em Portugal, na África, na Ásia e na América, senão porque estava escrito? Porque ontem, na memorável batalha do Cano, com partido tão desigual, romperam um tão luzido e poderoso exército formado mais de capitães que de soldados, e escalaram com tanta facilidade aquelas montanhas ou muralhas da natureza, a que o seu general chamou castelos de Milão, senão porque estava escrito? Pois se a conservação, a liberdade e perpetuidade, as vitórias e outros maiores triunfos de Portugal estão também escritos com as mesmas letras e ditados pelo mesmo espírito, que esperança ou desesperação é pretender conquistar a Portugal? Oh, acabe de entender Castela quem defende Portugal e contra quem peleja! Com mui desigual inimigo se toma, quem quer guerrear contra Deus!

Não é nem pode ser nossa intenção diminuir as forças de Espanha, nem escurecer a grandeza de sua potência, tão conhecida do Mundo todo e tão temida e reverenciada de seus inimigos e invejada de seus êmulos. Mas é força que ela e nós confessemos que são maiores os poderes de Deus, e que, assistida deles, a desigualdade de Portugal pode resistir e prevalecer contra Espanha, como lhe tem resistido e prevalecido em tantos anos.

Dizem as fábulas, com significação não fabulosa mas verdadeira, que quando Páris houve de ferir mortalmente o impenetrável corpo de Aquiles, uniu o deus Apolo a mão de Páris com a sua e ambas juntas dispararam a seta fatal. Comparado o braço de Páris com o de Aquilles, mão por mão e braço por braço, mais forte é o de Aquiles; mas comparado o de Aquiles com o de Páris, acompanhado de Apolo mais forte é o de Páris. Não foi só a espada de Gedeão a que com tão poucos soldados venceu os exércitos dos Madianitas, mas a espada de Gedeão maneada pelo seu braço e pelo de Deus, juntamente: Gladius Domini et Gedeonis. Contra a espada de Gedeão naturalmente parece que haviam de prevalecer os exércitos madianitas; mas contra a espada de Gedeão e de Deus, nenhum poder humano pode prevalecer. Não peleja Castela só contra os exércitos de Portugal, mas contra o Senhor dos exércitos.

No dia memorável da restituição de Portugal (ou fosse milagre ou mistério), é certo que a imagem de Cristo crucificado despregou publicamente o braço as portas daquele santo português que tem por graça própria sua recuperar o perdido. Contra o braço estendido de Deus, que força dá que possa prevalecer, nem ainda resistir? Este é aquele braço onipotente, que tira os poderosos do trono e levanta a ele os humildes ou os humilhados, como fez naquele dia. Grande glória é de Portugal ter em seu favor o braço de Deus; mas não foi menos honra e autoridade de Castela, que fosse necessário o braço de Deus a Portugal para se libertar da sua sujeição.

Menos que o braço e menos que toda a mão de Deus, bastou para livrar o povo de Israel do poder do grande rei Faraó o dedo de Deus. O dedo de Deus é este — lhe disseram os seus sábios: Digitus Dei est hic. E verdadeiramente foi grande dureza de entendimento imaginar Faraó que podiam prevalecer seus exércitos contra um dedo da mão de Deus, quanto mais contra toda a mão. Assim lho remoqueou Moisés, quando escreveu aquela história: Induravit Dominus cor Pharaonis, regis Egypti, et persecutus est filios Israel, at illi egressi erant in manu excelsa.

Notem muito estas últimas palavras os reis e seus conselheiros: At illi egressi erant in manu excelsa. Se a mão do Altíssimo é a que assistiu aos libertados, quando eles saíram do cativeiro, em vão se cansa Faraó em tirar carruagens, cavalarias e exércitos contra eles, senão é que o juízo divino os leva ao Mar Vermelho e os chama lá alguma oculta fatalidade. Bem se viu neste caso, tão horrendo, quão gravemente se ofende Deus de que ninguém presuma cativar a quem ele liberta.

Desengano, Senhores meus; falemos e ouçamos como católicos. O que Deus faz, só Deus o pode desfazer; o que Ele levanta, só Ele o pode derribar. Bem sabe Castela (sinal é que o sabe bem, pois chega a o confessar, e no mesmo ano em que Portugal se havia de levantar, o estamparam assim seus escritos) bem sabe Castela (digo) que Portugal com singularidade única entre todos os reinos do Mundo foi reino dado, feito e levantado por Deus, naqueles mesmos campos e naquela mesma província onde todos os anos trabalham e batalham os homens pelo derribar, pelo desfazer e pelo tirar a quem foi dado.

Se Deus o deu, como o podem os homens tirar? Se Deus o fez, como o podem os homens desfazer? Se Deus o levantou, como o podem os homens derribar? E se Deus prometeu que na décima sexta geração atenuada poria os olhos nela para o restituir, como há quem tanto à vista dos olhos de Deus queira triunfar sobre suas promessas e irritar seus decretos? Até a superstição dos Gentios conheceu a conseqüência desta verdade, e que os reinos fundados por um Deus, ainda quando houvesse muitos deuses, só o mesmo Deus os podia arruinar. Esta foi a teologia com que os dois príncipes dos poetas no incêndio e destruição de Tróia introduziram ao Deus Neptuno, batendo com o tridente os muros que ele mesmo tinha fundado.

Naquela noite em que Cristo por sua própria Pessoa fundou o Reino de Portugal, aparecendo e falando ao seu primeiro rei, disse: Ego aedificator et dissipator regnorum alque imperiorum sum. Volo enim in te et in semine tuo imperíum mihi stabilire ut deferatur nomen meum in exteras nationes: «Eu sou o fundador e destruidor dos reinos e dos impérios, e quero em ti e em teus descendentes fundar um império para mim, pelo qual o meu nome seja levado às nações estrangeiras.:»

Se Deus é o monarca supremo e universal, que funda e desfaz os reinos e os impérios e com tão especia1 solenidade fundou por sua própria Pessoa nos reis portugueses de Portugal, quem haverá, que não seja o mesmo Deus, que o possa desfazer e dissipar?

Ponderem-se muito aquelas três cláusulas — in te mibi stabilire. Se Deus o fundou em nós — in te — quem o poderá arrancar de nós? Se Deus o quis para si –mihi- como o poderá ser de outrem? E se Deus prometeu de o estabelecer — stabilire- como o podem os homens arruinar? Acabem de conhecer os que se prezam de conhecer a Deus, que são homens; e tenham-se por homens, por racionais e por conselheiros, os que seguirem os ditames deste conhecimento. Na prodigiosa batalha das Linhas de Elvas, quando o duque-general, primeiro ministro de Espanha, se viu tão inopinadamente de conquistador, conquistado, as trincheiras entradas, os esquadrões rotos, os fortes rendidos, o exército desbaratado, as palavras com que se retirou, como tão prudente e tão católico capitão, foram: — Contra Dios no valen manos.

Se este ditame tão são, tão verdadeiro e tão evidente se seguira desde aquele dia. quanto sangue que ao depois se derramou estivera guardado nas veias ou se tivera de uma e outra parte empregado em serviço daquele grande Senhor, contra o qual não valem mãos nem validos? Contra a evidência e fé desta razão, que não tem resposta, costuma atravessar o Demônio aquela torpeza do Inferno, a que os homens com nome especioso e significação verdadeira infernal chamaram reputação. Dizem que não convém à reputação do grande monarca das Espanhas desistir da empresa de Portugal, não pelo que ele é, mas pelo que dirá o Mundo. Como se não estivéramos no mesmo Mundo em que ontem o mesmo monarca cedeu às Províncias Unidas dos Países-Baixos todos aqueles estados de que com tão diferentes direitos era herdeiro e legítimo senhor!

Mas para o nosso caso não são necessários exemplos, nem têm lugar, porque é diverso de todos e de superior hierarquia. E quando concedêssemos aos políticos que, para vaidade fantástica da opinião, se deviam arrastar tantos respeitos sólidos e verdadeiros, como eles falsamente ensinam, em nenhum caso da paz e recíproca desistência das armas esteve mais segura e mais honrada a reputação de Espanha e de seu grande monarca, que no da guerra presente. Pelo mesmo fundamento e único em que se funda todo este discurso, em ceder, obedecer a Deus e não resistir à sua vontade conhecida, nunca se perde nem pode perder reputação, antes se ganha a maior e mais qualificada de todas; porque, se a reputação consiste no juízo dos homens, nenhum juízo haverá no mundo católico, político, nem ainda gentílico, que não estime e venere uma tal ação pela mais cristã, mais justa, mais prudente, mais generosa, mais heróica de quantas honraram a memória dos maiores príncipes.

Quando Moisés foi notificar da parte de Deus a El-Rei Faraó, que desse liberdade ao povo de Israel, que havia tantos anos tinha debaixo de seu domínio, o que respondeu foi: — Nescio Dominum et Israel non dimittam: «Não conheço esse Deus, e não hei-de demitir a Israel.»

Não disse que não queria obedecer a Deus, senão que o não conhecia; porque o príncipe que conhece a Deus, ainda que seja tão bárbaro e arrogante como Faraó e em matéria de tanto peso e interesse, como demitir de si o domínio de uma nação inteira e tão populosa não pode duvidar de obedecer e se sujeitar à sua vontade. E porque Faraó o não fez assim, ainda que gentio e sem conhecimento de Deus, a reputação que granjeou com aquela teimosa resolução é a que hoje tem no Mundo, e terá enquanto durarem os Livros Sagrados, de bárbaro, de néscio, de obstinado de ímpio rei e de inimigo e destruidor (como foi por isso mesmo) de seu império.

Resistir a uma razão tão evidente como a que diz — assim o quer Deus — , é tão indigna e tão afrontosa resistência, que nenhuma razão de estado a pode justificar, ainda que se perdesse o mesmo estado.

Depois da morte de El-Rei Saul, o tribo de Judá seguiu as partes de David, e os outros onze tribos obedeceram e juraram por seu rei a Isboseth, filho herdeiro do rei defunto.

Seguiram-se bravas guerras entre um e outro partido; duraram sete anos, e o fim notável em que vieram a parar foi que os onze tribos deixaram a Isboseth e voluntariamente se entregaram e sujeitaram todos a David; e a maior circunstancia do caso é que, sendo ao parecer tão indignas as condições da paz, ela se ajustou em um dia sem o mediador Abner sem haver em todos os doze tribos um só homem que falasse uma palavra em contrário, nem ainda o mesmo Isboseth, que ficara privado do reino de seu pai, passando todo a David, que ontem era seu vassalo.

Mas que razões tão fortes e de tanta eficácia foram as que representou Abner para persuadir e concluir tão breve e subitamente um negócio tamanho, em que os interesses, a honra e a reputação de todos estava tão empenhada, e muito mais a do mesmo rei?

A razão foi uma só e esta que estou alegando: ...quoniam locutus est Dominus.

Propôs Abner aos tribos que a vontade de Deus era que David fosse rei, como o tinha declarado o profeta Samuel; e contra esta proposta não houve rei, nem conselheiros, nem vassalos que repugnassem ou respondessem, porque entenderam que o interesse de obedecer a esta razão era o maior de todos os interesses, e que debaixo dela, não só ficava salva a honra e a reputação, mas honrada a mesma honra.

Assim como o vassalo nunca pode perder a honra e reputação, senão ganhá-la em obedecer ao rei, assim o rei nunca a pode perder em obedecer a Deus, senão ganhá-la, segurá-la e acrescentá-la muito.

E se buscarmos a raiz desta verdadeira razão, achá-la-emos, sem muito cavar, no supremo domínio de Deus, que, como Senhor absoluto dos reinos e dos impérios, os pode dar e tirar inteiros quando lhe parecer, e também dividi-los e parti-los quando é servido. David, como acabamos de ver, começou com parte do reino de Israel, e depois inteirou-lhe Deus o império e reinou sobre toda a Judéia. Seu filho Salomão logrou o mesmo império inteiro pacificamente. Seu neto Roboão entrou no império também inteiro, mas em seu reinado lho dividiu Deus, e deu parte dele a Jeroboão.

O mesmo sucedeu ao império de Espanha nos últimos três reis dela. Filipe II começou a reinar com parte, e depois com a união e sujeição de Portugal, inteirou-lhe Deus o império de toda Espanha.

Seu filho Filipe III logrou o mesmo império inteiro pacificamente. Seu neto Filipe IV entrou no império também inteiro, mas em seu reinado lho dividiu Deus, e deu a Portugal a parte que lhe pertencia.

Antes do Reino de Israel se dividir entre Reboão e Jeroboão, tomou o profeta Ahías a sua capa cortada em doze partes, e destas doze deu dez a Jeroboão, em sinal de que Deus o queria fazer rei de dez tribos de Israel.

Note-se aqui, e note-se muito, que os profetas são os que dividem os reinos e os que os repartem: eles os dividem primeiro, profetizando, e depois Deus executando. E se o profeta Ahías pôde partir a sua capa e dar parte dela a El-Rei Jeroboão, e parte a El-Rei Roboão, porque não poderá Deus partir também a sua, e da púrpura inteira que tinha dado ou emprestado a um rei, cortar um retalho para vestir e coroar outro?

Ah! se os reis e monarcas considerassem que as púrpuras que vestem lhas ,empresta Deus da sua guarda-roupa, para que representem o papel de reis enquanto ele for servido! E se o Roboão de Israel se contenta com que lhe tirem dez partes do Reino e lhe deixem uma (assim o diz expressamente o Texto Sagrado: Porro una tribus remanebit ei; porque o tribo de Benjamim, que ficou a Roboão juntamente com o de Judá, por sua pouquidade não fazia número - era outro Algarve em respeito de Portugal); e se o Roboão de Israel (como dizia) se contenta com que lhe tirem dez tribos e lhe deixem uma só parte, porque se não contentaria o Roboão de Espanha, quando lhe tire o mesmo Dono um reino, se lhe deixa dez?

Oh! como se pode temer que chame Deus ingratidão ao que os homens chamam reputação! A maior reputação de um príncipe que conhece a Deus e reconhece seu supremo domínio, é dizer como Héli ainda quando se visse despojado de tudo: Dominus est; quod bonum est; in oculis suis faciat.

E se esta razão, ainda em termos tão apertados, é sempre verdadeira, quanto mais no caso presente, em que a grandeza de Espanha e sua potência, é o maior seguro de sua reputação!

Pedir paz quem se não pode defender da guerra, poderá ser menor crédito; mas dar a paz, não porque a há mister, senão porque a quer dar, quem pode fazer e apertar a guerra, sempre é generosidade, honra, reputação e glória. O grande poder é muito confiado. Poder pôr em campo doze legiões de anjos, e mandar embainhar a espada a Pedro, foi a maior glória do poder supremo. Não pode dar mais a fortuna a um príncipe que poder o que quer; nem pode exceder um príncipe essa mesma fortuna mais que não querendo o que pode; e não poder querer o que Deus não quer, ainda é um ponto mais alto sobre a grandeza. Mas se em toda a idade tem decência e decoro a gentileza desta resolução, nos maiores anos ainda é incomparavelmente maior.

Pelejaram os pastores de Abraão com os de Loth, os do tio com os do sobrinho. Abraão, que foi o que apartou a demanda, não quis pelejar sobre a terra, quando os anos o chamavam mais para o Céu.

Ó poderosíssimo monarca Filipe IV, o Grande! Dai licença para que tenham entrada a vossos ouvidos os ecos destas últimas cláusulas, não de meu discurso, senão de meu desejo. As vozes de que eles se formam, sabe O que conhece os corações, que não se escrevem com outro fim mais que o de O agradar, e de que todo os príncipes católicos O agradem.

Que se não derrame sangue cristão, e sobre cristão espanhol, pois é aquele de que mais puramente se alimenta a Santa Madre Igreja e de que cabeça dela recebe os espíritos com que vivifica e anima seus mais distantes membros.

Ouvi, Senhor, a voz de um estrangeiro, desinteressado vassalo que foi já vosso por sujeição, e hoje é também vosso (posto que não vassalo) por afeto. Ouvi a voz de um homem que nem das felicidades de Portugal espera, nem das vossas teme; porque vive fora da jurisdição da fortuna, por estado muito abaixo da sua roda, e por coração muito acima dela. Com todo este desinteresse me atrevo, Senhor, a vos dizer de longe o que pode ser não tenhais ouvido de mais perto.

A maior façanha de Carlos, vosso avô, com que coroou todas as suas, foi saber morrer. Merecestes na vida o título de Grande; maior sereis no fim dela se ao de Grande acrescentardes o de Justo. Não se pode pagar a Deus o que é de Deus, sem dar a César o que é de César. E seria grande desgraça perder o Reino eterno por um temporal já perdido.

Não duvido, Senhor, que tereis conselheiros de grandes letras, que segurem e justifiquem as causas e tão dilatada e cruel guerra; mas ponham os reis diante dos olhos as letras e as balanças de Baltasar e examinem eles se os seus maiores se governaram pelos pareceres dos letrados, ou os letrados pelos interesses dos reis. Os textos são da justiça, as interpretações podem ser da lisonja. Com um texto santo mal interpretado quis o Demônio despenhar a Cristo, e depois deste texto e desta interpretação, lhe ofereceu o reino que lhe não podia dar.

Grande sinal é de predestinação de um príncipe que faça Deus por ele as restituições que nem seus predecessores fizeram, nem ele havia de fazer.

Felicidade é levar já abatida das contas que se hao-de dar a Deus uma partida tão grossa, como o Reino de Portugal e suas Conquistas: basta haver-se de dar a mesma conta de Ormuz, de Ceilão, de Malaca, do Brasil, perdidos pela desatenção dos ministros ou pela intenção (que será pior) dos políticos. O tratado de uma boa e justa paz podia ser uma bula de composição geral, com que se levassem purgados todos estes encargos. Não queirais levar sobre vós e deixar sobre vossos filhos, por ama de tanto sangue derramado, o que ainda se pode derramar.

Lembro-vos, Senhor, o signo debaixo de que nascestes — e seja este o último suspiro do meu afeto: nascestes no dia em que morreu o Rei dos reis e Monarca supremo do Mundo, para dar exemplo de morrer a príncipes. Ponde os olhos neste soberano exemplar; firmai o título de rei com o de católico, pois sempre prezastes mais o de católico que o rei; seja parte do sacrifício a repartição das vesti duras e leve embora a túnica aquele a quem coube em sorte; e faça-se tudo diante de vossos olhos antes que os fecheis. Se vos parece amargoso este trago, gostai o fel e não o passeis da boca. Com esta obra tão consumada, podeis entregar a alma segura nas mãos do Padre, que é rei e Senhor, o que só importa. Com uma inclinação da cabeça podeis deixar pacificado o Mundo. Deixai a paz por herança a vossa esposa. Esta será a maior prenda do vosso amor, este o troféu maior de vossas vitórias.

A primeira qualidade da história (quando não seja a sua essência) é a verdade; e porque esta parecerá muito dificultosa, e porventura impossível na História do Futuro, será razão que, antes que vamos mais por diante, sosseguemos o escrúpulo ou receio (quando não seja o riso e o desprezo) dos que assim o podem imaginar. E pois pedimos aos leitores o assento da fé, justo é que lhes mostremos primeiro os motivos da credulidade; não duvidamos da pia afeição de todos, pois a matéria é tanto para crer, e tão sua.

Confesso que entramos em um caos profundíssimo e escuríssimo, de que se pode dizer com toda a razão: Tenebrae erant super faciem abyssi Mas neste mesmo abismo de trevas, se o espírito do Senhor (como esperamos) nos não faltar com a sua assistência, como ali não faltou: Spiritus Domini ferebatur super aquas, dirá Deus o que so Ele pode dizer, e far-se-á o que só Ele pode fazer: Fiat lux, et facta est lux. As maiores trevas que se viram no Mundo, ou com que o Mundo se não viu, foram aquelas do Egipto, das quais diz o Texto Sagrado: Factae sunt tenebrae horribiles in universa terra Aegypti, nemo vidit fratrem suum, nec movit se de loco in quo erat. Trevas que faziam horror, trevas com que nada se via e trevas com que se não podia dar passo. Tais são as trevas, e tal a escuridade do futuro. Contudo, o Apóstolo S. Pedro nos ensinou a entrar nestas trevas sem medo, e a dar passo, e muitos passos nelas, e a ver claramente e com maior certeza tudo o que elas encobrem: Habemus firmiorem propheticum sermonem, cui benefactis attendentes, quasi lucernae lucenti in caliginoso loco, donec dies elucescat: «Temos — diz o Príncipe dos Apóstolos — as profecias e palavras certíssimas dos profetas, as quais devemos observar e atender, usando delas como de candeia luzente em lugar escuro e caliginoso, até que amanheça o dia». Lugar escuro e caliginoso é o futuro; a candeia que alumeia são as profecias; o sol que há-de amanhecer é o cumprimento delas. E enquanto este sol, que será muito formoso e alegre, não aparece, não coroa os nossos montes, o que só agora podemos e devemos fazer é levar a candeia das profecias diante, e com a sua luz (ainda que luz pequena) entraremos no lugar caliginoso e escuríssimo dos futuros, e veremos o que neles se passa.

Por isso os Profetas na Sagrada Escritura se chamam por antonomásia Videntes, porque com o lume da profecia entravam nos lugares escuríssimos e secretíssimos dos futuros e viam neles claramente aquelas cousas para que todos os outros homens são cegos, e ninguém as pode ver senão alumiado da mesma luz.

Eu conheço e confesso que a não tenho, nem basta estudo ou diligência alguma para a alcançar, porque só Deus a pode dar e a dá, quando e a quem é servido: Non enim voluntate humana allata est ali quando prophetia, sed Spiritu Sancto inspirati locuti sunt sancti Dei homines — diz S. Pedro: Mas ainda que a candeia esteja na mão de outrem, também se podem aproveitar da sua luz os que se chegarem a ela e a forem seguindo. Nesta propriedade fala a Escritura, quando diz da profecia de Ageu: ...factum est verbum Domini in manu Aggaei prophetae. E da profecia de Malaquias: Onus verbi Domini ad Israel in manu Malachiae. E geralmente das profecias de todos os profetas: Sicut locutus es de manu puerorum tuorum prophetarum. De maneira que pôs Deus a profecia como candeia na mão dos profetas, para que, alumiados e guiados da mesma luz os que não somos profetas, possamos entrar com eles no lugar escuro e caliginoso dos futuros e ver e conhecer com a luz não nossa, o que eles viram e conheceram com a sua.

Este é o modo com que, havendo a nossa História de caminhar por passos tão escuros e dificultosos, saberá contudo onde há-de pôr os pés, e os porá mui seguros, seguindo sempre os raios deste farol divino, e dizendo humilde a Deus com David: Lucerna pedibus meis verbum tuum, et lumen semitis meis. Serão pois as primeiras fontes desta nossa História, e os primeiros e principais escritores a quem nela seguiremos todos ou quase todos os profetas canônicos, desde Isaías até Miqueas; porque, exceto o profeta Jonas, cujo assunto foi um só, e particularmente determinado à história dos Ninivitas, todos os outros, mais ou menos, concorreram para a fábrica deste novo edifício.

Assim como os que escrevem anais ou histórias passadas e antiquíssimas, recorrem aos autores mais antigos, e estes são os que têm maior crédito e autoridade nas cousas daqueles tempos, assim nós que escrevemos do futuro, devemos recorrer e buscar a verdade e notícias da nossa História nos autores dos tempos futuros, que são somente os Profetas, pois só eles os conheceram. E porque entre os outros Livros Sagrados, também canônicos, há alguns que totalmente são proféticos, como os Salmos, os Cantares e o Apocalipse, e todos os outros, assim do Velho como do Novo Testamento, contêm ou muitas ou algumas cousas proféticas, ainda que sejam meramente históricos, como o Gênesis, Josué, Josias, Reis, Paralipamenon, Esdras e Macabeus; ou meramente doutrinais, como Provérbios, Sabedoria, Eclesiastes, Eclesiástico e as Epístolas dos Apóstolos; ou juntamente doutrinais e históricos, como o Levítico, Números, Deuteronômio, Job e os Evangelhos, de todos estes nos ajudaremos também, quando servirem ou puderem servir (que não será pouco) ao conhecimento e inteligência dos tempos futuros. Assim que podemos dizer em uma palavra que a primeira e principal fonte e os primeiros e principais fundamentos de toda esta nossa História é a Escritura Sagrada; com que vem a ser um só livro e um só Autor o que nela principalmente seguiremos: o livro, a Escritura; o Autor, Deus. Sobre estes fundamentos da primeira e suma Verdade entrará o discurso como arquiteto de toda esta grande fábrica, dispondo, ordenando, ajustando, combinando, inferindo e acrescentando tudo aquilo que por conseqüência e razão natural se segue e infere dos mesmos princípios, no qual modo de fábrica se não perde a primeira verdade dos fundamentos, mas vai crescendo, dilatando-se e frutificando, não em diversos, senão no mesmo corpo, como a árvore em suas raízes.

Deste modo crescem e se aumentam todas as ciências, não só as naturais, senão as divinas, e por isso se chamam e são ciências. Assim como a filosofia de princípios naturais evidentemente conhecidos tira conclusões certas, evidentes e científicas, assim a teologia, de princípios sobrenaturais não evidentes mas certissimamente conhecidos, tira conclusões teológicas, também científicas e ainda mais certas, posto que não evidentes. Nem este modo de discorrer sobre as profecias e revelações proféticas, para vir em conhecimento dos mistérios, segredos, sucessos e tempos futuros, que nelas não estejam imediatamente expressados, é alheio da reverência que se deve aos oráculos divinos, nem atrevimento do entendimento e discurso humano, ou cousa nova e desusada na Igreja e escola de Cristo, antes estudo muito lícito, muito louvável e muito recomendado do mesmo Mestre Divino e seus sucessores.

Temos desta matéria um excelente texto do Apóstolo S. Pedro (primeira e infalível regra da Igreja), o qual, falando das mesmas profecias e profetas, diz assim no primeiro capítulo de sua primeira epístola: De qua salute exquisierunt atque scrutati sunt Prophetae qui de futura in vobis gratia prophetaverunt, scrutantes in quod vel quale tempus significaret in eis spiritus Christi praenuntians eas quae, Christo sunt, passiones et posteriores glorias.

Quer dizer S. Pedro que os Profetas antigos, depois de lhes serem revelados com lume sobrenatural e eles conhecerem e profetizaram mistérios futuros (como os da paixão e glórias de Cristo) sobre os mesmos mistérios e sobre as mesmas suas profecias inquiriam e especulavam de novo com o lume natural do discurso muitas circunstancias que lhes não foram expressamente reveladas, como as do tempo estado do Mundo em que os mesmos mistérios se haviam de obrar e as suas mesmas profecias haviam de suceder.

Desta maneira, no sentido em que o digo vinham a inferir e alcançar pelo estudo e especulação natural e própria o que Deus lhes não tinha manifestado pela revelação sobrenatural e divina. Isto é o que literal e genuinamente significam aquelas palavras: «Exquisierunt et scrutati sunt.» Exquisitio et scrutatio (diz Lorino) ...proprie indicant... curam et studium et industriam naturalem vel meditationis,vel lectionis, vel disputationis.

De sorte que, ajuntando o lume natural do d curso ao lume sobrenatural da pirofecia, com o cuidado, estudo e indústria própria, lendo, disputando e meditando, vinham a estender e adiantar muito as mesmas profecias, conhecendo delas e por elas muitas cousas que nelas imediatamente não estava reveladas. Bem assim como o sol ou candeia (que era a nossa comparação) não só alumeia com a luz que está ao lume ou fogo que nela se sustenta, senão também, e muito mais, com a luz que dela se vai produzindo, multiplicando e difundindo por todas as partes vizinhas e ainda distantes, conforme a sua menor ou maior esfera, assim o lume natural do discurso, se vai propagando, difundindo e estendendo a muitas cousas, tempos, sucessos e circunstâncias que nelas estavam ocultas e pela conferência e conseqüência do mesmo discurso se vão entendendo e descobrindo de novo. Isso quer dizer: In quod vel quale tempus. A palavra, em que tempo significa a determinação do tempo certo em que as cousas hão-de suceder; e a palavra no qual tempo significa as qualidades e circunstâncias do mesmo tempo, isto é, o estado dos reinos, das repúblicas, das nações, e os acontecimentos particulares da paz, da guerra, do cativeiro, da liberdade e outros semelhantes que no mesmo tempo, ou mais vizinho ou mais distante, se hão-de ver e suceder no Mundo: Deprehendebant Prophetae instinctu spiritus Messiae ejusdem Messiae adventum et gratiae dona, quae allaturus erat, nec tamen salten omnes, definite sciebant quo tempore veniret et quali, quam brevi, an belli, aut pacis, captivitatis, aut libertatis; quo statu Reipublicae Hebraeorum. Eplicabant quae Messias primum passurus, quam postea gloriam consecuturus et collaturus etiam esset; at ignorabant circumstantiam tem poris, et ratiocinando, atque conjecturando disquirebant. Atèqui Lorino.

O mesmo diz Salmeirão, ambos doutissimos expositores deste lugar, e ambos trazem em confirmacão o exemplo da Virgem Maria, nossa Senhora, da qual diz o Evangelho: Maria autem conservabat omnia verba haec conferens in corde suo. Conferia a Senhora, com ser alumiada sobre todas as criaturas, as palavras que os pastores referiam ter ouvido aos anjos, as que ouviu a Simeão, a Ana a profetiza, e ao mesmo Cristo Menino, quando o achou entre os doutores; e delas, por discurso natural, inferia e descobria outros mistérios ocultos e profundíssimos, que nas mesmas palavras não estavam expressamente declarados. Isto mesmo é o que se diz no cap. XV dos Atos dos Apóstolos faziam os mais doutos cristãos da primitiva Igreja, e o que Cristo mandou a todos que fizessem, dizendo por S. João na cap. L: Scrutamini Scripturas. É isto o que nós fazemos e devemos fazer, pois de nós e para nós falam os Profetas, como diz o mesmo texto de S. Pedro nas palavras citadas: ...qui de futura in vobis gratia prophetaverunt; e mais abaixo: Quibus revelatum est quia non sibimetipsis, vobis autem mintistrabant, onde a versão siríaca tem: Nostra nobis: vaticinabantur.

E pois os Profetas profetizavam para nós e as cousas nossas, razão é que nós como nossas as entendamos. Mas porque as profecias por sua natural escuridade não são fáceis de entender, e assim como se há mister necessariamente a sua luz para conhecer os futuros, é também necessária outra Segunda e nova luz para as entender a elas. Esta segunda luz serão aqueles a quem Cristo chamou luz do Mundo: Vox estis lux Mundi, e, por outras palavras, candeia acesa: Neque enim accendunt lucernam et ponunt eum sub modio, que são em primeiro lugar os Apóstolos sagrados, e em segundo os Padres Doutores da Igreja e expositores das Escrituras divinas, os quais seguiremos e alegaremos em tudo o que dissermos com estas duas luzes ou candeias: uma dos Doutores sagrados, com que alumiaremos as profecias, e outra as mesmas profecias, com que alumiaremos e descobriremos os futuros; poderemos entrar neste labirinto com todo o aparato e prevenção de instrumentos com que se entrava seguramente no de Creta.

Era aquele labirinto por uma parte muito escuro e por outra mui intricado; e para vencer e facilitar estas duas dificuldades se inventou entrar nele, não só com tocha, mas também com fio: as tochas para ver o escuro dos caminhos e o fio para entrar e sair pelo intricado deles. Por este modo entraremos também nós pelo escuro e intricado labirinto dos futuros. As profecias e os Doutores nos servirão de tochas; o entendimento e o discurso de fio. Isto é quanto às profecias e Profetas canônicos.

E porque o Espírito Santo, depois de fechado o número dos livros e os escritores sagrados (o qual se cerrou no Apocalipse de S. João), não deixou de ilustrar e ornar sua esposa a Igreja com o lume e dom da profecia; e depois daqueles seus primitivos anos houve sempre novos profetas, alumiados com o mesmo espírito, que por palavra e escrito predispuseram muitas cousas futuras, assim dos seus, como dos seguintes tempos, também estes darão matéria à nossa História. Não meteremos porém nesta conta senão aquelas profecias somente que, ou pela santidade de seus autores, aprovados e canonizados pela Igreja, ou por outros fundamentos sólidos da razão, experiência e opinião do Mundo, tenham, na forma possível, merecido no juízo dos prudentes o nome e veneração de profecias ou predições verdadeiras.

A este fim empregarei grande parte deste presente livro na qualificação do espírito profético que tiveram todos os autores do futuro que na História se hão-de alegar, por ser este não só o principal, mas o único fundamento de toda a sua verdade, e sem o qual vã e não merecidamente lhe devemos prometer o crédito que de todos os que a lerem esperamos.

Por esta causa se não acharão porventura neste nosso discurso menos algumas que em nome de profecias andam entre o vulgo, sem certeza de autor e muito menos do espírito com que foram escritas; e não só provaremos quanto for necessário o espírito da profecia destes autores, mas diremos o tempo em que escreveram as obras proféticas que deles existam; a inteireza ou corrupção com que se tem conservado, com uma breve relação também das mesmas pessoas (quando não forem geralmente mui conhecidas) pelo muito que importam todas estas notícias não só para a fé e crédito, senão ainda, e muito mais, para a inteligência e combinação das mesmas profecias, que grandemente depende do tempo e de outras semelhantes circunstâncias.

Procuramos quanto nos foi possível que fosse mui exata esta diligência, e não só falaremos nos autores e Profetas modernos e não canônicos, senão igualmente nos antigos e sagrados, pelas mesmas causas. Também excitaremos a este fim e resolveremos várias questões muito importantes ao conhecimento das profecias, pela ordem que a necessidade ou ocasião o for pedindo, e esta será a própria matéria de todo este livro, a que por isso chamamos Anteprimeiro, e é como alicerce de todo o edifício. E posto que todo este tão largo Prolegómeno em rigor não seja História do Futuro, senão preparação ou aparato para ela, à imitação de Barónio e de outros autores, que com menos necessidade o fizeram em suas histórias, esperamos que a matéria, por sua grande variedade e diligente erudição de cousas curiosas, e pela maior parte até agora não tratadas, não será injucunda aos que a lerem, e que possa sem enfado entreter a expectação e desejo da mesma História, enquanto não sai a luz, que será, como em Deus esperamos, muito brevemente.

De tudo o que fica dito ou prometido se colhe facilmente quanta será a verdade desta História; porque as cousas que expressa e imediatamente se predizem nas profecias canônicas, de cuja inteligência por sua clareza se não pode duvidar, ou por estarem explicadas por escritores também canônicos por concílios, por tradições, ou pelo consenso comum dos Padres, é certo que têm toda aquela certeza infalível e de fé, que as outras verdades sagradas que se contêm nas Escrituras. As outras cousas, que destas verdades assim profetizadas e conhecidas, por natural conseqüência, se deduzirem, ainda que intervenha no discurso algum meio ou proposição científica, são verdades segundas que participam a mesma certeza também infalível, qual é a das conclusões teológicas que, não sendo totalmente fé, nem somente ciência, por esta parte têm evidência, e por ambas tal certeza, que não é sujeita a erro ou falsidade, nem perigo de poderem não ser.

As profecias não canônicas podem ser tão evidentemente provadas por seus efeitos, como veremos que tenham toda a certeza moral, que é a que depois a fé e da ciência têm no juízo humano o maior assento; e a mesma participarão, na forma que pouco antes dissemos, todas as outras conclusões que por natural e evidente conseqüência delas se deduzirem, pois são filhas e herdeiras da mesma Verdade de que tiveram seu nascimento

Restam somente aquelas profecias que, ou por não averiguadas com tão evidente certeza (posto que sempre estabelecidas com bons e racionais fundamentos) ou por sua interpretação não ser tão manifesta ou recebida que não desfaça moralmente toda a razão de dúvida, ficam dentro dos lates da probabilidade opinativa; le nestas, assim o que imediatamente predizem, como as conseqüências que delas por formalização se deduzirem, terão somente certeza provável naquele sentido em que dizemos provavelmente certas aquelas cousas de que há fundamentos prováveis para o serem.

Estes quatro gêneros de verdade são os de que repartidamente se comporá toda a História do Futuro, merecendo, segundo todas suas partes, o nome de história verdadeira, posto que não em todas com igual grau de certeza. Nas do primeiro gênero, verdadeira com certeza de fé; nas do segundo, verdadeira com certeza teológica; nas do terceiro, verdadeira com certeza moral; nas do quarto, verdadeira com certeza provável, pelo modo já explicado; sendo a excelência singular desta História que toda ela, ou provável, ou moral, ou teológica, ou canonicamente, será fundada na primeira e suma Verdade, que é; o mesmo Deus.

Daqui inferimos sem injúria nem agravo de quantas histórias até hoje estão escritas no Mundo, que esta História do Futuro é mais certa e mais verdadeira que todas elas (excetas somente as Histórias Sagradas), e ainda esta exceção se não deve entender em todo, senão em parte; a História do Futuro igualará na verdade e na certeza, que, por melhor dizer, se não distinguirá delas, por ir toda (como vai) não só fundada nos mesmos textos e sentenças da Escritura divina, mas formada e como tecida deles.

E digo que sem injúria nem agravo de todas as outras histórias humanas, porque, como também terão advertido os mais lidos e versados, assim nas antigas como nas modernas, todas elas estão cheias, não só de cousas incertas e improváveis, mas alheias e encontradas com a verdade, e conhecidamente supostas e falsas, ou por culpas ou sem culpa dos mesmos historiadores.

Que historiador há ou pode haver, por mais diligente investigador que seja dos sucessos presentes ou passados, que não escreva por informações? E que informações há de homens, que não vão envoltas em muitos erros, ou da ignorância, ou da malícia? Que historiador há de tão limpo coração e tão inteiro amador da verdade, que o não incline só o respeito, a lisonja, a vingança, o ódio, o amor, ou da sua, ou da alheia nação, ou do seu ou de estranho príncipe? Todas as penas nasceram em carne e sangue, e todos na tinta de escrever misturam as cores do seu afeto.

Prova Tácito a verdade da sua história, com ter longe as causas do ódio e amor; mas de aí se convence contra ele, que também tinha longe as informações da verdade. O certo é que só tinha perto a ambição de seu próprio juízo, com que formava os processos para as sentenças, e não as sentenças sobre os processos. Por isso Tertuliano lhe chamou com razão mendaciorum loquacíssimum.

Não aponto erros em particular das histórias mais vizinhas a nossos tempos por reverência deles, e porque fora matéria infinita. Das dos Gregos e Romanos disse S. Jerônimo, por ocasião do milagre da serpente: Cedaxt huic veritati, tam graeco quam romano stylo mendacis ficta miracula. E Cícero, que é mais, no livro primeiro das Leis: Apud Herodotum patrem Historiae et apud Theopompum sunt innumerabiles fabulae. Estes foram os pais da História humana, e desta é filha legítima a sua verdade, sobre a qual batalham tantas vezes os mesmos historiadores, mas nunca com conhecida vitória.

Quem quiser ver claramente a falsidade das histórias humanas, leia a mesma história por diferentes escritores, e verá como se encontram, se contradizem e se implicam no mesmo sucesso, sendo infalível que um só pode dizer a verdade e certo que nenhum a diz. Mas isto mesmo se conhece, ainda com maior evidência, daquelas histórias de que temos verdadeira relação nas Escrituras Sagradas, como são as de Noé, do Dilúvio, da divisão das primeiras gentes; as dos Assírios, Persas, Medos, Romanos, Egípcios, Gregos, e principalmente a dos Hebreus, com os quais cotejado, como em pedra de toque, o que escteveram os Berosos, os Heródotos, os Diodoros, os Trogos, os Cúrcios, os Lívios, e todos os outros historiadores daquelas nações e tempos, apenas se acha cousa que não seja contradição da verdade; e desta mesma experiência e razões dela se qualifica claramente ser a nossa História do Futuro mais verdadeira que todas as do passado porque elas em grande parte foram tiradas da fonte da mentira, que é a ignorancia e malícia humana, e a nossa tirada do lume da profecia e acrescentada pelo lume da razão, que são as duas fontes da verdade humana e divina.

Assentamos com o Apóstolo S. Pedro, no capítulo antecedente, que com a candeia da profecia se podia entrar pela escuridade dos futuros e descobrir e conhecer o que neles está encoberto e enterrado. Mas sobre esta resolução se pode dizer e argüir contra nós, que esta mesma candeia e luz das profecias há muitos centos de anos que está acesa, e não sub modio, senão supra candelabrum, e que ninguém contudo se atreveu até agora a entrar com ela por estes abismos e escundades do futuro, como nós prometemos fazer, empresa e ousadia, que mais merece nome de temeridade :que de confiança; aos quais (que sempre serão mais de um) responderemos facilmente com o seu mesmo argumento. Os futuros, quanto mais vão correndo, tanto mais se vão chegando para nós, e nós para eles; e como há tantos centos de anos que estão escritas estas profecias, também há outros centos de anos que os futuros se vão chegando para elas, e elas para os futuros; e por isso nós nos atrevemos a fazer hoje o que os Antigos não fizeram, ainda que tivessem acesa a mesma candeia; porque a candeia de mais perto alumeia melhor. Para ver com uma candeia, não basta só que a candeia esteja acesa, é necessário que a distância seja proporcionada: Ut luceat omnibus qui in domo sunt, disse Cristo. Com una candeia na mão pode-se ver o que há em uma casa, mas não se pode ver o que há em uma cidade. 0 grande precursor de Cristo ...erat lucerna lucens et ardens, e ainda que todos os outros Profetas anunciaram a Cristo, o Baptista o mostrou melhor, porque era candeia de mais perto; os outros diziam: — Há-de vir, e ele disse: — Este é.

As visões e revelações de Deus vêem-se melhor ao perto que ao longe: de longe viu Moisés a visão da sarça; e que disse? — Vadam et videbo visionem hanc magram: «Irei e verei esta grande visão». Estava vendo a visão, e disse que a iria ver, porque vai muita diferença de ver as visões de Deus ao longe, ou vê-las ao perto. Ao longe viu só Moisés a sarça e o fogo; ao perto, entendeu o que aquelas figuras significavam. A mesma luz e a mesma candeia ao longe vê-se, e ao perto alumeia.

Esta é a diferença que não nós, senão os nossos tempos, fazem aos antigos: nos antigos reconhecemos a vantagem da sabedoria, nos nossos a fortuna da vizinhança. Se estamos mais perto dos futuros com igual luz (ainda que não seja com igual vista), porque os não veremos melhor? Assim o confessou Santo Agostiho com ter os olhos de águia o qual, achando-se às escuras em muitos lugares das profecias, reservou a verdadeira inteligência delas para os vindouros.

Um pigmeu sobre um agigante pode ver mais que ele. Pigmeus nos conhecemos em comparação daqueles gigantes que olharam antes de nós para as mesmas Escrituras. Eles sem nós viram muito mais do que nós podemos ver sem eles; mas nós, como vive mos depois deles, e sobre eles por benefício do tempo, vemos hoje o que ,eles viram, e um pouco mais. 0 último degrau da escada não é maior que os outros, antes pode ser menor; mas basta ser o último, e estar em cima dos mais, para que dele se possa alcançar o que de outros se não alcança.

Entre a multidão dos que acompanhavam e rodeavam a Cristo, o mais pequeno de todos era Zaqueu que por si mesmo, e com os pés no chão, não podia alcançar a ver o que os outros viam; mas subido em cima da árvore, viu melhor e mais claramente que todos.

Mui bem medimos a nossa estatura, e conhecemos quão pequena, quão desigual) quão inferior é, comparada com aqueles cedros do Líbano e com aquelas torres altíssimas, que tanto ornato, tanta grandeza e majestade acrescentaram ao edifício da Igreja; mas subidos por merecimento seu e fortuna do tempo a tanta altura, não é muito que alcancemos e descubramos um pouco mais do que eles descobriram e alcançaram.

Cousa maravilhosa é, e que apenas se pode entender, como os cavadores da vinha que vieram na última hora puderam ser avantajados aos demais. Mas estes são os privilégios da última hora: Hi novissimi una hora fecerunt. Fizeram na última hora o que os outros não fizeram todo o dia; porque eles com outros acabaram a obra que os outros sem eles não puderam nem podiam acabar: Sic erunt novissimi primi. Este é o modo com que os últimos podem vir a ser os primeiros. Non ergo undecima hora in vineam Domini ad operandum conductis nobis invidendum est — disse Lipomano na prefação de seus Comentários, aplicando a parábola de Cristo ao estudo da Sagrada Escritura.

Os que estudamos e trabalhamos na inteligência da Sagrada Escritura, mais ou menos todos cavamos e, pode suceder que os que vêm na última hora por felicidade da mesma hora acabem, descubram com poucas enxadas o que muitos em muito tempo e com muito trabalho, cavando muito mais, não descobriram.

Aquele tesouro escondido de que falou Cristo no cap. XIII de S. Mateus, diz Ruperto Tertuliano, S. João Crisóstomo, que é a Escritura Sagrada, e S. Jerônimo com mais estrita propriedade o entende particularmente das escrituras proféticas Quantas vezes os que trabalham no descobrimento de algum tesouro, cavam por muitos dias, meses e anos sem acharem o que buscam, e depois de estes cansados e desesperados, sucede vir um mais venturoso que, descendo sem trabalho ao profundo da mesma cova, e cavando alguma cousa de novo descobre a poucas enxadadas e tesouro, e logra é fruto dos trabalhos e suores dos primeiros?

Assim aconteceu no tesouro das profecias: cavaram uns e cavaram outros, e cansaram todos e no cabo descobre o tesouro quais sem trabalho aquele ultimo para quem estava guardada tamanha ventura, a qual sempre é do último

Eis aqui como pode acontecer que descubram o tesouro os que cavam menos: Saepe abseptus quisquam, et vilis invenit, quod magnus et sapiens vir praeterit, disse verdadeira e judiciosamente S. Crisóstomo. 0 último dos Apóstolos foi S. Paulo, e confessando-se por mínimo de todos, confessa ter recebido a graça de descobrir aos mesmos anjos do Céu os tesouros que lhes estavam escondidos: Mihi omnium sanctorum (diz ele na Epístola aos Efessos) minimo data est gratia hoec in gentibus evangelizare investigabiles divitias Christi, et illuminare omnes quae sit dispensatio sacramenti absconditi a saeculis in Deo, qui omnia creavit, ut innotescat principatibus et potestatibus in caelestibus per Ecclestam, multiformis sapientia Dei, secundum praefinitionem saeculorum. Nas quais palavras se devem ponderar muito quatro cousas: Que é o que se descobriu; quem o descobriu; a quem se descobriu; e quando ; se descobriu.

O que se descobriu é um segredo escondido a todos os séculos passados: Sactamenti absconditi a soculis in Deo; porque costuma Deus ter algumas cousas encobertas e escondidas por muitos séculos, conforme a ordem e disposição de sua Providência. Quem o descobriu foi o último de todos os apóstolos 9 discípulos de Cristo, que já o não alcançou, nem viu, nem ouviu neste Mundo como os demais, e se confessa por mínimo de todos: Mihi omnium sanstorum minimo; porque bem pode o último e o mínimo alcançar e descobrir os segredos que os primeiros e maiores não alcançaram. A quem se descobriu foi não menos que aos espíritos angélicos das mais superiores hierarquias do Céu: Ut innotescat principatibus et caelestiu; porque não bastam as forças da sabedoria e entendimento criado, ainda que seja de um anjo e de muitos anjos, para conhecer e penetrar os segredos altíssimos de Deus, enquanto ele quer que estejam encobertos e escondidos. Finalmente, quando se descobriu, foi no século que Deus tinha predefinido e determinado: Secundum praefinitionem saeculorum; porque, quando chega o tempo determinado e predefinido por Deus para que seus segredos se conheçam e descubram no Mundo, só então, e de nenhum modo antes, se podem manifestar e entender. Assim que bem pode um homem menor que todos descobrir e alcançar o que os grandes e eminentíssimos não descobriram, porque esta ventura não é privilégio dos entendimentos, senão prerrogativa dos tempos.

Desde que Túbal começou a povoar Espanha, que foi no ano da criação do Mundo I80I, até o de Cristo, I428, em que se passaram mais de 3600 anos, era o termo da navegação do mar Oceano junto somente à costa de África, o cabo chamado de Não, sendo os mares que depois dele se seguiam, tão temorosos aos navegantes, que era provérbio entre eles (como escreve o nosso João de Barros): quem passar o cabo de Não, o tornará ou não. Aparecia ao longe deste o cabo chamado Bojador, pelo muito que se metia dentro no mar, cuja passagem, tanto por fama e horror comum, como pelo desengano de muitas experiências, se reputava entre todos por empresa tão arriscada e impossível à indústria e poder humano, como se pode ver no IV capítulo da primeira Década. Mas quem ler o capítulo seguinte, verá também como um homem português não de muito nome, chamado Gil Eanes, foi o primeiro que, dispondo-se ousadamente ao rompimento de uma tamanha aventura, venceu felizmente o cabo em uma barca, quebrou aquele antiquíssimo encantamento e mostrou com estranho desengano à Espanha, ao Mundo e ao mesmo Oceano que também o não navegado era navegável; o qual feito ponderando o nosso grande historiador com seu costumado juízo, diz breve e sentenciosamente: «E a este seu propósito se ajuntou a boa fortuna, ou, por melhor dizer, a hora em que Deus tinha limitado o curso de tanto receio, como todos tinham, de passar aquele cabo Bojador..>>

E verdadeiramente é assim: enquanto não chega a hora determinada por Deus, nem os Aníbales de Cartago, nem os Cipiões e Júlios de Roma, nem os Bacos, Lusos, Gedeões e Hércules de Espanha se atrevem a imaginar, que pode o Bojador ser vencido, e param suas empresas e ainda seus pensamentos no cabo de Não. Mas quando chega a hora precisa do limite que Deus tem posto às cousas humanas, basta Gil Eanes em uma barca para vencer todas essas dificuldades, para atalhar todos esses receios, para pisar todos esses impossíveis e para navegar segura e venturosamente os mares nunca de antes navegados. Ali donde chega o presente e começa o futuro, era até agora o cabo de Não; não havia historiador que de ali adiantasse um momento a conta de seus anos e dias. Não havia pensamento que ainda com imaginação (que a tudo se atreve) desse um passo seguro mais adiante naquele tão desusado caminho; o que confusamente se representava adiante ao longo deste cabo, era a carranca medonha, o temerosíssimo Bojador do futuro, coberto de névoas, de sombras, de nuvens espessas, de escuridade, de cegueira, de medos, de horrores, de impossíveis. Mas se agora virmos desfeitas estas névoas, desvanecido este escuro, facilitada esta passagem, dobrado este cabo, sondado este fundo e navegável e navegada a imensidade de mares que depois dele se seguem, e isto por um piloto de tão pouco nome e uma tão pequena barquinha como a do seu limitado talento, demos os louvores a Deus e às disposições de sua Providência, e entendamos que se passou o cabo, porque chegou a hora.

É admirável a este propósito um lugar do profeta Daniel, com que demonstrativa e indubitavelmente se persuade e convence esta verdade nos próprios termos da inteligência das profecias em que falamos.

No cap. XII de Daniel, depois de um anjo lhe ter declarado grandes mistérios dos tempos futuros, mandou-lhe que fechasse e selasse o livro em que estavam escritas e lhe disse estas notáveis palavras: Tu autem, Daniel, claude sermones et sigra librum, usque ad tempus statutum, plurimi pertransibunt et multiplex erit scientia: >>Tu, Daniel, fecharás e selarás o livro (em que escreveres estas cousas que tenho dito), para que estejam fechadas e seladas até o tempo determinado por Deus; entretanto passarão muitos por elas, e haverá sobre a inteligência de seus mistérios grande variedade de ciências e opiniões.:>>

Este é o sentido literal e verdadeiro destas palavras do anjo, como se pode ver em todos os comentadores de Daniel, posto que elas são tão claras e expressas que não necessitam de comentador. De maneira que, nas escrituras dos profetas, há cousas de tal modo fechadas e seladas, que ninguém as pode entender nem declarar, até que chegue o tempo determinado pela Providência divina, o qual é o que só tem poder para romper os sigilos e abrir e fazer patentes as escrituras fechadas e declarar os mistérios futuros, que nelas estavam ocultos e encerrados. E enquanto este tempo não chega, por mais doutos, sábios e santos que sejam os expositores daquelas profecias, dirão cousas muito discretas, muito doutas, muito santas e muito várias, mas o certo e verdadeiro sentido delas sempre ficará oculto e escondido, porque passarão todos por ele sem entenderem nem penetrarem Isto quer dizer: Plurimi pertransibunt, et multiplex erit scientia.

Onde se deve advertir e notar que muitos homem ainda que sejam de grandes letras, cuidam que passam os livros, e passam por eles: Plurimi perransibunt. Por quantos lugares passaram os Origgenes, os Clementes, os Tertulianos, que depois en tenderam os Agostinhos, os Basílios, os Jerônimos? Por quantos passaram os Hugos, os Ricardos, os Rupertos, os Teodoretos, que depois entenderam os Montanos, os Sanches, os Cornélios, os Riberas? E por quantos passaram também estes, que depois entenderam melhor os que lhes foram sucedendo, não porque os últimos sejam mais doutos ou de mais aguda vista, mas porque lêem e estudam à luz da candeia, ajudados e ensinados do tempo, que é mais certo intérprete das profecias, e para o qual reservou Deus a abertura dos seus sigilos? Signa librum usque ad tempus constitutum.

No Apocalipse (cujas profecias são próprias deste tempo), em que a Igreja de Cristo se vai continuando mais claramente que em nenhum outro lugar das Escrituras, temos relatado este segredo da Providência divina, com que dispôs e tem decretado que as profecias se vão descobrindo e entendendo ordenada e sucessivamente aos mesmos passos, ou mais vagarosos ou mais apressados, com que vão seguindo e variando os tempos. Entre as cousas muito misteriosas que viu S. João, ou a mais misteriosa de todas, foi um livro fechado e selado com sete selos o qual era o seu mesmo Apocalipse; foram-se rompendo estes selos e abrindo-se o livro, mas não todo Juntamente, senão por passos e espaços: um selo primeiro e outros depois, e com grande aparato de cerimônias e efeitos admiráveis no céu e na terra; o mistério destas pausas e intervalos era porque se haviam ir descobrindo as profecias que estavam escritas no livro, e assim se haviam ir entendendo, não juntamente, senão em diferentes tempos, e não apartadas de seus efeitos, senão igualmente com eles. De maneira que nas profecias estão encobertos os tempos e os efeitos, e nos tempos e nos efeitos estarão descobertas as profecias; e por isso naquele misterioso livro, assim como eram diversas as profecias e diversos os efeitos e sucessos da Igreja e do Mundo, que nelas estavam profetizadas, assim também eram diversos os selos com que estavam fechados e diversos os tempos em que se haviam de abrir e manifestar, sendo o mesmo tempo e os mesmos sucessos os que as abrissem e manifestassem, ou depois de chegarem, ou quando já forem chegando. Bem assim como antes de se acabar de todo a noite, pelos resplendores da aurora se conhece a vizinhança do Sol, antes que ele se veja descoberto nos horizontes.

E se quisermos especular a razão desta providencia, acharemos que não é outra senão a majestade da sabedoria e onipotência divina, sempre admirável em todas suas obras.

É este mundo um teatro; os homens as figuras que nele representam, e a história verdadeira de seus sucessos uma comédia de Deus, traçada e disposta maravilhosamente pelas idéias de sua Providência. E assim como o primor e subtileza da arte cômica consiste principalmente daquela suspensão de entendimento e doce enleio dos sentidos, com que o enredo os vai levando após si, pendentes sempre de um sucesso para outro sucesso, encobrindo-se de indústria o fim da história, sem que se possa entender onde irá parar, senão quando já vai chegando e se descobre subitamente entre a expectação e o aplauso, assim Meus, soberano Autor e Governador do Mundo e perfeitíssimo exemplar de toda a natureza e arte para manifestação de sua glória e admiração de sua sabedoria, de tal maneira nos encobre as cousas futuras, ainda quando as manda escrever primeiro pelos profetas, que nos não deixa compreender nem alcançar os segredos de seus intentos, senão quando Já tem chegado ou vêm chegando os fins deles, para nos ter sempre suspensos na expectação e pendentes de sua providência. E é esta regra (com pouca exceção de casos) tão comum em Deus e seus decretos, que, ainda quando as profecias são muito claras, costuma atravessar entre elas e os nossos olhos umas certas nuvens, com que sua mesma clareza se nos faz escura. Eu o não crera, se o não vira esento para maior admiração em um dos maiores profetas, que assim o confessa, não de outrem, senão de si: In anno primo Darii, filii Asssueri, de semine Medorum, qui imperavit super regnum Chaldeorum, anno uno regni ejus, ego, Daniel, intellexi in libris numerum annorum, de quo factus est sermo Domini ad Jeremiam prophetam, ut complerentur desolationis Hierusalem septuaginta anni: <<No ano primeiro de Dario, filho de Assuero, descendente dos Medos, que teve o império dos Caldeus: Eu Daniel, diz ele, entendi nos livros o número de setenta anos, que Deus tinha revelado ao profeta Jeremias havia de durar a assolação de Jerusalém>> e cativeiro dos Judeus em Babilônia.

Agora entra o caso e a admiração: Esta profecia de Jeremias, que Daniel afirma que entendeu no primeiro ano do império de Dario, é do cap. XXV daquele profeta, e diz assim: Et erit uníversa terra haec in solitudinem et in stuporem, et servient omnes gentes istae regi Babylonis septuaginta annis:<<Toda esta terra (diz Jeremias, estando em Jerusalém) será assolada, com pasmo e assombro do mundo, e todas as gentes que a habitam, servirão ao rei de Babilônia por espaço de setenta anos.>>

Estes setenta anos, como consta da exata cronologia que se pode ver largamente provada em Perério e rios comentadores da profecia de Daniel, se acabaram de cumprir no primeiro ano do império de Dario. Pois se o termo de setenta anos estava profetizado com palavras tão claras e expressas como são aquelas de Jeremias: Et servsent omnes gentes istae regi Babylonis septuaginta annis, como diz Daniel, que não entendeu o número destes setenta anos, senão no primeiro ano de Dario, que foi o último dos mesmos setenta? Podia haver conta mais clara? Podia haver palavras mais expressas? Não Mas como é regra ordinária da Providência divina, que as profecias se não entendam senão quando já tem chegado ou vai chegando o fim delas, por isso, sendo a profecia tão clara e o número dos setenta anos tão expresso, não quis Deus que o mesmo Daniel, sendo Daniel, o entendesse senão no último ano.

O tempo foi o que interpretou a ,profecia, e não Daniel, sendo Daniel um tão grande profeta. E esta parece a energia daquela sua palavra: Ego, Daniel intellexi: Eu, Daniel, sendo Daniel, não entendi a profecia tão clara de Jeremias, senão no último ano dos setenta, em que ela se cumpria; mas assim havia de ser, porque assim o profetizou e o repete o mesmo Jeremias em dois lugares, onde, falando de suas profecias, diz que se não entenderão senão nos últimos tempos do cumprimento delas: No cap. XXIII: Non revertetur furor Domini usque dum faciat et usque dum compleat cogitationem cordis sui: in novissimis diebus intelligetis consilium ejus. E no cap. XX, quase pelas mesmas palavras: Non avertet iram indignationis Dominus, donec faciat et cormpleat cogitationem cordis sui: in novissimo dierum intelligetis ea.

E que fez Deus, ou pode fazer, para que umas palavras tão expressas e uma profecia tão clara possa parecer escura? Atravessa uma nuvem (como dizíamos) entre a profecia e os olhos, e com este véu, ou sobre os olhos ou sobre a profecia, o claro por claríssimo que seja fica escuro.

Quando queremos encarecer uma cousa de muito clara, dizemos que é clara como a água, porque não há cousa mais clara; e contudo essa mesma água (como discretamente advertiu David), com uma nuvem diante, é escura: ...tenebrosa aqfxa in nubibgs aeris Em havendo nuvem em meio, até a água e escura, e tais são as profecias, por claras e claríssimas que sejam. Por isso pedia o mesmo David a Deus que lhe tirasse o véu dos olhos, para que pudesse conhecer as maravilhas dos seus mistérios: Revela oculos meos, et considerabo mitrabilia de lege tua. Oh quantas profecias muito claras se não entendem, ou se não querem entender, porque as quero remos ver por entre nuvens, e com véu sobre os olhos! Peço e protesto a todos os que lerem esta História, ou que tirem primeiro-o véu de sobre os olhos, ou que a não leiam.

Como se hão-de entender as revelações com os entendimentos e olhos vendados? Não basta só que Deus tenha revelado os futuros, é necessário que revele também os olhos: Revela oculos meos. Se os olhos estão cobertos e escurecidos com o véu do afeto ou com a nuvem da paixão; se os cega o amor ou ódio, a inveja ou a lisonja, a vingança ou o interesse, a esperança ou o temor, como se pode entender a verdade da profecia, por muito clara que nela esteja, quando o primeiro intento e nega-la ou quando menos escurecê-la? As nuvens que Deus põe sobre a profecia, o tempo as gasta e as desfaz; mas os véus que os homens lançam sobre os próprios olhos, só eles os podem tirar, porque eles são os que querem ser cegos.

Que profecias mais claras que as da vinda de Cristo ao Mundo? E muito mais claras ainda depois de manifestas e provadas com os mesmos efeitos. E contudo estas são as que mais obstinadamente nega a cegueira judaica, porque têm os olhos cobertos com aquele antigo véu de Moisés, como lhes lançou em rosto o grande Paulo Judeu e semente de Abraão, como eles, do tribo de Benjamim: Usque in hodiernum diem, cum legitur Moyses, velamen positum est super cor eortum; cum autem conversu fuerit ad Dominum, auferetur velamen.. Tirem o véu de sobre os olhos, e verão a luz das profecias: ainda que a profecia seja candeia acesa, como se há-de ver com os olhos cobertos? Tire-se o impedimento à luz, e logo se verão a candeia e mais o que ela alumeia. A mulher que buscava a dracma perdida não só acendeu a candeia, mas varreu a casa:...accendit lucernam, et (...) everrit domum. A candeia está acesa e muito clara, mas a casa não está varrida; varra-se e alimpe-se a casa, tirem-se os estorvos e impedimentos à luz, e logo verão os olhos o que há nela, e se achará o que se busca; mas nem se busca, nem se quer achar.

De maneira que, resumindo toda a resposta da objeção, digo que descobrimos hoje mais, porque olhamos de mais alto; e que distinguimos melhor porque vemos mais perto; e que trabalhamos menos porque achamos os impedimentos tirados. Olhamos de mais alto, porque vemos sobre os passados; vemos de mais perto, porque estamos mais chegados aos futuros; e achamos os impedimentos tirados, porque todos os que cavaram neste tesouro e varreram esta casa, foram tirando impedimentos à vista, e tudo isto por beneficio do tempo, ou, para o dizer melhor, por providência do Senhor dos tempos.

Declara-se qual seja a novidade desta História, e que as cousas novas, por novas, não desmerecem o crédito de sua verdade.

Quando no princípio deste livro prometemos cousas novas aos curiosos, bem advertimos que metíamos as armas nas mãos aos críticos; mas são estas armas já tão velhas e ferrugentas, que não há muito que temer seus golpes, ainda que a novidade da nossa História fora qual se supõe, e não é, contanto que não tenha, como por graça de Deus não tem, cousa alguma que encontre a Fé ou doutrina da Igreja. 0 reparo da novidade não é crime de que ela tema ser acusada, e pelo qual, quando o seja, ponha em risco o crédito da sua verdade, se por si mesma lhe for devida.

Pensão é muito antiga das cousas boas e grandes serem acusadas de novas. A primeira instituição da vida monástica, sendo o estado mais santo da Igreja Católica, que acusações não padeceu antigamente (e padece ainda hoje) dos hereges, pela novidade do hábito e modo de vida! Digam-no as apologias de S. João Crisóstomo, S. Gregório, S. Bernardo Santo Tomás, S. Boaventura, para que não falemos nos Waldenses, nos Platins, nos Soares, nos Barónios, nos Belarminos. A mesma Lei de Cristo chamada por sua novidade evangélica, em quantos Evros e tribunais de Gentios e Judeus foi terminada pela glória deste título! Acusação foi de que a defendeu Tertuliano, Lactancio, Arnóbio, Prudêncio, e todos os outros padres que antes e depois destes escreveram contra Gentios. Mas o maior exemplo de todos neste caso é o daquela divina obra de S. Jerônimo na versão da Sagrada Bíblia, que hoje adoptamos por canónica, tão estranhada quando nova, não por Gentios ou hereges, nem só por quaisquer católicos, senão pela maior luz da Igreja, Santo Agostinho. Quero pôr aqui as palavras deste grande e santíssimo doutor, escritas não a outrem, senão ao mesmo S. Jerônimo: De vertendis autem in latinam linguam sanctis litteris laborare te nollem [ ] aut obscura sunt, aut manifesta. Si enim obscura sunt, te quoque in eis falli potuisse creditur,- si manifesta, superfuum est te voluisse explanare quod i11is latere non potuit: «!Quanto à versão das Escrituras Sagradas na língua latina, obra é — diz o santo— em que eu não quisera que vós empregásseis o vosso trabalho, porque ou elas são escuras ou manifestas. Se escuras, com razão se crê que também vos podeis enganar na sua interpretação, como os outros escritores; e se manifestas, supérflua diligência é quererdes vós explicar o que os outros não podem deixar de ter entendido».

Até aqui zelosa, elegante e engenhosamente Santo Agostinho, ao qual respondeu S. Jerônimo com igual engenho, zelo e elegância, e verdadeiramente com vitória, por estas palavras:: Porro quod dicis non debuisse me interpretari post veteres, et novo utens syllogismo [...] tuo tibi sermone respondeo: omnes veteres tractatores, qui nos in Domino praecesserunt et qui Scripturas Sanctas interpretati sunt, aut manifesta. Si obscura, quomodo tu post eos ausus es disserere, quod illi explanare non potuerunt? Si manifesta, superfluum est te voluisse disserere, quod illis latere non potuit [...] respondeat mihi prudentia tua, quare tu post tantos ac tales scriptores et interpretes in explanatione Psalmorgm diversa senseris? Si enim obscurt sunt Psalmi, te quoque in eis falli potuisse credendum est; si manifesti, illos in eis falli potuisse non creditur, ac per hoc utroque modo superflua erit interpretatio tua, et hac lege post priores nullus loqui audebit, et quodcumque alius occupaverit, alius de eo scribendi non habebit licentiam.

«Quanto ao que me dizeis—diz S. Jerônimo a S. Agostinho — que eu me não devia cansar em interpretar as Escrituras depois dos antigos intérpretes delas, e para isso usais daquele novo silogismo, respondo com as mesmas vossas palavras: Todos os expositores dos Livros Sagrados, que nos precederam no Senhor, ou interpretaram o que era escuro, ou o que era manifesto. Se o que era escuro, como vos atreveis também a declarar o que eles não puderam? Se o que era manifesto, supérfluo trabalho é cansar-vos em querer fazer entender o que eles não podiam deixar de ter entendido. Responda-me logo vossa prudência: com razão, depois de tantos e tais intérpretes, vos atrevestes na exposição dos Salmos a sentir diversamente do que eles sentiam? Porque, se os Salmos são escuros, também se deve entender que vós vos podeis enganar na sua inteligência; e se são claros e manifestos, supérflua é e não necessária a vossa interpretação E segundo esta lei, ninguém poderá falar depois dos primeiros, e tanto que um se adiantar à exposição de algum Livro Sagrado, logo nenhum outro terá licença para escrever sobre ele.»

Isto dizia Santo Agostinho a S. Jerônimo sobre a novidade de sua versão, a qual hoje é de fé; e isto S. Jerônimo a S. Agostinho sobre a novidade da sua exposição dos Salmos, que hoje . é antiqüíssima e mui venerada, e depois dela se escreveram infinitas outras mais novas, e ainda os Salmos não estão bastantemente interpretados. Assim que os reparos da novidade são pensão (como dizia) das cousas boas e grandes, e não só entre os inimigos e impugnadores da verdade, senão entre os maiores zeladores e defensores dela.

Mas destes mesmos exemplos se convence claramente quão frívolas são e pouco eficazes as acusações do que se estranha por novo. Não é o tempo, senão a razão, a que dá o crédito e autoridade aos escritores; nem se deve perguntar o quando, senão o como se escreveram. A antigüidade das obras é um acidente extrínseco que nem tira nem acrescenta validade, e só porque põe os autores delas mais longe dos olhos da inveja, lhes granjeia a triste fortuna de serem mais venerados ou melhor conhecidos depois da morte, que vivos. As trevas foram mais antigas que o Sol e os animais que o homem. O Testamento Velho não é mais perfeito que o Novo, por ser mais antigo, nem o Novo perde a perfeição e excelência que tem sobre o Velho, por ser mais novo. Que cousa há hoje tão antiga, que não fosse nova em algum tempo? Diz Salomão que não há cousa nova debaixo do Sol; e ainda é mais universalmente certo, que não há cousa debaixo do Sol que não fosse nova. A mais nova entre todas as do Mundo foi o mesmo Mundo. Se a nossa religião é nova, argumentava Arnóbio contra os Gentios, tempo virá em que seja velha; e se a vossa superstição é velha, tempo houve em que também foi nova. Dizeis que a religião cristã é nova, porque ainda não tem quatrocentos anos, e há menos de dois mil que os deuses que vós adoráveis ainda não tinham cento. Com a mesma energia disse o imperador Cláudio ao senado: Omnia, Patres conscripti, quae nunc vetustissima creduntur, nova fuere: plebei magistratus post patricios, latini post plebeios, coeterarum Italiae gentium post latinos; inveterescet hoc quoque, et quod hodie exemplis tuemur inter exempla erit. E verdadeiramente é assim: quantas cousas são hoje exemplos que começaram sem exemplo? Todas as opiniões ou verdades que se escreveram, tiveram princípio, e aquele que as começou sem autor, foi o primeiro que lhes deu a autoridade.

Acudia S. Jerônimo à queixa da sua nova versão, e diz assim contra Rufino: Periculosum opus certe, et obtrectarorum meorum latratibus patens, qui me asserunt in septuaginta interpretum sugillatione, nova pro veteribus cudere; ita ingenium quasi vinum probantes. Discretamente; porque antepor o velho ao novo só pelos anos, escolha parece mais de cela vinária, que do trono ou cadeira de Salomão. E notem os leitores que são estas palavras de uma das apologias que S. Jerônimo escreveu em defesa daquela nova versão da Sagrada Escritura, que hoje se chama Vulgata, e é de fé católica; para que se veja quais são os juízos dos homens e quão impugnadas que costumam ser as obras de que Deus se quer servir.

Não tinha esta de S. Jerônimo outro reparo mais que a glória de ser sua e nova; mas sobre esta lhe argüía Rufino e outros homens doutos tais calúnias, que a queriam fazer não menos que herética, como se só os antigos fossem católicos e a verdade sem cãs não fosse verdade. Uns o faziam por zelo, outros por inveja, muitos por malícia, todos por ignorância.

E verdadeiramente que, se bem apontamos os fundamentos destes impugnadores d a novidade e as razões daquela dura lei com que forçosamente querem que sigamos em tudo os antigos e adoremos as suas pisadas, ou é porque têm para si que já se não podem dizer cousas novas, ou que não há capacidade nos modernos para as poderem descobrir e dizer. Se o primeiro, grande injúria fazem à verdade e às ciências; se o segundo, grande afronta aos homens e à nossa idade. Mas não me ouçam a mim, ouçam aos mesmos antigos. E começando pelos Gentios, alumiados só pelo lume da razão, Séneca, na epist. LXIV, escreve ou ensina a Lucilo desta maneira: Multum adhuc restat operis, multumque restabit; nec ulli nato, post mille secula, praecludetur occasio aliqua adhuc adjiciendi. [...] Multum egerunt, qui ante nos fuerunt, sed non peregerunt. E na epístola LXXIX:: Et qui praeesserant, non praeripuisse mihi videntur quae dici poterant, sed aperuisse; sed multum interest, utrum ad consumptam materiam, an ad subactam accedas: crescit in dies, et inventum inventa non obstant. E Marco Túlio, formando um perfeito orador no livro Orator: Nec vero Aristotelem in philosophia deterruit a scribendo amplitudo Platonis, nec ipse Aristoteles admirabili quadam scientia et copia caeterorum studia restrinxit

Até aqui estes dois gentios, em que era ainda maior a soberba e presunção que a ciência. E se estes, sendo ambos eminentíssimos nas suas artes não duvidaram confessar que havia ainda muito mais que andar, que inventar, que descobrir e saber nelas, porque havemos nós de esperar e afrontar tanto a nossa idade e os homens dela, que cuidemos que já não podem adiantar as ciências nem dizer e acrescentar sobre elas cousa de novo?

Sêneca floresceu nos tempos de Nero, que vem a ser, por boas contas, dezesseis séculos antes deste nosso; e se ele conheceu que os que nascessem de ali a mil séculos, ainda teriam muito que dizer na mesma filosofia moral em que ele tanto e tão sutilmente disse, que muito é que se atreva a dizer alguma cousa nova a nossa idade, se ainda lhe restam por sua confissão novecentos e oitenta e quatro séculos (se tantos durar o Mundo) para dizer e inventar muito de novo sobre o mesmo Sêneca? Se depois do divino Platão (como pondera Túlio) não acovardaram os seus escritos a Aristóteles para que não escrevesse, nem a admirável sabedoria e cópia do mesmo Aristóteles pôde apagar os fogosos espíritos de tantos filósofos que depois dele e sobre ele escreveram, sendo por comum aprovação do Mundo um dos maiores engenhos que produziu a Grécia e a mesma natureza, porque havemos de querer abreviar as mãos do Autor dela e cuidarmos que já não podem falar de novo os homens presentes, e só lhes damos licença para decorarem e repetirem o que disseram os passados? Se assim fora, debalde nos deu Deus o entendimento, pois nos bastava a memória. Porque, como bem disse o mesmo Sêneca, saber só o que os Antigos souberam, não é. saber, é lembrar-se: Aliud est meminisse, aliud scire. Meminisse est rem commissam memoriae custodire; at contra scire, est et sua facere quemque, nec ab exemplari pendere, et toties ad magistratum respicere.

Estes tais haviam de ter a testa virada para as costas, como dizem os Italianos dos Alemães, que todos se ocupam na erudição do passado, sem descobrir nem inventar cousa nova. Muito alcançaram os Antigos, e se lhes deve o primeiro louvor; mas ainda nos deixam seus grandes talentos em que exercitar os nossos.

E se isto é assim nas ciências humanas, que será naquele pego imenso e profundíssimo das divinas) Mas ouçamos também aos antigos delas.

David que veio ao mundo 3000 anos depois de sua criação, dizia confiadamente, que soubera e entendera mais que todos os velhos: Super senes intelexi; e estes velhos eram aqueles varões veneráveis da primeira antigüidade — Seth, Enoch, Mathusalem, Noe, Abraão, Isaac Jacob, José, Moisés Josué, Melquisedech, Samuel e tantos outros de igual sabedoria e nome. Desde a criação do Mundo até a reparação dele, em que se contaram quatro mil anos, sempre os homens se foram excedendo na sabedoria divina, ainda que fossem diminuindo na idade. Não é consideração minha, senão doutrina de S. Gregório, Papa: Per incrementa temporum crevit scientia spiritualium Patrum; plus namque Moyses quam Abraham, plus Prophetae, quam Moyses, plus A postoli, quam Prophetae in Omnipotentis Dei scientia eruditi sunt: «Ao passo que iam procedendo os tempos —diz S. Gregório— ia juntamente crescendo a sabedoria dos antigos Padres, conhecendo sempre mais de Deus os segundos que os primeiros. Moyses soube mais das cousas divinas que Abraão; os Profetas mais que Moysés; os Apóstolos mais que os profetas». E o mesmo que tinha sucedido naquela primeira e antiga igreja, se experimenta depois na segunda, nova e mais perfeita em que hoje estamos, de que ela tinha sido figura, porque, passados os tempos de Cristo e de sua vida, em que a sabedoria eterna viveu humanada no Mundo entre os homens (que foi um parêntesis excessivo e infinito de luz, com o qual nenhum outro estado da Igreja se pode comparar), nos séculos que depois foram sucedendo, dos Padres e Doutores sagrados, sempre foram também crescendo, com novos e maiores resplendores, as ciências divinas, acrescentando, ilustrando e escrevendo muitas cousas de novo os que vinham depois, sobre o que tinham sabido e ensinado os mais antigos.

Lactancio Firmiano, Padre dos primeiros séculos da Igreja, a quem tinham precedido os Dionisios Areopagitas, os Hieroteus, os Inácios, os Policarpos, os Ireneus, os Justinos, os Orígenes, os Tertulianos, os Clementes Alexandrinos, no Liv. II: Divinarum Institutionum, diz assim: Nec qui nos illis temporibus antecessunt;quae si hominibus aequaliter datur, occupari ab antecedentibus non potest. S. Jerônimo, que floresceu muito depois do mesmo Lactancio e a quem prece deram os Hipólitos, os Ciprianos, os Taumaturgos, os Arnóbios, os Atanásios, os Basílios, os Teófilos, os Cirilos, os Epifânios, aumentou e adiantou tanto o estudo das divinas letras, que mereceu na eminência delas, por consenso e pregão universal da igreja, o renome de doutor Máximo, na Apologia acima citada , contra Rufino, escreve o santo Doutor com a modéstia com que costumam falar os homens maiores, estas palavras: Quid igitur? Damnamus veteres? Minime; sed post priorum studia in domo Domini, quod possumus, laboramus. E convertendo-se no fim contra os vituperadores dos inventos novos, estranha muito que, sendo o apetite ou gula humana tão ambiciosa de novos e esquisitos sabores, só nas ciências, que são o sabor dos entendimentos se contentam os homens com a vulgaridade ou velhice dos manjares usados: Nam cum nova semper expectant voluntates, et gulae earum vicina maria non sufficiant, cur in solo studio scripturarum veteri sapore contentis sunt ?

São Gregório Magno, que veio ao Mundo para lhe dar melhor cabeça do que seu juízo e errados juízos merecem, depois dos outros dois Gregórios, Nazianzeno e Niceno, e do mesmo Jerônimo- depois dos Clímacos, dos Procópios, dos Boécios, dos Cassianos, dos Teodoretos; depois dos Euquérios, dos Pascásios, dos Máximos, dos Paulinos, dos Cassiodoros; depois dos Hesíquios, dos Crisólogos, dos Leões, dos Atanásios, dos Fulgêncios, e, o que é mais que tudo, depois de um Crisóstomo, de um Ambrósio e de um Agostinho, penetrou tão alta mente o espírito interior da Teologia Mística e Ascética, que por aplauso comum do Concílio oitavo toletano foi preferido a todos os Doutores na doutrina ética e moral, com aquele famoso elogio: In ethicis assertionibus praecunctis merito praeferendus.

Mas nem por isso depois de tantos e tão esclarecidos lumes da Igreja deixaram de espalhar nela, em todos os séculos seguintes, novos raios de novas luzes os três ilustríssimos espanhóis — Isidoro, Eugenio e Ildefonso; os Sofrónios, os Elísios, os Bedas, os Damascenos, os Anselmos, os Teofilatos, os Eutímios, os Rupertos, um Bernardo, nome singular, e muitos outros; entre os quais Ricardo Vitorino, defendendo modestamente alguma novidade que se acharia em seus livros, diz assim no prólogo de um deles: Non est magnum, vel mirum, si in uno aliquo, aliquid addere possumus [...] haec propter illos dicta sunt, qui nihil acceptant, nisi quod ab antiquissimis patribus acceperunt; sed sicut Deus produxit novos fructus ad recreationem hominis exterioris, non credunt scientias impertiri ad innovandos sensus hominis interioris: «Não se tenha por cousa grande — diz Ricardo — nem merecedora de admiração, que em alguma matéria das que escrevemos, possamos acrescentar alguma cousa de novo; e digo isto por aqueles que nada admitem nem lhes é aceito, senão o que primeiro foi recebido pelos antiquíssimos Padres. Mas se Deus para sustento e gosto dos corpos, produz inacessivelmente todos os anos tantos frutos novos, porque não cuidarão que também as ciências podem produzir cousas novas para alimento e recreação das almas?»

Não se podia explicar com mais clara comparação nem provar-se com mais eficaz argumento, e desde aquele tempo, que foi pelos anos de mil e trezentos a esta parte, se tem confirmado pela grandeza e liberalidade de Deus em todos os séculos, com mais repetidos exemplos que nos passados, porque não só alumiou a Divina Providência pouco depois o Mundo todo com aquelas duas tochas claríssimas e santíssimas de teologia — Santo Tomás e São Boaventura — mas antes e depois deles, para aumento ou competência de suas mesmas luzes, as cercou de tão luminosas e resplandecentes estrelas, que em outra idade podiam ter nome de primeiros planetas, como foram um Alberto Magno, um Alexandre de Ales e o famosíssimo e subtilíssimo Scoto, não só luz, senão fonte de luzes; as quais depois deste doutíssimo século se multiplicaram em tanto número, que se pode com razão dizer do Mundo o que Deus disse a Abraão do firmamento: Numera stellas, si potes.

E porque é matéria impossível e número sem conto, fiquem em silêncio (por mais que tão grande brado deram nas escolas) os Vasques, os Soares, os Molinas, os Valenças, os Belarminos, os Canísios, os Toledos, os Lugos, os Caetanos, os Soutos, os Medinas, os Vitórias, em cujos felicíssimos e imensos escritos se vêem tão adiantadas as letras divinas, que mais parecem novas que renovadas.

Digam agora os reprovadores das que eles chamam novidades, se se pode ainda sobre os Antigos dizer alguma cousa de novo.

É porventura o saber e dizer patrimônio só da Antigüidade e morgado como o de Isaac que, dada a bênção a Jacob, não fica outra para Esau? São os antigos como os cântaros da Sareftana (comparação de que usa Ruperto) que, depois de cheios eles, parou a fonte milagrosa, e não correu mais o óleo? Houve neste grande oceano de ciências alguma nau Vitória que desse volta a todo o mar? ou algum Gama que, passado o cabo de Boa Esperança, a tirasse a todos os outros de novos descobrimentos? E se depois deste famoso círculo do Universo, ainda ficaram mares e terras incógnitas que prometem novas empresas e novos argonautas, que será na esfera da sabedoria e da verdade, cuja imensa e infinita circunferência só a pode abraçar 0 que é imenso e compreender O que é infinito? Se depois dos antiquíssimos tiveram que descobrir os menos antigos, e depois dos que já não eram os primeiros, tiveram que inventar mais que os segundos, porque não quererão os adoradores ou aduladores da Antigüidade que, ainda depois de tanto dito, haja mais que dizer, e depois de tanto escrito, mais que escrever, e depois de tanto estudado e sabido, mais que estudar e saber?

Como temo que os que condenam as cousas novas, são aqueles que não podem dizer senão as muito velhas, e pode ser que muito remendadas! O avarento chama pródigo ao liberal. O covarde temerário ao valente. O distraído hipócrita ao modesto; e cada um condena o que não tem, por não confessar o que lhe falta. O grande P.e Soares, que tanto tinha em si do que os Antigos souberam, dizia que daria de alvíssaras o que sabia, se lhe dessem o que ignorava, isto é, o que ficou aos vindouros para poderem saber e dizer de novo; mas querer precisamente que nos atemos em tudo aos passados, é querer atar os vivos aos mortos, crueldade que só se lê de Mezêncio.

Fechemos este discurso, ou adocemos a dureza deste rigor com o melífluo Bernardo, o qual, como sempre falou pela boca da Escritura, assegura firmemente aos vindouros que poderão ter maiores notícias das cousas, do que tiveram e alcançaram os Antigos, e o prova e refere em dois textos ou dois exemplos: um de David, que afirmou que soubera mais que os passados; outro de Daniel, que prometeu saberiam mais os futuros: David quoque super doctores suos et seniores donum sibi intelligentiae audacter praesumit, dicens: Super omnes docentes me intellexi. Sed et propheta Daniel: pertransibunt, ait plurimi et multiplex erit scientia, ampliorem scilicet rerum notitiam promittens et ipse posteris.

Até aqui São Bernardo, escrevendo a Hugo de São Vítor, que também lhe tinha escrito lastimado da mesma chaga. Todos os grandes engenhos tiveram sempre esta queixa, e todos se armaram destas apologias, porque todos disseram cousas novas; e nenhum careceu de quem lhas impugnasse. Não ha cousa boa sem contradição, nem grande sem inveja:

...Che come crebber l'arti,
Crebbe l'invidia; e col sapere insieme
Ne' cuori enflati i suoi veneni sparti.

Mas antes de Petrarca o tinha dito em Roma o nosso discreto espanhol:

Esse quid hoc dicam, vivis quod fama negatur,
Et sua quod rarus tempora lector amat?
Hi sunt invidiae nimirum, Regule, mores,
Praeferat antiquos semper ut illa novis.
Si veterem ingrati Pompeii quaerimus umbram
Et laudant Catulli vilia templa senes
Ennius et lectus salvo tibi, Roma, Marone
Et sua riserunt saecula Maeonidem.

Os que mais queriam louvar a Cristo, diziam que era um dos Profetas antigos, sendo ele a luz de todos os Profetas, e Herodes se persuadia que não podia ser senão o Baptista ressuscitado, sendo aquele a quem o Baptista não era digno de desatar a correia do sapato. Todas as cousas novas que se disserem nesta História, são aquelas que Deus tem prometido que há-de fazer, quando disse: Ecce nova facio omnia. Se acaso houver quem as impugne e contradiga, porque nem Deus pode fazer cousa de novo, sem contradição dos mesmos para quem as faz. A cousa mais nova que Deus fez no Mundo, foi aquela de que disse o Profeta: Creavit Dominus novum super terram: faemina circumdabit virum. E esta novidade foi o alvo das maiores contradições, como também predisse outro profeta: ...signum cui contradicetur.

Mas para que não pareça que defendo as cousas novas, por não ser necessário este escudo à minha História respondendo à objeção da novidade dela, digo que em toda essa novidade, com ser tão grande, nenhuma cousa direi de novo. Propriedade é dos futuros serem sempre novos todos, por isso os últimos e mais distantes se chamam novíssimos; mas ainda que esta História seja toda de cousas tão novas, nem por isso ela será nova. :Ê uma História nova sem nenhuma novidade, e uma perpétua novidade sem nenhuma cousa de novo; como isto possa ser. explicarei por alguns exemplos.

Quando os Romanos a primeira vez bateram os muros de Cartago com o aríete ou carneiro militar, ficaram os Cartagineses assombrados com a novidade daquela máquina, e não era novidade, senão esquecimento; porque os primeiros inventores daquele bravo instrumento tinham sido os mesmos Cartagineses; mas como havia muitos anos que gozavam da altíssima paz, esquecia-se Cartago do que inventara Cartago, e sendo cousa antiga e sua, a tinha por novidade.

Quero dizê-lo com palavras do grande Tertuliano, cuja foi esta advertência: ...arietem [...] nemini umquam adhuc libratum, illa dicitur Carthago studiis asperrima belli, prima omnium armasse in oscillum penduli impetus [...] cum autem ultimarent tempora patriae, et aries jam romanus in muros quondam suos auderet stupuere illico Carthaginienses, ut novam extraneum ingenium. Tantum aevi longinqua valet mutare vetustas. De maneira que o aríete, de que Cartago tinha sido a primeira inventora, parecia instrumento novo aos mesmos Cartagineses, não por novo, senão por esquecido; não por novo, senão por muito antigo.

Muitas novidades se verão nesta nossa História não novas por novas, senão novas por antiquíssimas. As pirâmides e obeliscos que assombraram com tão nova e desusada grandeza o foro romano (com boa vénia dos Padres Conscritos), depois de serem velhice no Egito, foram novidade em Roma. Serão novas neste nosso livro cousas que foram primeiro que as que hoje se têm por antigas. A nova opinião dos céus fluidos, também recebida em nossos dias, primeiro foi que a antiga de Aristóteles, que com tão continuado aplauso do Mundo os fez sólidos e incorruptíveis.

Nas ciências nascem poucas verdades; as mais delas ressuscitam. Se no Mundo, como pouco há dizia Salomão, não há cousa nova, como se vêem cada dia tantas novidades no Mundo? São novidades de cousas não novas, e tais serão as desta História.

Quando Adão saiu flamante das mãos de Deus, abriu os olhos, e viu tanta cousa nova, e todas eram mais antigas que ele. Nem eram elas as novas; ele era o novo. A novidade da nossa História há-de ser mais dos leitores que dela. Para aquele cego de seu nascimento, a quem Cristo abriu os olhos, ainda que não eram novas as quantidades, porque as apalpava, foram novas as cores, porque as não via; já havia cores e luz, mas não havia olhos. Ao terceiro dia da criação produziu a terra todas as árvores carregadas dos seus frutos. Se não fora assim, não tivera ocasião o preceito, nem tentação o pecado. Todos os frutos nasceram igualmente naquele dia. as pêras, os figos, as uvas e também as frotas novas; mas estas tiveram este nome, porque chegaram mais tarde à nossa terra.

Porventura aquela metade do Mundo a que chamavam quarta parte, não foi criada juntamente com Ásia, com África e com Europa? E contudo, porque a América esteve tanto tempo oculta, é chamada Mundo Novo; novo para nós, que somos os sábios; mas para aqueles bárbaros, velho e muito antigo. Assim que, recolhendo todos estes exemplos, umas cousas faz novas o esquecimento, porque se não lembram. outras a escuridade, porque se não vêem; outras a ignorância, porque se não sabem; outras a distancia, porque se não alcançam. outras a negligência, porque se não buscam; e de todas estas novidades sem novidade, haverá muito nesta nossa História. Lembraremos nela muitas cousas esquecidas, alumiaremos muitas escuras, descobriremos muitas ocultas, poremos à vista muitas distantes e procuraremos saber muitas ignoradas.

E por não deixarmos sem juízo a controvérsia disputada entre as cousas novas e as velhas, certamente entre umas e outras não se pode dar regra certa. O tempo umas cousas melhora e outras corrompe: ouro velho, vinho velho, amigo velho; casa nova, navio novo, vestido novo. A velhice no ouro é preço, no vinho madureza, no amigo constância, no vestido pobreza, no navio e na casa perigo; absolutamente nas cousas que se consomem com o tempo, melhores são as novas.

Mais defendida está Roma com os muros de Urbano, que com os de Beluário; uns se conservam pelo que foram, outros pelo que são; em uns se admira a antigüidade, em outros se logra a fortaleza. A verdade e as ciências, em que não tem jurisdição o tempo, impropriamente se chamam novas ou velhas, porque sempre são, sempre foram e sempre hão-de ser as mesmas, posto que nem sempre se conhecem igualmente. De Deus, que por essência é sabedoria e verdade, disse Tertuliano judiciosamente que nem é velho nem novo, mas verdadeiro: ...germana divinitas nec de novitate nec de vetustate, sed de sua veritate censetur. E como a verdade da nossa História toda (como vimos) tenha o seu princípio em Deus, pedimos aos que a lerem que, assim no certo como no provável, nem se atenda se é velho, nem se repare se é novo, mas só se considere se é ou pode ser verdade: Nec de novitate nec de vetustate, sed de sua veritate censeatur. E quanto ao louvor que renunciamos facilmente, ainda que o merecêramos, digo com indiferença o que ensinou Cristo: ...scriba doctus [...] profert de thesauro suo nova et vetera: «Os doutos quando escrevem, tiram do seu tesouro as cousas novas e mais as velhas. Saber as velhas e inventar as novas, isto parece que é ser douto. Mas notou Santo Agostinho que não disse Cristo as velhas e as novas, senão as novas e as velhas, dando o primeiro lugar às novas, porque as avaliou a suma justiça pelo merecimento e não pelo tempo: Non dixit vetera et nova, quod utique dixisset, nisi maluisset meritorum ordinem servare, quam temporum. As cousas velhas são do tempo, as novas do merecimento; porque as velhas são alheias, as novas nossas.

Todos dizem que os Antigos merecem maior louvor, e é assim; mas este louvor, se bem se considera, não é elogio da antigüidade, senão da novidade. Merecem maior louvor os Antigos, porque foram os primeiros inventores das cousas; logo da novidade é o louvor, pois o mereceram, quando as descobriram de novo. Se fora outro o autor desta História, folgara eu que se pudera dizer dele com Vincêncio Lirinense: Per te posteritas gratulatur intellectum, quad ante vetustas non intellectum venerabutur.

Ainda que o nosso intento é seguir em quanto nos for possível as pisadas dos antigos Padres, como Padres e lumes da Igreja, depois dos Apóstolos (os quais não entram nesta controvérsia, porque em tudo o que escreveram foram alumiados pelo Espírito Santo, e segui-los como havemos de seguir em tudo, não é só obséquio e piedade, senão obrigação e respeito); e posto que o nosso desejo fora levar sempre diante dos olhos esta segunda tocha, para alumiar e penetrar com sua luz, como dizíamos, o escuro das profecias; contudo, porque não é nem será possível seguir em algumas cousas das que dizemos ou dissemos este nosso intento e desejo, pede a razão e ordem da mesma Escritura que, antes de passar mais adiante, desfaçamos este reparo, para o que os menos doutos ou mais escrupulosos não topem nele e levem desde logo entendidas as causas do que fizermos e os fundamentos, licença ou autoridade com que o fazemos. Ver-se-á em algumas partes desta História, que ou não alegamos Padres antigos, ou nos desviamos da explicação que deram a alguns lugares da Escritura, o que não fazemos senão com grandes razões, sem ofensa da reverência que lhes devemos nem da verdade que seguimos, antes para maior segurança e fundamento dela, a qual é o nosso intento e obrigação buscar e descobrir adonde quer que se ache, antepondo este respeito a qualquer outro, pois à verdade se deve o maior de todos.

As razões que nos movem e obrigam são três: a primeira, porque os Doutores antigos não disseram tudo; segunda, porque não acertaram em tudo; terceira, porque não concordam em tudo. E com qualquer destes casos nos pode ser. não só lícito e conveniente, senão ainda necessário seguir o que se julgar por mais verdadeiro; porque nas cousas que não disseram, é forçoso falar sem eles; nas cousas em que não acertaram, é obrigação apartar deles; e nas cousas em que não concordaram, é livre seguir a qualquer deles; e também será livre e lícito deixar a todos, se assim parecer, como logo explicaremos.

Prova-se a primeira razão editar

Primeiramente é certo que os Padres antigos não disseram tudo, e se prova claramente com a experiência e lição de seus próprios livros, nos quais se não acha memória de muitas cousas grandes e doutas, achadas e acrescentadas depois, não só nas outras ciências divinas, mas na inteligência das mesmas Escrituras Sagradas, e particularmente nas dos profetas, que nos tempos mais chegados a nós se descobriram, disputaram e entenderam como se lêem nos escritores modernos; e posto que para os 5 versados na lição de uns e outros bastava esta suposição somente apontada, porei aqui para os demais as palavras de dois grandes doutores, Castro e Canísio, ambos do século antecedente a este nosso, e ambos diligentíssimos investigadores da antigüidade e doutíssimos na erudição da Escritura, Concílios e Padres, os quais expressamente afirmam que muitas cousas se sabem e entendem hoje que foram ignoradas dos Padres antigos, como fala Castro ou incógnitas a eles, como mais certamente diz Canisio.

As palavras deste segundo, no livro primeiro De Beata Virgine, cap. VII, são as seguintes: Demum habuerint Patres suorum temporum rationem quibus multa vel prorsus incognita erant, vel obscura neque satis evoluta, quae posteris diligentius excutienda, et clarius illustranda, explicandaque non sine certo Dei consilio reliquebantur... E Castro, no Liv. I Adversus haereses, cap. II, depois de provar o mesmo com o lugar do cap. VI dos Cantares, que abaixo citaremos, conclui assim: Quo sit, ut multa nunc sciamus, qae, a primis Patribus aut dubitata, aut prorsus ignorata fsuerunt. A qual diferença se não conheceu só com a comprida experiência dos nossos tempos, senão já nos mesmos Padres se conhecia, como muitos deles escreveram, e particularmente entre os da primeira idade, Tertuliano, e entre os da última Ricardo Vitorino, cujas palavras de ambos referiremos neste mesmo capítulo.

A razão de muitas cousas que hoje se sabem serem incógnitas aos Padres antigos, se pode considerar, ou da parte de Deus, ou da parte das mesmas cousas. Da parte das mesmas cousas, nos não devemos admirar que lhes fossem incógnitas, por serem muitas delas dificultosas, escuras e mui recônditas nas Escrituras Sagradas e enigmas dos profetas, as quais se não podiam entender e penetrar só com a agudeza dos entendimentos, por sublimes e sublimíssimos que fossem, em quanto não estavam assistidos de outras notícias e circunstancias, que só se descobrem com o tempo e adquirem com larga experiência.

Excelente exemplo é nesta matéria o das ciências é artes, ainda naturais, as quais em seus princípios e rudimentos foram imperfeitas, e com os anos, experiência e exercício se vêem hoje sublimadas a tão eminente perfeição, como a náutica, a bélica, a música a arquitetura, a geografia, a hidrografia e todas ás outras matemáticas, e muito em particular a cronologia, de que neste mesmo capítulo falaremos. E assim como estas mesmas ciências e artes cresceram e se apuraram muito com o socorro e aparelho de esquisitos instrumentos, que nelas se inventaram, como foi na náutica o astrolábio, a agulha e o admirável segredo da pedra de cevar. e na bélica o terribilíssimo e subtilíssimo invento da pólvora, que deu alma e ser a tantos e tão notáveis instrumentos de guerra, assim também puderam crescer e aumentar-se muito as ciências divinas e chegar à perfeição e eminência em que hoje se vêem com os instrumentos próprios delas, que é a multidão de livros espalhados e facilitados por todo o Mundo pelo beneficio da impressão, com que a doutrina e ciência particular dos homens insignes se faz comum a todos em tão distantes lugares, não sendo menor a comodidade dos mestres, que são instrumentos vivos das ciências, no concurso de tantas e tão diversas universidades, teatros e oficinas públicas de toda a sabedoria; comodidade de que no tempo dos Padres se carecia, sendo necessário ao Doutor Máximo, São Jerônimo, como ele mesmo escreve, copiar com imenso trabalho os livros por sua própria mão e peregrinar à Grécia à Palestina, ao Egipto e às Gálias para recolher os escritos de S. Hilário, ouvir a S. Gregório Nazianzeno, a Dídimo e aos mestres mais peritos na língua hebraica; inconvenientes que só podia vencer e contrastar um tão alentado espírito e zelo de servir à Igreja, como do grande Jerônimo, digno tanto de imortal louvor pela eminência de sua sabedoria, como pelos gloriosos trabalhos e suores com que a adquiriu e conquistou.

Da parte dos mesmos Padres se deve igualmente considerar, que deixaram de especular e dizer muitas cousas de grande importância que depois se souberam e escreveram, porque se acomodaram à necessidade dos tempos em que viviam. Todo o intento dos Padres antigos era provar a verdade da encarnação do Filho de Deus e o mistério de sua cruz, a qual na cegueira dos Judeus (como diz S. Paulo) se reputava por escândalo e na ignorância dos Gentios por estultícia. E como esta era a guerra e a conquista daqueles tempos, todas armas da Sagrada Escritura se forjavam e acostavam contra esta resistência, e por isso os primeiros Padres e seus sucessores nenhuma cousa buscavam nos Livros Sagrados, não só proféticos, senão ainda nos históricos, mais que os mistérios de Cristo. É bom testemunho desta verdade o que diz Ruperto a Tristérico, arcebispo coloniense, do prólogo dos seus Comentários sobre os Profetas menores: Scito me Pater mi sicut in caeteris Scripturis, ita et in volumine duodecim Prophetarum operam dedisse, ad quaerendum Christum. E como isto é o que só buscavam para escrever, isto é o que só achavam ou o que só escreviam, seguindo os sentidos alegóricos e místicos e deixando ou insistindo menos nos literais, como se vê ordinariamente em todas as exposições dos Padres, que todas se empregam na alegoria, tocando muitas vezes só leve e superficialmente a letra, e talvez não sem alguma impropriedade e violência.

Assim o notaram entre os mesmos Padres alguns mais modernos que antigos e outros menos antigos que antiqüíssimos: dos primeiros, é Ricardo de São Vitor, contemporâneo de S. Bernardo, no Prólogo sobre o Profeta Ezequiel, onde confessa que se aparta de São Gregório, por se não chegar ao sentido literal do texto; dos segundos, é o mesmo São Gregório, Padre do sexto século depois de Cristo, no Proémio sobre o Livro dos Reis, onde diz que lhe foi necessário em algumas partes não seguir os Padres mais antigos, por não faltar ao fio conseqüência e verdadeira interpretação da história.

As palavras de São Gregório não refiro aqui, porque terão seu lugar mais abaixo; as de Ricardo depois de referir com os antigos Padres ocupavam seu estudo principal na alegoria, são estas: Hinc contigisse arbitror, ut litterae expositionem is obscuriobus quibusdam locis antiqui Patres tacile praeterirent, vel paulo negligentius tracterent, qui si plenius insistirent, multo perfectius procul dubio quam aliqui ex modernis, id potuissent. Quer dizer que os Padres antigos, por aplicarem toda a sua industria e engenho no sentido alegórico das Escrituras, ou passaram totalmente em silêncio, ou trataram menos diligentemente alguns lugares mais escuros delas, sendo certo, segundo eram dotados de altíssimos engenhos e enriquecidos de muita ciência e erudição, que, se insistissem no sentido genuíno e literal do texto, o poderiam conseguir mais perfeitamente que qualquer dos modernos.

De maneira que, segundo a verdade desta advertência, vem a ser a diferença entre os Padres antigos e os comentadores modernos das Escrituras, a mesma que houve naqueles dois homens do Evangelho, ambos ricos e venturosos: um que achou o tesouro e deu quanto tinha por comprar o campo em que ele estava; outro que, buscando so margaritas e achando uma preciosíssima, empregou também nela quanto tinha. Os Padres antigos, que buscavam só nas Escrituras a Cristo e nesta preciosíssima margarita empregavam todo o cabedal do seu estudo, os modernos, que se não determinam no tesouro das Escrituras a um só gênero de riquezas, acham, além da mesma margarita, muitas outras pedras também preciosas, e tiram daquele tesouro (como dizia Cristo) nova et vetera, riquezas novas e velhas: as velhas, que são as notícias das verdades já passadas; as novas, que são o conhecimento das outras futuras.

Finalmente se deve considerar este silêncio das cousas que não disseram os Padres, da parte de Deus, o qual com particular providência não quis que eles por então as soubessem e escrevessem, para que a Igreja, nossa mãe, se parecesse com seu Esposo, e, conforme os anos e idade, fosse também crescendo em luz e sabedoria. Assim o notou, além de muitos outros teólogos, o mesmo Canísio, continuando o lugar acima citado: Quae posteris diligentius excutienda et clarius illustranda explicandaque, non sine certo Dei consilio relinquebantur non vero homini tantum, sed etiam Ecclesiae Christi tempus auget sapientiam, et Spiritus Sanctus aliam atque aliam doctrinae lucem patefacit

No cap. VI dos Cantares, onde o Esposo é Cristo e a esposa a Igreja estão profetizados os progressos que ala havia de ter, e se comparam com extremada propriedade à luz da aurora: Quae est ista , quae progreditur, quasi aurora consurgens? Porque assim como a aurora nasce das trevas da noite e começa na primeira luz, e nela vai sempre crescendo de menor para maior claridade assim a Igreja, nascida nas trevas da ignorância e infidelidade começou em menos luz de sabedoria e vai sempre crescendo e aumentando-se mais e mais de resplendor, de claridade, que são os termos que usa S. Paulo na Segunda epístola aos Coríntios:Nos vero omnes, revelata facie, gloriam Domini speculantes, in eamdem imaginem transformamur a claritate in claritatem. Fala o Apóstolo do véu da infidelidade com que os Judeus têm cobertos os olhos para não ver a Cristo, e diz que se compõe a Igreja, tirado pela Fé aquele véu, com os olhos abertos e desempedidos por meio da própria especulação e estudo, imos crescendo de claridade em claridade, não já passando das trevas à luz, senão de uma luz para outra, sempre maior e mais clara, transformando-se por este modo a Igreja na imagem do seu mesmo Esposo, Cristo. Porque, assim como Cristo, posto que sua sabedoria foi sempre igual e a mesma (em quanto Deus infinita e em quanto homem consumadíssima), contudo, nos atos exteriores e manifestação dela ao Mundo, a não mostrou toda junta, senão que a foi dispensando por partes, crescendo sempre nela ao passo que ia crescendo nos anos, como diz o evangelista São Lucas: Proficiebat sapientia et aetate; assim a Igreja, que é o corpo místico do mesmo Cristo, transformando-se na sua imagem e retratando-se nele e por ele, vai sempre crescendo mais e mais na luz e na sabedoria, à medida que cresce nos anos e na idade: Crescat igitur oportet, et multum vehementerque proficiat, tam singulorum quam omium, tam unius hominis quam totius Ecclessiae, aetatum ac saecolorum gradibus intelligentia, scientia, sapientia — disse doutamente Vincencio Lirinense.

De sorte que vai crescendo a inteligência, a ciência e a sabedoria pelos mesmos graus do tempo com que vão passando os anos, os séculos e a idade, e isto não só na Igreja universal e em comum, senão nos homens e doutores particulares, que são os membros de que o seu corpo e os raios de que a sua luz se compõe. Donde se deve reparar e advertir (cousa que devera já estar mui notada e advertida) que os Doutores antigos e mais velhos, própria e rigorosamente falando, não são os passados, senão os presentes; nem aqueles que vulgarmente são chamados os antigos, senão os que hoje e nos tempos mais chegados a nós se chamam modernos Porque assim como nos anos de Cristo houve infância, puerícia e adolescência, e depois idade perfeita, assim nos anos e duração da Igreja há a mesma distinção e sucessão de idades, com que o corpo místico dela vai crescendo e aumentando-se sempre mais, até chegar a encher a perfeição ou medida da mesma idade de Cristo, como expressamente disse São Paulo, falando dos mesmos Doutores:..alios autem pastores et doctores. ad consummationem sanctorum in opus ministerii, in aedificationem corporis Christi donec occurramus omnes in unitatem fidei et agnitionis Filii Dei, in virum perfectum in mensuram aetatis plenitudinis Christi. Donde segue que os Doutores da infância, da puerícia e da adolescência da Igreja foram os modernos e da ciência moderna; e os Doutores da idade maior e mais provecta da Igreja são os mais velhos e mais antigos, e da ciência mais antiga, porque a Igreja não se compõe das paredes mortas, senão dos membros vivos; nem foi crescendo dos nossos anos para os primeiros, senão dos primeiros para os nossos. E seria não só contra a ordem da natureza, senão contra a decência da mesma idade, que não fosse mais sábia a Igreja nos maiores anos, do que tinha sido nos menores.

Dizem contra isto os hereges (como notou Banhes) que a Igreja não está hoje mais alumiada, senão cada vez menos; e do mesmo Sol tiram o argumento desta cegueira.

argumento desta sua cegueira. Dizem que Cristo é o sol da Igreja e aquela primeira verdadeira luz: quae illuminat omnem hominem venientem in hunc mundum, e que, quanto mais se vão apartando os nossos tempos do tempo em que Cristo viveu entre os homens, tanto os raios da sua luz são mais tênues, mais escassos e menos intensos; bem assim como a luz do Sol material, e qualquer outra, alumia e quenta mais aos que lhe ficam mais vizinhos e menos aos que estão mais remotos e mais distantes.

Mas a aparência desta razão é tão falsa como todas as de seus autores; porque ainda Cristo corporalmente se apartou dos homens, espiritualmente e por particular e invisível assistência sempre ficou com eles e os assistirá (dentro porém da sua Igreja) ate o fim do Mundo, como prometeu a todos os verdadeiros discipulos de sua doutrina quando lhes disse: Ecce ego vobiscum sum usque ad consummationem saeculi.

Também deixou em seu lugar, por segundo mestre de sua escola, ao Espírito Santo, igualmente Deus como ele, o qual, com a mesma e não diferente luz, não só alumia a Igreja com os mesmos resplendores da verdade, mas, segundo a disposição de sua providência, os vai descobrindo maiores a seu tempo, ensinando e declarando aquelas ocultas e altíssimas verdades, que por menos capacidade dos discípulos deixou Cristo de lhas dizer, quando por si mesmo os ensinava; dizendo-lhes porém, (para: que o Judeu não duvide da assistência do Espírito Santo à Igreja e cabeça dela), que o Espírito lhas ensinaria: Adhuc multa habeo vobis dicere: sed non potestis portare modo. Cum autem venerit ille Spiritus veritatis, docebit vos omnem veritatem.

E porque a perfídia herética se nos não queira acolher por pés, (como imprudentemente fazem ainda em lugares igualmente claros de outras Escritas) fugindo para os tempos antigos, em que eles confessam que a Igreja esteve verdadeiramente alumiada, ouçam ao antiquíssimo Tertuliano:

Regula quidem fidei una omnino est. sola immobilis et irreformabilis [...] Haec lege fidei manente, caetera iam disciplinae et conversationis admittunt novitatem correctionis, operante scilicet et proficiente usque in finem gratia Dei. Quale est enim ut diabolo semper operante et adjiciente quotidie ad iniquitatis ingenia opus Dei aut cessaverit, aut proficere destiterit, cum propterea Paracletum miserit Dominus, ut quoniam humana mediocritas omnia semel capere non poterat, paulatim dirigeretur, et ordinaretur, et ad perfectum produceretur disciplina, ab illo Vicario Domini Spiritu Sancto [...] Quae est ergo Paracleti administratio nisi haec quod disciplina dirigitur, quod Scripturar revelantur, quod intellectus reformatur,quod ad meliora proficitur.?

Não me detenho em romancear as palavras; porque isso em suma tudo o que até agora temos dito; são em suma tudo o que até agora temos dito; só peço se pondere aquela nova e bem achada razão de Tertuliano: Quale est enim ut diabolo semper operante, et adjiciente quotidie ad iniquitatis ingenia, etc

Se o Demônio sempre obra e não desiste de acrescentar cada dia novos erros e novos enganos com que impugnar, e novas: trevas com que diminuir e escurecer a luz da. verdade e resplendor da Igreja, como havia o Espírito Santo de cessar em acrescentar sempre nela novas:luzes contra essas trevas, novas verdades contra esses erros, nova claridade contra esses enganos e novas vitórias contra esse inimigo e seus sequazes? Em sua mesma cegueira tem o herege a prova da maior luz da Igreja; por isso disse São Paulo: Oportet haereses esse, e esse , é o bem que tira de tão grande mal aquela sapientíssima Providência, que, como doutamente disse Santo Agostinho, teve por maior glória de sua grandeza fazer dos males bens, que não permitir os males.

Assim que os que quiserem reconhecer os aumentos da sabedoria, em que sempre mais vai crescendo a Igreja com os anos, não devem tomar à semelhança do Sol` e da luz, senão a da fonte e do no, a que o mesmo Cristo comparou sua doutrina, quando disse: Si quis sitit, veniat ad me et bibat. Qui credit in me sicut dicit Scriptura, flumina de ventre ejus fluent aquae, vivae,. Hoc autem dixit de spiritu, quem accepturi erant credentes in eum. A luz que sai do Sol, quanto mais distante, mais se vai enfraquecendo e diminuindo; mas o rio que nasce da fonte, quanto mais caminha e mais se aparta de seu princípio, tanto mais se engrossa, porque vai recebendo novas correntes e novas águas, com que se faz mais largo, mais profundo, mais caudaloso.

Tal é a sabedoria da Igreja, entrando sempre nela as puríssimas correntes da doutrina de tantos Doutores católicos e sapientíssimos, que cada dia a aumentam com novos e tão excelentes escritos em uma e outra teologia, de que o nosso século tem sido mais fecundo e abundante que todos até hoje.

A sabedoria da Igreja no alumiar é luz e no correr é rio; rio daquela mesma fonte e luz daquele mesmo Sol que é Cristo, conservando juntamente as luzes e claridades das águas, e as águas' os resplendores das luzes naquela milagrosa metamorfose que se conta no cap. X de Ester: Parvus fons, qui crevit in fluvium, et in lucem solemque conversus est. et in aquas plurimas redundavit. Cristo, sol com propriedade de fonte, a Igreja luz com propriedade de rio, e por isso sempre mais alumiada, sempre mais vestida de resplendores.

E como, por esta providência particular de Deus e pela dificuldade e escuridade de muitos lugares da Escritura, e pela aplicação dos Padres, a confirmação de outras verdades e a resistência de outras batalhas próprias daqueles tempos, deixaram de escrever algumas cousas com que a Igreja depois se foi alumiando e ilustrando, não é muito que nestas que eles não disseram, falemos e hajamos de falar sem eles. Nem isto se nos deve imputar a menos veneração dos mesmos Padres doutíssimos e santíssimos; porque não querer descobrir nem saber o que eles não disseram, antes é vício da ociosidade que virtude da reverência, como bem conclui o mesmo Ricardo Vitorino acima alegado: Sed nec illud tacite praetereo, quod quidam quasi ob reverentiam Patrum nollunt ab illis omissa attentare, nec videantur aliquid ultra maiores praesumere. Sed inertiae, suae, hujusmodi velamen habentes, otio torpent, et aliorum industriam in veritatis investigatione et inventione derident, subsanant et exsufftant, sed qui habitat in coelis, irridebit eos et Dominus subsanabit eos.

Leiam e temam esta sentença os que culpam os que não querem ser culpados nela, e advirtam que tamb5ém é um dos Padres o que isto disse.

Segunda Razão editar

Discorre-se sobre as cousas que no tempo dos padres houve para alguns lugares dos Profetas não poderem ser entendidos inteiramente.

Em segundo lugar, dizíamos que os Padres não acertaram em tudo; e posto que pudéramos provar a verdade deste fundamento com a demonstração das cousas em que não acertaram, lembrados porém da reverência que os filhos devem aos pais e da bênção que mereceram aqueles dois honrados filhos, Sem e Jafet, quando voltaram as costas e apartaram os olhos do que em seu pai, Noé, podia ser menos decente, nós também lançaremos a capa sobre esta matéria, deixando tão indigno assunto a Lutero, Calvino, Bèze e Wiclef, e outros legítimos herdeiros do ímpio e irreverente Cam.

Não negamos, contudo, que houve muitos autores católicos e pios, em cujos livros se podem ver por junto estes exemplos, os quais eles escreveram não por menos reverência que tivessem aos antigos Padres, por sua sabedoria e santidade, e igualmente merecedores da eterna veneração, mas por zelo da verdade, necessidade de doutrina e cautela dos mesmos doutos que lessem as suas obras; bem assim como os que pintam cartas de marear sinalam no vastíssimo e profundíssimo Oceano os baixos (poucos e raríssimos, se se compararem com a imensidade de suas águas) para maior vigilância e segurança dos que as navegam.

Escreveram neste gênero doutissimamente Sixto Senense em todo o V e VI livro de sua Biblioteca Santa; Ferdinando Vellocillo, bispo de Luca, nas AdverteAncias Teológicas sobre cinco Padres da Igreja; Afonso de Castro, Adversus haeereses, Antônio Possevino, no Aparato Sacro; o Cardeal César Barónio, em muitos lugares de seus Anais; Melchior Cano, De Locis Theologicis, e outros. Este último no Liv. VII cap. III, diz assim: Auctores canonici ut superni, caelestes, divini, stabilem perpetuamque constantiam servant; reliqui vero scriptores sancti inferiores et humani sunt, deficiuntque interdum ac monstrum quandoque pariunt propter convenientem ordinem, institutumque naturae.

Mas entre estes exemplos naturais da fragilidade humana, podemos ler em prova deles outros dos mesmos Padres, em que, confessando com alta humildade e modéstia que podiam errar como os homens, nos ensinam no conhecimento que tinham de si e nós devemos ter de nós, quão verdadeiramente eram santos, e por isso mesmo sapientíssimos Porem aqui as palavras de dois maiores Doutores, um de teologia escolástica e outro` da positiva — Santo Agostinho e S. Jerônimo — Santo Agostinho, na epístola III, escrevendo a Fortunaciano desta maneira: Neque enim quorumlibet disputationes quam vis catholicorum et laudutorum hominum, velut scripturas canonicas laudare debemus, ut nobis non liceat (salva honorificentia, quae illis debetur) aliquid in eorum scriptis improbare, atque respuere (si forte invenerimus, quod aliter senserint quam veritas habet, divino adjutorio vel ab aliis intellecta, vel a nobis); talis ego sum in scriptis aliorunt, tales volo esse intellectores meorum: «As ciências e regulações dos autores, posto que sejam católicos, mui louvados e estimados por sua ciência e. doutrina, não as devemos ler como escrituras canônicas, de tal sorte que nos não seja lícito (salva a reverência de suas pessoas), reprovar e não seguir algumas cousas das que disseram, quando acharmos por outra via a verdade, ou melhor entendida por outros, ou também por nos. Este é o modo (diz Santo Agostinho) com que eu leio os escritos dos outros e com que quero que sejam 1idos os meus.:»

O mesmo sentia S. Jerônimo, assim dos escritos alheios como dos próprios, cujas palavras na Epístola a Teófilo, contra os erros de S. João Hierosolimitano são estas: Scio me aliter habere Apostolos, aliter reliquos tratores: illos semper vera dicere: istos in quibusdam ut homines aberrare>> «So os Apóstolos, como alumiados por Deus, disseram a verdade em tudo; os outros homens, como homens eram e podem errar:>> _ diz o Doutor Máximo.

E se o fundamento dos erros humanos é o efeito natural de serem os homens homens, bem se segue que nenhum homem se pode livrar desta pensão da humanidade, por douto e sapientíssmo que seja. Exemplo seja o prodigioso livro Das Retratações de Santo Agostinho, mais digno de veneração por aquela obra que por todas as outras suas o qual prosseguindo a mesma sentença de Santo Agostinho no liv. II De Batismo, contra os Donatistas, cap. V diz assim com admirável piedade e juízo: Homines enim sumus, unde aliquid aliter sapere, quam se res habet, humana tentatio est.: nimis autem amando sententiam suam, vel invidendo melioribus, usque ad prescidendae communionis et condendi schismatis vel haeresis sacrilegium pervenire, diabolica praesumptio est. In nullo autem aliter sapere, quam res se habet, angelica perfectio est.

De maneira que, seguindo Santo Agostinho, cerrar em alguma cousa é fraqueza de homens; acertar em tudo, é perfeição de anjo, e querer defender seu parecer até romper a caridade e união da Igreja, é presunção de demônios»; e como os Santos Padres fossem obedientíssimos filhos da Igreja Católica, a cujo supremo juízo sujeitaram sempre todos os seus escritos, se em alguma cousa desacertaram, como dissemos ou supomos, é argumento só de que foram homens, e não eram anjos.

Mas para que se veja a ocasião ou ocasiões que tiveram para não acertar com a verdadeira inteligência de algumas escrituras, principalmente as dos Profetas, que é o fim para que isto supomos, direi agora o que da ponderação das mesmas escrituras proféticas e das exposições dos Padres sobre elas, e das opiniões, que eram comuns e recebidas entre os doutos, quando eles escreveram, tenho colhido. E ponho aqui (tanto de melhor vontade) esta minha advertência, em que não acabei de cair de todo, senão depois de muitos anos de estudo e lição dos mesmos Padres, quanto dela se pode colher facilmente. e sem menos louvor de sua grandeza e sabedoria, quão impossível cousa lhes era acertarem naquele tempo, em aquelas suposições, com o verdadeiro entendimento de alguns lugares dos Profetas que eles interpretaram em alheio e diferente sentido

A primeira ocasião que os Padres tiveram para não poderem entender em seu tempo o sentido literal e histórico daqueles textos proféticos, era a falta que então havia no Mundo da verdadeira e exata cosmografia, e a errada opinião, ou de que o globo da Terra não era perfeitamente esférico, ou de que as partes opostas às que naquele tempo se conheciam, eram não só desertas, senão ainda inabitáveis Este sentimento, que foi de muitos filósofos antigos se tinha entre os Padres por verdade muito certa e averiguada, negando geralmente a opinião, ou fama de haver os que então já se chamavam antípodas Posto que os princípios por que os Padres os negavam, não eram entre todos as mesmas razões filosóficas, em que alguns se afundavam, que então (antes da experiência) tinham nome de razões, e hoje depois delas nos parecem ridículas.

Descreve Lactâncio Firmiano que era um dos Padres, e muito douto daquele tempo e zombando elegantissimamente dos que tinham a opinião contrária, discorre assim:

Quid illi, qui esse contrarios vestigiis nostris antipodas putant? Num aliquid loquuntur? Aut est quisquam tam ineptus, qui credut esse homines quorum vestigia sint superiora quam capita? Aut ibi quae apud nos jacent inversa pendere? Fruges et arbores deorsum versas crescere; Pluvias et nives, et grandinem sursum versus ca dere in terram? Et miratur aliquis in hortos pensiles ~nter seplem mira narrari, cum philosophi, et agros et maria, et urbes, et montes pensiles faciant; Hujus quoque erroris aperienda nobis origo est [. .] Quae igitur illos ad antipodas ratio perduxit? Videbant siderum cursus in occasum meantium. Solem atque Lunam in aemdem partem semper occidere, atque oriri semper ab eadem. Cum autem non prospicerent quce machinatio cursus eorum temperaret, nec quomodo ab occasu ad Orientem remearent, coelum autem ipsum in ornnes partes putarent esse devexum, quod sic videri propler immensam latitudnem necesse est; existimaverunt rotundum esse Mundum sicut pilam: et ex motu siderum opinati sunt coelum volvi. Sic astra, Solemque, cum occiderirint, volubilitate ipsa Mundi ad ortum referri; itaque et aereos orbes fabricati sunt quasi ad figuram Mundi, eosque caelarunt portentosis quibusdam simulacris, quae astra esse dicerent. Hanc igitur Coeli rotunditatem illud sequebatur; ut Terra in medio sinu ejus esset inclusa; quod si ita esset, etiam ipsam terram globo similem; neque enim fieri posset ut non esset rotundum, quod rotundo conclusum teneretur. Si autem rotunda etiam Terra esset, necesse esse, ut in omnes Coeli partes eamdem faciem gerat, id est, montes erigat, campos tendat, maria consternat. Quod si esset, etiam sequebatur illud extremum, ut nulla sit pars Terrae,quae non ab hominibus, caeterisque animulibus incolatur: sic pendulos istos antipodas Coeli rotunditas adinvenit. Quod si quaeras ab is, qui haec portenta defendunt, quomodo ergo non cadunt omnia in inferiorem illam cueli partem, hanc respondent rerum esse naturam, ut pondera in medium ferantur, et ad medium connexa sint omnia sicut radios videmus in rota; quae autem levia sunt, ut nebula, fumus, ignis, a medio deferantur ut coelum petant. Quid dicam de iis? Nescio; qui cum semel aberraverint, constanter in stultitia perseverant, et vana vanis defendunt, nisi quod eos interdum puto, aut joci causa philosophari, aut prudentes et scios mendacia defendenda suscipere,quasi ut ingenia sua in malis rebus exerceant vel ostentent.

Até aqui Lactancio, não se rindo menos dos que naquele tempo tinham esta opinião, do que nós hoje nos podemos rir dele. Por isso não duvidei de copiar esta página de latim, que para os que bem o entendem sei de certo não será larga, por sua matéria e elegância; e muito menos para os que o não entendem, porque o passarão mais brevemente. O mesmo peço eu que façam os que não têm necessidade de ver a tradução dela, que agora se segue, para que não fiquem com o sentimento de quão mal se pode trasladar à nossa língua a elegância da latina: «Que direi daqueles—diz Lactando—os quais tiveram para si que há no Mundo outros homens que andam com os pés virados para nós, a que chamam antípodas? Porventura dizem estes alguma cousa que tenha fundamento, ou pode haver homem de tão pouco juízo que se lhe meta na cabeça que há homens que andem com a cabeça para baixo, e que todas as cousas que aqui estão em pé, e direitas, lá estejam dependuradas? Que as árvores cresçam para a parte inferior? Que a chuva caia para cima? E que os que hão-de colher os frutos, hajam de descer aos ramos, e não subir? E espantamo-nos que os hortos pênsiles se contêm entre as Sete Maravilhas do Mundo, quando há filósofos que fazem campos pênsiles, mares pênsiles e cidades pênsiles, em que as torres e os telhados estão pendurados para baixo! Mas será bem que digamos a origem donde teve princípio este erro e que razão moveu ou levou estes homens a uma cousa tão irracional, como haver antípodas. Viam que o Sol, a Lua e estrelas, saíam sempre do Oriente e entravam pelo Ocaso; viam, ou cuidavam que viam, que este céu que nos cobre, tem figura de uma abóbada (sendo que esta representação não a faz a figura do céu, senão o termo e fraqueza de nossa vista); e não entendendo o modo por que esta máquina se governa, vieram a imaginar que o Mundo era redondo como uma bola, e assim fingiam que havia no céu vários orbes de matéria sólida como bronze, em que estavam esculpidas essas imagens e corpos portentosos, a que chamamos estrelas e planetas. Desta redondeza ou rotundidade do céu inferiam e assentavam que também a Terra era redonda; e, acomodando-se naturalmente a figura do corpo exterior e maior, dentro do qual estava metida, e torneada desta maneira, e feita redonda a Terra, tiravam por segunda conseqüência que também havia de estar povoada de homens e de animais, em todas as partes, como está: nesta em que vivemos; assim que a imaginada rotundidade do céu foi a inventora destes antípodas pendurados. E se perguntarmos aos defensores deste portento como pode ser que os homens que. fingem com os pés para cima, se lhes não despeguem da terra, e como não caem por esses ares abaixo respondem que é o peso natural da Terra, que de todas as partes inclina para o centro, assim como os raios de uma roda todos vão parar ao eixo; e que, assim como do mesmo eixo saem os raios para a roda, assim as cousas pesadas vão buscar o meio; as cousas leves, como o fogo, os fumos, as névoas, sobem direitas para as diversas partes do Céu, de que a Terra está cercada.

O que se haja de dizer de tais homens e de tais entendimentos, não o sei; só digo que, depois de terem caído no primeiro erro, perseveram constantemente na sua ignorância, defendendo umas cousas vãs com outras tão vãs como elas; sendo que algumas vezes cuido que não dizem nem escrevem isto de siso, senão por jogo e zombaria, e que sabendo muito bem que tudo o que dizem são fábulas e mentiras, as defendem contudo para ostentar habilidade e engenho, empregando tão bons entendimentos em tão más cousas.>>

Este é o discurso de Lactâncio, e foi bem que o deixasse tão miudamente escrito, para que soubéssemos o que naquele tempo se sabia do Mundo e para que saiba o mesmo Mundo quanto deve aos Portugueses, primeiros descobridores de seus antípodas.

Santo Agostinho também teve a mesma opinião de Lactâncio, posto que lhe não contentaram os seus fundamentos, os quais impugna no livro das suas Categorias; mas no liv. XVI De Civitate Dei, resolve que se não deve crer que há antípodas, com palavras de tanta segurança como as seguintes: Quod vero et antipodas esse fabulantur, id est. homines a contraria parte Terrae, ubi Sol oritur quando occidit nobis, adversa pedibus nostris calcare vestigia, nulla ratione credendum est. Neque hoc ulla historia cognitione didicisse se affirmant; sed quasi ratiocinando conjectant: «E quanto à fábula dos que fingem que há antípodas — diz Santo Agostinho, isto é, homens da outra parte do Mundo, onde o Sol lhes nasce a eles, quando se põe a nós, e que pisam a terra com os pés voltados para os nossos, como nós para os seus, é cousa que de nenhum modo se há-de crer, nem seus autores o provam com alguma história que tal afirme, e só o conjeturam por discursos.>>

Não dissera isto o sapientíssimo Doutor, se já naquele tempo estiveram escritas as histórias dos Portugueses, mas este é o maior louvor da nossa Nação (como disse um orador delas) que chegaram os Portugueses com a espada onde Santo Agostinho não chegou com o entendimento.

A razão de Santo Agostinho com que negou os antípodas, ainda encarece mais este louvor nosso, porque o argumento em que se funda é este: Todos os homens que se propagaram e estenderam pelo Mundo, são descendentes de Adão, como consta da Escritura; logo, segue-se que não há nem pode haver antípodas, porque, se os houvera, haviam de ter passado a outra parte do Mundo, por cima da imensidade do mar Oceano; e é grande absurdo dizer que os homens pudessem fazer tal navegação.

Esta é a razão de Santo Agostinho e este o famoso elogio que, sem saber de quem falava, disse o famoso e ilustríssimo africano dos Portugueses conquistadores depois de sua pátria: Nimisque absurdum est (são palavras suas no mesmo lugar) ut dicatur aliquos homines ex hac in illam partem Oceani immensitate trajecta, navigare ac pervenire potuisse, ut etiam illic ex uno illo primo homine genus institueretur humanum.

Esta mesma opinião foi comum entre os outros Padres da Igreja, e assim a lemos expressa, ainda antes de Lactâncio, em S. Justino, e antes de Santo Agostinho, em Santo Hilário, em S. João Crisóstomo, S. Basílio e Santo Ambrósio, e muitos anos e séculos depois em Procópio, Teofilato, Eutímio e outros, uns fundando-se nas razões já referidas e todos naquela tão celebrada dos filósofos, historiadores e poetas, que não só faziam inabitável a zona tórrida, mas supunham tão grande incêndio nela pela vizinhança do Sol, que de nenhum modo se podia passar: Media vero terrarum _ diz Plínio — qua Solis orbita est. exusta flammis et cremata, cominus vapore torretur. Circa duae tantum inter exustam et rigentes, temperantur: eaeque ipsae inter se non perviae propter incendium sideris.

Este incêndio da zona tórrida ainda em tempos tão chegados aos nossos, era um dos mais forçosos argumentos, com que os reprovadores da empresa do Infante Dom Henrique a impugnavam, e tinham por impossível aquele descobrimento, como referem as nossas histórias. A estas razões propriamente filosóficas e a este discurso, acrescentavam os Padres outras teológicas e alguns textos da Escritura Sagrada, que antes da experiência parecia afirmarem ou definirem claramente que debaixo da terra não havia outra cousa mais que a água. Assim o argumentava Procópio sobre o primeiro capítulo do Gênesis, dizendo: Quod autem universa Terra in aquis subsistat nec ulla sit pars ejus, quae infra nos sita sit, aquis vacua et denudata hominibus, notum reor, nam sic docet Scriptura: «Quid expandit terram super aquis»; et iterum: «quia itse super maria fundavit eum.» O primeiro lugar é do Salmo CXXXV e o segundo do Salmo XXIII. E verdadeiramente que as palavras de um e outro são tão claras, que se a vista dos olhos não tivera ensinado o contrário, parece se deviam entender assim; e que Deus, que tudo pode, para mostrar sua onipotência tinha fundado a terra sobre a água.

Assim o cuidou Tales Milézio, um dos sete sábios de Grécia, com muitos outros filósofos, os quais referiam os tremores da Terra à inconstância deste fundamento de sua natureza tão pouco sólido; mas depois que a experiência nos mostrou que debaixo ou da parte oposta a esta Terra há outros habitadores, que são os antípodas, a emenda deste engano nos ensinou também a entender aqueles textos de David, cujo verdadeiro sentido é este:

Quando Deus criou o Mundo, no princípio estava o elemento da terra coberto com o elemento da água, e a água sobre a terra, conforme o lugar que se devia à sua dignidade e nobreza, como elemento que é mais nobre; mas como por esta causa ficasse a terra vazia e inabitável, como notou o texto: Terra autem erat inanis et vacua, o que fez a Providência Divina foi apartar a água de cima da terra e dar-lhe outro lugar, que é o que hoje tem o mar para que ficasse a terra superior a ele e pudesse produzir e ser habitada: Et dixit Deus: Congregentur aquae [...] in locum unum, et appareat arida. E por que a terra por este modo ficou superior à água, por isso diz David que a terra está sobre ela, isto é superior a ela, e não inferior e debaixo como de antes estava, e por sua natureza devia estar. Repito o texto todo, para que da conseqüência dele se veja melhor a verdade e clareza desta exposição: Domini est terra et plenitudo ejus; orbis terrarumm et universi qui habitant in eo: quia ipse super maria fundavit eum, et super fluvia praeparavit eum.

Deus é o Senhor da Terra e de todos seus habitadores. E porque é Senhor da Terra? Porque a fundou; e é Senhor de seus habitadores, porque, fazendo que fosse superior ao mar e aos rios, a fez habitável; e essa é a energia da palavra praeparavit; porque, fazendo a terra superior à água, a preparou e acomodou a que se pudesse habitar: Ratio cur Dominus Terrae, omniumque in ea rerum [...] sit Deus (diz Lorino), quoniam terram itse fecit, et supereminere aquis fecit, ut habitari posset... E não é muito que Lorino entendesse melhor este texto da terra e do mar que Procópio; porque Procópio não sabia que havia mar e terra habitada dos antípodas, e Lorino sim; mas vamos a outros lugares mais impossíveis de entender, antes do conhecimento dos antípodas.

Referem-se vários lugares dos Profetas que os expositores modernos entendem dos antípodas e conquistas de Portugal.

Começando pelo mesmo David, aquele verso do Salmo LXVII: Regna terrae, cantate Deo, psallite Domino, psallite Deo, qui ascendit super Coelum Coeli ad Orientem; ecce dabit voci suae vocem virtutis, diz Genebrardo, Viegas, Mendonça e outros autores, que fala da conversão dos reinos e terras do Oriente, convertidas à Fé por meio da pregação dos Portugueses e descobertas por eles. Donde notou advertidamente Viegas, que no mesmo Salmo tinha dito David: Cantate Deo, psalmum dicite nomini ejus; iter facite ei, qui ascendit super Occasum; Dominus nomen illi, para mostrar que a Fé e conhecimento de Deus primeiro havia de vir às terras mais ocidentais, que são as que habitamos, e depois havia de passar às do Oriente, que são aquelas que descobrimos, conquistamos, alumiamos com a luz do Evangelho; e esta é a virtude que Deus deu às vozes da sua voz, isto é, às vozes dos seus pregadores: Ecce dabit voci suae vocem virtutis.

Todo o Salmo LXIV explica Basílio Ponce da nova conversão das Índias, assim Orientais como Ocidentais, e são tão próprios desta explicação muitos lugares dele, que, ainda os que não tiveram tal pensamento, não puderam deixar de dizer o mesmo. Lorino, comentando o verso IX: Turbabuntur gentes, et timebunt qui habitant terminos a signis tuis exitus matutini et vespere delectabis, entende pelos habitadores dos termos da terra as gentes orientais e ocidentais, e assim explica as palavras: «Exitus matutini et vespere>> pro hominibus qui habitant ubi exit dies et ubi exit nox, hoc est. pro Orientalibus et Occidentalibus.

De maneira que os homens de quem aqui fala David, são aqueles que estão nos dois últimos fins e extremos da Terra, onde nasce o dia e onde nasce a noite. Uns nos fins do Oriente, que são os das Índias Orientais; e outros nos fins do Ocidente, que são os das Índias Ocidentais. Esta terra, uma e outra, diz o Profeta que visitaria Deus, e que a regaria como regou com a água do batismo: Visitasti terram et inebriasti eum. E acrescenta com grande energia que multiplicaria o Senhor o enriquecê-la: Multiplicasti locupletare eum; porque, tendo-lhe já dado as maiores riquezas temporais, que são as minas do ouro e prata, os diamantes, os rubis, as pérolas e outros tantos tesouros, sobre estes lhe havia de dar também as riquezas espirituais e a graça, com que ficasse cada uma não só rica, mas multiplicadamente rica: Multiplicasti etc. E porque para isto era necessário que o bravíssimo e indômito Oceano se sujeitasse aos homens e se deixasse arar de seus lenhos, o que até aquele tempo não consentia, também dizia David que fazia Deus esta mudança em suas ondas: ..qui conturbas profundum maris, sonum fluctuum ejus. Ou, como lê S. Jerônimo e Teodósio: compescens sedans, mulcens sonitum, cavitatem, latitudinem aut profundumditatem maris.

Finalmente, porque não duvidássemos que mares eram estes, declara o Profeta que não haviam de ser aqueles que lavam as terras e praias vizinhas a nós, senão os mares de muito longe e de terras e gentes muito remotas: ...spes omnium finium terrae et in mari longe, ou como tem o hebreu: Maris rémotorum. E não carece de mistério e grande mistério, o proêmio com que David introduziu tudo o que até aqui temos dito, que foi com estas palavras:...sanctum est templum tuum, mirabile in aequitate. Como se dissera: antes de se pregar o Evangelho a estas terras ou a estes mundos do Oriente é do Ocidente, parece que vós, Senhor, e vossa Igreja não guardáveis igualdade com os homens, pois havendo tantos anos e tantos séculos que alumiastes a uns com a luz da Fé, permitistes até agora, por vossos ocultas juízos, que os outros estivessem às escuras (argumento que puseram os Japões a S. Francisco Xavier). Porém, depois que a Fé e o Evangelho, e o conhecimento e culto do verdadeiro Deus têm passado os mares, chegado às mais remotas nações do Oriente, agora sim, que podemos dizer que a vossa Igreja é admirável na igualdade, porque trata igualmente a todos: sanctum est templum tuum, mirabile in aequitate.

Salomão, que sucedeu a David, não só na coroa, mas também no espírito de profecia, em muitos lugares dos seus Cânticos deixou também profetizadas estas maravilhas da nossa idade: neste sentido explicam alguns modernos aquelas palavras no cap. IV: Surge, Aquilo, et veni, Auster, et perfla hortum meum, et fluent aromata illius. Como se dissesse Cristo, falando do sen jardim, que é a Igreja: que saísse dele o Norte e viesse o Sul; isto é, que saíssem da Igreja as orações do Norte, como se saíram nestes tempos por meio da heresia, e que entrassem na mesma Igreja as orações do Sul (que são as do Novo Mundo), como entraram por meio da Fé. Ao qual sentido, que é mui próprio e verdadeiro, podemos aplicar as palavras de Honório: Siquidem inauditam haeresim per malignos homines Draco mentibus fidelium infudit, qua totum ortum Ecclesiae, quasi quadam lepre vitiavit; sed Rex gloriae Chrisus suis auxilium praebuit, dum universum haeresim per sapientes destruxit, et de horto suo flagellis anathematis expulit; expulso autem Aquilone, Auster intravit... Segue-se logo no texto:. et fluent aromata illius. As quais palavras, entendidas assim como soam, que outra cousa dizem senão os interesses temporais que trazem as naus da Índia por estes espirituais que levam quando vêm carregadas dos aromas e espécies aromáticas daquelas partes?

Assim o tinha dito o mesmo Salomão no verso antecedente, com admirável propriedade e energia. Fala das missões que fazem àquelas partes os pregadores da Fé, e diz: Emissiones tuae, paradisus malorum punicorum cum pomorum fructibus As vossas missões são um paraíso de que se não colhem frutos de árvores, senão frutos de frutos. Cum pomorum fructibus. Porque pelo fruto espiritual que vão fazer os missionários, vêm de lá os frutos temporais com que Portugal se enriquece. E se vão faltando os segundos frutos, é porque também vão faltando os primeiros, de que eles nascem.

Mas que frutos são estes? Disse o mesmo Salomão: Cypri cum nardo, nardus et crocus, fistula et cinnamomum cum universis lignis Libati, myrrha, et aloe cum omnibus primi unguentis: A canela, a canafistola, o sândalo, o benjoim, as áquilas, os calambucos, e todo o outro gênero de espécies odoríferas e aromáticas, que são as mesmas que vêm da Índia.

No cap. VII diz assim o mesmo Salomão, ou a Esposa, que é a Igreja, falando com seu Esposo Cristo: Mandragorae dederunt odorem. In portis nostris omnia poma: nova et vetera servavi tibi. As mandrigoras são os pregadores da Fé, como diz S. Gregório: Quid per mandragoram, herbam scilicet medicinalem et odoriferam, nisi virtus perfectorum intelligitur? Qui, dum imperfectorum infirmitatibus medentur in fide quam praedicant, id est. in portis Ecclesiae veri medici esse comprobantur.

Com o cheiro destas mandrágoras e com a doutrina destes pregadores, [diz a Esposa] que ajuntou para seu Esposo os frutos novos aos velhos. Assim o interpretam os Setenta: Nova et vetera servavi tibi; porque aos cristãos antigos, que eram os da Europa, ajuntou a Igreja estes novos, que são os da nova gente que se descobriu no Oriente e no Ocidente, que são as portas de que fala a Esposa: In portis nostris. Uma porta por onde o Sol sai ao nosso hemisfério, que é a do Oriente, e outra por onde entra aos antípodas, que é a do Ocidente. Assim entendem este lugar alguns autores que refere Cornélio, resumindo todo o sentido dele nestas palavras: Nonulli per nova opinantur hic notari novi orbis inventionem et conversionem ad Chrstum. Novus enim hic orbis continet Peruanos, Mexicanos, Brasilios, Chilenses etc. est dimidium totius orbis, ut patet ex globo cosmográphico [...] jam per religiosos S. Dominici, S. Francisci et Societatis Jesus totus pene subjacet Ecclesiae Sic in India Orientali hoc saeculo et praecedenti mire per eosdem propagatur Fides apud Japones, ubi plurimi pro Fide certant usque ad martyria lentorum ignium apud Sinenses, Molucenses et Ceilanos. De maneira que os frutos novos que a Igreja, por meio do cheiro destas mandrágoras medicinais e odoríferas, ajuntou aos velhos e antigos, são os do Peru e México, do Brasil e Chile, e os do Japão e China, das Malucas e Ceilão; uns nas portas do Oriente, outros nas do Ocidente: Madragorae dederunt odorem suum. Parece que estavam esquecidos, mas não estavam senão guardados para este tempo: servavi.

Em quase todo o cap. VIII repete Salomão a mesma conversão das Índias, e particularmente naquelas palavras: Soror nostra parva, et ubera no habet; quid faciemus sorori nostrae in die quando alloquenda est? Si murus est. aedificemus super eum propugnacula argentea; si ostium est. compingamus illud tabulis cedrinis. Até agora foi escuríssimo este lugar, mas são admiráveis os mistérios e mais admiráveis ainda as propriedades dele. Ludovico Legionense, nos comentários sobre este livro, entende por esta irmã mais moça da Esposa a Igreja da Gentilidade novamente convertida à Fé: ...sub persona hujus sororis natu minoris, et parum forma praestantis, cu`jus de collocatione sponsa solicitari dicitur, multi significantur populi atque gentes longe a nostro orbe remotae, ad Christum adducenda; nova quadam Evangelli tradendi ratione; hoc est significatur Hispanorum navigationibus reperti orbis, ejusque incolarum ad Christi. fidem nuper facta conversio.

Ainda que a Igreja toda seja uma, como a destas novas gentilidades veio ao conhecimento de Cristo tanto depois, que não foram menos que mil e quinhentos anos, por isso lhe chama Salomão irmã menor e pequena — Soror nostra parva est — não pela grandeza das terras e número das gentes, em que é maior ou, quando menos, igual a toda a Igreja antiga, mas pela menoridade do tempo e da idade em que se converteu. E diz com muita propriedade que não tem peitos: Et ubera non habet porque todos estes anos esteve falta do leite da verdadeira doutrina. E porque haver-se de desposar com Cristo esta nova Igreja era um negócio cheio de tantas dificuldades, assim pela distancia de tão remotas terras e navegação de tão desconhecidos mares, como principalmente pela resistência de suas nações, umas bárbaras, outras políticas e todas feras, armadas e belicosas, e tão superiores no número e multidão aos que lhes haviam de levar e introduzir a Fé, estas dificuldades representa a Igreja antiga a seu Esposo, Cristo, com aquelas palavras: Quid faciemus sorori nostrae in die quando alloquenda est? «Que faremos Senhor, quando chegar o tempo em que se há-de desposar convosco esta minha irmã menor?:>> Ao que responde Cristo com o antiquíssimo conselho de sua providência, dizendo: Si murus est. aedificemus super eum propugnacula argentea; si ostium, compingamus illud tabulis cedrinis.

Quem não admirará nesta resposta os altíssimos conselhos da sabedoria e providência divina? Dispôs Deus desde a criação do Mundo que estas terras, assim por fora como por dentro, fossem enriquecidas de coisas preciosíssimas, para que o interesse dos homens facilitasse as dificuldades, que sem ele criam impossíveis de vencer. Como se dissera o Senhor: Ainda que a conquista da Fé tem muros que dificultem sua entrada nessas terras, também tem portas por onde poderá entrar; esses muros facilitá-los-emos com prata; essas portas abri-las-emos com cedros: Si murus, aedificemus propugnacula argentea; si ostium, compingamus illud tabulis cedrinis. Pela prata se entendem as minas e pelos cedros odoríferos as plantas preciosas; e as minas que essas terras têm em suas entranhas, e as plantas odoríferas e preciosas que nelas nascem, são os meios e incentivos que obrigaram o interesse humano a que se disponha a vencer todas essas dificuldades e abrir e franquear essas portas. E assim foi porque a prata, o ouro, os rubis, os diamantes, as esmeraldas, que aquelas terras criam e escondem em suas entranhas; as áquilas, os calambucos, o pau-brasil, o violeta, o ébano, a canela, o cravo e a pimenta, que nelas nascem, foram os incentivos do interesse tão poderoso com os homens, que grandemente facilitaram os perigos e os trabalhos da navegação e conquista de umas e outras Índias. Sendo certo que, se Deus com suma providência não enriquecera de todos estes tesouros aquelas terras, não bastaria só o zelo e amor da religião para introduzir nelas a Fé.

O profeta Isaías, como profeta singularmente escolhido para historiar as maravilhas da lei evangélica, foi o que mais falou de nós e delas: no cap. XLIX diz assim: Ecce isti de longe venient, et ecce illi ab aquilone et mari, et isti de terra australi. Laudate, caeli, et exulta, terra, jubilate, montes, laudem, quia consolatus est Dominus populum suum, et pauperum quorum miserebitur. O qual lugar entende Cornélio à Lápide e Árias Montano da conversão da China, e o provam do original hebreu, o qual lêem de terra Senim, como verts S. Jerónimo, Símaco, Áquila, Teodósio, o Siro, o Arábio, e todos, e é o mesmo que de terra Sinorum, por ser este o modo de falar da língua hebréia, na qual os Galileus se chamam Gelilim, e os Judeus Jehudim, e os Assírios Assurim, e assim também os Chinas ou Sinas Sinim. E se replicarmos a este sentido que a China não é terra austral, senão oriental, e que se não pode verificar dela o termo de terra australi, respondem os mesmos autores que aludiu o Espírito Santo, que governava a pena de S. Jerónimo, à navegação dos Portugueses, os quais, quando vão para o Oriente, fazem a sua viagem direita ao Austro, navegando ao cabo da Boa Esperança: Sinae enim (dizem eles), qui proprie hic significantur, licet sint ad Orientem, dici tamen possum ad Austrum, quia Lusitani in Sinas navigaturi, initio longo flexu, navigant ad Austrum, scilicet ex Lusitania usque ad promontorium Bonae Spei, quod uItimum est in continente et directe oppositum Austro.

De maneira que, como os Portugueses eram os que haviam de levar a Fé à China, navegando ao Austro ou Sul, por isso o Espírito Santo chamou Austral à China, não pelo sítio, senão pelo rumo da navegação. Da mesma conversão dos Chinas fez outra vez menção Isaías no cap. XI, v. I4, o qual explica larga e eruditamente Malvenda, seguindo a Foreiro, ambos varões mui doutos da família dominicana.

O mesmo Profeta Isaías no cap. LX: Qui sunt isti, qui ut nubes volant et quasi columbae ad fenestras suas? Me enim insulae expectant, et naves maris in principio, ut adducam filios tuos de longe; argentum eorum et aurum eorum cum eis, nomini Domini Dei tui et Sancto Israel, quia glorificavit te. Et aedificabunt filii peregrinorum muros tugs, et reges eorum ministrabunt tibi.

Nestas palavras está profetizada admiravelmente a conversão das Índias Ocidentais; assim as explicam o mesmo Cornélio, Bózio, Aldrovando e outros, com bem notáveis propriedades. Chama o Profeta às Índias Ocidentais, ilhas: Me enim insulae expectant. Porque todas aquelas vastíssimas terras, em quanto se têm descoberto, estão rodeadas de mar, e bastava para se chamarem assim a imensidade de mares que as dividem do Mundo amigo; além de que estes terras no princípio eram chamadas com o nome de Antilhas, como se lê na história de seu descobrimento. As nuvens que voam a estes terras para as fertilizer—Qui sunt isti, qui ut nubes volant— são os pregadores do Evangelho, levados do vento pelo mar como nuvens; e chamam-se também pombas: Et sunt columbae ad fenestras suas; porque levam estes nuvens a água do baptismo sobre que desceu o Espírito Santo em figure de pomba, que são os dois termos que desde o princípio do Mundo andaram sempre juntos na significação do batismo.

No I cap. do Gênesis: Spiritus Domini ferebatur super aquas, e no II de S. João: ...nisi quis renatus fuerit ex aqua et Spiritu Sancto. Mas o mesmo Bózio e Aldrovando, ainda advertiram no nome e semelhança de pomba outra propriedade mais aguda, tirada do descobrimento das mesmas Índias, de cujas terras e navegação foi o primeiro descobridor Cristóvão Colombo; e dizem que a isto aludiu o profeta, chamando Columbas ou Columbos a todos os que seguem a mesma derrota e navegação das Índias: Nomine columbae alludit ad Christophorum Columbum, qui nobis iter ad illas oras primus aperuit. Bem assim, ou muito melhor, e com mais verdade do que disseram os Gentios que os Argonautas, quando foram conquistar o velo de ouro a Colcos, levaram por guia uma pomba:

Et qui movistis duo littora, cum rudis Argus
Dux erat, ignoto missa columba mari.

Os Potosis e outras minas de prata e ouro, que juntamente com as almas para a Igreja haviam de conquistar estes argonautas, também as não esqueceu o Profeta: Et adducam filios tuos de longe, argentum eorum et aurum eorum cum eis. Muito ouro, muita prata e muitos filhos para a Igreja, e tudo de muito longe; e porque não ficassem em silêncio as frotas das Índias: Et navis maris in principio; ou como lê Foreiro do hebreu: Et naves maris cum primaria, seu praetoria, que faziam esta navegação muitas naus, não divididas, senão em frota, com sua capitaina; finalmente, que homens peregrinos edificariam os muros da Igreja naquelas terras: Et aedificabunt filii peregrinorum muros tuos; e que os ministros de tudo isto seriam os mesmos reis, como fazem com tanta piedade os reis católicos: Et reges eorum ministrabunt tibi.

É também ilustre lugar em Isaías aquele do cap. XLI: Egeni et pauperes quaerunt aquas, et non sunt: lingua eorum siti aruit. Ego Dominus exaudiam eos [...] non derelinquam eos. Aperiam in supinis collibus flumina, et in medio camporum fortes: ponam desertum in stagna aquarum, et terram inviam in rivos aquarum. Dabo in solitudinem cedrum, et spinam, et myrtum, et lignum olivae; ponam in deserto abietem, ulmum et buxum simul; ut videant et sciant, et recogitent, et intelligant pariter, quia manus Domini fecit hoc...

Quantos pobres e miseráveis estão morrendo à sede por falta de água, isto é, vivendo na gentilidade sem água do batismo? Mas eu (diz Deus) que também sou Senhor destes, os ouvirei e não me esquecerei deles: Ego Dominus exaudiam eos. Nestes seus montes e desertos secos e estéreis abrirei fontes e rios mui copiosos; e por mais que essas terras sejam sem caminho, eu abrirei caminho por onde a elas cheguem as águas, de que tanto necessitam: Et terram inviam in rivos aquarum; e de onde até agora se não colheu fruto, eu farei que se colha muito copioso e de todo o gênero: Dabo in solitudinem cedrum et spinam et myrtum, etc. Para que entenda e conheça o Mundo quão poderoso sou, e que esta obra é de minha mão: Ut videant et sciant quia manus Domini fecit hoc.

São Cirilo, São Jerônimo, Procópio e Teodoreto entendem este texto da conversão das gentilidades, que Deus havia de converter por meio da pregação do Evangelho, mas não nos disseram que gentes estes fossem ou houvessem de ser, porque as não conheciam; porém os Doutores modernos nos dizem quais elas são. O P.e. Cornélio, depois do reverendíssimo Cláudio Aquaviva, geral da sua religião, diz assim: Hoc etiam hodie in Japone, Brasilia, China, aliisque Indiarum provinciis impleri magna laetitia conspicimus: que se cumpriu e está cumprindo esta profecia no Japão, no Brasil, na China.

Até aqui andamos com Isaías pelas terras firmes; vamos agora às ilhas, que são as primeiras por onde os nossos descobrimentos começaram.

No cap. LVIII fala Isaías das obras grandes que fará o homem misericordioso; e como a major obra e a major misericórdia de sodas é tirar almas do Inferno, como se tiram as dos Gentios, quando por meio da luz da Fé se lhes mostra o caminho da salvação, diz umas palavras o Profeta, que, bem ponderadas, de nenhum outro homem se podem entender à letra senão do nosso Infante santo (sic) D. Henrique, primeiro autor dos descobrimentos portugueses, cujo principal intento naquela empresa, como dizem sodas as nossas histórias, foi o puro e piedoso zelo da dilatação da Fé e conversão da gentilidade. As palavras de Isaías são estas: Et aedificabuntur in te deserta saeculorum, fundamenta generationis, et generationis suscitabis, et vocaberis aedificator septum, avertens semitas in quietem: «Em vós se povoarão os desertos dos séculos; vós lançareis os fundamentos de uma e outra geração; vós sereis chamado edificador das cercas e fareis que os que sempre andam, tenham assento.»

Tais foram em tudo as obras do Infante D. Henrique, continuadas depois pelos reis de Portugal, que levaram adiante o que ele começou. Primeiramente nele e por ele se povoaram os desertos dos séculos! porque muitas ilhas, que desde o princípio do Mundo, por tantos séculos estiveram desertas e incógnitas e despovoadas, como era a ilha da Madeira, as Terceiras ou dos Açores, ele as descobriu, povoou e edificou, e de ilhas desertas que antigamente eram, estão hoje tão povoadas e populosas, e tão enobrecidas de famosas cidades e suntuosos edifícios: Aedificabuntur in te deserta saeculorum. E assim como nestas ilhas ermas e desertas lançou este glorioso príncipe os primeiros fundamentos da geração humana, fazendo que fossem povoadas de homens, assim em outras ilhas, que estavam povoadas de bárbaros, como eram as Canárias e de Cabo Verde, lançou também os fundamentos da geração divina, fazendo por meio da pregação e luz do Evangelho que esses bárbaros gentios conhecessem a Deus e fossem gerados em Cristo: Fundamenta generationis et generationis suscitabis.

O meio que para esta segunda e mais importante geração tomaram os religiosíssimos príncipes de Portugal, foi mandarem religiosos por sodas as conquistas, de grande virtude e letras, fundando e edificando conventos de diversas ordens; e por isso diz o Profeta que seria chamado o primeiro autor desta obra, edificador de cercas, que são, como aqui notam alguns expositores, as cercas e claustros das religiões: Et vocaberis aedificator septum

Finalmente, não cala o Profeta o fruto que desta santa indústria se seguiu em sodas estes gentilidades de bárbaros, e foi que, andando de antes vagamente pelas brenhas, como animais silvestres, se aquietassem e tomassem assento, e vivessem como homens, que isso quer dizer—Avertens semitas in quietem. Neste sentido tão próprio e literal explica Bózio este texto de Isaías; mas antes que escreva as suas palavras, quero pôr aqui as do nosso João de Barros, referindo o que desta empresa do Infante sentiam e murmuravam os que lhes parecia inútil e infrutuosa: <...os reis passados deste Reino (diziam eles) sempre dos reinos alheios para o seu trouxeram gente a este a fazer novas povoações, e ele quer levar os naturais portugueses a povoar terras ermas por tantos perigos do mar, de fome e sedes, como vemos que passam os que lá vão. Certo que outro exemplo lhe deu seu padre poucos dias há, dando os maninhos de Lavre, junto a Caruche, a Lambert de Orches, alemão, que os rompesse e povoasse, com obrigação de trazer a ele moradores estrangeiros de Alemanha, e não mando?` seus vassalos passar além-mar, romper terras, que Deus deu por pasto dos brutos. E bem se viu quanto mais naturais são para eles que para nós, pois em tão poucos dias uma coelha multiplicou tanto, que os lançou fora da primeira ilha, quase como admoestação de Deus, que há por bem ser aquela terra pastada de alimárias, e não habitada por nós. E quando quer que nestas terras de Guiné se achasse tanta gente como o Infante diz, não sabemos que gente é, nem o modo de sua peleja; e quando fosse tão bárbara, como sabemos que é a das Canárias, a qual anda de penedo em penedo como cabras às pedradas contra quem os quer ofender, nós que proveito podemos ter de terra tão estéril e áspera, e cativar gente tão mesquinha? Certo nós não sabemos outro, senão virem eles encarentar o mantimento da terra e comerem nossos trabalhos; e por cobrarmos um comedor destes, perdermos os amigos e parentes!»

Isto é o que filosofavam e diziam os prudentes e políticos daquele tempo, que sempre são os instrumentos mais aparelhados que o Mundo e o Demônio têm para impedir as obras de Deus; mas estes terras ermas foram as que pelo zelo e constância daquele príncipe se vêem hoje tão povoadas, cultivadas e ricas. E estes bárbaros, que como animais andavam saltando de penedo em penedo, são os que hoje vivem com tanto assento, humanidade, ordem e política cristã, e não só eles, senão infinitos outros.

As palavras prometidas de Bózio são as que se seguem:

...idem perfectum videinus in insults quas Tertieras vocant, Hispaniae in Oceano adjacentibus Occidentem versus; similiter in Canariis, quas no mine Promontorii Viridis appellant, Sancti Laurentii, Ascensionis, et omnibus quae Africae littora respiciunt: amplius cunctis quas Oceanus aluit, latissimis etiam regionibus Indiarum, sive orientem, sive occidentem Solem, vel Austrum, Boreamvel spectantibus idem contingit. Neque finis illus hucusque apparet. Oppida innumera et civitates pulcherrimae passim condutur in quibus constituuntur caetus hominum, excitantur fundamenta generationis, et generationis eorum, qui bestiarum modo prius incertis sedibus vagabantur, et in stabulis ipsis habitabant.

Até aqui este autor doutíssimo, o qual no mesmo liv. II cap. III explica muitos outros lugares de Isaías, das ilhas que os Portugueses conquistaram para Cristo, e nomeadamente de Ceilão, Maldivas Socotorá, Japão, Java, Malucas e outras. Chama a estes ilhas o Profeta, ilhas de longe, como no cap. XLIX: Audite, insulin, et attendite, populi de longe, e no cap. LXVI: ...ad insulas longe ad illos, qui non audierunt de me; pelas quais ilhas entendiam todos antigamente Itália e Espanha, por estarem quase cercadas uma do Mediterrâneo, outra do Oceano; mas verdadeiramente nem são ilhas, senão terra firme; nem se podem chamar de Longe em comparação das que depois descobrimos, e com toda a propriedade são ilhas, e ilhas de muito longe.

Ponhamos fim a Isaías com um celebradíssimo texto do cap. XVIII, o qual foi sempre julgado por um dos mais dificultosos e escuros de todos os Profetas, e é este: Vae terrae cymbalo alarum, quae est trans flumina AEthiopiae, quae mittit in mare legatos, et in vasis papyri super aquas! Ite, angeli veloces, ad gentem convulsam et dilaceratam; ad populum terribilem, post quem non est alius; ad gentem expectantem et conculcatam, cujus diripuerunt flumina terram ejus.

Trabalharam sempre muito os intérpretes antigos por acharem a verdadeira explicação e aplicação deste texto; mas nem atinaram nem podiam atinar com ela porque não tiveram notícia nem da terra, nem das gentes de que falava o Profeta. Os comentadores modernos acertaram em comum com o entendimento da profecia, dizendo que se entende da nova conversão à Fé daquelas terras e gentes também novas, que ultimamente se conheceram no Mundo com o descobrimento dos antípodas; e notaram alguns com agudeza e propriedade, que isso quer dizer a energia da palavra: Ad gentem conculcatam: gente pisada dos pés, porque os antípodas, que ficaram debaixo de nós, parece que os trazemos debaixo dos pés e que os pisamos; mas chegando mais de perto à gente e terra ou província de que se entende a profecia, também os modernos não acertaram até agora com o sentido próprio, germano e natural dela, e este é o que nós havemos de descobrir ou escrever aqui, pelo havermos recebido de pessoa douta e versada nas Escrituras, que, havendo visto as gentes, pisado as terras e navegado as águas de que fala este texto, acabou de o entender, e verdadeiramente o entendeu, como veremos e verão melhor os que tiverem lido as exposições antigas e modernas dele.

Cornélio teve para si que fala o profeta de Etiópia e do Preste João; mas Etiópia não está além de Etiópia, como diz o texto. Malvenda, com os outros que cita, entente dos Chinas e Japões, e aplica à navegação dos Portugueses o parafraste caldeu, por estas palavras: Chaldeus interpres haec verba Isaiae in hunc modum reddidit: <<Vae terrae, ad quam veniunt cum navibus a terra longinqua, et vela sua extendunt, ut aquila, volans alis suis.» Aptosite in Indiam, quae quondam remotarum gentium frequentibus navigationibus petebutur, et nunc ab extremo Occidente Lusitanorum victricibus classibus aditur; quae etiam itsas sinarum oras praetervectae Japoniorum insulas tenent.

Mas esta exposição e a de Mendonça e Rebelo (que entendem o texto geralmente da Índia Oriental), têm contra si tudo o que logo diremos. José da Costa, tão versado nas Escrituras como na geografia e na história natural das Índias Ocidentais, Ludovico Legionense, Tomás Bózio, Arias Alontano, Frederico Lúmnio, Alartim del Rio e outros dizem (e bem), que falou Isaías da América e Novo Mundo, e se prova fácil e claramente. Porque esta terra que descreve o Profeta está além da Etiópia trans flumina AEtiopiae; e é terra depois da qual não há outra: ad populum post quem non est alius. Estes dois sinais tão manifestos só se podem verificar da América, que é a terra que fica da outra banda da Etiópia, e que não tem depois de si outra terra senão o vastíssimo mar do Sul. Mas porque Isaías nesta sua descrição põe tantos sinais particulares e tantas diferenças individuantes, que claramente estão mostrando que não fala de toda a América ou Mundo Novo em comum, senão de alguma província particular dele; e os autores alegados nos não dizem que província esta seja, será necessário que nós o digamos, e isto é o que agora hei-de mostrar.

Digo primeiramente, que o texto de Isaías se entende do Brasil, porque o Brasil é a terra que direitamente está além e da outra banda da Etiópia como diz o Profeta: quae est trans flumina AEthiopiae, ou como verte e comenta Vatablo: terra, quae est sita ultra AEthiopiam (quae AEthiopia scatet fluminibus) e o hebreu ao pé da letra tem de trans flumina AEthiopiae. A qual palavra—de trans— como notou Malvenda, é hebraísmo, semelhante ao da nossa língua. Os Hebreus dizem—de trans— e nós dizemos, detrás; e assim é na geografia destas terras, que em respeito de Jerusalém, considerado o círculo que faz o globo terrestre, o Brasil fica imediatamente detrás de Etiópia.

Diz mais o Profeta que a gente desta terra é terrível: ad populum terribilem; e não pode haver gente mais terrível entre todas as que têm figura humana, que aquela (quais são os Brasis) que não só matam seus inimigos, mas depois de mortos os despedaçam e os comem e os assam, e os cozem a este fim, sendo as próprias mulheres as que guisam e convidam hóspedes a se regalarem com estas inumanas iguarias; e assim se viu muitas vezes naquelas guerras, que estando cercados os Bárbaros, subiam as mulheres às trincheiras ou paliçadas, de que fazem os seus muros, e mostravam aos nossos as panelas em que os haviam de cozinhar. Fazem depois suas frautas dos mesmos ossos humanos, que tangem e trazem na boca, sem nenhum horror, e é estilo e nobreza entre eles não poderem tomar nome senão depois de quebraram a cabeça a algum inimigo, ainda que seja a alguma caveira desenterrada com outras cerimônias cruéis, bárbaras e verdadeiramente terríveis. Em lugar de gentem conculcatam, lê o Sírio—gentem depilatam: gente sem pêlo; e tais são também os Brasis, que pela maior parte não têm barba, e no peito e pelo corpo têm a pele lisa e sem cabelo, com grande diferença dos Europeus.

Estes são os sinais comuns que nos aponta o Profeta daquela terra e gente; mas porque assinala mindamente outros mais particulares e que não convêm a toda a gente e terra do Brasil, é outra vez necessário que nós também declaremos a província e gente em que eles todos se verificam; e esta gente e esta província mostraremos agora que é a que com toda a propriedade chamamos Maranhão, que por ser tão pouco conhecida e menos nomeada nos escritores, não é muito que a falta de suas notícias lhe tivesse até agora escurecido e divertido a honra deste famoso oráculo do mais ilustre profeta, que tão expressamente tinha falado nesta gente.

Diz pois o Profeta, que são estes homens uma gente a quem os rios lhe roubaram a sua terra: Cujus diripuerant flumina terram ejus. E é admirável a propriedade desta diferença, porque em toda aquela terra, em que os rios são infinitos e os maiores e mais caudalosos do Mundo, quase todos os campos estão alagados e cobertos de água doce, não se vendo em muitas jornadas mais que bosques, palmares e arvoredos altíssimos, todos com as raízes e troncos metidos na água, sendo raríssimos os lugares por espaço de cento, duzentas e mais léguas, em que se possa tomar porto, navegando-se sempre por entre árvores espessíssimas de uma e outra parte, por ruas, travessas e praças de água que a natureza deixou descobertas e desimpedidas do arvoredo, e posto que estes alagadiços sejam ordinários em toda aquela costa, vê-se este destroço e roubo que os rios fizeram à terra, muito mais particularmente naquele vastíssimo arquipélago do rio chamado Orelhana, e agora das Amazonas, cujas terras estão todas senhoreadas e afogadas das águas, sendo muito contados e muito estreitos os sítios mais altos que eles, e muito distantes uns dos outros, em que os Índios possam assentar suas povoações, vivendo por esta causa não imediatamente sobre a terra, senão em casas levantadas sobre esteios a que chamam juraus para que nas maiores enchentes passem as águas por baixo; bem assim como as mesmas árvores, que tendo as raízes e troncos escondidos na água, por cima dela se conservam e aparecem, diferindo só as árvores das casas em que umas são de ramos verdes outras de palmas secas.

Desta sorte vivem os Nheengaíbas, Goianás, Maianás e outras antigamente populosas gentes, de quem se diz com propriedade que andam mais com as mãos que com os pés, porque apenas dão passo que não seja com o remo na mão, restituindo-lhes os rios a terra que lhes roubaram, nos frutos agrestes das árvores de que se sustentam, cuja colheita é muito 1impa, porque caem todos na água, e em muita quantidade de tartarugas e peixes-bois, que são os gados que pastam naqueles campos, além de outro pescado menor, e alguma caça de aves e montaria de porcos, que nos mesmos lugares sobre-aguados, entre os lodos e raízes das árvores, se ceva nos frutos delas. E nota o Profeta que não é rio, senão rios, os que isto fazem; porque, ainda que o rio das Amazonas tenha fama de tão enorme grandeza, toda esta se compõe do concurso de muitos outros rios, que todos desembocam nele, ou juntamente com ele, comunicando e confundindo em si as águas e como unindo e conjurando as forças para este roubo que fizeram àquela terra: Cujus diripuerunt flumina terram ejus.

Continua Isaías a sua descrição, e diz que os habitadores desta província são gente arrancada e despedaçada, e só o Espírito Santo poderá recopilar em duas palavras a história e última fortuna daquela gente.

Quando os Portugueses conquistaram as terras de Pernambuco, desenganados os Índios (que eram mui valentes e resistiram por muitos anos) que não podiam prevalecer contra as nossas armas, uns deles se sujeitaram, ficando em suas próprias terras; outros, com mais generosa resolução e determinados a não servir, se meteram pelo sertão, onde ficaram muitos; outros, caindo para a parte do mar, vieram sair às terras do Maranhão, e ali como soldados tão exercitados com o mais poderoso inimigo, fizeram facilmente a seus habitadores o que nós lhes tínhamos feito a eles.

Desta peregrinação e desta guerra se seguiram naquela gente os dois efeitos que sinala Isaías, ficando uma e outra gente arrancada e despedaçada: os vencedores arrancados, porque os tinham lançado de suas terras os Portugueses; e também despedaçados, assim porque foram ficando a pedaços em vários sítios como porque depois da vitória lhes foi necessário para conservarem o violento domínio, dividirem-se em colônias mui distantes uns dos outros, os vencidos também ficaram arrancados, porque os Tutinambás, (que assim se chamavam os Pernambucanos) os arrancaram de suas pátrias; e também e com muito maior razão despedaçados porque, não podendo resistir, muitos deles fugiram em magotes pelos matos e pelos rios tomando diferentes caminhos, onde fizeram assento, não sem novos inimigos que ainda mais os despedaçassem; assim que uns e outros ficaram gente arrancada, e uns e outros gente despedaçada: gentem conculcatam et dilaceratam.

Conhecidos já pela fortuna os descreve o Profeta, e muito particularmente pelo exercício e arte da navegação, em que eram e são os Maranhões mui sinalados entre os índios, por serem eles, ou os primeiros inventores da sua náutica, como gente nascida e mais criada na água que na terra, ou certamente porque com sua indústria adiantaram muito a rudeza das embarcações bárbaras, de que os primeiros usavam. Tanto assim que a principal nação daquela terra, tomando o nome da mesma arte de navegar e das mesmas embarcações em que lá navegavam, se chamam Igaruanas, porque as suas embarcações, que são as canoas, se chamam na sua língua igara, e deste nome igara derivaram a denominação de Igaruanas, como se disséssemos os náuticos, os artífices ou os senhores das naus

Diz pois Isaías que esta gente de que fala é um povo: Quae mittit in mare legatos et in vasis papyri super aquas: «Que manda de uma parte para outra seus negociantes em vasos de cascas de árvores sobre as águas.>>

As palavras do Profeta todas têm mistério e todas declaram muito a propriedade da gente de que fala. Diz que as manda o povo, com quem concorda o relativo quae, porque é gente que não tem reis, mas o mesmo povo e a mesma nação é a que elege aqueles que lhes parecem de melhor talento, assim para os negócios da paz, como para os da guerra, que tudo isso quer dizer a palavra legatos, como se pode ver nos autores da língua latina. Diz mais que vão sobre as águas em vasos de cascas de árvores, porque esta era a matéria e fábrica de suas embarcações. Depois que tiveram uso do ferro, cavam os troncos das árvores e fazem de um só madeiro muito grandes canoas, de que o autor desta explicação viu alguma que tinha dezessete palmos de boca e cento de comprimento; mas antes de terem ferro despiam estes mesmos madeiros, cujos troncos são muito altos e direitos, e, tirando-lhes as cascas assim inteiras, delas formavam as suas embarcações. E não faz dúvida dizer o profeta que estas embarcações iam ao mar: Qui mittit in mare; porque, além de entrarem com elas pelo mar Oceano, o mesmo arquipélago que dizemos, de água doce, se chama na sua língua, por sua grandeza, mar, e de aqui veio o nome que os Portugueses lhe puseram de Grão-Pará ou Maranhão, o que tudo quer dizer mar grande, porque Pará significa mar.

Do que temos dito até aqui ficará mais fácil de entender aquele grande enigma do Profeta, que está nas primeiras palavras deste texto: Vae terrae cymbalo alarum; o qual foi sempre o que maior trabalho deu aos intérpretes e os obrigou a dizerem cousas mui violentas e impróprias, como aqueles que falavam a adivinhar, e não adivinhavam nem podiam. Os Setenta Intérpretes, em lugar de terrae cvmbalo alarum, leram terrae navium alis; e uma e outra cousa significam as palavras de Isaías; porque os nomes hebreus de que estas versões foram tiradas, têm ambas as significações e querem dizer: Ai da terra que tem navios com asas; ou, ai da terra que tem sinos com asas. Se são sinos, como são navios? e se são navios, como são sinos?

Esta dificuldade foi até agora o torcedor de todos os entendimentos dos expositores sagrados, de 1600 anos a esta parte; mas como podia ser que entendessem o enigma da terra, senão tinham as notícias nem a língua dela? Para inteligência do verdadeiro entendimento deste texto ou enigma, se há-de supor que a palavra latina cymbalum, com que significamos os nossos sinos de metal, significa também qualquer instrumento com que se faz som e estrondo e tais eram os címbalos de que usavam antigamente os Gentios, que se chamavam por nomes particulares sistros crotalos, ou cretitáculos, e por nome geral cimbalos. Assim o explicou eruditamente Carpenteio, vertendo em verso este mesmo lugar de Isaías:

Vae tibi, quae reducem sistris cretitantibus apim
Concelebras, crotalos et inania cymbala pulsas...

Também se há-de supor que os Maranhões usavam de uns instrumentos a que chamavam maracás não de metal, porque o não tinham, senão de cabaços ou cocos grandes, dentro dos quais metiam seixos ou caroços de várias frutas, duros e acomodados a fazer muito estrondo e ruído, servindo-se dos menores nas festas e nos bailes e dos maiores nas guerras. Estes maracás eram propriamente os seus címbalos ou sinos, tanto assim que, depois que viram os sinos de que nós usamos, lhes chamam itamaracás, que quer dizer, maracás ou sinos de metal.

Isto suposto, o expositor que mais foi rastejando o sentido verdadeiro que podia ter este enigma, foi Gabriel Palácio, o qual, no comentário literal deste lugar de Isaías, diz assim: Fortasse indicus usus nominis cymbali antiquitas inolevit apud Hebraeos tempore Isaiae: «Porventura—diz ele—que no tempo de Isaías as embarcações dos Índios se chamariam entre os Hebreus sinos.» E porque não seria antes, digo eu, que se chamassem sinos, ou tomassem nome de sinos as embarcações dos índios, de que Isaías falava, não porque este nome fosse usado entre os Hebreus, senão entre os mesmos Índios? Assim era e assim é, e deste modo fica decifrado e entendido o antiquíssimo e escuríssimo lugar e enigma de Isaías.

As maiores embarcações dos Maranhões chamam-se maracàtim, derivado o nome da palavra mararacá, que, como dissemos, significa entre eles sino; e a razão de darem este nome às suas maiores embarcações era porque, quando iam às batalhas navais, quais eram ordinariamente as suas, punham na proa um destes maracás muito grandes, atados aos gorupezes ou paus compridos; e bolindo de indústria com eles, além do movimento natural das canoas e dos remeiros, faziam um estrondo barbaramente bélico e horrível; e porque a proa da canoa se chama tim, tirada a metáfora do nariz dos homens ou do bico das aves, que têm o mesmo nome, e juntando a palavra tim com a palavra maracá, chamavam àquelas canoas ou embarcações maiores maracàtim; e este nome usam ainda hoje, e com ele nomeiam os nossos navios.

Nem mais nem menos que os Romanos às suas galés de guerra deram nomes de rostratas, pelas pontas de ferro agudas que levavam nas proas, tirado também o nome ou metáfora dos bicos das aves, que chamam rostros. Assim que vem a dizer Isaías que a terra de que fala é terra que usa embarcações que têm nomes de sinos; e estas são pontualmente os maracàtins dos Maranhões.

Mas não está ainda explicada toda a dificuldade ou propriedade do enigma, porque diz o Profeta que estas embarcações ou estes sinos eram sinos e embarcações com asas: cymbalo alarum, navium alis. Os expositores todos dizem que estas asas eram as velas das embarcações e que são as asas dos navios, conforme o poeta: Velorun pandimus alas. A qual explicação pudera ser bem admitida, se não tivera a própria e verdadeira; sendo certo que o Profeta não havia de dar por sinal e divisa daquelas embarcações uma cousa tão comum e universal em todas.

Digo pois que fala o texto de verdadeiras asas de aves. Como aqueles gentios não tecem, nem têm panos, é grande entre eles o uso das penas pela formosura das cores com que a natureza vestiu os pássaros, e particularmente o chamado guarás, de que há infinita quantidade, grandes e todos vermelhos, sem mistura de outra cor; destas penas se enfeitam quando se querem pôr bizarros, e principalmente quando vão à guerra, ornando com elas todo o gênero de armas, porque não só levam empenadas as setas, senão também os arcos e rodelas, e as partaz anas de pau e pedra que chamam fanga-penas; e quando a guerra era naval, empavezavam-se as canoas com asas vermelhas dos guarás. e as mesmas levavam penduradas dos gorupezes e maracás das proas; e por isso o Profeta diz que todas estas cousas via e notava como tão novas: chamam as lanças sinos e sinos com asas: Navius alis, cymbalo alarum.

E porque não faltasse a esta terra a demarcação ou arrumação, como dizem os geógrafos, da sua altura, onde a Vulgata leu gentem expectantem expectantem, a propriedade da letra hebréia, como diz Foreiro, Pagnino, Vatablo, Sanchez e outros muitos tão geralmente, é gentem lineae linea:, gente da linha de linha; porque os Maranhões são aqueles que, além da Etiópia, ficam pontual e perpendicularmente bem debaixo da Linha Equinocial, que é propriedade por todos os títulos admirável; e assim como a palavra lineae se repete, está também repetida no mesmo texto a palavra expectantem; com que vem a concluir o Profeta o seu principal e total intento, que é exortar os pregadores evangélicos a que vão ser anjos da guarda daquela triste gente, que tanto há mister quem a encaminhe como quem a defenda: Ite, angeli veloces, ad gentem expectantem, expectantem: gente que está esperando, esperando. Porque entre todas as gentes do Brasil os Maranhões foram os últimos a quem chegaram as novas do Evangelho e o conhecimento do verdadeiro Deus, esperando por este bem, que tanto tardou a todos os Americanos, mais que todos eles. No Brasil se começou a pregar a Fé no ano de 1550, em que o descobriu Pedro Álvares Cabral; e no Maranhão no ano de 1615, em que o conquistou Alexandre de Moura, esperando mais que todos os outros Brasis sessenta e cinco anos. Mas hoje estão ainda em pior fortuna, padecendo aquele vae do Profeta: Vae terra: cymbalo alarum; porque o estado da esperança se Lhes tem trocado no de desesperação. E esperam de se salvar os que de tantos danos e danos são causa?

Muito largos temos sido na exposição deste texto, mas foi assim necessário por sua dificuldade e por não estar até hoje entendido. Deixo muitos outros lugares do Profeta Isaías, o qual verdadeiramente se pode contar entre os cronistas de Portugal, segundo fala muitas vezes nas espirituais conquistas dos Portugueses e nas gentes e nações que por seus pregadores se converteram à Fé; que o primeiro e principal intento que neles tiveram nossos piedosíssimos reis, como se pode ver do que de El-Rei Dom Manuel, de El-Rei Dom João o II, do Infante Dom Henrique, de El-Rei Dom João o III e de El-Rei Dom Sebastião escrevem seus historiadores.

O Profeta Abdias em um só capítulo que escreveu também falou das conquistas de Portugal: El transmigratio Hierusalem, quae in Bosphoro est, possidebit civitates Austri. A palavra hebréia Sepharad, de que São Jerônimo verteu Bosphoro, significa termo, limite e fim. Esta mesma palavra Sepharad é nome com que os Hebreus chamam a Espanha, porque em Espanha está o estreito que divide a Europa de África e Espanha era o termo, limite e fim que os Antigos conheciam no Mundo, como testemunham de uma parte as Colunas de Hércules e de outra o cabo de Finis Terrae, que são as duas balizas que têm no meio a Portugal. Toda a explicação é comum e certa entre todos os autores mais peritos da língua hebraica—Vatablo, Pagnino, Burgense, Arias, Lirano, Isidoro Clário e os demais. Diz agora o profeta Abdias que a transmigração de Jerusalém, que passou a Espanha, viria tempo em que possuísse as cidades do Austro.

Mas sobre a transmigração de Jerusalém de que Abdias fala, há duas opiniões entre os autores. Árias Montano, Frei Luís de Leon, Malvenda e outros têm para si que fala da transmigração de Nabucodonosor o qual, tendo conquistado a Jerusalém e passado seus habitadores para Babilônia, de ali mandou parte deles para Espanha, por ser parte desta província conquista sua, como refere Josefo, Estrabo e outros graves autores, e que veio o mesmo Nabuco em pessoa a fazer esta guerra. Destes hebreus, ou desterrados ou trazidos por Nabuco, ficaram muitos em Espanha, pela qual fortuna (como notou Santo Agostinho na morte dos infantes de Belém) não tiveram parte na morte de Cristo e conservaram sua antiga nobreza, e deles, como escrevem muitas histórias de Espanha, foi fundação a insigne cidade de Toledo, Maqueda, Escalona e outras. Assim querem também que de Nabuco traga seu apelido a ilustre família dos Osórios. Desta transmigração pois (diz Montano e os mais acima alegados) se há-de entender o texto de Abdias; e como o Profeta própria e literalmente falava neste lugar do mesmo cativeiro de Babilônia, é conseqüência muito ajustada que da profecia do desterro passou, para consolação dos mesmos desterrados, a uma felicidade tão estranha, que delas havia de ter princípio, qual é a que logo diremos.

Nicolau de Lira, Vatablo, Fevardêncio e outros entendem por esta transmigração de Jerusalém a que fez Cristo, mandando daquela cidade e espalhando por todo o Mundo seus Apóstolos, entre os quais coube Espanha a Sant'Iago, e ele por meio de seus discípulos a converteu toda à Fé e desterrou dela a Gentilidade: Et transmigratio Hierusalem, quae in Bosphoro est (diz Lirano) in hebraeo habetur in Cepharad, id est in Hispania, ubi dicit Rabbi Sa... quod fuit impletum per Jacobum apostolum, et ejus discipulos, ibi fidem Christi primitus praedicantes, et colla gentium subjugantes, etc. E cumprida em Sant'Iago a transmigração de Jerusalém, que é a primeira parte da profecia, em seus discípulos, que são os que em Espanha receberam e conservaram sempre a Fé que ele lhes tinha pregado, se cumpriu a segunda parte dela; sendo estes os que depois de tantos séculos vieram a dominar e possuir as regiões do Austro: Possidebunt civitates Austri. Assim o entendem também, seguindo esta segunda exposição, Cornélio, José da Costa, Antônio Caracciolo e outros. De maneira que todos estes autores concordam em que a profecia da conquista das regiões do Austro se entende de Espanha; e discordam só na inteligência da transmigração de Jerusalém, entendendo uns que é a de Nabuco pelos Judeus passados à Espanha, e outros que é a de Cristo pelos Apóstolos, quando vieram pregar a ela; mas eu, conciliando facilmente estas duas opiniões e mostrando que a profecia se entende mais particularmente de Portugal, digo que falou o Profeta de uma e outra transmigração, porque de ambas as transmigrações foram os primeiros ministros da Fé que a plantaram em Portugal, de onde ela depois tão felizmente se transplantou às regiões do Austro.

O fundamento que tenho para assim o dizer, porei aqui com as palavras do arcebispo D. Rodrigo da Cunha, o qual, na primeira parte da História Ecclesiastica Bracharense, falando do Apóstolo Sant'Iago, diz desta maneira:

Entrou em Braga o santo Apóstolo, e para entrar com estrondo de trovão (cujo filho o chamara Cristo, Nosso Senhor, se foi a uma sepultura célebre, onde jacia enterrado de seiscentos anos um santo profeta, judeu de nação, e que ali viera dar com outros cativos mandados de Babilônia por Nabucodonosor, chamado Malaquias, o velho, ou Samuel, o moço e em presença de infinito povo, chamando por ele o ressuscitou em nome de Jesus Cristo, a quem vinha pregar e publicar por verdadeiro Deus; batizou-o pouco depois, e dando-lhe o nome de Pedro, o escolheu e tomou por primeiro e principal de todos seus discípulos.

Até aqui esta maravilhosa história, tirada de autores e memórias mui antigas, e particularmente de uma carta de Hugo, bispo do Porto, e dos fragmentos de Santo Atanásio, bispo de Saragoça, o qual conheceu ao mesmo Pedro ressuscitado e escreveu o caso quase pelas mesmas palavras, que por isso não traduzimos, e são as seguintes: Ego novi sanctum Petrum, Bracharensem Episcopum, quem antiquum prophetam suscitavit Sanctus Jacobus Zebeduei filius, magister meus. Hic venerat cum duodecim tributus missis a Nabuchodonosore in Hispaniam Hierosolymis duce Nabucho-Cerdan, vel Pyrrho, Hispaniarum praefecto.

De sorte que ambas as transmigrações de Jerusalém concorrem para a fé de Portugal: a de Cristo com o Apóstolo Santiago, e a de Nabuco com o Apóstolo Malaquias, depois chamado vulgarmente S. Pedro de Rates, que foi a pedra fundamental depois do sagrado Apóstolo da Igreja de Portugal. Os filhos desta Igreja e herdeiros desta Fé foram os que dali a tantos anos dominaram com os estandartes dela as cidades e regiões do Austro, que são propriissimamente as que correm de uma e outra parte do Oceano Austral, à parte direita pela costa da América ou Brasil, e à esquerda pela costa de África à Etiópia, cuja rainha Sabá chamou Cristo Regina Austri; e estas são as terras de que no comento deste texto faz menção Cornélio: Americam, Brasilicam, Africam, AEthiopiam.

Assim se cumpriu nos Portugueses a profecia de Abdias: Transmigratio, quae est in Hispania, possidebit civitates Austri. E esperamos que seja novo complemento dela o domínio da terra indômita, geralmente chamada Terra Austral.

O Cântico de Habacuc, que é a matéria de todo o III cap. e último deste Profeta, tem por assunto o triunfo de Cristo, com que por meio da sua cruz triunfou um dia da morte, do demônio e do pecado, e depois em vários tempos foi triunfando da idolatria e da gentilidade, conforme a disposição da sua providência. A parte marítima deste triunfo, que também foi naval, pertence principalmente aos Portugueses, por meio de cuja navegação e pregação sujeitou Cristo à obediência de seu império tantas gentes de ambos os mundos. Isto quer dizer 0 Profeta no v. 8.° ...ascendes super equos tuos: et quadrigae tuae salvatio. E no v. 15.°: Viam fecisti in mari equis tuis, in luto aquarum multarum. Que abriu Cristo caminho pelo mar à sua cavalaria, para que pisasse as ondas, e que a guerra que com esta cavalaria havia de fazer, não era para matar os homens, senão para os salvar, e salvando-os, triunfar deles: Equitatio tua salus; hoc est, evangelistae tui portabunt te, diz Santo Agostinho, e verdadeiramente não se podia dizer cousa mais apropriada aos Portugueses.

Os Portugueses foram aqueles cavaleiros a quem Cristo abriu o primeiro caminho pelo mar: Viam fecisti in mari equis tuis. Os Portugueses, aqueles cavaleiros que pisaram as ondas do mar, como os cavalos pisam o lodo da terra: In Iuto aquarum multarum; e as naus dos Portugueses, aquelas carroças que levavam pelo mar a Fé, a salvação: Et quadrigae tuae salvatio. E a primeira empresa e vitória desta cavalaria de Cristo foi a sujeição do mesmo mar bravo, soberbo, furioso e indignado, que ou Cristo lhe sujeitou a eles, ou eles o sujeitaram também a Cristo, para que o reconhecesse e adorasse. O mesmo Profeta o disse assim: Numquid in mari indignatio tua?» «Porventura, ó Senhor, há-de ser eterna a vossa indignação no mar?» E responde a esta sua pergunta, que o mar submeteria suas ondas: Gurges aquarum transiit: que os abismos confessariam a potência de Cristo as vozes: Dedit abyssus vocem suam; (Ibid.) e que as suas alturas ou profundidades, com as mãos levantadas o adorariam e reconheceriam por Senhor: Altitudo manus suas levavit; e esta foi a primeira vitória de Cristo, e este da sua cavalaria o primeiro triunfo.

Mas para que se veja o grande mistério desta metáfora de cavalaria de Cristo, de que usou o Profeta (deixando à parte haver sido esta empresa dos primeiros descobrimentos e conquistas dos Portugueses), por si mesma e na opinião do Mundo tem [esta] cavalaria [tanto valimento,] que não só os mesmos Portugueses, senão ainda os estrangeiros, faziam grande apreço de se armarem nela cavaleiros, como lemos que o fizeram alguns de Alemanha e Dinamarca.

Faz muito ao caso advertir o que escreve o nosso insigne historiador destas conquistas, que quero pôr aqui por suas próprias palavras): Mas ainda foi acerca dele (fala do Infante D. Henrique) outra cousa muito mais eficaz, que era a obrigação do cargo e administração que tinha de governador da Ordem da Cavalaria de Nosso Senhor Jesus Cristo, que El-Rei D. Dinis, seu tresavo, para esta guerra dos Infiéis ordenou e novamente constituiu. E mais abaixo no mesmo cap., que é o 2° do liv. I.°, Década I.a: Assentou em mudar esta conquista para outras partes mais remotas de Espanha, do que eram os reinos de Fez e Marrocos, com que a despesa deste caso fosse própria dele e não taxada por outrem; e os méritos de seu trabalho ficassem metidos na Ordem e Cavalaria de Cristo que ele governava; de cujo tesouro podia pretender. De sorte que dizer o Profeta que Cristo havia de abrir caminho no mar à sua cavalaria, e que a empresa havia de ser a salvação das almas, não só tem a formosura da metáfora, senão a propriedade do caso, e a verdade da história e cumprimento da profecia; pois verdadeiramente esta admirável empresa foi obra, não de outro príncipe, senão de um que era propriamente administrador e governador da Ordem da Cavalaria de Cristo, e feita, não com outras despesas, senão com as rendas e tesouros da mesma cavalaria e serviços e merecimentos próprios dela.

E porque o maior ministro do Evangelho que se embarcou nas carroças desta cavalaria, para levar a salvação às terras e gentes que ela descobriu e conquistou, foi o grande Apóstolo da Índia S. Francisco Xavier, cujos primeiros trabalhos foram os da navegação da costa de África e pregação da Fé em Moçambique, é cousa memorável e muito digna de se referir neste lugar, que também ele foi cavaleiro da mesma Ordem.

Na História do P.e Marcelo Mastrilli, a quem S. Francisco Xavier restituiu milagrosamente a vida, para que a fosse dar por Cristo no Japão, onde padeceu glorioso martírio, se conta uma visão em que o mesmo santo apóstolo apareceu vestido com o manto branco da Ordem de Cristo e com cruz vermelha no peito, como insigne cavaleiro desta santa cavalaria, e que tanto adiantou em nossas Conquistas a glória de sua empresa. Singular prerrogativa, por certo, da Ordem dos Cavaleiros de Cristo de Portugal, não havendo outra entre todas as da Cristandade, que se possa gloriar de ter tão ilustre cavaleiro, nem de que sobre os dotes da glória se vestisse o seu manto e a sua cruz; mas todo este favor do Céu merece uma cavalaria que tanto mar, tanto mundo e tantas almas conquistou para o mesmo Céu.

Para confirmação de tudo isto, e para que os Portugueses conheçam quanto devem a Deus, pelos escolher para instrumentos de obras tão admiráveis, e para que se não admirem quando lhes dissermos que os tem escolhido para outras maiores, não pode haver melhor testemunho que o proêmio do mesmo Profeta, com que deu princípio a este cântico triunfal das vitórias de Cristo: Domine, (começa ele) audivi auditionem tuam et timui. Domine, opus tuum in medio annoram vivifica illud. In medio annorum notum facies: cum iratus fueris, misericordiae recordaberis. Quando Deus revelou ao Profeta e quando ouviu de sua boca o que havia de fazer aos vindouros, diz que ficou cheio de temor e assombro ( assim o interpretaram os Setenta , acrescentando por modo de glosa no mesmo texto: Consideravi opera tua, et expavi). Porque não houve obra de Deus, depois do princípio e criação do Mundo, que mais assombrasse e fizesse pasmar aos homens que o descobrimento do mesmo Mundo que tantos mil anos tinha estado incógnito e ignorado; nem que maior nem mais justo temor deva causar aos que bem ponderarem esta obra, que a consideração dos ocultos juízos de Deus, com que por tantos séculos permitiu que tão grande parte do Mundo, tantas gentes e tanta s almas vivessem nas trevas da infidelidade, sem lhes amanhecerem as luzes da Fé, tão breve noite para os corpos e tão comprida noite para as almas. Mas no meio desses compridíssimos anos, diz o Profeta que faria Deus que se descobrisse e conhecesse o que até então estava oculto: In medio annorum notum facies; e que tendo durado tantos séculos sua ira contra aquelas gentes idólatras, em fim se lembraria de sua misericórdia: Cum iratus fueris, misericordiae recordaberis; e que então tornaria o Senhor a vivificar e ressuscitar a sua obra: Opus tuum, in medio annorum vivifica illud.

Os Setenta, traduzindo juntamente e explicando leram: Cum appropinquaverint anni, cognosceris. «Quando chegarem os anos determinados por vossa providência, então sereis conhecido.:>> E este novo conhecimento que Deus deu àquelas nações por meio dos nossos apóstolos e pregadores da sua Fé foi tornar a ressuscitar a mesma obra, que tinha começado pelos primeiros apóstolos que naquelas mesmas terras a pregaram, e com o tempo estava em algumas partes amortecida e em outras totalmente morta. Isto quer dizer: Opus tuum vivifica illud: ou, como traslada Símaco: Reviviscere fac ipsum. E o mesmo profeta mais abaixo se comenta a si mesmo, dizendo: Suscitans suscitatis arcum; tuum. «Vós, Senhor, tornareis a ressuscitar o vosso arco» (que é a sua cruz), por meio de cuja pregação ressuscitaria também a Fé e as vitórias dela naquelas nações.

Assim o profetizou na Índia seu primeiro Apostolo, S. Tomé, quando na cidade de Meliapor, então famosíssima, levantando uma cruz de pedra em lugar distante das praias, não menos que doze léguas. Lhes disse e mandou esculpir no pé dela, que quando o mar ali chegasse, chegariam também de partes remotíssimas do Ocidente outros homens da sua cor. que pregassem a mesma Cruz, a mesma Fé e o mesmo Cristo que ele pregava.

Cumpriu-se pontualmente a profecia, porque o mar, comendo pouco a pouco a terra, chegou ao lugar sinalado, e no mesmo tempo chegaram os Portugueses.

Igual glória (e não sei se maior de Portugal) a da Índia, que ainda tivesse a S. Tomé por seu apóstolo e Portugal não era de todo cristão, e já os Apóstolos plantavam as balizas da fé em seu nome e conheciam e pregavam que ele era o que havia de fazer cristão ao Mundo. Lembre-se outra vez Portugal destas obrigações, e de quanto lhe merece Cristo.

O Profeta Sofonias, no cap. III, também falou mui particularmente neste glorioso assunto: Ultra flumina AEthiopiae (diz ele, ou por ele Deus) inde supplices mei, filii dispersorum meorum deferent munus mihi. As quais palavras entendem Árias, Vatablo, Castro e Cornélio das nações que estão além do Tigres e do Eufrates, isto é, dos Chinas, Japões e outras gentes da Índia menos remotas, que por meio das pregações dos Portugueses se haviam de ajoelhar diante dos altares de Cristo e lhe haviam de levar e oferecer seus dons em testemunho de o reconhecerem por seu Deus; mas contra esta explicação parece que se opõem as primeiras palavras do texto, que verdadeiramente falam das gentes que estão além do rio da Etiópia: Ultra flumina AEthiopiae inde supplices mei. Logo, segundo o que acima deixamos dito, não se pode entender este texto das gentes orientais. Por este argumento há outros autores que o entendem do Brasil e da América, e posto de um e outro modo, sempre o oráculo ou elogio deste Profeta nos fica em casa. Digo que de uma e outra terra, e de uma e outra gente se pode entender.

E a razão é porque, segundo Estrabo, Éforo, Heródoto e outros, debaixo do mesmo nome de Etiópia se compreendiam antigamente duas Etiópias: uma oriental, que estava na Ásia além do Tigres e Eufrates, donde era a mulher de Moisés, chamada por isso Etiópia; e outra ocidental, na África, que são todas aquelas terras que cerca o mar Oceano, desde Guiné até o mar Roxo.

As palavras de Heródoto são estas: Hi AEthiopes, qui sunt ab ortu Solis, sub Pharnarzatre, censebantur cum Indiis specie nihil admodum a caeteris differentes, sed sono vocis dumtaxat, atque capillatura. Nam AEthiopes qui ab ortu Solis sunt, permixtos crines; qui ex Africa, crespissimos inter homines habent. De sorte que também havia Etíopes na Ásia, como são hoje os que se conservam com o mesmo nome na África, e só se distinguiam uns dos outros no som da voz e no cabelo; porque os da .Ásia tinham o cabelo solto e corredio e os da África crespo e retorcido; a qual distinção não não só é necessária para o entendimento de muitos lugares das Escrituras, senão ainda dos historiadores e poetas antigos, que de outro modo se não podem bem entender.

Nem faça dúvida a esta distinção a palavra Chus, de que usa indistintamente o original hebreu, donde nós lemos AEthiopae; porque Membrot, filho de Chus e neto de Cham, deu o nome de seu pai às terras orientais, onde habitou e povoou. Os descendentes deste mesmo Membrot e deste mesmo Chus, como diz Éforo, referido por Estrabo, e os que depois passaram à África e a povoaram, levaram consigo o nome que tinham herdado de seu pai e de seu avô; e assim como uns e outros na língua latina se chamam AEthiopes, e a sua terra Ethiopia, assim uns e outros na língua hebréia se chamam Chuteos e a sua terra Chus. Donde se segue que quando na Escritura se acha este nome sem outra diferença, (como neste lugar de Sofonias) se pode entender de qualquer das Etiópias; porém quando se ajuntem na história ou narração algumas diferenças que o determinem, então se há-de entender determinadamente ou só da Etiópia Oriental ou só da Ocidental, como nós fizemos no texto de Isaías ultimamente referido.

No cap. XVI, 12, do Apocalipse, diz S. João: Et sextus angelus effudit phialam suam in flumen illud magnum Euphraten: et siccovit aquam ejus, ut praepararetur via regibus ab ortu Solis: Que «o sexto anjo derramou sua redoma sobre aquele grande rio Eufrates e que secou suas águas, para aparelhar o caminho aos reis do Oriente». O maior impedimento de água que tinham os reis do Oriente para passar a Jerusalém, era o rio Eufrates, por ser o mais profundo e mais caudaloso da Saia; e este impedimento diz S. João que se lhes havia tirar, de modo que se pudesse passar o Eufrates a pé enxuto. Mas debaixo das figuras deste enigma se significava outra melhor Jerusalém, que é Roma, cabeça da Igreja, e outro melhor Eufrates, que é o mar Oceano, pelo qual se abriu caminho aos reis do Oriente, para que pudessem vir à Igreja.

Assim como o Profeta Jeremias chamou ao Eufrates mar, não é muito que S. João chamasse ao mar Eufrates, principalmente acompanhado daqueles dois epítetos de alusão a grandeza: Illud magnum Euphatem. E este grande Eufrates é aquele grande mar, pelo qual os Portugueses (maior façanha e ventura que a do outro Ciro) fizeram passagem a pé enxuto nas suas grandes naus da Índia, para levarem nelas a Fé ao Oriente e trazerem tantos reis orientais à obediência e sujeição da Igreja. Não sou eu nem autor português (como quase todos os que até agora tenho alegado) o que isto digo, senão o doutíssimo Genebrardo, insigne professor parisiense das Letras Sagradas. falando em geral dos Espanhóis e em particular dos Portugueses, a quem só pertence a conversão dos reis do Oriente, 0 diz assim sobre este mesmo lugar do Apocacalipse.

O mesmo Evangelista Profeta S João, no cap. X, diz que viu descer do Céu um anjo forte, cujas insígnias descreve largamente , que nós pode ser expliquemos em outro lugar. Neste basta dizer que tinha na mão um livro aberto: Et habebut in manu sua libellum apertum, e que pôs o pé esquerdo sobre a terra e o direito sobre o mar: Et posuit pedem suum dextrum super mare et sinistrum super terram.

Este anjo forte (diz Pedro Bulêngero) é Cristo; o livro, o Evangelho explicado; e os pés de seu corpo místico, que é a Igreja, os pregadores apostólicos que levam pelo Mundo ao mesmo Cristo e seu Evangelho, entre os quais o pé esquerdo, que está sobre a terra, são aqueles que, sem saírem da terra firme pregaram nela; o pé direito, que está sobre o mar, os que, navegando às regiões apartadas e remotas do nosso hemisfério, levam a elas a Fé de Cristo e a luz de seu Evangelho; donde se segue que o pé direito que Cristo pôs sobre o mar para esta gloriosa e evangélica empresa, são, entre todas as nações do Mundo, por excelência os Portugueses. Não os nomeou por seu nome este autor, mas nomeou-os por suas obras, e é o mais honrado nome e de maior estimação que lhes podia dar, explicando-se com as palavras seguintes: Istud nostra memoria factum videmus, quae quidem regna a nobis longe dissita el incognitae regiones teterrimo daemonum cultui additae sunt, opera patrum Societatis nominis Jesu ad Christi religionem traducta sunt. Sinenses enim, qui populi ad veteres Índias expectant, et infideles sunt, (relicto daemonum cultu, ad octo millia primum) et in his reges et princites, permultique proceres et optimates sub anno Domini I564, Christi Jesu fidem susceperunt; deinde multa Indorum insulae et regiones christianam, catholicamque amplexerunt doctrinam, et integrae civitates sacro sunt ablutae baptismate.

«Em cumprimento desta profecia (diz Bulêngero, alegando a Súrio). vemos que os reinos e regiões muito apartadas de nós, que adoravam nos ídolos aos demônios, pela indústria dos padres da Companhia de Jesus, se têm passado à verdadeira religião; porque os Chinas, que pertencem às antigas Índias, e são infiéis e gentios, deixando o culto da idolatria no ano de I564, receberam a Fé de Cristo em número de 8.000, em que entraram os príncipes e reis e muitos grandes senhores; e em outras muitas ilhas e terras, de tal maneira os Índios abraçaram a doutrina cristã e católica, que as cidades se batizaram.>> Tão facilmente triunfa Cristo pela voz e espada dos Portugueses, com o pé direito no mar e o livro na mão direita!

No capítulo seguinte se verão muitos lugares de vários Profetas, explicados por autores que escreveram de cem anos a esta parte, depois que por meio da navegação do mar Oceano se quebrou o fabuloso encantamento dos negados antípodas e se descobriram tantas terras e gentes, não só incógnitas aos Antigos, mas nem ainda presumidas ou imaginadas deles. Ali veremos as admiráveis propriedades e miudíssimas circunstâncias com que os mesmos Profetas falaram dos mares, das ilhas, das navegações, das terras, dos sítios, dos rios, das minas, das árvores, dos frutos, das gentes, dos costumes, da cegueira e infelicidade em que viviam, e sobre tudo da Fé e luz do Evangelho, com que por meio dos pregadores de Cristo o haviam finalmente de conhecer, adorar e servir, como hoje, com tanta glória da Igreja, conhecem, adoram e servem.

Agora só pergunto: Como era possível que aqueles antigos e antiquíssimos autores explicassem neste sentido aos Profetas? Ou como podiam entender nem perceber que destas gentes, e destas terras, e destes mares, falavam os seus oráculos e profecias? Se criam tão firme e assentadamente que não havia nem podia haver antípodas, como podiam explicar as profecias dos antípodas? Se criam que a imensidade do mar Oceano não era navegável e tinham este pensamento por absurdo, como haviam de entender as profecias destas navegações e destes mares? Se queriam que a zona tórrida era um perpétuo incêndio, e totalmente abrasada e inabitável, como haviam de interpretar as profecias dos habitadores da zona tórrida? Como haviam de cuidar, nem lhes havia de vir ao pensamento que os Profetas falavam dos Americanos, se não sabiam que havia América? Como dos Brasis, se não havia Brasil? Como dos Peruanos e Chiles, se não sabiam que havia Peru nem Chile? Como haviam de interpretar os Profetas das ilhas desertas ou povoadas do Oceano, se não sabiam que havia no Mundo tais ilhas? Como dos Etíopes ocidentais, se não sabiam que havia tal Etiópia? Como dos Japões, se não sabiam que havia Japões? Como dos Chinas, se não sabiam que havia China? Se os Profetas nas figuras enigmáticas dos seus oráculos se declaram pela natureza, propriedade, costumes, exercícios e histórias das gentes e reinos de que falam, como haviam de vir em conhecimento dessas gentes e desses reinos os que não podiam saber sua natureza, suas propriedades, seus exercícios e seus costumes, nem suas histórias? Se declaram as terras pelos sítios, pelos rios, pelas árvores, pelos frutos, pelas minas e seus metais, como podiam conhecer nem atinar com as terras os que não tinham notícia de tais sítios, de tais rios, de tais minas, de tais árvores, nem de tais frutos? E se ainda hoje, depois de descobertas e conhecidas estas terras e estas gentes, e se terem escrito tantos livros de sua história natural e política, ainda por falta de notícias mais particulares e miúdas, se não acerta mais que em comum e individualmente com algumas das terras e gentes de que os profetas falaram, que seriam na confusão escuríssima da Antigüidade, em que nenhuma destas cousas se sabia nem se imaginava, antes as contrárias delas se tinham por averiguadas e certas?

Frei João de la Puente, naquele seu erudito livro da Conveniência das duas monarquias, romana e espanhola, trabalhando por explicar de Espanha certo lugar de Isaías, diz assim dos teólogos, sendo ele mestre em Teologia: La falta de Geographia v la de otras artes liberales es causa que los teologos non atinem con el sentido de la divina Escritura. E isto que se não pode dizer dos teólogos do nosso tempo sem grande nota de sua ciência e diligência, depois do Mundo estar tão descoberto e conhecido, é obrigação e força que digamos ou suponhamos dos teólogos antigos, por doutíssimos e sapientíssimos que fossem, como verdadeiramente eram, sem agravo, nem menos decoro de sua erudição e grande sabedoria, porque sabiam a geografia do seu mundo e não podiam saber nem adivinhar a do nosso. Só por nova revelação e luz sobrenatural podiam conhecer os autores daquele tempo o que nós tão fácil e naturalmente conhecemos hoje; mas esta revelação, esta luz e posto que fossem varões santíssimos e tão favorecidos de Deus, não quis o mesmo Deus que eles então a tivessem, porque era disposição mui assentada da sua providência que estas cousas se não soubessem, e estivessem ocultas até àqueles tempos medidos e taxados por ele, em que tinha decretado que se soubessem e descobrissem.

Diz o Apóstolo S. Paulo que acomodou Deus e repartiu os séculos conforme os decretos da sua palavra, para que cousas invisíveis se fizessem visíveis: Fide intelligimus aptata esse saecula verbo Dei, ut ex invisibilibus, visibilia fiant; por onde não é muito que tanta parte do Mundo, e as gentes que o habitavam, estivessem ignoradas e invisíveis por tantos séculos, e que depois chegasse um século em que se descobrissem e fossem visíveis; e assim como, corrida esta cortina, se descobriram e manifestaram as terras e gentes de que tinham falado os Profetas, assim se entenderam e descobriram também os segredos e mistérios de suas profecias.

Destas terras ultramarinas, encobertas e incógnitas, falava Isaías, quando disse no cap. XXIV: ...in doctrinis glorificate Dominum; in insulis maris nomen Domini, Dei Israel. E logo acrescentou: Secretum meum mihi, secretum meum mihi: «Este segredo é só para mim; este segredo é só para mim.» E se na mesma profecia estavam profetizadas as cousas, e mais o segredo delas, como podia ser que contra a verdade infalível da profecia soubessem os Antigos deste segredo, antes de chegar o tempo em que Deus tinha determinado de o revelar?

O cântico do profeta Habacuc, que também trata destes novos descobrimentos ou triunfos da Fé e da conversão destas gentes, tem por título Pro ignorantiis. E se o conselho de Deus foi que o entendimento ou de todas ou de muitas cousas que ali contou o Profeta, se ignorasse; que agravos ou descréditos é ou pode ser dos antigos sábios, que para eles fossem ocultas, incógnitas ou ignoradas? Podem os homens ocultar os seus segredos, e Deus não será senhor de reservar os seus, sendo logo certo que estes segredos da Providência Divina se não podiam alcançar por ciência humana, e que a mesma Providência tinha decretado que se não soubessem por revelação?

LAUS DEO

Entrando a tratar do Quinto Império do Mundo (grande assunto deste nosso pequeno trabalho) para que procedamos com a distinção e clareza tão necessária em toda a história e muito mais neste gênero, a primeira cousa que se oferece para averiguar e saber é que impérios tenham sido ou hajam de ser os outros quatro, em respeito ou suposição dos quais este novo de que falamos se chama Quinto. Porque sem recorrer à memória dos tempos passados, e pondo somente os olhos no mundo presente, conhecemos hoje nele muito maior número de impérios. Na Ásia, o vastíssimo Império da China, o dos Tártaros, o do Persa, o do Mogor; na África, o da Etiópia; na Europa, o de Alemanha, em que sem a grandeza se continua o nome, e o de Espanha, em que sem o nome, posto que arruinada e combatida, se sustenta a grandeza; e em todas estas três partes do Mundo o violento Império dos Turcos, tão estendido, tão unido, tão poderoso e formidável. Havendo, pois ainda nesta nossa idade tantos impérios, e sendo tantos mais os de nações bárbaras e políticas que em diversos tempos do Mundo se têm levantado e caído, com razão se deve duvidar e desejar saber a causa pôr que este nosso Império que prometemos recebe o numero de Quinto, e quais sejam em ordem os outros quatro que lhe deram este lugar ou este nome. Ao que respondemos breve e facilmente que este modo de contar não é nosso nem de algum outro historiador ou autor humano, senão fundado e tirado das Escrituras divinas, cuja história profética, sem fazer caso de muitos e grandes impérios que floresceram e haviam de florescer em vários tempos e lugares do Mundo, só trata do primeiro que se começou e levantou nele, e dos que em continuada sucessão se lhe foram seguindo até o tempo presente, os quais em espaço quase de quatro mil anos têm sido com este quatro. Esta sucessão e seu princípio foi desta maneira.

Correndo os anos de 1860 da criação do Mundo, 3800 antes do presente de 1664 em que isto escrevemos, depois que a confusão das línguas na torre de Babel dividiu seus fabricantes em diversas partes da terra, castigo tão merecido a sua soberba como necessário à propagação do gênero humano e à o mesma grandeza que aspiravam, Belo, filho do gigante Nembrot (posto que não faltam graves autores que fazem destes dois nomes o mesmo homem), reduzindo a sujeição e obediência política a liberdade natural com que todos até aquele tempo nasciam, foi o primeiro que ensinou ao Mundo e introduziu nele a tirania, a que depois com nome menos odioso chamaram Império. Tantos anos tardou a ambição em romper o respeito àquela lei com que nos fez iguais a todas a natureza.

Foi este império de Belo o dos Assírios ou Babilônios; durou, segundo Justiço, perto de mil e trezentos anos; teve, entrando neste número Semearmos, 37 imperadores, de que foi o último Sardanapalo.

Ao império dos Assírios sucedeu o dos Persas pelos anos da criação 3444. Começou em Ciro, acabou em Dario; contou por todos catorze imperadores. Não durou, conforme Eusébio, mais que duzentos e trinta anos.

O terceiro Império, que foi o dos Gregos, ainda durou menos, se o considerarmos como monarquia. Alexandre o começou e acabou em Alexandre, para que vejam e conheçam as coroas quanto é grande a sua mortalidade, pois pode ser mais breve a vida de um império que a de ,um, homem. Começou este Império dos Gregos depois pelos anos do Mundo 3672, conservou-se unido somente oito, e, antes deles acabados, se dividiu em três reinos: o da Ásia, o da Macedônia, o do Egito; e este (que foi o que mais permaneceu) continuou com desigual fortuna trezentos anos, até que, governado e não defendido pela celebrada Cleópatra, o ajuntou Marco Antônio à grandeza romana.

Havia já neste tempo setecentos anos que Rômulo levantara junto ao rio Tibre aquelas primeiras choupanas que depois se chamaram Roma, cujo Império começou com este nome em Júlio César, trinta anos antes do nascimento de Cristo. Durou, pois, o Império Romano com toda a inteireza de sua monarquia 400 anos, com sucessão de 35 imperadores até o grande Constantino, o qual, fundando nova corte em Constantinopla, dividiu o Império, para melhor governo, em Império Oriental e Ocidental, e desde este tempo começaram as águias romanas a aparecer coroadas com duas cabeças. Sustentou-se o Império Oriental por espaço de quatro mil anos, em que contou oitenta e quatro imperadores, de que foi o último outro Constantino de muito diferente fortuna, porque, sendo sitiado e vencido por Maomete II, dentro em Constantinopla ,perdeu a vida e a cidade e sepultou consigo todo o Império. O do Ocidente, depois daquela divisão, experimentou nela grandes variedades, porque, sendo governado alguns anos por imperador com igual jurdição e majestade, se passou o governo a exarcas, que eram ministros e como lugar-tenentes dos imperadores orientais, até que, em tempo o Papa Lúcio TII, eleito Carlos Magno em imperador do Ocidente, ficando Roma como cabeça da Igreja, ao Pontífice passou o assento do Império - a Alemanha.

Sucedeu esta mudança pelos anos de Cristo de 810, nos quais o Império, diminuindo sempre em grandeza e majestade, tem contado noventa imperadores até Fernando III, que hoje reina, e com grande valor e zelo da Cristandade está resistindo-se (queira o Céu que seja com melhor ventura!) a outro Maomete.

Estes são em breve suma os quatro Impérios que desde o primeiro que houve no Mundo se foram continuando e sucedendo até o presente, cuja notícia, quando não fora tão necessária para o ponto em que estamos, sempre era muito conveniente dar-se logo neste princípio, para melhor entendimento de tudo o que se há-de dizer adiante.

Em respeito pois e suposição destes quatro impérios, chamamos Império Quinto ao novo e futuro que mostrará o discurso desta nossa História; o qual se há-de seguir ao Império Romano na mesma forma de sucessão em que o Romano se seguiu ao Grego, o Grego ao Persa e o Persa ao Assírio. E assim como o Império dos Persas se chama o segundo Império, porque sucedeu ao dos Assírios, que foi o primeiro do Mundo, e o das Gregos se chama o terceiro, porque sucedeu ao dos Assírios e dos Persas, e o dos Romanos se chama o quarto, porque sucedeu ao dos Assírios, ao dos Persas e ao dos Gregos, assim este nosso Império, porque há-de suceder ao dos Assírios, Persas, Gregos e Romanos (como logo veremos) se deve chamar com a mesma razão e propriedade o Quinto Império do Mundo; e porque todos os outros Impérios, passados e presentes, por grandes e poderosos que fossem, ficaram fora da ordem desta sucessão, que começou no primeiro e há-de acabar no Quinto (que será também o último), por isso as Escrituras Sagradas não fazem menção nem memória alguma deles, como também nós a não fazemos. Nem eles, por muitos que hajam sido, ficando fora da mesma ordem, podem acrescentar número ou lagar ao novo Império com que mude ou exceda o que lhe damos de Quinto.

Tudo o que até aqui fica dito são suposições certas e sem dúvida, tiradas de diferentes lugares do Texto Sagrado, que vão citadas ,à margem, e o não pusemos no corpo da história por não embaraçar o desenho dela. Autores que dizem o mesmo, posto que em matéria tão averiguada e sem controvérsia não são necessários autores, alegaremos nos capítulos seguintes; o que resta e importa mostrar é que haja de haver sem dúvida este novo e prometido Império a que chamamos Quinto. E assim o faremos agora, com toda a demonstração e certeza, porque esta é a base e fundamento de toda a nossa História e assunto particular deste I Livro.

Já dissemos que os futuros livros ou contingentes (qual é o Império que prometemos) só são manifestos a Deus e a quem os quer revelar. E assim, para fundarmos bem a esperança deste grande futuro, devemos recorrer principalmente aos que a Fé nos ensina que foram verdadeiros profetas, entre os quais, como também deixamos dito, tem o primeiro lugar Daniel, não ,pelo espírito de profecia que foi tão superiormente ilustrado, mas porque o fez Deus particular profeta dos reinos e das monarquias. Será pois a primeira pedra deste edifício uma grande profecia de Daniel.

No ano antes de Redenção do Mundo 450, Nabucodonosor, um dos últimos reis imperadores de Babilônia, que era, como fica dito, o Império dos Assírios, desvelado uma noite com os pensamentos da sua monarquia, em prêmio ou conseqüência deste cuidado mereceu que Deus lhe revelasse, sendo gentio, o sucesso de muitas cousas futuras, assim como outros príncipes que têm fé e desmerecem por sua negligência e descuido até o conhecimento natural dos presentes. Viu pois Nabuco em sonhos uma visão admirável e portentosa, com cuja apreensão e assombro acordou de tal maneira perturbado e confuso, que somente se lembrava que acabava de sonha- cousas prodigiosas, grandes e prenhes de mistérios, mas totalmente se esquecia quais foram. Assim, estimulado igualmente do desejo e do temor que a mesma lembrança lhe causava, mandou logo chamar os maiores sábios dos seus reinos, os magos, os aríolos; os caldeus, que eram os que pela observação das estrelas e outras professavam a ciência das cousas futuras, e depois de trazidos à sua presença, lhes declarou por si mesmo tudo o que lhe tinha sucedido, e mandou-lhes seriamente que não só lhe haviam de dizer logo a significação do sonho, senão também o que tinha sonhado. Responderam os sábios que, se o rei lhes manifestasse o que sonhara, eles se obrigavam a declarar a significação de tudo, porque isso era a sua profissão e o mais a que se estendia a ciência humana; mas que adivinhar qual houvesse sido o sonho era segredo impossível de alcançar aos homens e reservado somente à sabedoria dos deuses. Falaram assim, porque todos eram gentios.

Não se aquietou Nabuco com esta resposta dos sábios, antes os argüiu com ela de falsos, enganadores e indignos de crédito; porque, se não podiam saber o sonho, que era cousa passada, como haviam de conhecer a significação dos futuros, e somente lhes haviam de dar crédito no segundo e mais dificultoso, se no primeiro e mais fácil eles mesmos confessavam sua ignorância? Que se resolvessem a dizer logo uma e outra cousa, senão que ele e sus famílias morreriam todas. E como os tristes sábios respondessem outra vez que não sabiam nem podiam satisfazer ao rei no que deles queria, irado grandemente Nabuco, mandou que os levassem de sua presença e que neles e em todos os professores das mesmas artes se executasse logo a sentença de morte. Tão violentos são os apetites do poder supremo, e tão arriscado não satisfazer aos reis até no impossível!

Achava-se neste tempo em Babilônia Daniel, onde fora levado com El-Rei Joaquim no primeiro cativeiro ou transmigração dos Hebreus. Oro a Deus, ele e seus três companheiros, ,que também entravam no número dos condenados, porque tinham estudado, por mandado do mesmo rei, as ciências de Caldeia; folhe revelado pelo Céu o sonho e a interpretação dele, e quando já a multidão dos sábios, rodeados de rústicos e tumulto popular, começavam a caminhar para o lugar do suplício, faz parar a execução Daniel. Oferece-se a declarar o sonho; pede que o levem a Nabucodonosor, e posto em sua presença e na dos maiores príncipes de Babilônia que o acompanhavam, depois de confessar a insuficiência sua e de todo o saber humano, e mostrar como só o Deus verdadeiro, a quem ele servia e que fora o autor daquele sonho, o podia revelar e a significação dele, primeiramente com assombro e pasmo do rei lhe contou muito miudamente por sua ordem a história do que tinha sonhado, e depois com igual admiração e espanto de todos lhe foi explicando parte por parte os mistérios e segredos futuros que tão prodigiosa visão em si encerrava.

Este é o prólogo da primeira profecia de Daniel, e todo este aparato de circunstâncias com o Texto Sagrado descreve o sucesso dela, as quais porventura puderam parecer menos necessárias ao nosso argumento, mas nós as quisemos resumir brevemente aqui, para crédito natural da mesma profecia; pois não só nos obrigam a que a creiamos por fé os que somos cristãos, mas se podem convencer com elas por discurso até os mesmos Gentios.

A história do sonho, pelas palavras com que Daniel a referiu, é a seguinte: Tu, Rex, cogitare coepisti in strato tuo quid esset futurum post hoec; et qui revelat misteria, ostendit tibi que ventura sunt. Tu, Rex, videbas et ecce quasi statua una grandis: statua illa magna et statura sublimis stabat contra te et intuitus ejus erat terribilis, etc. , usque ad implevit universam terram. Hoc est somnium. «Começaste a cuidar, ó Rei, deitado no teu leito, diz Daniel, o que havia de suceder depois do tempo presente, e o Deus que só pode revelar os mistérios e segredos ocultos, te mostrou naquela visão tudo o que está para vir nos tempos futuros, e o que eu agora te direi, não por arte ou ciência minha, se não por revelação sua. Parecia-te que vias defronte de ti uma estátua grande, de estatura alta e sublime e de aspecto terrível e temeroso. A cabeça desta está tua era de ouro, o peito e os braços de prata, o ventre até os joelhos de bronze, dos joelhos de ferro, os pés de ferro e de barro. Estando assim suspenso no que vias, viste mais que se arrancava uma pedra de um monte, cortada dele sem mãos, e q, dando nos pés da estátua, a derrubava. Então se desfizeram juntamente o barro, o ferro, o bronze, a prata, o ouro, e se converteram em pó e cinza, que foi levada dos ventos, e nem aqueles metais apareceram mais, nem o lugar onde tivessem estado; porém a pedra que tinha derrubado a estátua cresceu, e fazendo-se um grande monte, ocupou e encheu toda a terra».

Até aqui a relação do sonho, a qual Nabuco de novo ia ouvindo e reconhecendo, lembrando-se outra vez de tudo pela mesma ordem com aquela espécie de memória a que os filósofos chamam reminiscência.

Seguiu-se à história do sonho a interpretação dele, de que nós diremos agora somente o que pertencer ao ponto em que estamos, reservando o de mais (que é muito) para seus lugares. Disse pois Daniel que aquela grande estátua significava a sucessão do Império do Mundo, e os diferentes metais de que era composta as mudanças que o mesmo Império havia de ter em diferentes tempos e para diferentes nações. A cabeça de ouro significava o Império dos Assírios, em que Nabucodonosor naquele tempo reinava; e porque este Império, como deixamos notado, foi o primeiro e o princípio de todos os Impérios, por isso estava representado na cabeça, que é o princípio do corpo, e no ouro, que é o primeiro entre todos os metais.

A prata, que é o segundo metal, significava o Império dos Persas, que foi o segundo depois dos Assírios, e que se seguiu a eles, assim como o peito e braços se seguem à cabeça.

O bronze, que é o terceiro metal, significava o Império dos Gregos, que foi o terceiro depois dos Persas e se seguiu depois deles, assim como o ventre se segue depois do peito.

O ferro finalmente, que é o quarto metal, significava o Império dos Romanos, que foi e é o quarto Império, que sucedeu aos três primeiros; e assim como as pernas e pés são a última parte do corpo humano, assim este é e há-de ser o último Império dos que naquela estátua se representavam.

Tudo o que até aqui fica dito é de fé, ou se segue imediatamente dela, porque, ainda que Daniel na sua explicação do sonho não nomeou as três nações de Persas, Gregos e Romanos, disse porém expressamente que os três metais significavam três reinos, que sucessivamente se haviam de continuar uns aos outros, sinalando-os nomeadamente por primeiro, segundo e terceiro reino: Et post te consurget regnum aliud minus te argenteum, et regnum tertium aliud oereum [...] et regnum erit velut ferrum; e consta pela experiência e pelo testemunho ,de todas as histórias, não só humanas, senão também das sagradas e divinas, que os três reinos e impérios que sucessivamente se seguiram ao dos Assírios foram o dos Persas, o dos Gregos e o dos Romanos: ou, por o dizer com mais propriedade e certeza, consta que o mesmo Império que primeiro foi dos Assírios, vencidos estes por Ciro, passou aos Persas, e o mesmo Império dos Persas, vencidos estes por Alexandre, passou aos Gregos, e o mesmo Império dos Gregos, vencidos estes por vários capitães de Roma, passou e se incorporou no Império Romano. E este é o verdadeiro, certo e indubitável sentido de interpretação de Daniel, recebido, aprovado e seguido por todos os Padres e expositores deste lugar, em que não há discrepância nem dúvida alguma.

A razão ou mistério por que o Império Romano se representou no ferro, diz particularmente Daniel que foi porque, assim como o ferro lima, bate, corta e doma os metais, sem haver algum que lhe possa resistir, assim o Império Romano e o poder invencível de suas armas havia de abater, desfazer, sujeitar e dominar todos os outros impérios. Et regnum quartum erit velut ferrum; quomodo ferrum comminuit et domat omnia, sic comminuet et conteret omnia hoec. E quadra maravilhosamente no Império Romano a figura das duas pernas e pés da estátua em que foi representado; não só porque, assim como os pés da estátua sustentavam e tinham sobre si o peso e grandeza de toda ela, assim o Império Romano teve sobre si e em si o peso e grandeza de todos os outros impérios que nele se uniram e ajuntaram, mas porque o mesmo peso e grandeza, como acima vimos, foi causa de que o Império Romano se dividisse em dois impérios ou duas partes iguais do mesmo, com a qual divisão, pondo um pé no Oriente outro no Ocidente, um em Roma outro em Constantinopla, ficaram verdadeiramente sendo estas duas partes do Império Romano como duas colunas naturais de ferro, sobre as quais toda a máquina daquele portentoso colosso se sustentava. Mas não parava aqui a propriedade da semelhança. Assim como, na divisão de uma e outra perna da estátua se representava a divisão do Império Romano nos dois impérios, assim os dez dedos, uns maiores outros menores, em que se dividiam, significavam dez reinos, em que a grandeza do mesmo Império Romano, na sua última declinação, se havia de dividir. Para cuja inteligência se deve notar que tudo o que hoje possuem os príncipes cristãos na Europa, e tudo o que na Europa, na África e na Ásia possui o Turco, são umas divisões ou ,retalhos do Império Romano, e as partes ou membros de que aquele vastíssimo corpo na sua maior grandeza e potência se compunha, as quais lhe foram tirando as mesmas nações que ele tinha sujeitado, restituindo-se outra vez a sua primeira liberdade e soberania, como hoje estão, sem reconhecerem sujeição nem obediência alguma ao Império Romano. Ad extremum (diz Perério) ex uno duplex factum est Imperium Romanum: alterum Latinorum seu Occidentis, allerum vero constantinopolitanum, Græcorum seu Orientis. Adjice, quod omnia regna quæ nunc sunt apud Christianos, et sub Imperio Turcorum, partes sunt Imperii Romani tanquam rami ex una illa Imperii arbore decisi. E é tão verdadeira e tão antiga esta interpretação dos dez dedos da estátua, que já antes dos tempos de S. Hierônimo em que o Império Romano estava íntegro e potentíssimo, sem ter perdido cousa alguma sua grandeza, era opinião comum (como diz o mesmo santo) de todos os escritores eclesiásticos que o Império se havia de dividir em dez reinos.

Assim se dizia e escrevia então, e assim o estamos vendo hoje, comprovando-se a verdade desta interpretação com a experiência e confirmando-se ser este o verdadeiro sentido da profecia com o cumprimento dela; porque, se bem contarmos os reinos em que hoje está dividido ou despedaçado o que antigamente foi e se chamava Império Romano, acharemos pontualmente que são dez reinos: Portugal, Castela França, Inglaterra, Suécia, Dinamarca, Moscóvia, Polônia e Estado ou Império Turco, e o mesmo Império Romano, que compreende Alemanha e Itália. E se uns reinos destes são maiores, outros menores, uns mais fortes outros menos, essa mesma é a propriedade dos dedos, como nota neste lugar o mesmo autor alegado, e depois dele outros muitos: por decem digitos partim ferreos et partim terreos significatur Romanum Imperium novissime iri in multa regna multosque reges, quorum alii maiores et potentiores, alii minores et imbecilliores futuri sint.

Ao diante dividiremos estes mesmos dedos da estátua em outras partes que temos por mais proporcionadas; por agora baste esta divisão que nós pusemos em primeiro lugar por ser mas fácil, e porque, com a notícia vu1gar que se tem do Mundo, pode ser entendida e percebida de todos. E posto que Daniel nesta profecia não declara com tanta miudeza que a divisão do Império Romano há-de ser ,pontualmente em dez partes ou dez reinos, em outra profecia, como depois veremos, especifica este número, e nesta diz clara e expressamente que os dedos dos pés da estátua significam a divisão do Império: Porro quia vidisti pedum et digitorurn partem testæ figuli et partem ferream: regnum divisum erit.

Passa finalmente o mesmo Profeta a declarar o mistério ou significação do barro de que os dedos eram compostos em uma parte juntamente com outra de ferro, e diz assim: ... quod vidisti ferrum mistum testæ ex luto. Et digitos pedum ex parte ferreos, et parte fictiles: ex parte regnum erit solidum, et ex parte contritum. Quod autem vidisti ferrum mistum testæ ex luto, commiscebuntur quidem humano semine, sed non adhærebunt sibi, sicuti ferrum misceri non potest testæ. Nas quais ,palavras diz Daniel que o barro dos pés dá estátua significava a debilidade e fraqueza a que o Império Romano, depois de tanta potência, havia de descair, principalmente na sua última idade e declinação, que é o estado em que o vemos. Adverte, porém, o Profeta que não eram os dedos totalmente de barro, senão compostos parte de barro e parte de ferro, porque nesse mesmo estado de sua declinação, debilidade e fraqueza conservaria o Império algumas partes sólidas em que permanecesse a dureza e fortaleza do antigo ferro de que todo antes era formado, que é, ao pé da letra, o que se tem visto e experimentado no Império Romano, desde o tempo de sua maior declinação a esta parte, em tantas ocasiões de guerras e batalhas contra Turcos, contra hereges e contra alguns príncipes cristãos, nas quais em defesa da própria e da Igreja têm pelejado os exércitos imperiais com grande valor, disciplina e constância, e alcançado de seus inimigos gloriosas vitórias. E a mesma oposição tão bizarra com que as armas do Império nas fronteiras de Alemanha e Hungria, e o mesmo Imperador em pessoa estão hoje resistindo às invasões do Turco e poder otomano, que outra cousa são ainda, senão partes e partes muito sólidas daquele mesmo ferro?

Mas vindo às partes de barro: estas são (diz Daniel) aquelas províncias e nações que, sendo partes do antigo Império Romano, se desuniram e tiraram de sua sujeição, e formaram novos reinos, os quais, ainda que em si mesmos sejam muito poderosos e fortes, e verdadeiramente se possam chamar partes de ferro, em respeito porém do Império de que se apartaram e que tanto desuniram e enfraqueceram com sua separação, não são nem se podem chamar senão partes de barro. E tal é hoje o Reino de França, o de Inglaterra e da Suécia, e o mesmo de Castela ou Espanha, em respeito do Império Romano. E porque não cuidasse alguém que a união que se perdeu pela separação das coroas se recuperou e supriu pela conjuração do sangue, casando os imperadores nas casas reais dos outros príncipes e os reis na dos imperadores, e sendo estes muitas vezes eleitos das mesmas famílias que do Império se apartaram, acode Daniel a esta objeção, dizendo: Commiscebuntur quidem humano semine «misturar-se-ão e ligar-se-ão no sangue», sed non adhærebunt sibi «mas nem por isso se unirão nem ligarão entre si», sicuti ferrum misceri non potest testæ, «bem como o ferro se não pode unir nem ligar com o barro.» A tanta miudeza como isto desceu o Profeta, acrescentando em todas estas circunstâncias novas e admiráveis confirmações à verdade da sua Profecia.

Quantas vezes se intentou na Europa que entre os imperadores e reis da Cristandade se estabelecesse uma liga firme, interpondo-se para isso a autoridade dos Sumos Pontífices, e quantas vezes se liaram os mesmos príncipes entre si por meio de recíprocos casamentos, sem jamais se conseguir a união desejada! Que imperador ou que rei houve na Cristandade há muitos anos que, se gota por gota lhe distinguirem o sangue, não tenha cada um dos outros príncipes quase iguais partes nele? E que guerras vimos ou sabemos entre estas coroas, em que o sangue que de uma e outra parte se defende, e ainda o que se derrama, não seja o mesmo? Tão misturado anda o sangue nestas últimas relíquias do Império Romano, mas tão resumido sempre, e por isso o mesmo império tão enfraquecido!

Nasceu juntamente com Roma esta fatal desunião contra o respeito do sangue em Rômulo e Remo; viu-se no casamento de Pompeu com Júlia, filha de Júlio César, e no de Marco Antônio com Octávia, filha de Octávio, quão facilmente se desatam, antes, se amarram contra si, as ,mesmas mãos que- pelo matrimônio se uniram. Mas não são estes exemplos tão antigos os de que fala a profecia de Daniel, porque não são os dos pés da estátua ou os dos dedos dos pés. Significam os dedos dos pés da estátua as últimas extremidades do Império Romano e a sua duração, e, se eu me não engano, no mesmo dia em que isto estou escrevendo se está cumprindo esta profecia. Que casa real há no Mundo mais ligada com a do Império, que ramo há que seja mais próprio daquele tronco, e que sangue mais repetidamente unido por multiplicados casamentos que o de Áustria e Castela? E que pessoa real há também em que mais apertadamente estejam atados estes vínculos e mais dobrados todos estes respeitos que na de El-Rei Filipe IV, primo do Imperador, cunhado do Imperador, genro do Imperador? Considere agora o Mundo o estado em que o mesmo Imperador se achou no ano passado e em que se acha no presente, com os poderosos exércitos do Turco metidos dentro na Áustria, e quase, batendo às portas de Praga, corte do Império, os campos talados, as cidades destruídas, os homens barbaramente mortos a sangue-frio, as mulheres e meninos cativos e transmigrados para a Turquia, os templos e pessoas dedicadas ao templo em abomináveis sacrilégios profanados, e, depois de profanados, abrasados e feitos em cinzas; e neste mesmo tempo em que o ferro de Espanha se havia de unir todo ao ferro do Império, vemo-lo todo infelizmente convertido contra Portugal, mas por isso mesmo infelizmente! Se este ferro se unira ao Império contra o Turco, fora ferro, mas, porque se desune dele em tal ocasião e se converte contra Portugal, é barro.

Barro e barro quebradiço, foi o ano passado e, por mais que se mostre ou ameace ferro, barro há-de ser também no presente. Quanto melhor e mais católica ação fora, e quanto de maior exemplo para todos os príncipes católicos e de menor escândalo para os hereges e para os mesmos Turcos se o sangue espanhol, e tão valoroso, que de uma é outra parte se desperdiça, com lástima e lágrimas da Igreja, no campo de Portugal e Castela, se empregara com glória imortal de ambas as coroas em defesa da Fé, da Cristandade, da Religião, e da mesma cabeça dela, a quem tão de perto ameaça este golpe! Mas quando todo o poder de Espanha se havia de achar unido contra o Turco em socorro de Alemanha e Itália, despovoam-se os presídios de Itália, levantam-se os de Alemanha e chamam-se todos a Castela contra Portugal, para que triunfem nas bandeiras otomanas as luas de Mafoma, e se conquistem e sejam vencidas nas portuguesas - as chagas de Cristo!

Este é o barro dos pés da estátua, esta é a fraqueza das extremidades do Império Romano, esta é a queixa que ,Daniel explica e pondera na mesma fraqueza, mostrando que a principal causa de toda ela é a desunião daquelas partes que por serem mais conjuntas em sangue e parentesco, tinham obrigação de ser mais unidas »— commiscebuntur quidem humano semine »— isto é, casará o Imperador Fernando com Maria, irmã de el-Rei Filipe IV; casará Filipe IV com Leonor, filha de Fernando; mas nas últimas extremidades do Império Romano e nos seus maiores apertos e trabalhos não se acharam parentes nem aderentes »— sed non adhærebunt sibi.

Temos visto até aqui, desde a cabeça até os pés da estátua, o primeiro, segundo, terceiro e quarto império; segue-se agora ver o quinto na mesma história do sonho de Nabuco e na mesma interpretação de Daniel, o qual, depois das palavras ultimamente referidas, continuou e concluiu desta maneira: In diebus autem regnorum illorum etc.... quæ ventura sunt postea. Quer dizer: aquela pedra, ó Rei, que viste arrancar e descer do monte, que derrubou a estátua e desfez em pó e cinza todo o preço e dureza de seus metais, significa um novo e quinto Império que o Deus do Céu há-de levantar no Mundo nos últimos dias dos outros quatro. Este Império os há-de desfazer e aniquilar a todos, e ele só há-de permanecer para sempre, sem haver de vir jamais por acontecimento algum a domínio ou poder estranho, nem haver de ser conquistado, dissipado ou destruído, como sucedeu ou há-de suceder aos demais. Estas são as cousas futuras que Deus te quis mostrar, ó Rei, e este é o sonho que tiveste e esta a verdade de sua interpretação -- et verum est somnium et fidelis interpretatio ejus.

Depois de contar Daniel toda esta prodigiosa história, acrescenta imediatamente o que Nabucodonosor lhe fez e o que lhe disse. O que lhe disse foi: Vere Deus vester Deus deorum est, et Dominus regnum, et revelans mysteria, quoniam tu potuisti aperire hoc sacramentum. «Verdadeiramente o Deus que adoras, ó Daniel, é o Deus dos deuses e a Senhor dos reis, e o que só conhece e revela as mistérios escondidos aos homens, pois tu, alumiado por ele, pudeste declarar este grande segredo e sacramento. O que fez Nabuco no mesmo tempo, e ainda antes de dizer estas palavras, refere o mesmo texto em as seguintes: Tunc rex Nabuchodonosor cecidit in faciem suam, et Danielem adoravit, et hostias et incensum præcepit ut sacrificarent ei. «Tanto que o rei acabou de ouvir a Daniel, prostrou-se diante dele e adorou-o com o rosto em terra, e mando que lhe oferecessem incenso e sacrifício.» Se isto fez Nabucodonosor a Daniel, quando lhe disse que seu império se havia de acabar e passar outros quatro, que faria se lhe dissesse ser e1e o senhor do quinto? Naquele tempo pagava-se a interpretação de uma profecia infeliz com adorações e sacrifícios hoje pagam-se as interpretações felicíssimas com opróbrios e calúnias.

Mas este ponto ficará para seu tempo e para seu lugar. O que deste somente quero recolher e deixa assentado é que, depois dos três impérios dos Assírios, Persas e Gregos, que já passaram, e depois do quarto, que ainda hoje dura, que é o romano, há-de haver um novo e melhor império que há-de ser o quinto e último. Esta suposição é de fé, porque assim o lemos nas Escrituras, é de experiência, porque assim o mostrou o sucesso dos tempos, e é de razão, porque assim se infere por bom discurso.

Não é cousa nova em Deus quando revela cousas grandes, significar por repetidas visões o mesmo mistério e por diferentes figuras a mesma revelação. Assim mostrou antigamente a José suas felicidades, primeiro no sonho das paveias dos onze irmãos que adoravam a sua, e depois no do Sol e nas estrelas que lhe faziam a mesma adoração. Assim mostrou a El-Rei Faraó os sete anos da fartura e os outros sete da fome, primeiro no sonho das sete vacas robustas e sete fracas, e depois no das sete espigas gradas e sete falidas. E assim nos tempos em que agora imos, depois de revelar Deus a Daniel o secreto do Quinto Império, no sonho de Nabucodonosor e na visão daquela estátua, em outro sonho e em outras figuras lhe fez segunda vez a mesma representação, nada menos misteriosa e cheia de circunstâncias, que a primeira, antes mais portentosa em tudo e mais notável.

Passados 47 anos depois daquela visão (que foi o ano 54 do último cativeiro de Babilônia), reinando já nela Baltasar, que sucedeu a Nabuco no Império dos Assírios ou Caldeus, viu o Profeta Danie1 em uma visão de noite, (ou fosse dormindo e em sonhos, como tem a opinião mais comum dos Doutores, ou fosse, como outros suspeitam, acordado, velando) viu, digo, que os quatro ventos principais se davam batalha no meio do mar e levantavam uma horrível e furiosa tempestade; mas o mar assim perturbado e temeroso não era mais que o teatro em que haviam de sair a representar quatro figuras horrendas, a que o, profeta chama bestas grantes: ...et ecce quatuor venti coeli pugnabant in mari magno, et quator bestiæ grandes ascendebant de mari diversæ inter se.

«Saiu a primeira besta semelhante a uma leoa com asas de águia; pôs o Profeta nela os olhos, e não levou assim muito tempo, até que lhe foram tiradas ou arrancadas as asas. E logo levantou as mãos da terra e se pôs em pé e ficou em figura de homem.», Vejam lá os leões se lhes tira Deus as asas para [que] sejam homens! Prima [bestia] quasi leæna et alas habebat aquilæ; aspiciebam donec evulsæ sunt ale ejus, et sublata est de terra, et super pedes quasi homo stetit, et cor hominis datum est ei.

«Saiu a segunda besta semelhante a um urso, firmou-se sobre os pés e parou; tinha três ordens de dentes, entre os quais trazia três bocados, e diziam-lhe que comesse e se fartasse de carne» Et ecce bestia alia similis urso in parte stetit; et tres ordines erant in ore ejus, et in dentibus ejus, et sic dicebant ei: Surge, comede carnes plurimas.

«Depois desta saiu a terceira besta semelhante a leopardo, e tinha quatro asas como ave e quatro cabeças; e foi-lhe dado grande poder.» Post hæc aspiciebam, et ecc alia quasi pardus, et alas habebat quasi avis, quatuor super se et quator capita erant in bestia et potestas data est ei.

Durava ainda a noite, diz o Profeta e por fim de todas entrou «a quarta besta, horrível, espantosa e muito forte. Tinha os dentes de ferro grandes com que comia e despedaçava tudo o que lhe caía da boca ou não queria comer pisava com os pés. Era mui diferente de todas as outras bestas, e tinha na testa dez pontas». Post hæc aspiciebam in visione noctis, et ecce bestia Quarta terribilis atque mirabilis, et fortis nimis, dentes ferreos habebat magnos, comedens atque comminuens, et reliqua pedibus suis conculcans: dissimilis autem erat ceteris bestiis, quas videram ante eam, et cornua decem.

Enquanto tudo isto notava, Daniel via que de entre as dez pontas da quarta besta saía uma ponta menor que as outras, a qual obrou grandes estragos e outras cousas prodigiosas, cuja narração e mistérios pertencem ao Livro V desta nossa História, para onde o reservamos, como também outras circunstâncias desta mesma visão que expenderemos em seus lugares.

E continuando o que pertence a este, «levantou Daniel os olhos ao céu e viu que se armava um tribunal de juízo, cheio com grande aparato de horror, grandeza e majestade. Trouxeram-se cadeiras e assentou-se em um alto trono um velho de venerável ancianidade, a quem o Profeta chama Antigo dos dias, cujo cabelo era todo branco, e brancas as roupas de que estava vestido, aquele como arminhos, estas como neve; a matéria do trono era fogo, umas rodas sobre que o trono estava levantado também fogo, e de fogo também um rio arrebentado que da boca lhe saía. Os ministros que lhe assistiam de uma e outra parte eram milhares de milhares; assentaram-se os conselheiros ou juizes assessores; vieram os livros e abriram-se». Este é o aparato daquele tribunal e juízo, descrito ou construído ao pé da letra, como fazemos, para maior crédito da verdade em tudo o mais que imos referindo, e por isso repetimos as palavras do texto: Aspiciebam donec throni positi sunt, et Antiquus dierum sedit: vestimentum ejus candidum quasi nix, et capili capitis ejus quasi lana munda. Thronus ejus flammæ ignis: rotæ ejus ignis accensus. Fluvius igneus, rapidusque egrediebatur a facie ejus. Millia millium ministrabant ei, et decies millies centena millia assistebant ei: judicium sedit, et libri aperti sunt.

A primeira sentença ou execução que saiu deste juízo foi que à primeira, segunda e terceira besta se tirasse todo o poder, limitando-se a cada uma o tempo determinado de sua duração, o qual acabado, acabaram. Acabou também a quarta besta. porque «viu o Profeta que fora morta violentamente, e que todo aquele grande corpo perecera, e que fora entregue ao fogo para ser queimado», não ficando de tanta grandeza e bravosidade mais cinzas.

Et vidi quoniam interfecta esset bestia, et perisset cortus ejus, et traditum esse ad comburendum igni; aliarum quoque bestiarum ablata esset potestas, et tempora vitæ constituta essent eis usque ad tempus et tempus.

Torna a dizer o Profeta que «ainda durava a noite e viu vir rodeado de nuvens do céu um como filho do homem, o qual chegou ao trono do Antigo de Dias e o ofereceram em sua presença. E ele lhe deu o poder, a honra e reino de todo o Mundo, para que todos os povos e todos os tribos, e todas as línguas o obedeçam e sirvam. Este seu poder será eterno, eterno também o reino, porque nunca jamais lhe será tirado» Aspiciebam ergo in visione noctis, et ecce cum nubibus coeli quasi filius hominis veniebat, et usque ad Antiquum dierum pervenit; et in conspectu ejus obtulerunt eum. Et dedit ei potestatem et honorem et regnum; et omnes populi, tribus et linguæ itsi servient: potestas ejus, potestas æterna quæ non auferetur; et regnum ejus, quod non cortumpetur.

Esta é pontualmente a relação de todo o sonho ou história enigmática, representada nele. «Com a qual (diz Daniel) ficou o meu espírito assombrado e cheio de horror. E volvendo eu no pensamento que significariam aquelas cousas, cheguei-me a um dos ministros que ali assistiam, pedindo-lhe me quisesse declarar o verdadeiro sentido delas. E ele o fez assim e me ensinou a interpretação e mistérios de tudo o que tinha visto».

Até aqui o mesmo Profeta, o qual, porém, referindo a dita interpretação, passa em silêncio algumas circunstâncias dela, sem dúvida para não exceder a brevidade que no princípio deste capítulo tinha prometido. Daniel somnium vidit, et somninm scribens brevi sermone comprehendit; summatimque perstringens ait. E a razão de passar por aquelas circunstâncias tão brevemente ou foi porque as supôs bastantemente declaradas na visão do segundo capítulo ou sonho de Nabucodonosor que acabamos de explicar, ou certamente porque as julgou de menos importância ao seu interesse principal, que e a demonstração do Quinto Império, exprimindo com grande particularidade e miudeza tudo o que pertence a ele, como agora veremos.

Primeiramente diz Daniel (ou disse a Daniel o seu intérprete) que «aquelas quatro bestas grandes significavam quatro reinos ou quatro impérios, que sucessivamente se haviam de levantar no Mundo depois dos quais se havia de seguir outro quinto reino ou império, que o mesmo intérprete chama Reino dos Santos do Altíssimo, o qual não há de ter mudança nem variedade, nem outro reino algum ou império que lhe suceda, porque há-de durar para sempre. Hæ quatuor bestiæ magnæ quator sunt regna, quæ consurgent de terra. Suscipient autem regnum sancti Dei altissimi, et obtinebunt regnum usque in sæculum et sæculum sæculorum.

Esta é a interpretação em comum que deu o intérprete do Céu a toda a visão, sobre a qual nos explicaremos mais particularmente, declarando todas as figuras dela pela mesma ordem com que foram saindo, advertindo o que o Profeta e seu intérprete exprimiram, e suprindo com a exposição dos Doutores o que eles calaram, coligido porém tudo imediatamente do mesmo que dizem. Não declara Daniel que ventos fossem aqueles, nem que tempestades se levantaram no mar antes de sair nele as quatro bestas, mas todos os expositores concordam em que o mar significava o Mundo, e os ventos e tempestades que o alteram as alterações, movimentos, guerras e perturbações que se costumam experimentar no mesmo Mundo, quando nele se levantam novos impérios.

Mas, antes que passemos adiante, satisfaremos um argumento que nos fica no texto de Daniel, porque não deixemos o inimigo nas costas. Diz o texto que levantará Deus esta nova monarquia in diebus regnorum illorum, nos dias daqueles impérios. Logo, esta monarquia não é futura se não passada, porque dos quatro impérios já passaram totalmente os três, que são o dos Assírios, o dos Persas e o dos Gregos, e o quarto, que é o Romano, também está na última declinação. Respondo que o Profeta na sua interpretação se acomodou com grande propriedade à figura do enigma que declarava. Porque Deus, no sonho de Nabucodonosor, representou todos os quatro impérios, não como quatro corpos ou quatro indivíduos, senão como um só corpo ou um só indivíduo. Por isso viu o Rei não quatro estátuas senão uma só estátua; e assim como da quatro corpos dos quatro impérios se formou um corpo, assim das quatro durações dos quatro impérios se há-de compor uma só duração, donde segue que com toda a verdade se pode afirmar que sucederá nos dias daqueles Reinos o que sucede nos dias de qualquer deles. Exemplo: a vida de um homem compõe-se de muitas idades, e o que acontece em qualquer destas idades se diz com toda; propriedade e verdade que acontece nos dias daquele homem. Da mesma maneira a duração da estátua dos impérios era composta de diferentes idades. A sua primeira idade, que é o tempo dos Assírios foi idade de ouro, a segunda, que é o tempo dos Persas, foi idade de prata, a terceira, que é o tempo dos Gregos, foi idade de bronze, a quarta, que é o primeiro Império dos Romanos, foi idade de ferro, a quinta, que é este último tempo dos mesmos Romanos, é idade de ferro e barro. E basta que nesta última idade, como decrépita, daquela estátua ou daqueles reinos se haja de levantar o Quinto Império, para que com toda a verdade e com toda a propriedade se verifique havê-lo Deus de levantar nos dias daqueles reinos; in diebus regnorum illorum. Assim que o Império que promete Daniel não é império já passado, senão que ainda está por vir.

Prova-se o mesmo contra outra profecia de Zacarias

Assim como Deus dobrou as visões, assim dobrou também as testemunhas , e a mesma sucessão de impérios que revelou a Daniel em umas figuras a mostra agora ao Profeta Zacarias em outras. A primeira profecia de Daniel foi a mesma de Nabucodonosor, a segunda em tempo de Baltasar, que sucedeu a Nabuco; es1a terceira de &carias em tempo de Hidaspes, que sucedeu a Baltasar. De modo que, assim como iam sucedendo os reis, iam sucedendo as profecias, e Deus multiplicando as revelações, mas sempre mostrando pela mesma forma primeiro os quatro impérios e depois o quinto.

Diz pois o Profeta Zacarias, no capítulo VI da sua profecia, levantando os olhos (ou levantado-lhos Deus da atenção das cousas presentes para a visão das futuras), viu que do meio de dois montes de bronze saíam quatro carroças puxadas por quatro cavalos, cada tiro ou parelha de diferentes cores. Pela primeira tiravam cavalos melados, pela segunda murzelos, pela terceira pombos, pela quarta remendados; assim parece que se deve construir o texto na forma da nossa cavalaria, mas na frase do mesmo texto chama aos da primeira carroça ruivos, aos da segunda negros, aos da terceira brancos, aos da quarta vários, e estes entre os outros diz que eram os mais fortes.

Vendo estas carroças Zacarias e não entendendo o que significavam, diz que o perguntou a um anjo que falava dentro nele. Mas, ou porque este anjo falasse mais culto que o de Daniel, ou porque Zacarias se entendia por dentro com e1e acham os Doutores que explicou um enigma com outro, e mais trabalho tem dado aos expositores deste lugar a declaração do Anjo que a visão do Profeta. Respondeu pois o Anjo que aquelas quatro carroças (dos montes não disse nada) eram quatro ventos doces que assistiam ao dominador da Terra para executarem suas ordens; e que os cavalos negros tinham saído contra as terras do Norte, e após eles os brancos; os vários saíram contra as do Sul, e destes os mais fortes trataram de discorrer por toda a Terra, e que com licença do Dominador a tinham passeado toda.

Até aqui a interpretação do Anjo, na qual e na visão do Profeta seguiremos a comum sentença dos Doutores, que é desta maneira: estas carroças significam os mesmos quatro impérios que Deus mostrou a Daniel, e foram estes impérios representados ao Profeta em figura de carroças, e declarados pelo Anjo em metáfora de ventos, para mostrar a violência e velocidade com que seus fundadores conquistariam e sujeitariam por armas os reinos terras e gentes de que se haviam de formar os ditos impérios; porque, ao uso daqueles tempos, a principal força dos exércitos consistia nas carroças armada que eram as que faziam maior estrago na guerra como se vê nos casos tão celebrados.

Estas carroças diz o Anjo que estavam prontas como ventos para execução dos mandados do Dominador da terra, porque Deus, como supremo Senhor dos Exércitos, se servia sempre das armas de todas as nações, principalmente destas quatro, como tão poderosas para a execução de seus divinos decretos, os quais por altos e imutáveis são comparáveis aos dois montes de bronze donde saíam as carroças. A primeira carroça representava o Império dos Assírios, e tiravam por ela cavalos ruivos, que é cor de fogo, para significar os danos, assolações e incêndios com que os Assírios conquistaram destruíram e abrasaram o povo hebreu, principalmente no cativeiro de setenta anos a que eles com razão chamavam fornalhas da Babilônia. A segunda carroça representava o Império dos Persas, e tiravam por ela cavalos negros, cor de tristeza e luto, porque também os Persas afligiram e foram lutuosos aos Hebreus, principalmente naquela grande aflição, quando El-Rei Assuero, marido de Ester, persuadido pelos enganos de Amão, tinha condenado a morrer em um dia com crueldade inaudita toda a nação hebréia. A terceira carroça representava o Império dos Gregos e tiravam por ela cavalos brancos, cor pacífica e alegre, porque, exceto Antíoco (cuja tirania também serviu de matéria gloriosa aos triunfos dos Macabeus) os outros príncipes gregos sempre foram benéficos aos Hebreus, e mais que todos Alexandre Magno, fundador daquele império, cuja majestade, como escreve José, não duvidou de adorar no templo ao pontífice Jada. Finalmente, a quarta carroça representava o Império Romano, e tiravam por ela cavalos vários, porque os Romanos, assim no ódio como na benevolência, foram vários para com os Hebreus, uns amigos e propícios, como Júlio César, Augusto, Tibério, Cláudio; outros inimigos, perseguidores e cruéis, como Pompeu, Calígula, Nero, Vespasiano, Adriano, Tito.

Restam por explicar os diferentes caminhos que disse o Anjo fizeram estas carroças, e primeiro que tudo se deve muito notar que da primeira carroça não disse cousa alguma, que é admirável confirmação de serem significados nas quatro carroças os quatro impérios. Porque, como a primeira carroça significava o Império dos Assírios, que já havia muito tempo florescia, não tinha necessidade de intérprete nem declaração. E assim declarou somente o Anjo os três impérios seguintes, cuja fundação e sucessos estavam ainda por vir. A segunda carroça, dos cavalos negros, que são os Persas, diz o Anjo que caminhou para as terras do Norte; e assim foi, porque os Persas devastaram e ocuparam a Babilônia que fica para a parte do Norte da Judéia, e ali acabou o Império dos Assírios. A terceira carroça, a dos cavalos brancos, diz que foi atrás da primeira, e assim sucedeu, porque os Gregos venceram e destruíram a Dario, último imperador dos Persas, junto à mesma Babilônia onde Alexandre, como escreve Crítio e Plutarco, tomou o nome de Rei da Ásia. E a quarta carroça, dos cavalos vários, diz que foi para o Sul, e assim consta das histórias, porque os Romanos passaram por várias vezes à conquista do Egito, que fica ao sul de Judéia, e depois da vitória chamada actíaca, em que Augusto desbaratou a Cleópatra e Marco Antônio, reduziu o mesmo Egito a província, como escreve Suetónio, e ali acabou o Império dos Gregos. De toda esta combinação das histórias com a profecia, e da consonância e harmonia dos tempos, lugares, nações, princípios, fins e todos os sucessos desses Impérios tão ajustados com as propriedades das figuras que as representavam, se faz certo e evidente argumento de que esta interpretação é a sólida e verdadeira, e que isto foi o que Deus e o Anjo quiseram significar ao Profeta.

Ultimamente diz que os cavalos mais fortes ou os robustíssimos da quarta carroça quiseram correr e passear toda a Terra, e que a correram e passearam; e assim se verificou nos Romanos, que com sua potência e vitórias se fizeram senhores do Mundo e o meteram debaixo dos pés. Estes robustíssimos dos Romanos foram os seus maiores capitães e imperadores, como Cipião, Pompeu, César, Augusto, Vespasiano, Trajano, Constantino, Teodósio, etc. E posto que os Romanos absolutamente não conquistaram o Mundo como é em si, porque nunca chegaram à América, que mais é uma metade que parte do Mundo, contudo diz o Anjo que correram e passearam todo o Mundo no mesmo sentido em que Augusto, no seu edicto do tempo do nascimento de Cristo, mandou que todo o Mundo se alistasse, ut describeretur universus orbis. Mas Sanchez, para explicar a palavra per omnem terram em toda a sua largueza, quer que não só nas terras do Mundo Antigo, senão nas da América, Mundo Novo, e nas da Índia Oriental, nunca conquistada nem ainda conhecidas pelos Romanos. E diz que aqueles robustíssimos de que fala o Anjo são os Espanhóis, verdadeiramente valentíssimos, audacíssimos e fortíssimos, pois conquistaram estas regiões novas e incógnitas, não pelejando contra os homens, como os antigos Romanos, senão contra os ventos, contra os mares, contra o Céu, contra o Sol, contra todos elementos e contra a mesma natureza, a que venceram e contrastaram. E para este autor perfilhar ou acomodar aos Romanos, conforme a profecia, estas vitórias próprias dos Espanhóis, e que de nenhum modo; parece lhe competiam, leva o direito desta herança à origem que os Reis de Espanha trazem dos Godos, os quais Godos, como já tinha notado Ribeira, foram estipendiários dos Romanos e pelejaram debaixo de suas bandeiras, ajudando a defesa e conquista do Império, como fizeram ao Imperador Maximino contra os Partos e a Constantino contra Licínio. Mas esta aplicação, como violenta e trazida de tão longe, com razão não é admitida de Cornélio à lápide, que impugna facilmente. Contudo, porque esta glória que Sanchez dá aos Espanhóis toca pela maior e melhor parte aos Portugueses, pelas vitórias do Oriente a que o mesmo Cornélio chama ad miraculum usque illustres, por não deixar perder a nossa, nação um título tão honrado como serem chamados por ,boca de um anjo os mais fortes de todos os Romanos, digo que os Portugueses e todos os Espanhóis se podem e devem entender debaixo do nome de Romanos, no sentido desta profecia, porque Espanha e Portugal foram colônias dos Romanos, e parte não só do Império, senão do povo romano, e verdadeiros cidadãos romanos; ao que não obstava serem de diferente nação, como se vê em S. Paulo, que, sendo hebreu, apelou para o César, alegando que era cidadão romano e que só no tribunal de César podia ser julgado.

Além de que muitos portugueses eram filhos e netos dos Romanos, como muitos romanos de Portugueses, pela união e comércio destas duas nações, assim em Portugal, onde viviam os presídios romanos, como nas guerras dos mesmos Romanos, onde os Portugueses iam servir e merecer debaixo de suas bandeiras. E posto que qualquer destas razões e muito mais todas juntas são bastantes para que sem impropriedade se possa entender os Portugueses debaixo do nome de Romanos, o fundamento principal sólido e certo desta interpretação é ser esta a mente e sentido em que falaram os mesmos Profetas, os quais entendem Império Romano todo o corpo íntegro do dito Império, e todas as partes de que ele se compôs e inteirou quando esteve em sua maior grandeza, ainda que essas mesmas partes depois se desunissem do mesmo Império e lhe negassem obediência.

Vê-se claramente esta verdade na primeira profecia de Daniel, onde se diz que os pés e dedos da estátua eram compostos de ferro e barro, e que o barro e o ferro não estavam unidos, na qual divisão de dedos e desunião de metais se significava que o Império Romano se havia de dividir em muitos reinos e senhorios menores, e que esses se haviam de desunir da sujeição e obediência do mesmo Império. Assim o interpretou o mesmo Daniel: Porro quia vidisti pedum et digitorum partem testæ figuli, et partem ferream, regnum divisum erit; as quais palavras comentando, Cornélio diz assim: Potissimum vero divisum fuit hoc regnum ideoque enervatum cum variæ gentes ab ejus obedientia se subduxerunt, sibique proprios reges crearunt, uti fecerunt Hispani, Poloni, Angli, Franci, etc. De maneira que a divisão dos dedos e a desunião dos metais dos pés da estátua significava os reinos dos Espanhóis, Polacos, Ingleses, Franceses e os demais, que, sendo antes sujeitos aos imperadores romanos, lhes negaram a sujeição e se desuniram, deles. Mas contudo (que é o nosso intento) ainda assim divididos e desunidos se computam e reputam por parte da mesma estátua e do mesmo Império Romano, ainda que não sejam romanos, porque realmente são partes daquele corpo e daquele todo, ainda desunidos dele. Destas nações pois e destes reinos de que se compunha o Império Romano, aqueles homens, que eram os mais fortes e valentes de todos, não se contentaram só com as terras dos outros impérios, mas que intentaram discorrer e passear toda a redondeza da Terra. Estes foram os Espanhóis, e entre os Espanhóis muito particularmente os Portugueses; porque a conquista dos mares e terras do Oriente, pela distancia remotíssima das terras, pela dificuldade de navegações, pela diferença dos climas, pelo valor e potência das nações que se conquistaram, foi empresa de muito maior valor, resolução e esforço que a dos Castelhanos. Assim que, considerando todo o corpo do Império Romano e todas suas empresas, os fortes dos Romanos foram os Cipiões, os Pompeus, os Césares, os Augustos; os fortíssimos foram os Espanhóis, e entre esses Espanhóis os fortíssimos dos fortíssimos foram os Portugueses. Não somos nós que o dizemos, senão o anjo que falava em Zacarias: Qui autem erant robustissimi, exierunt, et quærebant ire et discurrere per omnem terram; et dixit: Ite, perambulate terram: et perambalaverunt terram. Finalmente, para que a profecia se entenda dos Espanhóis e Portugueses, era justo...

Em que se mostra que Império há-de ser este. Suposto como deixamos assentado que há-de haver no Mundo um quinto e novo Império, segue-se que digamos que Império há-de ser: e assim o faremos em todo este II Livro. Que o Quinto Império é o Império de Cristo e dos Cristãos.

É conclusão certa e de fé que este Quinto Império de que falamos, anunciado e prometido pelos Profetas, é o Império de Cristo e dos Cristãos. Prova-se dos mesmos textos e profecias já alegadas, sobre as quais fundaremos tudo o que dissermos nesta história, para maior clareza e firmeza dela, pois não é cerzida de pedaços ou retalhos das Escrituras, senão cortada toda da mesma peça.

Primeiramente aquela pedra que derrubou a estátua e desfez as quatro monarquias figuradas nos quatro metais, e depois cresceu e a sua grandeza ocupou e encheu toda a Terra, é Cristo, o qual em outros muitos lugares da Sagrada Escritura se chama Pedra. Ele foi a pedra que no deserto matou a sede aos filhos de Israel e os acompanhou até a terra da Promissão. Ele foi a pedra com que David derrubou ao gigante, em significação de que por meio e virtude de Cristo havemos de vencer o Mundo e o Demônio. Ele foi a pedra que viu Zacarias, e sobre ela sete olhos, super lapidem unum septem oculi, que são os sete dons do Espírito Santo, o qual infundiu todo e descansou sobre Cristo. Ele foi a pedra sobre que adormeceu Jacob, quando se lhe abriu o Céu e viu a escada; ele a pedra sobre que sustentou os braços levantados de Moisés, quando venceu os exércitos de Amalec; ele finalmente a pedra angular, a que uniu os dois povos gentílicos e judaico, e a pedra fundamental e provada sobre que se fundaram na Lei antiga a Igreja de Sion e na nova a do mesmo Cristo. Esta pedra pois foi a que, arrancada do monte, derrubou a estátua e desfez os quatro impérios dos Assírios, Persas, Gregos e Romanos, para fundar e levantar o seu sobre todos eles. Assim o dizem conformemente neste lugar não só todos os Padres e expositores católicos, senão também os hereges e até mesmo Rabinos, os quais acertam em dizer que nesta pedra está profetizado o Reino do Messias, e erram somente em não crerem que o Messias é Cristo.

Diz Daniel que esta pedra caiu de um alto monte, arrancada dele sem mãos. E este monte ou é o Céu e o seio do Eterno Padre, donde desceu Cristo quanto a divindade, como interpreta S. Ambrósio; ou é a nação hebraica, levantada naquele tempo como monte entre todas as outras nações do Mundo, da qual o Verbo se dignou tomar e unir a si a humanidade, como explica S. Agostinho; ou finalmente é a Virgem Maria, Senhora Nossa, sublimada como monte altíssimo sobre todas as criaturas, como a mais perfeita e excelente de todas.

Esta é a sentença comum e mais recebida dos Padres e expositores deste lugar, com a qual concorda admiravelmente a advertência de Daniel, que a pedra foi arrancada ou cortada do monte sem mãos: Lapis abscissus de monte sine manibus; porque na geração temporal de Cristo, sendo verdadeiro homem, não tiveram parte mãos de homem, toda foi obra sobrenatural e divina, suprindo o Espírito Santo e a virtude do Altíssimo o que nela faltou de concurso humano. Assim o notou o mesmo S. Agostinho, S. Hierónimo, S. Ireneu, S. Júlio, S. Epilanio, Teodoreto, Ruperto e muitos outros Padres.

Na segunda visão de Daniel ainda consta mais claramente e por termos mais expressos que este Império é o de Cristo....et ecce (diz o Profeta) cum nubibs cæli quasi filius hominis veniebat, et usque ad.Antiquum dierum pervenit: ...et dabit ei potestatem et honorem et regnum, etc.; De sorte que a pessoa a quem foi dado por Deus o Quinto Império de que Danie1 fala neste lugar (como vimos) era o Filho do Homem. E que cousa há mais certa e freqüente no Evangelho que chamar-se Cristo Filho do Homem? Quem dicunt homines esse filium hominis? Væ autem homini illi per quem filis hominis tradetur! Tunc videbunt filius hominis venientem in nubibus cæli. Não repito os autores desta explicação, porque são todos, e porque o texto é tão claro que não há mister intérpretes. Só reparou Maldonado que não se chama Cristo neste lugar Filho do Homem absolutamente, sendo quasi filius hominis, para denotar o Profeta que entre este homem e os outros homens havia diferença: os outros são puros homens, Cristo é homem e Deus juntamente; assim que aquele quasi significa a falta de substância humana, posto que tão superiormente suprida com a divina. E porque Deus não havia de ter subsistência humana como os outros homens, posto que tivesse a mesma natureza como eles, não lhe chama por isso o Profeta homem, senão quase homem-quasi filius hominis. Quem havia de duvidar que em um quasi cabia uma distancia infinita?

A terceira visão de Zacarias confirma ainda com maior propriedade ser Cristo o Senhor deste Império. Já dissemos que a coroa ou coroas que foram postas sobre a cabeça de Jesus, filho de Josedec significavam o mesmo Império Quinto profetizado por Daniel: e que seja Cristo o soberaníssimo Monarca que Zacarias viu coroar naquela figura, não só o confessa a Igreja Universal na aplicação deste lugar, e a opinião comum de todos os Padres e Doutores, senão ainda muitos hebreus, que sem ódio escreveram antes de Cristo. Communis est Patrum sententia et multorum ex Hebræis quibus accedit Chaldeus sermonem hic esse de Messsiah, diz o doutissimo Sanchez. De maneira que na primeira visão foi Cristo, significado com o nome comum e metafórico de pedra, na segunda com o nome particular de Filho do Homem, na terceira com o nome propriíssimo de Jesus, Jesus filii Josedeci: e em todas estas três visões em que Deus revelou aos seus Profetas a grandeza e majestade futura do Quinto Império, e os quatro a que ele devia de suceder, lhes mostrou , e revelou também que o Senhor e o Monarca deste Império havia de ser Cristo.

Com muitos outros textos da Escritura pudéramos confirmar esta mesma conclusão, mas porque tudo o que havemos de dizer nesta história será uma continuada prova e confirmação dela, bastem os textos alegados, que são, como dizia, os fundamentais de toda ela.

Mas porque no princípio deste capítulo dissemos que o Quinto Império era o Império de Cristo e dos, Cristãos, tornemos à segunda visão de Daniel, onde Deus para consolação dos fiéis quis que nos ficasse expressa e revelada esta tão gloriosa verdade.

Depois de referir Daniel como Deus Padre, a quem ele chama o Antigo dos dias dera ao Filho do Homem aquele novo reino ou império, perguntou o mesmo Profeta a um dos anjos que assistiam ao trono a significação das cousas que via, e ele lhe disse por três vezes que o reino e império que vira dar ao Filho do Homem era o reino e império que os santos do Altíssimo haviam de ter neste Mundo. No verso 18 daquele capítulo (que é o VII) diz assim: Suscitient autem regnum Sancti Dei altissimi: et oblinebunt regnum usque in sæculum et sacculum sæculorum. E no verso : Donec vénit Antiquus dierum, et dierum, et judicium dedit sanctis Excelsi, et tempus advenit, et regnum obtinuerunt sancti. E no 27: Regnum autem, et potestas, et magnitudo regni quæ est subter omne cælum, detur populo sanctorum Altissimi; cujus regnum, regnum sempiternum est, et omnes reges servient ei et obedient. Muitas cousas e muito grandes disse nestas palavras o Anjo, as quais ficam reservadas para se explicarem em seus lugares por agora só nos serve (o que diz e repete tantas vezes o Anjo) que aquele mesmo Reino que o eterno Padre deu ou há-de dar a seu filho Cristo é o Reino e o Império dos Santos, isto é, dos Cristãos. Assim o diz expressamente sobre estas palavras de Daniel o seu grande comentador Perério, chamando a este Quinto Império Regnum Christi e Christianoram, Reino de Cristo e dos Cristãos. Deinceps (diz ele) pagnandum nobis est cum Judæis qui Christianis infensi infestique et iniquo animo ferentes, quæ de illo quinto Regno tam præclara et gloriosa prædix Daniel, ea ad Regnum Christi et Christianorm accommodari, etc.

E que pelo nome de Santos, de que usa Daniel, se entendam e devam entender os Cristãos não é só explicação de intérpretes da Escritura, senão frase muito corrente e ordinária em toda ela. S. Paulo, escrevendo aos cristãos da cidade de Filipe, em Macedônia,. no título ou sobrescrito da carta diz assim: Omnibus Sanctis in Christo qui sunt Philippis «a todos os Santos em Cristo que estão em Philippis». E escreveu aos cristãos de Roma: Omnibus qui sunt Romæ dilectis Dei, vocatis Sanctis. E na mesma epístola, exortando aos mesmos Romanos a que socorressem com suas esmolas aos cristãos necessitados: Necessitatibus Sanctorum communicantes. E saudando aos Filipenses no fim da epístola citada, em nome de alguns cristãos que estavam em serviço do Imperador que então era Nero: Salutant vos omnes Sancti maxime autem qui de Cæsaris domo sunt: «saúdam-vos, diz, todos os Santos, e principalmente os que estão em casa de César». Finalmente este era o ordinário modo de falar da primitiva Igreja, e assim lemos no capítulo IX dos Atos dos Apóstolos que usou da mesma frase Ananias, representando Cristo os grandes males que Saulo tinha feito contra os Cristãos: Quanta mala Sanctis tuis fecerit. E a este uso se chamaram as igrejas dos Cristãos igrejas dos Santos, conforme o texto da Epístola ad Corinthios: In ecclesiis Sanctorm doceo.

A razão deste nome é tomada da santidade da Lei de Cristo que professam os Cristãos, os quais, assim como de Cristo se chamavam cristãos, assim da Lei santa de Cristo se chamaram santos. E este é o sentido em que Daniel e o Anjo falaram naquela visão chamando a Cristo Filho do Homem, com a mesma frase com que depois se nomeou a Cristo, e chamando ao Reino dos Cristãos Reino dos Santos, com a mesma frase com que depois se nomearam os Cristãos, bem assim como já antes de Daniel o tinha profetizado com o mesmo espírito Isaías: Et vocabunt eos populus sanctus, redempti a Domino. E aquele povo remido por Deus será chamado publicamente Povo santo, que é em próprios termos o que depois se viu na Igreja e o que diz aqui o Anjo: Regnum autem et potestas detur populo sanctorum. E ambos estes nomes e as etimologias deles compreendeu S. Paulo no princípio da Epístola aos Romanos, em que lhe chama Vocati Jesu Christi et vocatis Sanctis, chamados de Jesus Cristo e chamados santos.

Pergunta-se se este Império de Cristo e dos Cristãos há-de ser neste Mundo ou no outro. Deu motivo a esta questão, entre os Padres gregos, o Teodoreto, e entre os latinos, Tertuliano, os quais concordavam com a verdade da nossa História em dizerem com os demais que o Quinto Império é o de Cristo e dos Cristãos, mas que tem para si que há-de ser este Império no Céu e não na Terra. Fundam a sua opinião nas mesmas visões de Daniel, desta maneira: Antes que a pedra cortada do monte (que é Deus e o seu Império) crescesse a toda aquela sua grandeza (diz Teodoreto), já todos os outros reinos e impérios do Mundo estavam derrubados e caídos, já o vento os tinha levado pelos ares, desfeito em pó e em cinza, e já tinham desaparecido totalmente do Mundo, sem haver mais que a memória deles, nem se poder achar ou conhecer o lugar onde tivessem estado, como consta do texto: Tunc contrita sunt pariter ferrum, testa, æs, argentum et aurum, et redacta quasi in favillam æstiva, areæ quæ rapta sunt vento; nullusque locus inventus est eis; lapis autem qui percusserat statuam factus est mons magnus. Sendo logo certo como é que os reinos, cidades, repúblicas e impérios do Mundo se não hão-de desfazer em cinza, nem se hão-de acabar, senão quando se desfizer e acabar o mesmo Mundo na última ruína dele, segue-se que o Império de Cristo e dos Cristãos, de que fala Daniel, e aquela sua grandeza prodigiosa e que há-de crescer, não há-de ser neste Mundo, senão no outro.

Tertuliano, fundado na mesma visão, e muito mais na segunda, argumenta assim Este Reino ou Império de Cristo e dos Cristãos há-de ser Reino perpétuo, incorruptíve1 e eterno, como dizem expressamente as palavras de ambos os textos: Regnum quod in eternum non dissipabitur; Regnum quod non corrumpetur; Regnum usque in sæculum et sæculum sceculorum; Regnu sempiternum. Os reinos deste Mundo todos de sua própria natureza são corruptíveis, e todos, por mais que durem e permaneçam, hão-de ter um com o mesmo Mundo, o qual é de fé que se há-de acabar. Logo, se o Reino e Império de Cristo e dos Cristãos há-de ser perpétuo, incorruptível e eterno, clara e manifestamente se segue que não há-de ser império da Terra, senão do Céu.

Contudo a sentença comum dos Santos, e recebida e seguida como certa de todos os expositores, é que este Reino e Império de Cristo e dos Cristãos profetizado por Daniel (qualquer que haja de ser) é Império da Terra e na Terra. E posto que os autores desta sentença mais supõem que aprovam, nós aprovaremos e demonstraremos com os textos das mesmas visões.

Daquela pedra que representava a Cristo e seu Império, diz Daniel, na primeira visão, que cresceu e se fez um monte tão grande que ocupou e encheu toda a terra. Lapis autem qui percusserat statuam factus est mons magnus et implevit universam terram. Infiro agora assim: Esta pedra e este Império de Cristo, que derribou os outros impérios, cresceu? Logo, não é império do Céu nem depois de acabado o Mundo; porque o Reino e Império de Cristo, depois de acabado o Mundo, de nenhum modo há-de crescer nem pode crescer. Não há-de crescer nem pode crescer no número dos homens, porque, depois de acabado o Mundo e depois do Dia de Juízo, não há-de haver mais homens que vão ao Céu; não há-de crescer nem pode crescer na glória dos bem-aventurados, porque, desde aquele ponto, cada um há-de receber por inteiro toda a glória devida a seus merecimentos; e como se acabou o tempo de mais merecer, assim se acabou o tempo de mais alcançar. Logo, se o Reino de Cristo e dos Cristãos há-de crescer depois daquele tempo, e crescer a uma grandeza tão imensa, segue-se que esse crescimento há-de ser neste Mundo e não no outro. Mas para que são conseqüências, se as mesmas palavras do texto o dizem claramente? Factus est mons magnus et implevit universam terram. Se a pedra, crescendo, se fez um grande monte, o qual grande monte encheu e ocupou toda a Terra, e este é o Império profetizado de Cristo, bem claro se mostra que é Império da Terra e não do Céu e que na Terra e não no Céu há-de ter toda esta sua grandeza.

Não negamos, porém, nem podemos negar que este Reino e Império de Cristo e dos Cristãos há-de durar também com o mesmo Cristo e os mesmos Cristãos depois de bem-aventurados por toda a eternidade no Céu; mas nem por isso há-de deixar de ter na Terra a grandeza que nestes textos lhe é profetizada e prometida, antes a razão de haver de ter tanta grandeza no Céu, é porque a terá primeiro na Terra, no Céu consumada e perfeitíssima, como se deve ao estado do Céu. Desta maneira se concilia e concorda facilmente a opinião de Tertuliano e Tedoreto com a verdade da nossa; este é o mais ordinário sentir de todos os expositores de Daniel, os quais dizem que este Reino e Império de Cristo e dos Cristãos há-de ser incoado na Terra e consumado no Céu, mas com tanta discrepância de tempos, como veremos em seu lugar, que agora só trataremos qual seja em comum o deste Império.

Os termos da segunda visão de Daniel ainda são (se podem ser) mais evidentes. Regnum autem et potestas et magnitudo regni, quæ est subter omne cælum, detur populo sanctorurn Altissimi. «0 Reino ou Império que se há-de dar ao povo dos Santos do Altíssimo, que são os Cristãos, é o poder e grandeza de todos os reinos que há debaixo do Céu.»

Podia-se dizer cousa mais clara? Parece que estava antevendo Daniel que havia de haver quem interpretasse esta sua visão em diferente sentido do que ele a escrevia, dizendo que este Reino havia de ser no Céu e não na Terra, pois posto se entenda e saiba que não é assim, adverte e nota sinaladamente o Profeta que não é Reino do Céu, senão de debaixo do Céu: magnitudo regni, que est subter omne cælum, detur populo sanctorum Altissimi.

Nas palavras que se seguem a estas declara mais em particular Danie1 (ou o Anjo por ele) quem hão-de ser os súbditos deste Império, e diz em nova confirmação do que dizemos, que serão todos os reis do Mundo, os quais o hão-de servir e lhe hão-de obedecer: et omnes reges servient ei et obedient.

Se os reis hão-de servir e obedecer a este Império, bem se colhe que há-de ser Império da Terra e não do Céu, porque no Céu não se serve, nem se obedece, nem se merece, e só se goza o prêmio do que se obedeceu, do que se serviu e do que se mereceu na Terra. Da Terra é logo este Império, e na Terra é que há-de ser servido e obedecido e reconhecida de todos os reis dela, como bem advertiu Cornélio, comentando as palavras subter omne cælum, pouco atrás citadas: Non quæ est super, sed quæ est subter omne cælum, id est in omni terra, sive in omni plaga cælo subjecta..

Responder aos seus argumentos é igualmente fácil. Ao de Teodoreto dizemos que o texto de Daniel só fala das quatro monarquias representadas nos quatro metais da estátua, as quais nem cada uma por si nem todas juntas compreenderão nunca toda a grandeza da Terra; e quando se diz que ficaram desfeitas em pó e desapareceram, e foram voadas do vento, e não se achou mais o lugar onde estivessem, não quer dizer que as terras, cidade e gentes das ditas monarquias se haviam de acabar e extinguir totalmente (como há-de acontecer a todo o Mundo no Dia de Juízo) senão que havia de se acabar seu mando, seu poder, seu império, sua soberania, como verdadeiramente se acabou a dos Assírios pela sucessão dos Persas, e a dos Persas pela sucessão dos Gregos, e a dos Gregos pela sucessão dos Romanos e se acabará também a dos Romanos pela sucessão do Quinto Império. E isto quer dizer em frase da Escritura - non inventus est locus ejus-que «se não achou mais o seu lugar», porque sucederam outros nele, como se vê no exemplo de Judas, de quem fala a Escritura pelos mesmos termos, e consta que sucedeu em seu lugar S. Matias.

Ao argumento de Tertuliano que se fundava na eternidade do Quinto Império, já temos dito que a continuação dele no Céu há-de ser verdadeiramente eterna em toda a propriedade e largueza da significação desta palavra. Mas se entendermos o texto de Daniel da duração somente que o Império de Cristo e dos Cristãos há de ser neste Mundo, pela palavra eternidade não se entende rigorosamente duração sem fim, senão continuação e permanência de muito tempo, que depois veremos quanto há-de ser. Entretanto basta saber-se que a palavra eterno tem este mesmo sentido e limitação em muitos lugares da Escritura, como notou S. Agostinho na Questão 3I.a sobre o Gênesis, e mostraremos mais largamente quando escrevermos a duração do Quinto Império.

Mas para que tiremos todo o escrúpulo aos outros razão será não passe sem satisfação uma grande dúvida que, por ser fundada nas mesmas palavras do texto de Daniel, não só pode embaraçar a verdade da nossa sentença, mas confirmar na contrária os autores e seguidores dela. Aspiciebam (diz Daniel na segunda visão) donec throni positi sunt, et Antiquus dierum sedit vestimentum ejus candidum quasi nix, et capilli captis ejus quasi lana munda; thronus ejus flammæ ignis rotæ ejus ignis accensus, Fluvius igneus, rapidusque egrediebatur a facie ejus. Millia millium ministrabant ei, et decies millies centena millia assistebant ei; judicium sedit et libri aperti sunt, etc. E estas palavras por todas as circunstâncias do trono, do fogo, da assistência dos anjos, dos livros que se abriram e do mesmo nome de juízo, não só parece que significam, senão que estão demonstrando o vigor e majestade do juízo final, e assim o entendem mais ordinariamente os expositores desta visão. Logo, se o Reino e Império de Cristo e dos Cristãos há-de ser depois do juízo final, claramente se convence que ano é nem há-de ser Império desde Mundo, senão do outro.

Respondo que é certo falar neste lugar o Profeta de juízo, e juízo de Deus, e juízo rigoroso e de grande majestade, mas digo com a mesma certeza que este juízo não é o juízo final, em que Cristo há-de vir julgar os vivos e os mortos no fim do Mundo, senão um juízo particular, em que o Padre Eterno há-de tirar o Reino e Império universal do Mundo ao tirano ou tiranos que então o possuírem, e para meter de posse e o entregar a Cristo, seu filho, como legitimo senhor e herdeiro dele, e aos professores de sua fé e obediência, que são os Cristãos.

Se este Império de Cristo no Mundo é espiritual ou temporal

Assentado, como acabamos de resolver, que este Império de Cristo e dos Cristãos, de que falam as profecias alegadas, é principalmente o da Terra e não o do Céu, ainda nesta suposição nos resta averiguar um ponto de grande importância e de cuja decisão depende o maior fundamento de todo este nosso discurso. Porque este Império de Cristo, que dizemos há de ser na Terra, ou pode ser espiritual ou temporal. espiritual como o que hoje tem o Sumo Pontífice, cujo poder e jurdição se ordena a governar os fiéis membros e súbditos da Igreja, a conseguir a bem-aventurança, que é o último fim do homem; temporal, como o que têm os príncipes católicos sobre os seus reinos e províncias, que se dirige a governar os vassalos por meio de leis prudentes e justas, que é o fim particular de todas as comunidades humanas, dos Cristãos católicos, em quanto este fim particular e mediato se ordena ao último fim.

Isto posto, perguntamos agora se este Império de Cristo há-de ser espiritual ou temporal; e começando pela conclusão em que não há resistência nem dificuldade, diremos primeiramente que este Império de Cristo (o qual não há-de ser diferente do que hoje é, senão ,quanto ao modo como em seu lugar veremos) é império espiritual. Assim o ensinam e ensinaram sempre conformemente todos os Padres e Doutores da Igreja, todos os teólogos antigos e modernos, e todos os expositores de ambos os Testamentos, e se demonstra com o mesmo mistério da Encarnação e fim com que Cristo veio ao Mundo, e com a doutrina e ações de sua vida e morte.

Porque, se perguntarmos aos Evangelistas (deixando o testemunho das outras Escrituras) que fez Cristo e que ensinou com a palavra e com o exemplo, desde o dia em que nasceu até à hora em que expirou na cruz, dir-nos-ão que veio ensinar aos homens a ciência da saúde e salvação; que veio ser luz do Mundo e alumiar os que vêm a ele; que veio lançar fogo na terra, para que se acendesse nela a claridade que tão apagada estava; que veio encher e informar a lei e animar a letra com o espírito; que veio vencer o demônio e lançá-lo do Mundo, onde reinava e se intitulava príncipe; que veio apartar os pais dos filhos e os filhos dos pais, para que a graça prevalecesse contra a natureza e o amor de Deus pudesse mais que o do sangue; que ensinou o desprezo das riquezas, os interesses da esmola, o perdão das injúrias, a verdadeira amizade com os inimigos, a virtude da humildade e a da castidade, uma não usada, outra não conhecida no Mundo, que pregou o Reino do Céu, a eternidade do Inferno, o rigor do juízo, o preço e imortalidade da alma; finalmente que abriu sete fontes de graça e ou que instituiu sete sacramentos perpétuos e ficou Ele conosco perpetuamente em sacramento; que nos lavou com o seu sangue, que morreu por nós, e que nos deixou o seu amor e o nosso contentamento.

Sendo pois estas as ações daquele Senhor a quem antes de vir ao Mundo todos os profetas chamaram Pai, e em seu nascimento foi aclamado Rei e em sua morte intitulado Rei; e sendo todas elas ordenadas só à salvação e perfeição dos homens e dirigidas e encaminhadas ao Céu, cujo reino lhes pregou e prometeu sempre, e estando até aquele tempo fechado, lho abriu e mereceu com seu sangue; que maior sentimento se pode desejar, nem que maior demonstração ou evidência de ser o Reino e Império deste santíssimo e soberaníssimo Rei, Reino e Império espiritual?

Foi Reino e Império espiritual no fim e causas de sua instituição, espiritual nas leis, espiritual no governo, espiritual no uso, nas execuções e no exercício; e suposto que dizemos há-de ser sempre o mesmo (nem é decente nem seria crível outra cousa), em qualquer tempo futuro será e há-de ser também espiritual.

Não alegamos aos autores desta doutrina, assim por serem todos, como dissemos, como porque alegaremos muitos no capítulo seguinte.

Examina-se se o Reino e Império de Cristo é também temporal. Refere-se a opinião negativa

O império e domínio temporal é certo que de sua natureza não exclui nem implica com o temporal, de modo que um outro domínio bem pode sem repugnância alguma convir e ajustar-se no mesmo sujeito. Assim vemos que o Sumo Pontífice, tendo o domínio espiritual de toda a Igreja, é também senhor e príncipe temporal do estado que chamam eclesiástico; em Alemanha, três dos eleitores do Império são príncipes eclesiásticos e senhores temporais de seus estados; e no nosso reino, o Arcebispo primaz é juntamente Bispo e Senhor de Braga.

Suposto pois que o Reino e Império de Cristo seja espiritual, como acabamos de resolver, resta examinar agora se é também império temporal. Muitos e graves teólogos seguem de tal maneira a parte negativa que exclui totalmente do Império de Cristo toda a jurdição, poder e domínio temporal, e somente lhe concedem ou admitem nele o puramente espiritual; bem assim como aquele que os príncipes eclesiásticos têm sobre suas igrejas ou ovelhas (posto que por modo mais sublime e excelente) mas de nenhum como aquele que os senhores e príncipes seculares têm sobre seus estados e vassalos.

Fundam primeiramente esta sua sentença em muitos lugares da Escritura e particularmente em todos aqueles com que no capítulo passado mostramos o seu nome e título de Rei, que os Profetas davam a Cristo; e notam bem advertida e doutamente estes autores que todas as vezes que os textos da Escritura Sagrada falam no Reino, Império, domínio, poder ou principado de Cristo, sempre acrescentam alguma explicação ou limitação com que o nome geral de Rei e Senhor se distinga ou aliene da significação de poder temporal, e se limite, estreite e determine ao espiritual somente.

No Salmo II chama David a Cristo Rei constituído por Deus - Ego autem constitutus sum rex ab eo; mas logo limita a significação do ofício ou dignidade, dizendo que para pregar seus preceitos-praedicans praeceptum ejus. No Salmo XLIV descreve o mesmo Profeta as prosperidades e progressos do Reino de Cristo: ...intende, prospere procede et regna; mas logo declara o gênero de armas, todas espirituais, com que há-de conquistar o Mundo: Propter veritatem et mansuetudinem et justitiam , et deducet te mirabiliter dextera tua. Isaias, no capítulo IX, anuncia o mesmo Reino de Cristo e sua perpetuidade: ...super solium David et super regnum ejus sedebit in eternum; mas logo aponta os fundamentos espirituais também, de que lhe háde vir a firmeza: ut confirmet illud et corroboret in judicio et justitia. Jeremias, no capítulo XXIII, celebra o Reino e sabedoria de Cristo Rei: ...regnabit rex et sapiens erit; mas logo determina os efeitos dessa sabedoria que hão-de ser encaminhados todos à salvação: In diebus illis salvabitur Juda. Zacarias no capítulo IX descreve o triunfo de Cristo aclamado por rei na entrada de Jerusalém: Ecce Rex tuus veniet tibi; mas logo lhe chama rei e salvador justo, pobre e humilde: Justus et salvator, ipse pauper et ascendens super asinam. Finalmente, o mesmo Cristo »— confessando a Pilatos que era rei »— Tu dicis quia rex sum ego - acrescentou logo que o seu Reino era para dar testemunho da verdade ao Mundo: Ego in hoc veni in mundum ut testimonium perhibeam veritati. E depois de ressuscitado, declarando aos Apóstolos com a maior majestade de palavras que podia ser a grandeza de seu império, domínio e potestade-Data est mihi omnis potestas in Cælo in Terra-a conseqüência que tirou deste poder tão universal foi: Euntes in mundum universum prædicantes Evangelium omni creaturæ; qui crediderit et baptizatus fuerit, salvus erit: fé, batismo e salvação dos homens. Segue-se logo que o Reino e Império de Cristo é espiritual somente, e de nenhum modo temporal. Sobretudo está por esta parte aquele claríssimo oráculo de Cristo: Regnum meum non est hoc mundo - o meu Reino não é deste Mundo, das quais palavras podemos dizer: Quid adhuc egemus testibus?

A eficácia destes textos se acrescenta a de muitas razões e argumentos, entre os quais porventura não é o que tem granjeado menos votos a esta opinião errada aquela palavra temporal, a qual, construída com o Império de Cristo e pronunciada aos ouvidos mais religiosos e espirituais, parece que traz consigo alguma dureza e dissonância, por não dizer indecência.

De que servia a Cristo (dizem) o nome ou jurdição de Rei temporal do Mundo, se ele vinha como vimos a confundir com seu exemplo o mesmo Mundo, os mesmos reis e as mesmas temporalidades? Se a perfeição cristã que Cristo veio ensinar aos homens consistia em deixar tudo e seguir em pobreza e humildade a Cristo pobre e humilde, como dizia com esta renunciação de todos os bens, honras e haveres do Mundo, o domínio, o império, a majestade de todo ele? E se esta majestade, este império e este domínio não havia de ter (como nunca teve com Cristo) uso ou exercício público, e havia de estar sempre oculto e encoberto aos homens, não seria maior autoridade, maior exemplo e ainda maior circunstância de perfeição saber-se que o renunciara Cristo, podendo tê-lo, que dizer-se que o tivera e conservara, e ainda que o pedira, como alguns dizem? Com que liberdade ou com que confiança havia de aconselhar ou mandar Cristo a certo mancebo que, se queria ser perfeito, deixasse o domínio das suas herdades, se no mesmo tempo o mestre desta perfeição retivesse o domínio de toda a Terra? Para que se há-de admitir logo o nome deste Império temporal em Cristo; se nem para o decoro da pessoa, nem para o fim do ofício, nem para o exemplo da doutrina era necessário, e para o exercício e uso que nunca teve realmente inútil e ocioso?

Estas razões ou admirações, que não são muitas vezes as que menos persuadem, se fecham e apertam eficazmente com um discurso fundido em todos os princípios gerais de direito, com que parece aos autores desta sentença que não só estabelecem de todo a certeza dela, mas que convencem e desfazem a probabilidade de qualquer outra. Argumentam ou decorrem assim:

Se Cristo foi Rei temporal, ou foi Rei por direito natural, ou por direito divino, ou por direito humano. Por direito natural não, porque Cristo não era filho nem herdeiro de rei; e dado que fosse legítimo sucessor do Reino de Israel, como dizem menos provavelmente alguns autores, a herança de um reino particular não lhe dava direito para o império de todo o Mundo. Por direito divino também não, porque, se houvera tal direito, constara pelas Escrituras, e posto que muitos textos da Escritura falem de Cristo como Rei e lhe dêem o nome e título de Rei, todos, como vimos, se entendem do Reino espiritual ou celeste, e quando menos se podem interpretar assim, sem nos obrigarem a que os entendamos do Reino ou Império temporal. Finalmente, por direito humano não, porque a jurdição de fazer ou eleger rei está na comunidade dos homens; e para Cristo ser respectivamente Rei universal de todo o Mundo por esta via, era necessário que todos os homens e comunidades do Mundo se unissem em um consentimento, com que o elegessem por Rei e Senhor de todas, o que nunca houve, antes sabemos que os príncipes e povo de Judéia, que era a terra onde Cristo vivia, se conjuraram contra ele e lhe tiraram a vida, só porque não tomasse o nome de Rei; e que o mesmo Senhor, na ocasião em que alguns deles lho quiseram dar, fugiu deles e do mesmo título, e se escondeu em um monte para escapar daquela violência. Logo se não foi Rei temporal, nem por sucessão natural, nem por eleição humana, nem ,por doação ou nomeação divina, bem se conclui que o Reino e Império de Cristo, tão celebrado nas Escrituras, de nenhum modo foi nem pode ser temporal, se não espiritual e somente qual acima dissemos.

Os Padres que isto disseram e seguiram querem alguns que sejam todos. Ao menos confessa Vasques que da doutrina dos Padres não se pode convencer o contrário. O primeiro que se alega é Santo Agostinho em muitos lugares, entre os quais o mais claro (ou o que parece) é este: Populi personam figurate gerebat homo ille, scilicet Saul; qui populus regnum fuerat amissurus Christo Domino nostro per Novum Testamentum, non carnaliter sed spiritualiter regnaturo. Nenhum dos outros Padres fala em termos de tanta expressão, mas alegam-se e podem-se alegar no mesmo sentido S. Ambrósio, S. Atanásio, S. João Crisóstomo, Tertuliano, Teófilo e outros, e diz o doutíssimo Maldonado que esta é a sentença comum dos melhores teólogos que assim o disseram. O douto leitor julgará se são os melhores. E são estes: Hermas, Letmatio, Driedo, Castro, Bertolameu de Medina, Jansénio, Vitória, Adrião Fino, João Parisiense, Francisco de Cristo, Melchior Flávio; e posto que também se citem por esta ,parte Soto, Abulense e Waldense, falam, por termos tão indiferentes, que Vasques os alega (e diz que assim se devem alegar) pela parte contrária.

Advirta-se, porém, para crédito de Maldonado e nosso, que os teólogos que hoje têm maior fama nas escolas, quando ele escreveu, ainda não tinham escrito.

Propõe-se e defende-se a opinião afirmativa

Se escrevêramos menos há de cem anos, porventura que não puséramos aqui tão confiadamente este capitulo. Mas, como disse S. Gregório, e antes dele Sábio, quanto a Igreja mais cresce, mais se alumia, e o que nos tempos passados é duvidoso, nos futuros se sabe, a opinião do Reino temporal de Cristo e da Conceição imaculada de sua Mãe se acompanharam no mesmo tempo na mesma fortuna, e ambas ao fim, se não têm ainda triunfado, já têm vencido Mitigou-se com os dias e com a consideração o horror daquele nome temporal; acabou-se de conhecer que com e1e se não davam armas, antes se tiravam ,aos inimigos (porque também na Teologia se deve entender: Omnia dat qui justa negat); sucederam àqueles teólogos de grande espírito outros de grandes espíritos, e resolveu-se que não eram menos espirituais os que admitiam no Império de Cristo o nome de temporal.

Nem sempre é maior espiritualidade o que mais opõem ao corpo. Os Origenistas chamavam por escárnio pelusiotas aos que seguem a fé de que todos havemos de ressuscitar em nossos corpos, parecendo-lhes cousa indigna, e muito contra o decoro da bem-aventurança, que houvessem de aparecer diante de Deus as nossas almas com vestidos tão indecentes como são os corpos; e diz S. Jerônimo, com outras galantarias, que não eram os que pior tratavam seus corpos os que isto diziam. Não fazem menos santo a Cristo, nem querem fazer menos espiritual o Mundo, os que reconhecem em Cristo o domínio temporal dele. Porventura ofende a Deus, em quanto Deus, o ser senhor e criador de todas as cousas corporais, e o ter em sua própria essência eminentemente as idéias de todas elas? Antes deixava de ser Deus, se assim não fora. Pois o domínio soberano, que é perfeição em Deus Deus (digamo-lo assim), porque há-de ser menos decência em Deus Homem?

Quando chamamos Império temporal ao de Cristo, não queremos dizer que é o seu Império sujeito às mudanças e inconstâncias do tempo, nem que receba a grandeza e majestade da pompa e aparato vão das cousas exteriores do Mundo, a que o mesmo Mundo quando fala com mais siso chama com razão temporalidades; e isto é só o que negam as Escrituras, isto o que não admitem os Padres, e isto o que explicou o mesmo Cristo, quando disse: Regnum meum non est de hoc mundo.

O Império que dão ou reconhecem em Cristo os que admitem e veneram nele o nome de temporal, é um domínio soberano e supremo sobre todos os homens, sobre todos os reis, sobre todas as cousas criadas, com poder de dispor delas a seu arbítrio, dando e tirando reinos, fazendo e desfazendo leis castigando e premiando, com jurdição tão própria e direta sobre todo o Mundo como a que os reis particulares têm sobre seus vassalos e reinos, antes com muito maior, mais perfeito e mais excelente domínio, não dependente como eles das criaturas, mas absoluto soberano, sublime e independente de todos.

Os teólogos que isto assentam por conclusão é S. Tomás, Soares, Vasques, e bastava ter escrito estes três grandes nomes, para dar por provada e acreditada com o Mundo uma verdade tão necessária e importante como depois veremos. Seguem a estes três lumes outros muitos que o puderam ser da Telogia, se eles não foram diante. O Cardeal Toledo, o Cardeal Lugo, Molina, Valença, Salazar, Hurtado Arriaga, Arnico, Peres, Verga, Caspense, Carçosa, Lacerda, Justiniano, Cornelio, Ludòvico Tena, e os dois Mendonças insignes de Portugal e Castela, dos quais este último já no ano de 1586, na Universidade de Salamanca, onde era catedrático de Scoto, excitou e defendeu galhardamente esta questão nos termos seguintes, que por serem tão particulares os quero referir aqui:

Verum Jesus Christus Deus ac Salvator noster fuerit vere ac proprie Dominus et Rex totius Orbis, atque omnium rerurm creatarum, secundum quod homo est, non tantum spiritualis rex ac dominus, sed et verus ac absolutus et proprius, atque adeo tenporalis: tam vere et proprie quam Philippus 2dus temporis rex est Hispaniarum, et unusquisque hominum dominus est suarum rerum, eo quod illis in omnem usum potest citra alicujus injuriam uti.

Este é o sentido em que falam com pouca diferença de palavras todos os teólogos referidos, como se pode ver nos lugares citados à margem, antes dos quais tinham seguido e ensinado a mesma doutrina Santo Antonino, Durando, Almaino e os três já nomeados Abulense, Scoto, Waldense, a que podemos ajuntar muitos juristas de grande nome, como o Cardeal Turrecremata, o Cardeal Hostiense, Navarro, Bacónio e outros.

E para que demonstremos a verdade desta nossa crença, e do império temporal de Cristo, pelos mesmos princípios e fundamentos da opinião contrária, e os vamos juntamente impugnando e desfazendo, seja o primeiro o testemunho das mesmas Escrituras alegadas, em que Cristo tão repetida e expressamente é chamado Rei por boca de todos os Profetas antigos. A que podemos acrescentar o do maior Profeta da Lei da Graça, S. João Evangelista, em dois lugares do Apocalipse, em que chama a Cristo Príncipe dos reis da Terra e Rei dos reis e Senhor dos senhores, no capítulo I, Princeps regnum terrae, e no capítulo XIX, Rex regnum et Dominus dominantium. Os quais textos e todos os mais se não podem entender própria e naturalmente senão do Reino temporal de Cristo, porque o contrário devia fazer manifesta violência à significação da palavra Rei, a qual em toda a Escritura Sagrada significa Rei temporal; e se é regra certa, como ensina S. Agostinho, que as palavras da Sagrada Escritura se não hão-de interpretar em sentido metafórico e figurativo, senão quando, se se entenderem na sua significação própria e natural, se seguisse algum grande inconveniente ou absurdo contra a doutrina da mesma Escritura recebida pela Igreja, os mesmos nomes de Rei e Reino, tantas vezes celebrados e cantados pelos Profetas, falando do Império de Cristo, nos obrigam a conceder e confessar que em toda sua propriedade significam Rei e Reino temporal, pois se não segue de assim o entendermos inconveniente algum ou dissidência contra aquela grandeza e majestade de Cristo, antes muita honra, glória e autoridade, sua e da Igreja, como neste capítulo se irá vendo, quando respondermos a estas leves objeções da parte contrária.

A esta confirmação geral da significação da palavra Rei acrescenta o Padre Soares outra, que é própria da pessoa de Cristo, e que eficazmente convence o sentido em que se deve tomar a mesma palavra. Porque o Reino espiritual de Cristo se distingue do Sacerdócio do mesmo Cristo, e consta das Sagradas Escrituras, como prova S. Agostinho no Tratado XXII sobre S. João, e nós mostraremos largamente no capítulo seguinte, que o Reino e o Sacerdócio em Cristo são dignidades e jurdições distintas. Logo, se o nome de Supremo Sacerdote significa o Reino e Império espiritual, segue-se que o de Supremo Rei significa o temporal.

Finalmente, o mesmo Cristo, antes de subir ao Céu, deixou dito e publicado ao Mundo que seu Eterno Pai lhe tinha dado todo o poder no Céu e na Terra: Data est mihi omnis potestas in Cælo et in Terra. E quem diz todo, seguindo as regras do direito, nenhuma cousa exclui. Teve logo Cristo o império espiritual, que é o que mais propriamente se chama império no Céu, e teve juntamente o império temporal, que é o que com toda a propriedade se chama império na Terra, porque de outra maneira se não de dizer nem entender, sem manifesta implicação, que tivesse ou tenha Cristo todo o poder, pois lhe faltaria nesse caso o poder temporal, que é uma tão grande parte desse todo.

Estes são os textos mais eficazes e expressos com que os teólogos costumam provar a verdade do Império temporal de Cristo. E posto que baste cada um deles, tomado na propriedade e natureza de sua significação, para ,persuadir facilmente a qualquer entendimento fácil e dócil, nós, para maior demonstração da mesma verdade, sem sair das mesmas profecias e textos fundamentais desta história, não só esperamos de a confirmar eficazmente na mesma certeza, mas de lhe acrescentar com a nova luz deles nova evidência.

E, começando pela profecia de Zacarias, já vimos que a coroação de Jesus, filho de Josedec significa a dignidade suprema do Império de Cristo. Agora pergunto porque foi coroado não com uma senão com duas coroas, e porque uma delas foi de prata e outra de ouro?

A razão, não mística senão literal, dizem comumente os expositores que foi porque Cristo não teve uma só coroa, senão duas: uma como Supremo Sacerdote, que pertencia ao Império espiritual; e outra como Supremo Rei, que pertencia ao temporal. E por isso não eram ambas de ouro, ou ambas de prata, senão uma de prata e outra de ouro, para significar a diferença e preço daqueles dois impérios ou jurdições; e que o império espiritual significado no ouro era mais alto, mais precioso e mais sublime que o império temporal.

E quanto ao império temporal, em que só podia haver dúvida, que maior prova se podia desejar que a da estátua de Nabuco, cujos metais desfez a pedra em pó e em cinza? Porque, se é certo (como é de fé) que aqueles quatro metais significavam quatro impérios sucessivos, e impérios verdadeiramente temporais, bem se segue que a pedra que os derrubou e desfez, figura do Reino e Império de Cristo, não só significa Império espiritual, senão também temporal, porque só impérios temporais se derrubam, arruínam e desfazem uns aos outros, o que não faz nem pode fazer o Império espiritual.

Para um império derrubar e desfazer a outro, é necessário que tenha oposição e contrariedade com ele acerca das mesmas cousas, e esta oposição e contrariedade só se acha nos impérios temporais entre si, e não entre o império espiritual e temporal, como bem tem mostrado a experiência no mesmo Império espiritual de Cristo, o qual, depois de comunicado a seus vigários os Sumos Pontífices, não desfez os impérios e reinos dos príncipes temporais, antes ajudou muito e se ajudou de seus aumentos, crescendo e estabelecendo-se mais a grandeza e majestade da Igreja e dos Pontífices, quanto mais se estabelecia e crescia a dos Imperadores. E este foi o erro, ignorância e engano de que sempre os fiéis notaram e motejaram a Herodes, cantando sobre sua loucura por boca da Igreja: Crudelis Herodes, Deum regem venire quid times? non eritit mortalia qui Regna dat cælestia? sendo pois certo que o Reino e Império de Cristo derrubou ou há-de derrubar todos os impérios do Mundo, que são impérios verdadeiramente temporais, e não espirituais, ocupando e enchendo toda a Terra, donde eles antes estiveram, como expressamente se colhe que o império de Cristo não é só espiritual, senão temporal!

E tudo isto se verá mais claramente, quando adiante explicarmos o tempo da ruína desta estátua e outras circunstâncias dela. Nem menos se confirma a mesma verdade com a segunda visão de Daniel (Daniel VII) na qual lemos que, para Deus dar o Império ao Filho do Homem, mandou primeiro queimar a quarta besta das vinte pontas, em que era significado o Império Romano, e todos os reinos temporais que dela nasceram, o que de nenhuma maneira era necessário se o Reino e Império de Cristo fora somente espiritual, pois vemos que reinou antigamente Cristo espiritualmente em todo o Império Romano, e reina também hoje espiritualmente em todos os reinos que do mesmo Império Romano nasceram e se dividiram, e conservam o nome de cristãos, e nem por isso deixam de ter o mesmo domínio e soberania temporal que, antes de receberem a sujeição de Cristo, tiveram. Segue-se logo com evidência que o Império de Cristo, que lhes há-de tirar essa soberania temporal, não é ou há-de ser o Império espiritual de Cristo, a que eles já estão sujeitos, senão o Império temporal, como melhor se entenderá pelo discurso de tudo o que diremos.

Finalmente, como consta do mesmo texto de Daniel, o império do Filho do Homem ou de Cristo naquela visão é o mesmo Império universal que hão-de ter os Cristãos na Terra, no qual Império hão-de entrar e ser incorporados todos os reis e reinos do Mundo. Como se pode logo duvidar que este imenso e portentoso Império, composto de todos os impérios, de todos os reinos e de todas as repúblicas temporais, posto que seja espiritual e espiritualíssimo, não haja de ser também temporal? Este é, e este o Reino e Império de Cristo, tão cantado e celebrado nos oráculos dos Profetas, pelo qual se intitula com toda a propriedade Rex regnum et dominus dominantium; e assim como a palavra regnum e dominantium é sem dúvida que significa reis e senhores temporais, assim a palavra rex e dominus significa rei e senhor também temporal, para não admitirmos, com manifesta violência da Escritura e repugnância do entendimento, que na mesma sentença e na mesma palavra se varia o sentido e suposição dela, e que rex e dominus têm uma significação e regnum e dominantium outra. E se nos lugares da Escritura alegados pelos autores da opinião contrária, e em outros que também lhes pudéramos ajuntar, parece que o domínio real de Cristo se limita e determina ordinariamente a fins e obras espirituais, de nenhum modo se enfraquece com este indício ou argumento a verdade da nossa sentença, antes com ela se confirma e estabelece mais, porque nós não dizemos que o Reino e Império de Cristo é espiritual, senão que é espiritual e temporal juntamente, conhecendo e tendo pela maior excelência deste felicíssimo Reino, que não só em quanto espiritual, senão ainda em quanto temporal, se ordena ao fim último e sobrenatural da bem-aventurança, pois esse Reino e não outro é o que há-de ser eterno e glorioso no Céu, como dizem as palavras tão repetidas do nosso texto, e isto é ser império de Cristo e dos Cristãos; e nisto se distingue dos reinos meramente políticos e humanos, porque estes têm por fim a conservação e felicidade da Terra, e o de Cristo e dos Cristãos a do Céu.

Vindo às autoridades (como dizem) dos Padres concedemos facilmente que são poucos os lugares de seus escritos em que se ache expressamente e em próprios termos o Reino temporal de Cristo, como também se não acha o da graça santificante do mesmo Cristo, distinta da união hipostática, e outras cousas de igual importância e dignidade, recebidas entre os teólogos; não porque os santos tivessem diferente parecer, mas porque em seu tempo não estavam em uso aqueles termos que depois inventou a Teologia, para maior clareza da doutrina escolástica, explicando muitos deles com palavras menos latinas (por não dizer bárbaras) qual é a palavra temporal. Dos quais termos se abstêm ainda hoje os que escrevem com estilo mais polido e levantado, como nos primeiros tempos da Igreja faziam aqueles santíssimos e doutíssimos Padres, para convidarem a todos a lerem de boa vontade e com gosto seus escritos, e para que nos livros dos autores cristãos se não achasse menos a propriedade e majestade da eloquência que tanto se venera nos escritores gentios.

Desta razão, que é geral para muitas matérias, damos por testemunhas os mesmos livros dos Padres, nos quais também se acharam freqüentemente louvadas, inculcadas e persuadidas as virtudes que pertencem ao Reino espiritual de Cristo, não porque aqueles santos negassem à universalidade de seu Império o domínio temporal, mas porque deste não quis ter exercício aquele Senhor que era juntamente Senhor e Mestre, e os principais e maiores exemplos que nos quis deixar foram do desprezo dele.

Não faltam contudo lugares muito ilustres aos Padres, em que falavam do Império temporal de Cristo com termos Não menos expressos que os que se alegam pela parte contrária, dos quais porei aqui os que bastem a responder a estes e confirmar a verdade da nossa.

S. Cirilo, explicando as palavras de Cristo: Regnum meum non est de hoc mundo, no Livro XII sobre S. João, diz assim: Regem se esse non negat, sed regni Cæsaris se non esse hostem ostendit, quia -ejus regnum terrenum non est, sed caeli et terra:, ceterarunque rerum omnium. E S. Agostinho, no Tratado XIV sobre o mesmo Evangelista: Erat quidem Rex non talis qualis ab hominibus fit, sed talis ut homines reges faceret. E S. Gregório, na Homilia VIII, sobre os Evangelhos, ponderando o lugar do nascimento de Cristo, Não próprio senão alheio:Alienum, diz, non secundum potestatem sed secundum naturam; nam secundum potestatem in propria venit. E mais claramente que todos S. Bernardo, no Livro III De consideratione escrevendo ao Papa Eugénio: Dispensatio tibi super illum credita est, non data possessio; ...Non tu ille de quo Propheta: «Et erit omnis terra possessio ejus?» Christus hic est, qui possessionem sibi vindicat, et jure creaturæ et merito redemptionis et dono patris. Cui enim alteri dictum est: «Postula a me, et dabo tibi gentes hæreditatem tuam et possessionem tuem terminos terræ?»Possessionem et dominium cede huic, tu curam ilius habe.

Outras muitas sentenças semelhantes a estas se vêem em outros Santos Padres da mesma e maior antigüidade, como S. Ireneu, no Livro IV, cap. XVII; S. Cipriano Adversus Judaeos cap. XXVI, S. Hilário sobre o Salmo II, v. V; S. Jerônimo, Lib. IV, sobre Jeremias, cap. XXII, e S. Ambrósio no Livro III, sobre S. Lucas. Aos quais com razão podemos acrescentar todos aqueles autores antigos e modernos que, a título de Mãe de Cristo, reconhecem e veneram na Virgem, Senhora nossa, o império e domínio de todo o Mundo. O mesmo S. Bernardo, no Sermão sobre as palavras do Apocalipse - signum: Maria (diz) eo quod mater Dei est, regina cælorum et domina mundi jure esse probutur. E S. Atanásio, no Sermão I De nativitate Virginis: Quandoquidem Christus rex est qui natus est ex virgine idemque et Dominus et Deus; ea propter et mater quæ eum genuit, et regira domina et deipara proprie et vere censetur. E S. Bernardino de Sena, no Tomo I, Serm. XI, cap. I: Virgo beatissima omnem hujus murdi meruit principatum et regnum, quia filius ejus in primo instanti suæ conceptionis monarchiam totius promeruit et obtinuit uriversi, sicut Propheta testatur, dicens: «Domini est terra et plenitudo ejus, orbis terrarum et universi qui habitant in eo».

Dos quais lugares todos e muito mais claramente destes últimos se mostra quão assentada cousa era, e quão sem controvérsia, no sentir comum dos Padres, o Império e Monarquia universal de Cristo, não só quanto ao Reino espiritual e do Céu, senão quanto ao temporal e da Terra. E se alguns dos mesmos Santos Padres , principal mente em livro s apologéticos ou tratados, parece que diziam e ensinavam o contrário (como verdadeiramente parece), deve-se advertir que falavam do Reino de Cristo, não quanto ao poder, império ou domínio, senão quanto ao aparato, grandeza e majestade exterior de rei temporal, o qual os Judeus esperavam e os Gentios desejavam em Cristo, os primeiros interpretando erradamente as Escrituras, e os segundos fingindo as propriedades de Deus humanado conforme sua vaidade e apetite, como gente costumada a fazer deuses à sua vontade.

E como a controvérsia e disputa daqueles tempos era contra este escândalo dos Judeus e contra esta estultícia dos Gentios, que são os nomes injuriosos ou gloriosos com que uns e outros afrontavam a cruz e humildade de Cristo, por isso é tão freqüente nos escritos dos Padres a diferença do seu Reino aos reinos do Mundo, não negando a Cristo Rei, como dizíamos, o domínio e império ainda temporal sobre todo e1e, mas engrandecendo esse mesmo império pelo desprezo da pompa e aparato vão em que põem os reis da Terra sua grandeza e majestade.

Basta, por todos os Padres que pudéramos trazer em comprovação desta nossa advertência, um lugar de S. João Crisóstomo, em que, falando do Rei que vieram adorar a Belém os reis e da diferença humilde de seu estado, diz assim elegantemente:

Quonam pato magi ex stella illa Judaeorum regem illum esse didicerut, cum certe non istius regni ille rex esset... Nihil quippe tale monstravit, quale mundi hujs reges habere conspicimus. Neque enim hastas, neque clypeatas ostendit militum catervas: non equos regalibus phaleris insignes, non cunas auro ostroque fulgentes; non enim istum neque alium quempiam circa se habuit ornatum, sed vilem hanc prorsus vitam egit ac pauperem: duodecim tantummodo homines, eosque despectabiles secum circumducendo.

Esse aparato e pompa exterior de riquezas, galas, palácios, cavalos, coches, criados, exércitos, é o que os Santos negavam no Império de Cristo, e não o império e domínio dele sobre todo o Mundo, e este é o sentido próprio e germano em que Cristo disse a Pilatos: Regnum meum non est de hoc mundo. Como logo explicou na mesma razão que deu do que tinha dito: Si ex hoc mundo esset regnum meum, ministri utique mei decertarent, ut non traderer Judæis. Onde se deve notar que não disse Cristo: Regnum meum non est hujus mundi, senão de hoc mundo, porque o Reino de Cristo verdadeiramente era deste Mundo e de todo o Mundo, e só não tinha os acidentes da vaidade e falsa grandeza com que se sustentam os outros reinos do Mundo.

Prossegue a mesma matéria, apontam-se os títulos e razões do Reino temporal de Cristo

O principal fundamento dos que não admitem no Reino de Cristo o império e domínio temporal, é por não haver título, como eles dizem, ao qual compita e seja devido aquele domínio; e para que se veja manifestamente a debilidade deste fundamento e tragamos à nossa sentença os mesmos autores que em seguimento deles abraçam a contrária, apontaremos e provaremos aqui, com a maior brevidade que nos for possível, os títulos por que é devido e compete a Cristo em quanto homem o Império e domínio supremo, não só espiritual, senão também temporal de todo o Mundo. São estes títulos seis, todos legítimos e conforme o direito: o primeiro por natureza, o segundo por herança, o terceiro por doação, o quarto por compra, o quinto por guerra justa, o sexto por eleição e aceitação de todos os homens, como iremos mostrando pela mesma ordem.

Primeiramente, é Cristo Rei e universal Monarca do Mundo por natureza, porque por meio da união da divindade à humanidade, a qual se inclui essencialmente na natureza de Cristo, sem algum outro concurso ou condição extrínseca, da parte de Deus nem da parte dos homens, pertence ao mesmo Cristo em quanto homem o domínio e império universal de tudo o criado, e por ela fica constituído, ou por ela (sem ninguém o constituir) é Rei e Senhor e Monarca supremo de todos os reis, de todos os reinos e de todos os impérios do Mundo. Por isso Cristo no Apocalipse trazia o título de Rex regnum e Dominus dominantium, escrito, como diz o texto, in femore, que significa a geração humana, para mostrar que o ser rei de todos os reis e senhor de todos os senhores lhe convinha e era seu por sua própria natureza. E por isso o nome que lhe puseram na circuncisão foi de Jesus, que quer dizer salvador, e não o de Cristo, que quer dizer ungido, porque o ser ungido por Rei e universal Monarca do Mundo não lhe pertencia por imposição divina ou humana, senão por natureza própria sua, ou por ser quem era. Salvador por obediência, mas ungido por natureza. E assim como antigamente se faziam ou consagravam os reis pelo óleo que eram ungidos, assim a união hipostática em Cristo foi uma verdadeira e própria unção com que juntamente com o ser e a natureza recebeu o poder e a Monarquia do Mundo.

Este é o único fundamento do Padre Vasques, a quem geralmente seguiram todos os que depois dele escreveram. Do qual Vasques diz Salazar que foi o primeiro a quem a Teologia deve os sólidos e verdadeiros princípios em que fundou o Império temporal de Cristo. E posto que Arriaga, por não faltar ao costume de impugnar tudo, não reconheceu na unção da união hipostática mais que a propriedade e energia da metáfora, nós veneramos nela a autoridade de David, que assim o disse no Salmo XLIV: Unxit te Deus, Deus tuus, oleo laetitiae pre consortibus tuis e a explicação de S. Agostinho e S. Gregório Nasianzeno, e de outros grandes Padres que. assim o entenderam. Porei suas palavras no capítulo seguinte pelas não repetir duas vezes.

O segundo título do Império de Cristo é por herança, porque, sendo Cristo filho natural de Deus, conforme o texto de S. Paulo — quod si filius et haeres — lhe pertence a Cristo o título de herdeiro do domínio e império universal do Mundo, de que Deus é absoluto Senhor. Assim o disse o mesmo Deus por boca do Profeta Rei: Postula a me et dabo tibi gentes hæreditatem tuam et possessionem tuam terminos terræ. E S. Paulo, falando também de Cristo: Quem haeredem universorum per quem fecit et sæcula. E o mesmo Cristo, na parábola da vinha: Hic est hæres, venite et occidamus eum. E neste título convêm todos os teólogos acima alegados, como também no seguinte:

É o terceiro título, o de doação, o qual se acha mais expresso que todos, assim no Velho como no Novo Testamento, no Salmo pouco antes alegado: Dabo tibi gentes hæreditatem tuam; e no salmo...: Omni subjecisti sub pedibus ejus; as quais palavras entende S. Paulo de Cristo, no I capítulo da Epístola aos Hebreus. O Anjo à Senhora, no capítulo II de S. Lucas: Dabit illi dominus Deus sedem David patris ejus et regnabit in domo Jacob. S. João, no capítulo III: Sciens quia omnia dedit ei pater in manus. O mesmo Cristo no capítulo...: Omnia mihi tradita sunt a Patre meo. E no capítulo...: Data est mihi omnis potestas in cælo et in terra.

O título da compra, que é o quarto, parece que cai mais imediatamente sobre os homens que sobre o Mundo, mas ao primeiro domínio se segue necessária e naturalmente o segundo, assim como o que é senhor do escravo fica juntamente sendo de todos os seus bens. E é conclusão certa na teologia, e de grande glória não só de Cristo mas nossa, que pelo título da Redenção não só ficamos vassalos deste soberaníssimo Monarca, senão verdadeiramente escravos seus, comprados com o preço de seu sangue: empti enim estis pretio magno: O sexto e último título do Império de Cristo dizíamos que era por consentimento, aceitação e como eleição de todas as nações do Mundo. Este título é o mais natural e jurídico entre os homens, em cujas comunidades, quando querem viver juntos e politicamente, pôs Deus, como autor da natureza, o poder e jurdição suprema de eleger e nomear príncipe. Assim o tem a comum sentença de todos os juristas teólogos, e o alcançaram e ensinaram antes deles, por lume natural, Aristóteles no Livro III das Políticas, e Platão no Diálogo de Regno e nos livros — De republica. Mas em Cristo parece que não pode ter 1ugar este título porque, sendo o Monarca universal de todo o Mundo e de todos os homens, era necessário que os mesmos homens conviessem todos este consentimento, eleição ou aceitação, como acima dizíamos, e este consentimento comum nunca jamais o houve no Mundo, antes, como dizem alguns teólogos, não é possível havê-lo. Contudo digo que não faltou ao Império e Monarquia universal de Cristo este último título do consentimento e aceitação universal dos homens, como agora mostrarei. E peço licença aos que quiserem ler este discurso para meditar um pouco mais nele, por ser pensamento novo e matéria até agora não tratada, à qual é necessário abrir os alicerces e lançar os primeiros e sólidos fundamentos, prometendo aos que fizerem esta detença não perderão o fruto do tempo que nela gastarem, pois verão por grandes notícias e não vulgares da Antigüidade quão certa e concertadamente concorre a novidade e verdade desta nossa consideração ao maior estabelecimento do Reino de Cristo.

Alberto Pighio (para que de todo não entremos neste novo caminho sem alguma guia) no Livro V da Hierarchia Ecclesiastica, capítulo III, arrostando a opinião de muitos e graves autores, os quais têm para si que Cristo foi legitimo Rei do Reino de Israel, o título em que funda este direito é o consentimento, aceitação e expectação geral, com que Cristo, verdadeiro Messias, era esperado de todo aquele povo como seu verdadeiro Rei e Senhor, prometido aos primeiros Patriarcas da sua nação.

Nec Pilato (diz este autor) nec Caesari ullum legitimum jus in regnum Judaeorum, sed si cuiquam maxime competiit Christo, quem semper expectaverunt sibi regem f ore in lege promissum. E para ,prova desta geral aceitação e consentimento com que todo o povo hebreu tinha recebido por seu Rei ao prometido Messias, traz o mesmo Alberto Pighio a história do Livro I dos Macabeus, Capítulo XIV, em que se refere como os Judeus por consentimento comum elegeram por seu príncipe Simão e seus descendentes com a cláusula, porém, que o seriam somente até que viesse o Messias, a cujo Reino e direito não queriam prejudicar. Judæi (diz o texto) consenserunt eum Simonem esse ducem suum [...] in aeternum, donec surgat propheta fidelis. Sobre as quais palavras conclui assim o dito autor: Vides omnium Judeorum votis et expectatione semper expectatum Christum et Messiam in lege promissum, regem sibi fore; nam ad ejus usque aduentum Simoni atque e jus posteritati regnum stabilierunt, quod illi adventanti legitimo jure deberi significaverunt, velut expresse protestantes in ejus praejudcium et injuriam nihl se velle facere.

De maneira que o título com que tão grande teólogo e jurista defende o direito de Cristo ao Reino de Israel é aquele geral consentimento, espectação e como eleição com que todo o povo judaico tinha aceitado como seu verdadeiro Rei o futuro Messias, e como tal o esperava.

Assim explica em próprios termos esta sentença de Alberto Pighio, Alonço de Mendoça acima citado, cujas palavras quero também referir aqui, porque não pareça a acomodação da dita sentença levada de algum modo por nós ao intento em que nos serve: Alii (diz Mendoça, referindo-se a Pighio) alio titulo Christi regnum ab aduersariis vindicant; nam dicunt ex consensu et quasi electione populi judaici Christum fuisse illius gentis regem; nam cum ardentissime Messiam expectarent, et tenacissime crederent regem itsum futurum temporalem, ideo pblico totius gentis decreto in ipsum sua suffragia conjecerant et in regem elegerant.

De toda esta sentença assim entendida me não serve mais que o exemplo e o modo de dizer ou filosofar; e digo que, assim como em respeito do Reino de Israel, concorreu ou pode concorrer em Cristo o título da aceitação e como eleição geral daquele povo, pela espectação, desejo e consentimento comum com que era esperado de todos por seu legítimo, supremo e verdadeiro Rei, assim concorreu e concorre o mesmo título no Reino e Monarquia universal de Cristo, em respeito de todo o Mundo e de todos os homens e nações dele, nos quais houve o mesmo consentimento comum, o mesmo desejo e a mesma espectação, como logo mostraremos.

Nem impede ou encontra a verdade ou legitimidade deste título o ser o mesmo Rei Cristo primeiro eleito, ungido, prometido e dado por Deus, porque todas estas circunstâncias e condições concorrem no exemplo alegado (o qual não é semelhante se não o mesmo) e o mesmo temos nas eleições dos dois primeiros reis de Israel, Saul e Daniel, os quais por primeiro foram ungidos pelo Profeta Samuel por mandado de Deus, e depois novamente aceitos, aclamados e cada um deles ungido pelo mesmo povo, como consta da História Sagrada, no I e II Livro dos Reis.

E que em todos os homens e nações do Mundo houvesse geralmente o mesmo consentimento comum, e o mesmo desejo, e a mesma espectação acerca do Reino e Monarquia universal de Cristo sobre todos eles, que é o ponto e suposição em que fundamos este novo título, deixados outros muitos textos de menor clareza, apontarei somente dois, que se não podiam desejar nem ainda fingir mais expressos. O primeiro é do capítulo penúltimo do Gênesis, na bênção que lançou Jacob a seu filho Juda, no qual, falando do Messias prometido, como entendem uniformemente todos os autores católicos, e antes da vinda de Cristo, entenderam também sempre todos os Hebreus, diz assim: Non auferetur sceptrum de Juda et dux de femore ejus, donec veniat qui mittendus est, et ipse erit expectatio gentium: «Não faltará o cetro de Judá nem príncipe de sua descendência até que venha o que há-de ser mandado, e este será a espectação das gentes.» E o Profeta Ageu, no. capítulo II, falando da mesma vinda de Cristo (como é de fé que falava, porque assim o explicou S. Paulo na Epistola aos Hebreus, capítulo XII): ...ego commovebo caelum et terram et mare et aridam; et movebo omnes gentes, et veniet desideratus cunctis gentibus. Daqui a um pouco (diz Deus) «moverei o céu e a terra, o mar e todo o Mundo, e moverei todas as gentes e virá o desejado de todas elas»

De sorte que, antes de Cristo vir ao Mundo, não só era Ele o desejado e esperado do povo de Israel, senão o esperado e desejado de todos os povos e de todas as gentes, porque todos o esperavam por seu Rei e natural Senhor, e não só por Rei particular dos Judeus, senão por Monarquia universal de todas as outras nações e reinos do Mundo. Esta é a razão e o mistério por que os três reis do Oriente (em que se representavam, como diz a glossa, as três partes do Mundo até aquele tempo conhecido) sendo gentios, vieram adorar Cristo e oferecer-lhe tributos.

Sobre a nação daqueles reis, e se eram só de uma ou de diferentes nações, há variedade entre os Doutores. S. Jerônimo quer que fossem da Arábia Feliz, outros os fazem da Pérsia, outros da Média, outros da Etiópia. Eu tenho por mais provável que ao menos parte deles eram de regiões mais distantes, e verdadeiramente da nossa Índia Oriental, conforme profecia de David: Reges Tharsis et insula numera offerent, reges Arabum et Saba dona adducent. Porque aquelas palavras reges Tharsis et insule, conforme a significação mais recebida, querem dizer reis ultramarinos, o que se não verifica sem grande impropriedade nos reis da Arábia e Sabeia com respeito da Palestina.

Mas de qualquer modo que seja, o certo e sem controvérsia é que todos eram reis gentios. Pois se eram reis gentios, e de nenhum modo sujeitos ao domínio da república hebréia, que razão ou motivo tiveram para vir adorar um menino que eles mesmo conheciam e diziam que era Rei dos Judeus? Ubi est qui natus est rex Judaeorum?

A razão e motivo que tiveram foi (como bem notou Almaino) porque sabiam e criam que aquele rei dos Judeus novamente nascido não era rei particular (como os outros reis hebreus) de uma só nação ou de um só reino, senão Rei, Monarca e Senhor universal de todos os reinos e de todas as nações, e por isso como o Rei verdadeiro e Senhor universal de todos os reinos e de todas as nações do Mundo, e por isso como a rei verdadeiramente seu, o vinham adorar e reconhecer, e render-lhe a devida obediência e vassalagem: debitam ei seu vero eorum regi et domino prestantes obedientiam.

De sorte que antes de Cristo nascer e aparecer no Mundo, e quando somente estava profetizado e prometido já às nações do Universo, não só a hebréia, senão as dos gentios a tinham aceitado e querido, e por certo modo de eleição segunda e humana escolhido depois de Deus para seu futuro Rei e Senhor, e como tal o esperavam todos, e era desejada de todos a sua vinda: Ipse erit expectatio gentium; veniet desideratus cunctis gentibus.

Só vejo que podem reparar com muita razão os doutos, e argüir contra esta nossa suposição (como argüiu S. Agostinho contra este último texto) que não podia ser que as nações dos Gentios, e .muito menos todas elas, esperassem e desejassem o Messias antes da sua vinda; pois antes de Cristo vir ao Mundo, nem a fé ou a esperança de que havia de vir se tinha anuncia do ou manifestado às nações dos Gentios, senão somente aos Hebreus.

É tão forçoso e ao parecer tão evidente este argumento que, vencidos da força dele os maiores intérpretes da Escritura, excogitavam aos dois textos referidos as explicações que neles se podem ver, as quais, quando não façam alguma violência aos mesmos textos, ao menos não enchem o sentido de suas palavras, porque aquele erit expectatio gentium e aquele veniet desideratus cunctis gentibus verdadeiramente significam própria espectação e próprio desejo, com que as nações dos Gentios todas (geral e moralmente falando) ao menos algum tempo esperassem e desejassem a vinda do prometido e futuro Rei.

Assim é e assim foi, e assim se cumpriu uma e outra profecia, e assim digo se devem entender ambas em toda a capacidade do seu sentido próprio e natural. E para que se veja que não era cousa impossível nem dificultosa ser a vinda do Messias desejada e esperada geralmente de todas as nações gentílicas, mostrarei aqui os modos e os meios mais prováveis e certos por onde o conhecimento e esperança do futuro Messias não só podia chegar, mas com efeito chegou, ou a todas ou a quase todas as nações de todo o que naquele tempo se chamava Mundo.

O primeiro meio é a tradição continuada desde Adão até Noé, cujos três filhos, Sem, Cam e Jafet foram os segundos povoadores do gênero humano, no qual, enquanto se conservou unido, continuou também unida a mesma tradição, e depois que na Torre de Babel se dividiram os homens e as línguas, e se começaram novas nações, que encheram o Mundo, também com elas se espalhou pelo mesmo Mundo aquela noticia e esperança recebida de seus antepassados, pois é certo que com a mudança das línguas não perderam os homens a memória nem a ciência.

Este discurso é tão natural que não havia mister autor. Mas temos para maior confirmação dele o testemunho de S. Pedro Crisólogo, no Sermão 157, o qual, declarando o meio por onde os magos puderam entender que a estrela significava o Messias e que este havia de nascer na Judéia, diz que tinham aprendido e sabido assim por doutrina e tradição de seus maiores, derivada desde Noé. Non chaldea arte, sed de prisca sanctorum traditione majorum; erant isti de genere Noe, etc. E o autor do Imperfeito na humildade, II, sobre S. Mateus, tomando esta tradição mais perto da fonte, e referindo-se aos tempos de Set, filho terceiro de Adão, depois de Abel, conta haver ouvido de certo livro escrito com o nome do mesmo Set, o qual se conservava em uma nação das últimas partes do Oriente, junto ao mar Oceano, e que neste livro estava descrita a aparição futura daquela estrela, e os dons que se haviam levar e oferecer ao Rei nascido que ela significava, e que todas estas notícias se tinham conservado entre os doutos e estudiosos daquela gente por tradição de pais a filhos. Audivi aliquos (diz ele) referentes de quadam scriptura, et si non certa tamen non destruente fidem, sed potius delectante, quoniam erat quaedam gens sita in ipso principio Orientis juxta Oceanum, apud quos ferebutur quaedam scriptura, irscripta nomine Seth, de apparitura hac stella, et muneribus ei hujusmodi offerendis, quae per generationes studiorum hominum patribus referentibus filiis suis habebatur deducta.

Até aqui este autor, chamado o Imperfeito, por deixar imperfeita e não acabada a obra que comeu, o qual querem muitos que seja S. João Crisóstomo. E posto que não tem por certo aquele livro, e que só refere a fama, por ser de tão duvidosa antiguidade, não nega, porém, antes aprova a tradição do futuro Messias, que entre os Gentios se conservava, e da nova estrela que havia de anunciar o seu nascimento.

Esta é a opinião comum dos Padres, como se pode, ver em Orígenes, S. Basílio, S. Cipriano, S. Jerônimo, S. Gregório Nasianzeno, Teofilato, Eutímio, Ambrósio, S. Máximo, S. Anselmo, Procópio, .S. Tomás e S. Leão Papa, cujas palavras citaremos depois.

O outro meio por onde os Gentios puderam vir em conhecimento da vinda e império universal do Messias, que os Judeus esperavam, foi a grande comunicação que em todas as partes do Mundo tiveram sempre com os mesmos Gentios, e os mesmos Gentios com os Judeus, entre os quais era tão vulgar e celebrada aquela esperança, que o nome com que vulgarmente chamavam ao Messias era o Esperado, ou o que há-de vir, como se vê nos termos que falaram os discípulos ou embaixadores do Baptista, quando perguntavam a Cristo: Tu es qui venturus es, an alium expectatamus?

Era Jerusalém antigamente a mais formosa cidade e o maior império do Mundo situado no meio de todo ele, que por isso se chamava Umbellicus terrae, e como tal concorriam a ela de todas as partes infinitas gentes de todas as nações e ainda de todas as cores. Isto é o que tanto celebrava David naquela cidade em cuja fundação e formosura tinha ele tão grande parte: Glorosa dicta sunt de te, civitas Dei, Memor ero Rahab, et Babylonis scientium me. Ecce alienigenæ et Tyrus et populus AEthiopum hi fuerunt illic. Numquid Sion dicet: Homo et homo natus est in ea, et ipse fundavit eam Altissimus? Dominus narrabit in scripturis populorum et principum, horum qui ferunt in ea. Que gloriosas cousas se contam de ti (diz David) e se escrevem nas escrituras de todos os povos, ó cidade de Deus! Em ti se acham todas as diferenças de homens, que isso quer dizer homo et homo, homens de todas as línguas; homens de todas as cores, homens de todas as nações e partes do Mundo; em ti se acham todos os homens de África, como são os de Etiópia; em ti os da Ásia, como são os de Babilônia; em ti os da Europa, como são tantos outros estrangeiros; em ti se vêem homens brancos, como os Tírios; em ti homens negros, como os Etíopes; em ti homens de todas as outras cores meãs, como são os asiáticos; e de todas estas gentes, que é mais, não só freqüentam tuas ruas os do povo, mas também as passeiam os príncipes — populorum et principum! Mas o que sobretudo é digno de maior memória, e o que sobretudo te faz gloriosa, ó cidade santa, é que todos estes, vindo a ti, aprendem o que dantes ignoravam, e sabem o que dantes não sabiam, porque conhecem a Cristo.

Este é o sentido literal das palavras scientium me; porque o mesmo Cristo é o que falava neste Salmo por boca de David, como dizem comumente todos os intérpretes. E se no tempo de David era tão freqüentada a cidade de Jerusalém de todas as nações do Mundo, que seria no tempo de seu filho Salomão, depois de edificado o templo, primeira maravilha do mesmo Mundo, se o mesmo Salomão não fora maior maravilha! Para ver e ouvir estas duas maravilhas, e muito mais a segunda, diz o Texto Sagrado no III Livro dos Reis, cap. IV, que vinham de todos os povos e de todos os reis da Terra a Jerusalém pessoas enviadas por eles (que é certo seriam os maiores sábios dos mesmos povos e reinos) os quais, depois de ouvirem e admirarem em presença a sabedoria de Salomão, iam contar e ensinar a suas terras e príncipes o que dele tinham ouvido e aprendido. Et veniebant de cunctis populis ad audiendam sapientiam Salomonis, et ab universis regibus terræ qui audiebant sapientiam ejus.

E quem poderá duvidar que um dos principais mistérios que Salomão ensinava naquela cadeira universal do Mundo era o da fé e esperança do futuro Messias, filho e descendente seu, e que a maior maravilha que levavam para contar em suas terras os que tinham ouvido aquele famoso oráculo era que, sendo tão admirável a sabedoria e grandeza de Salomão, ainda havia de ter o mesmo Salomão um descendente que fosse mais sábio e maior que ele, plusquam Salamone! Assim o dizem expressamente neste lugar .., e se conformam com o exemplo da Rainha de Sabá, que, depois de ouvir a Salomão, foi a primeira que pregou nesta fé e esperança do Messias no seu Império de Etiópia, e em sinal da mesma fé introduziu em todo ele a circuncisão, que era uma protestação pública dos que a professavam.

Mas quando nos faltavam estes testemunhos do Testamento Velho, bastava um só do nosso para abundantíssima prova das muitas nações de Gentios que vinham ordinariamente e residiam em Jerusalém, pois só no dia de Pentecoste, ao som daquele trovão do céu, soubemos que acudiram ao convento e ouviram a primeira pregação de S. Pedro, quando menos, dezessete gêneros de homens de línguas e nações diferentes — Partos, Medos, Persas, Elamitas, Mesopotamios, Judeus, Capadoces, Pontos, Asianos, Frígios, Panfílios, Egipcios, Africanos, Cirenos, Romanos, Cretenses, Arabes e outros convertidos das gentilidades, que chamavam com nome geral prosélitos, que quer dizer novos, assim como hoje os judeus convertidos à Fé de Cristo se chamam cristãos-novos . Et quomodo nos ( diziam todos estes no cap. II dos Atos dos Apóstolos) audivimus unusquisqe linguam nostram in qua nati sumus? Parthi et Medi, et AElamitæ, et qui habitant Mesopotamiam, Judaeam et Cappadociam, Pontum et Asiam, Phrygiam et Pamphiliam, et AEgyptum et partes Liyæ, quæ est circa Cyrenen, et advene Romani; Judaei quoque et proselyti, Cretes et Arabes, audivimus eos loquentes nostris linguis magnalia Dei. Onde se deve muito advertir que, quando isto aconteceu, já a. cidade de Jerusalém e o povo e república dos Hebreus estava quase arruinada, e não conservava a quarta parte da grandeza a que nos tempos de sua maior opulência tinha chegado. E se agora era tão freqüentada de nações estrangeiras, que seria nos tempos passados?

Mas se importou muito para se estender a notícia do Messias por todo o Mundo a comunicação que os Gentios tinham com os Judeus em suas próprias terras, muito mais ajudou e adiantou a mesma notícia a muito maior comunicação e freqüência que os mesmos Judeus tinham e continuaram sempre nas terras dos Gentios, desde que nasceu e começou no Mundo a nação hebréia, que foi em Abraão, primeiro tronco e pai de toda ela. Revelou Deus por três vezes sucessivamente a Abraão, Isaac e Jacob a vinda do Messias, prometendo-lhes que em sua descendência seriam abençoadas todas as nações do Mundo: Benedicentur in semine tuo omnes gentes terrae; e no mesmo tempo pôs a Providência divina aqueles três Patriarcas em diferentes nações e províncias: a Abraão em Canaã, a Isaac em Gerara, a Jacob em Mesopotâmia, para que fossem três pregadores daquele primeiro Evangelho, ou como três evangelistas que anunciassem às gentes a boa nova da mercê grande que Deus tinha ,prometido fazer a todas. E porque ao numero dos três Evangelhos não faltasse o primeiro, permitiu a mesma Providência que por extraordinários caminhos fosse José levado ao Egito, e que aí por mandado do rei, como diz David, pusesse escola de sua sabedoria, onde tivesse por ouvintes todos os príncipes e sábios egiptianos: Ut erudiret principes ejus sicut semetipsum, et senes ejus prudentiam doceret. Assim trouxe Deus naquele tempo pelo Mundo estas quatro testemunhas de suas promessas de reino em reino e de nação em nação, como notou o mesmo Profeta: Et pertransierunt de gente in gentem, et de regno ad populum alterum.

Ajuntou depois disto a fome em Egito os doze irmãos, filhos de Jacob e cabeças dos tribos; entraram livres, continuaram cativos, saíram vencedores. Mas no tempo daquele comprido cativeiro Não havia casa no Egito em que o cativo não fosse mestre do senhor. As maravilhas que depois viram nos Egípcios é certo que acrescentariam fé às esperanças dos Hebreus, porventura até aquele tempo mal cridas, e já pode ser que a crueldade de Faraó, como a de Herodes, se não fundasse tanto no receio de sua multidão que no medo de suas profecias.

Passados, enfim, à Terra de Promissão, onde permaneceram até verem o cumprimento delas em Cristo, concorreram e floresceram no mesmo tempo os quatro impérios ou monarquias dos Assírios, dos Persas, dos Gregos e dos Romanos, que senhoreavam o Mundo, e com todas elas tiveram grande comunicação os Hebreus, e algumas vezes mais estreita do que quiseram.

Todas as histórias sagradas estão cheias de embaixadas, de confederações, de entradas, de guerras, de pazes, de presentes e de outros tratos e correspondências políticas, que passaram entre as quatro nações imperantes e o reino ou povo hebreu. Com os Assírios notemos de Ezequias, de Acáz, de Oseas, de Joaquim e do sacerdote Eliacim, gue concorreram com Berodac, com Salmanasar, com Ful, com Nabucodonosor e com Baltasar, como consta do IV Livro dos Reis e da história de Judite. Com os Persas, em tempo de Jeconias, de Zorobadel, de Esdras, de Neemias, que concorreram com Ciro, com Dario e com Assuero, como consta do I e II Livro de Esdras e da História de Ester. Com os Gregos, em tempo do Sumo Sacerdote Jado, de Matatias, de Judas Macabeu, de Simão e Jónatas, que concorreram com Alexandre Magno, com os dois Antíocos, com Demétrio, Heliodoro, Ptolemeu e Trifon, como consta do I e II Livro dos Macabeus.

Finalmente, com os Romanos, em tempo de Judas Macabeu, de Simão e Jónatas, que concorreram com diversos cônsules de Roma, de que se nomeia na Escritura Sagrada somente Lúcio, como consta das mesmas capitulações feitas entre uma e outra nação, mandadas pelos Romanos à Judéia, escritas em tábuas de bronze, como lemos nos mesmos Livros dos Macabeus.

E não só com estes quatro estendidíssimos impérios, mas com todas as nações do Mundo, tiveram muito particular trato e comunicação os Judeus, concorrendo Deus para este fim com disposições de mui particular providência. A primeira foi dar-lhes muitos filhos e pouca terra. Prometeu Deus a Abraão que multiplicaria sua descendência como o pó da terra e como as estrelas do céu, e foi assim que de doze netos de Abraão se formaram os tribos e destes cresceu e se multiplicou a mais numerosa nação que jamais houve no Mundo de um só sangue. A terra, porém, que Deus deu e repartiu aos doze tribos para sua habitação foi a terra chamada de Promissão, cuja largura e comprimento, tomada em sua maior extensão, não chegava a oitenta léguas da nossa medida. E a razão desta providência foi para que, crescendo e multiplicando-se a nação hebréia, e não cabendo nos estreitos limites da sua própria terra, se espalhasse e estendesse por todas as nações do Mundo, e levasse a elas a primeira luz da fé de Deus e da esperança de Cristo: e este é o mistério ou a energia de primeiro se haverem de multiplicar como pó e depois como estrelas, para que o alumiassem no meio das trevas em que todo estava.

Com o mesmo fim ordenou a sabedoria e justiça divina que os maiores e mais gerais castigos daquela nação fossem desterros e cativeiros, com que eram levados e transmigrados a terras e regiões estranhas cousa poucas vezes vista em nações inteiras, para que por este meio ficassem castigados os Judeus, e juntamente instruídos e alumiados os Gentios. Assim lemos no cap. VIII dos Atos dos Apóstolos que se levantou uma grande perseguição na igreja de Jerusalém, por ocasião da qual se dividiram e espalharam os Cristãos por todas as regiões e terras de Judéia e Samaria: Facta est in illa die persecutio magna in ecclesia, quae erat Jerosolymis, et omnes dispersi sunt per regiones Judae et Samariae:. E notam comumente os Padres e expositores que ordenou ou permitiu a Providência divina este desterro ou dispersão geral de todos os cristãos de Jerusalém pelas cidades e lugares daquelas províncias, para que, juntamente com eles assim espalhados ou semeados por aquelas terras, se plantasse nelas a Fé e depois, por este meio tão natural e ao parecer não pretendido, ficasse tão crescida e arreigada.

O primeiro e principal desterro e cativeiro, não falando no do Egito, de que já dissemos, foi o de Salmanasar, no tempo de El-Rei Oseas , como adiante largamente contaremos, no qual foram levados os dez tribos desde Judéia até as terras dos Medos e dos Assírios, que estavam bem no coração de toda a Ásia; e posto que o maior corpo daquela gente teve o sucesso que depois se verá, é certo, como escreve Paulo Orósio, Severo Sulpício e outros autores latinos e hebreus, que muitos deles se dividiram por todas as terras orientais daquela vastíssima parte do Mundo, penetrando até as províncias de que então nem muitos anos depois houve notícia, de que é bom exemplo a China, onde em nossos tempos depois de 2300 anos, como escreve o Padre Trigantio nas suas Relações da China, se achavam judeus daquela transmigração com todos os sinais dela.

O segundo foi no tempo de Nabucodonosor, em que os dois tribos que haviam ficado foram também cativos, em tempo de El-Rei Joaquim, e levados a Babilônia. E destes temos o testemunho da Sagrada Escritura no cap. XVI do Livro de Estér, que, sendo aquele império dividido em 127 províncias, em todas elas e em todas suas cidades estavam espalhados os Judeus, e com eles a fé do verdadeiro Deus, que professavam, como se vê nas palavras do edicto de El-Rei Assuero ou Artaxerxes, com que mandou revogar a sentença de morte, que por malícia e vingança de um mau e soberbo privado — Aman — contra a mesma nação se tinha mandado executar. Nos autem (diz o edicto) a pessimo mortalium Judaeos neci destinatos, in nulla penitus culpa reperimus, sed e contrario justis utentes legibus, et filios altissimi et maximi semperque viventis Dei, cujus beneficio et patribus nostris et nobis regnum est traditum, et usque hodie custoditur. Nas quais palavras, cheias todas de fé, conhecimento, honra e sujeição ao verdadeiro Deus que os Judeus adoravam, se vê claramente quão grande fruto faziam com sua presença nas terras onde estavam cativos e desterrados, Não só entre a gente popular mas nos maiores ministros e príncipes, e nos mesmos imperadores supremos, qual era Assuero ou Artaxerxes que firmou aquele edicto.

E aqui se entenderá o mistério com que um dos anjos custódios da nação hebréia, que falava com o Profeta Daniel (como se lê no cap. X de suas visões), orando ele apertadamente pela liberdade do povo, lhe deu por causa da dilação daquele despacho a resistência que fizera por muitos dias diante de Deus o Anjo Custódio do reino dos Persas, onde os mesmos Hebreus estavam cativos. Princeps autem regni Persarum restitit mihi viginti et uno diebus. E a razão desta resistência, como neste lugar notam todos os expositores modernos, era o grande proveito espiritual que os gentios persas conseguiam com a presença e comunicação dos Judeus, pela fé e conhecimento das cousas divinas que de sua conversação e doutrina (ainda sem particular estudo) se lhes pregavam.

Nem se deve passar em silêncio a cobiça natural dos Judeus, ou desejo de adquirir riquezas, e o gênio indústria e inclinação tão particular que teve sempre esta nação ao comércio e mercancia, como filhos alfim daquele pai que, comprando e vendendo, fez sua fortuna, e com tão pouco cabedal como uma escudela de lentilhas soube adquirir por indústria o que lhe tinha negado a natureza, e fazer-se patrão e senhor do maior morgado do Mundo.

Desta inclinação dos Judeus se serviu a Providência divina para os levar suavemente às terras e regiões mais remotas, e os introduzir e misturar com todas as nações, metendo-lhes em casa, sem uns nem outros o pretenderem, as drogas do Céu entre as mercadorias da Terra. Cuidava Benjamim que só levava trigo no seu saco, e levava nele o trigo e mais o cálix de José. Assim saíam de Judéia os mercadores, e nos fardos de mercadoria que levavam, metia também a sua o Salvador do Mundo, que era esse o nome de José no Egito: Vocabit eum lingua egyptiaca Salvatorem Mundi. E já pode ser (se o pensamento me não engana) que fosse este o intento de Deus naquela lei do cap. XXIII do Deuteronômio: Non fænerabis fratri tuo ad usuram [...] sed alieno, na qual se permitia (posto que não se justificava) para com as nações estrangeiras, para que esta maior liberdade ou impunidade de adquirir ou multiplicar fazenda fora de sua pátria os convidasse a sair dela e os arrebatasse voluntariamente às terras estranhas onde com eles se transplantasse a verdadeira fé, que era droga naquele tempo que só nascia em Judéia.

E que seria se a este título justificasse Deus as usuras que permitia aos Hebreus nas outras nações, como direitos ou gabelas daquela mercadoria? Não me atreverei a o afirmar assim, mas sei que não é cousa nova em Deus, quando quer passar a religião de um reino a outros, meter neles a Fé às costas do interesse. Quando os deuses de Tróia passaram a Itália, Anquises levava os deuses na mão, e Eneias levava às costas a Anquises. Os pregadores levam a Fé aos reinos estranhos, e o comércio leva às costas os pregadores.

E em quantas províncias achou o Evangelho fechadas as portas e, depois que o comércio bateu a elas, as teve abertas e francas? O primeiro rei de Portugal que se intitulou rei do comércio da Etiopia, Arábia, Pérsia e dia foi o que introduziu a Fé na Índia, na Pérsia, na Arábia e na Etiópia. Se não houvesse mercadores que fossem buscar a umas e outras Índias os tesouros da terra, quem havia de passar lá os pregadores que levam os do Céu? Os pregadores levam o Evangelho, e o comércio leva os pregadores. S. Tomé, que levou do Brasil à Índia o Evangelho, quando não havia comércio, houve de caminhar (como é tradição) por cima das ondas, porque não teve quem o levasse; e o segundo Apóstolo do Oriente, querendo pregar na China, traçou que o pregador entrasse como negociante, para que a Fé tivesse lugar como mercadoria.

Assim começou Deus a espalhar o conhecimento de sua Fé pelo Mundo, e assim deu princípio àquele admirável comércio em que depois, tomando de nós o que tínhamos na Terra, nos enriqueceu com o que trazia do Céu.

Naaman Siro trouxe de Damasco as suas azêmolas com carga de ricos presentes para oferecer a Eliseu e levou-as carregadas de terra de Israel, porque era santa aquela terra. Assim entravam os negociantes hebreus em Judéia ricos e acrescentados com as drogas mais preciosas de todo o Mundo, e o que principalmente levavam de Judéia para o mesmo Mundo, se não era a terra de Israel, era urna droga que só se dava então naquela terra, que era a Fé e conhecimento de Deus. Isto levaram as frotas celebradas del-Rei Salomão quando navegavam a terras de Ofir, ou fosse Ofir a Índia, ou fosse a América, ou fosse, como muitos querem, a nossa Espanha, império famosíssimo já naquela idade ,pela riqueza e opulência de suas minas Isto vinha buscar a cobiça, e aquilo vinha trazer a Providência, sendo certo então o que depois vimos nas frotas das nossas Índias, que muito mais ricas iam do que voltavam. Quando voltavam, traziam ouro, prata, pérolas, diamantes, rubis; quando iam, levavam a Fé de Cristo, a esperança do Céu, as verdades do Evangelho, os sacramentos, a graça, a salvação.

De maneira que o comércio, os desterros e a estreiteza da terra própria foram as três ocasiões principais por que os Judeus se saíam e Deus os derramava por todas as terras e nações do Mundo. Josefo, no Livro XI de suas Antiguidades, diz que a nação hebréia tinha cheia toda a redondeza da Terra: orbem terrarum replevit. E Filo Hebreu, naquele memorial ou livro que intitula De Legatione ad Caium, diz que a maior parte de todas as ilhas e terras firmes maritimas e mediterraneas da Asia, da África e da Europa eram habitadas de Judeus: Itaque si exorat mea Patria tuam clementiam præpter ipsam, alias civitatis demereberis plurimas, sitas in diversis orbis tractibus, Asia, Europa, Africa, insulares, maritimas, mediterraneas.

E se estes dois autores, posto que tão alegados e seguidos de todos os que escrevem, por serem da mesma nação, parecerem a alguém suspeitosos e dignos de menos crédito, saiba que os mesmos testemunhos se leram nas Escrituras Sagradas ainda com palavras mais universais e de maior encarecimento. No edito que passou Assuero para que morressem todos os Judeus sujeitos às terras de seu Império, diz assim a Relação ou Relatório de suas culpas: In toto orbe terrarum populum esse dispersum, qui novis uteretur legibus, et contra omnium gentium consuetudinem faciens, regnum jussa contemneret, et universarum concordiam natonum sua dissensione violaret. Quod cum didicissemus, videntes unam gentem rebellem adversus omne hominum genus perversis uti legibus, nostrisque jussionibus contraire, et turbare subjectarum nobis provinciarum pacem atque concordiam, jussimas etc., nas quais palavras se diz votada e expressamente que o povo hebreu naquele tempo estava espalhado por todo o Mundo:In toto orbe terrarum populum esse dispersum; e que com a novidade de suas leis perturbavam a paz de todas as gentes e de todas as nações:omnium gentiam et universarum nationum; e que desobedeciam os mandados dos reis e eram rebeldes contra todo o gênero humano: adversus omne genus humanum. E estas culpas assim relatadas que vêm a ser senão um testemunho público e autêntico de tudo o que imos provando? Porque não só consta delas estarem os Judeus espalhados por todo o Mundo, mas se mostra também com a mesma clareza que os efeitos dessa dispersão era ser pública e notória a todas as nações e reis e a todo o gênero humano a nova lei e nova Fé diferente de todas as outras que os mesmos Judeus professavam.

No I capítulo dos Atos dos Apóstolos temos outro testemunho sagrado igualmente universal e por termos, se pode ser ainda mais notáveis: Erant autem in Hierusalem habitantes judaei viri religiosi ex omni natione quæ sub caelo: «Havia em Jerusalém (diz S. Lucas) muitos judeus moradores da mesma cidade, homens religiosos de todas as nações que cobre o céu;» para cuja inteligência se deve supor que todos os hebreus que viviam longe de Judéia em diferentes nações, reinos ou cidades populosas tinham em Jerusalém suas sinagogas particulares e distintas, as quais sinagogas não eram propriamente igrejas como as nossas (porque o templo era um só e comum a todos, nem podia ser mais que um conforme a lei), mas eram umas casas grandes e públicas, onde se ajuntavam principalmente aos sábados, e ali se tinham as pregações, os conselhos, as disputas, e todas as outras conferências das cousas espirituais ou eclesiásticas, como se conta no capítulo XVII dos Atos o fazia ou costumava fazer S. Paulo: Secundum consuetudinem autem Paulus introivit ad eos, et per sabbata tria disserebat eis de Scripturis. E no capítulo VI do mesmo livro se faz expressa menção das sinagogas diferentes que dizíamos: Surrexuntur autem quidam de Synagoga, quae appellatur libertínorum, et Cirenensium et Alexandrinorum, et eorum qui erant a Cilicia et Asia; mas no qual texto, como advertiu S. Crisóstomo e outros Doutores, não se há-de entender que uma só sinagoga fosse dos Libertinos, Cirenenses, Cilicianos, Asiáticos e Alexandrinos, senão que cada uma das comunidades dos Judeus pertencentes a estas províncias tinham a sua sinagoga própria, separada e particular. Era Jerusalém naquele tempo (e muito mais antes daquele tempo) a corte dos rei, a universidade das letras, o assento dos tribunais, e sobretudo era a cabeça da Igreja da Lei Velha, como hoje é Roma da Nova, à qual estavam sujeitos todos os Judeus e professores da mesma Fé, ainda que vivessem em outros reinos, como se vê das provisões de S. Paulo, as quais ele foi buscar a Jerusalém contra os Judeus de Damasco, que era terra de gentios sujeitos a El-Rei Arctas, e assim como todos os reinos e repúblicas da Cristandade têm seus embaixadores, agentes requerentes e igrejas particulares em Roma, e ainda hospitais da mesma nação, assim e muito mais se observava o mesmo uso entre os Judeus, gente por natureza tenacíssima dos seus costumes e ritos.

E era tanto o número destas sinagogas em Jerusalém, que quando ultimamente foi destruída aquela cega cidade por Tito e Vespasiano, se acharam nela, como refere Lorino, quatrocentas e oitenta sinagogas. cada uma de diferente nação, província, reino corte ou povo notáve1 onde houvesse tanto número de Judeus que só ó que deles assistiam em Jerusalém pudessem formar corpo e comunidade distinta.

Daqui se tira o novo e eficaz argumento de quão espalhados e multiplicados estavam os Judeus por todas as partes do Mundo. E estes eram aqueles a quem S. Pedro, no Sermão de dia de Pentecoste, chamou judeus de longe: Vobis enim est repromisio et filiis vestris et omnibus qui longe sunt

Vivendo pois os Judeus tão misturados e travados com todas as nações dos gentios, desta companhia se lhes pegara, como dizíamos, o conhecimento da Fé de Deus e esperança de Cristo, e não só pelo trato, comunicação e exemplo, senão também por indústria e estudo particular de alguns judeus mais zelosos, os quais com desejo de aumentar a sua religião e o culto do verdadeiro Deus, ensinavam e afeiçoavam a ela os gentios.

Desta verdade temos em prova (que não é só suspeita ou conjectura nossa) o testemunho e autoridade do mesmo Cristo no capítulo XXIII de S. Mateus, onde, repreendendo a hipocrisia dos escribas e fariseus, diz assim: circuitis mare et aridam, ut faciatis unum proselytum: et cum fuerit factus, facitis eum filium gehennæ duplo quam vos. «Cercais o mar e a terra para converter um gentio à Fé, e depois que está convertido, ensinai-lhes tais doutrinas que o fazeis mais filho do Inferno do que vós sois.» Na qual sentença de Cristo se vê principalmente como os Judeus rodeavam mar e terra, isto é, peregrinavam e navegavam por todas as terras e mares do Mundo, e juntamente se prova que com estas suas peregrinações e navegações levavam pelo mesmo Mundo a Fé do verdadeiro Deus, e o davam a conhecer aos Gentios, dos quais convertiam alguns; e finalmente que Não se fazia isto acaso e por ocasião do trato, se não por zelo e cuidado particular da Religião, posto que depois a viciavam os escribas e fariseus do tempo de Cristo com a má doutrina e exemplo que lhes ensinavam; nem faltavam em diversas partes do Mundo padrões desta mesma verdade, levantados entre as gentes mais políticas e celebradas da Gentilidade. Tal era aquele altar que S. Paulo achou em Atenas, consagrado ao Deus não conhecido — Ignoto Deo — o qual Deus não conhecido, como logo lhes declarou o mesmo Apóstolo, era o verdadeiro Deus, criador do Céu e da Terra.

Destes altares havia outros, como escreve o Cardeal Barónio, na Arábia, nas Gálias, na nossa Espanha e em outras províncias nobres da Ásia e da Europa, e que estes monumentos de Religião e este conhecimento de Deus não conhecido se tivesse derivado aos Gentios da doutrina e trato com os Judeus, provam-no agudamente alguns autores, com o mesmo título de não conhecido. Porque os deuses dos Gentios eram conhecidos pelos seus nomes particulares de Júpiter, Saturno, Marte; mas o Deus dos Judeus não era conhecido de nome, porque lhes estava proibido tomarem na boca o nome de Deus, e por isso se chamava Inefável, isto é, nome que se não podia falar nem dizer. Vere tu es Deus abconditus, Deus absconditus et Salvator — dizia Isaías a Deus, aludindo a esta proibição: «Verdadeiramente, Senhor, vós seis um Deus escondido, mas Deus que escondido e desconhecido salvais.» E Josefo, no Livro II de suas Antiguidades, vindo a tratar do nome de Deus, passou-o em silêncio e disse que lhe não era lícito pronunciá-lo: De quo mihi dicere non est fas.

Conheciam, porém, os Gentios, ensinados pelos Judeus, que este Deus desconhecido a quem não sabiam o nome era o Deus que criara todas as cousas, e este foi o mistério daquela erudita ignorância, com que, descrevendo Ovídio a criação do Mundo, não o nomeou nem determinou o Deus que o criara, dizendo-o só absoluta e incertamente: Quisquis fuit ille deorum «quem quer que foi o Deus» que o criou.

Mas nesta mesma incerteza com que falou no Deus criador do Mundo, este poeta declarou ser ele o Deus que adoravam os Judeus, ao qual os Gentios chamavam Deus incerto, porque não tinha nome particular com que fosse conhecido e se distinguisse dos outros deuses. Assim o disse Claudiano, também poeta latino e gentio, chamando aos Judeus os adoradores de Deus incerto: Cultrix incerti Judæa Dei. E estes foram os primeiros rudimentos da Fé que os Judeus semearam entre os Gentios, introduzindo-se o verdadeiro Deus nas outras nações e andando nelas como disfarçado, conhecido debaixo do nome de incógnito, e crido com o sobrenome de incerto.

E para que concluamos este discurso com uma advertência em tal matéria digna de muito reparo, no capítulo XXXII do Deuteronômio diz Moisés que, quando Deus, na confusão da Torre de Babel, dividiu a todos os filhos de Adão em diversas nações e línguas, fez aquela divisão conforme o número dos filhos de Israel, respondendo a cada um deles uma nação: Quando dividebut Altissimus gentes, quando separabat filios Adam, Constituit terminos populorum juxta numerum filiorum Israel. No qual número alude Moisés aos filhos de Israel, que entraram no Egito, ·os quais consta do capítulo X do mesmo livro e do capítulo XLVIII dos Gênesis, que foram setenta almas: Omnes animæ domus Jacob, quae ingressæ sunt in AEgyptum, fuere septuaginta. Assim entendem este lugar todos os Padres e intérpretes, os quais também concordam em que as línguas e nações em que Deus dividiu os homens (como se colhe do capítulo X do Gênesis, em que se referem as famílias dos descendentes de Noé) foram setenta e duas. Destas, se se tirarem a hebréia e egípcia, que já estavam unidas e se comunicavam, ficam pontualmente setenta.

Agora pergunto: E que mistério ou que intento teve a Providência Divina em igualar o número de todas as nações ao dos primeiros hebreus e não em outro tempo ou ocasião, senão quando a primeira vez se ajuntaram com os Gentios? O mistério e razão desta providência foi sem dúvida porque tinha Deus destinado aos Judeus para mestres da Fé dos Gentios naquela primeira Igreja. E era conveniente e necessário para este soberano fim que fossem tantos os mestres quantas eram as nações.

Temos a confirmação deste pensamento na mesma Providência Divina, que sempre é semelhante a si mesma em casos semelhantes. Tratou Cristo de dispor a pregação do Evangelho e conversão do Mundo, e, depois de nomeados os doze Apóstolos, em correspondência também dos doze filhos de Jacob e dos doze tribos de Israel, elegeu sinaladamente setenta e dois. E dois discípulos, como escreve S. Lucas no capítulo X, que mandou diante de si: ...designavit Dominus et alios septuginta duos et misit illos binos ante faciem suam, in omnem civitatem et locum, quo erat ipse venturus. E se buscarmos nos expositores sagrados o mistério e proporção deste número, responde S. Jerônimo, e com ele a sentença comum dos intérpretes, que foram setenta e dois estes novos precursores e embaixadores de Cristo, por serem outras tantas (como dizíamos) as nações do Mundo, que o Senhor, por meio da sua pregação e doutrina, queria trazer (como trouxe) ao conhecimento da Fé. De maneira que, assim como Cristo, no princípio da Lei da Graça, igualou o número dos seus discípulos ao das nações e gentes do Mundo, para que levassem por todo ele o conhecimento de Deus e a nova de que o Messias era já vindo, assim Deus, no princípio da Lei Escrita, mediu o número dos filhos de Israel, que são os Hebreus, com o de todas as outras nações e gentes do mesmo Mundo, porque eles eram os que haviam de levar e semear entre todas elas o conhecimento do verdadeiro Deus. E a nova e promessa de que o Messias havia de vir é explicação admirável de outros setenta e dois intérpretes da divina palavra, os quais, em lugar de — juxta numerum filiorum Israel — tresladaram — juxta numerum Angelorum Dei »— , chamando neste lugar aos filhos de Israel anjos ou embaixadores de Deus, porque esse era o fim e ofício para que foram destinados a todas as nações e tomados e repartidos conforme o número delas.

O terceiro meio de providência particular com que pôde chegar facilmente e chegou naquele tempo aos Gentios o conhecimento da fé e esperança de Cristo, foram as Escrituras Sagradas. O primeiro livro que viu o Mundo foi o Pentateuco, de Moisés, e não faltam grandes conjecturas para se crer que Moisés foi aquele prodigioso Mercúrio a quem os Antigos celebraram com o nome de Trimegisto. Este livro foi o que fez aos Caldeus mestres da Ásia, aos Egípcios da África e aos Gregos da Europa. Com razão chamou Clemente Alexandrino a Platão o Moisés de Atenas — Moyses Atlicus — porque de Moisés foram tirados todos aqueles lumes que deram a Platão em suas obras nome de divino. Deste rústico, que assim lhe chamou Aristóteles, tomou este soberbo e ingrato filósofo a sabedoria mais sublime que o fez o maior da Grécia. Aos livros de Moisés se seguiram os outros sagrados; os dos Profetas, que são entre todos quase os últimos, ainda vencem em Antigüidade os mais antigos filósofos e escritores gentios. Tempore nostrorum prophetarum (diz S. Agostinho) philosophi gentium nondum erant. E como só estes livros havia no Mundo, só estes se liam em todo ele, dispondo-o assim a Providência, que tudo governa, para que mais se estendessem por toda a parte e fossem mais celebradas suas notícias.

Não lhes podia suceder então às Escrituras divinas o que depois lhes aconteceu com Jerônimo, quando as deixou pela suavidade de Túlio, porque ainda não tinha gostado sua doçura. Elas só eram o estudo dos sábios, elas o entretenimento dos curiosos, elas o desvelo dos entendidos. Esse foi um dos mistérios de Deus, em as fazer escuras, para que, tendo sempre que entender, fossem uma e muitas vezes lidas.

Quem quiser saber facilmente quão estudadas eram dos Gentios as Escrituras, leia com atenção os livros dos seus filósofos, dos seus historiadores e ainda dos seus poetas, e verá o que delas tomaram, delas imitaram e sobre elas fingiram; verá quanto as não largavam das mãos. «Tudo o que compôs o estilo dos vossos escritores — dizia Tertuliano aos Gentios — a substância, a matéria, a origem, a ordem, as histórias das gentes e das cidades insignes, e ainda as mesmas cidades e algumas das gentes; as causas e memórias do que escreveram e até a forma das letras e imagens dos caracteres, e os vossos mesmos deuses (e não digo nisto mais senão menos) os vossos templos, os vossos oráculos, os vossos sacrifícios, tudo vencem em muitos séculos de Antigüidade os livros de nossas profecias, e tudo foi tomado do tesouro das escrituras judaicas, que são também as nossas: Omnes itaque substâncias omnesque materias, origines, ordines, venas veterani cujusque styli vestri, gentes etiam plurasque et urbes insignes, historiarum causas et memoriarum , ipsas denique effigies literarum indices custodesque rerum, et (puto adhuc minus dicimus) ipsos, inquam, Deos vestros, ipsa templa, et oracula, et sacra unius interim prophetae scrinium, sæculis vincit, in quo videtur thesaurus collocatus totius Judaici Sacramenti, et inde etiam nostri... Até aqui Tertuliano.

É certo que, se os versados nas divinas Escrituras considerassem diligentemente a matéria delas e a traça e harmonia com que foram ditadas pelo Espírito Santo, achariam facilmente que não só foram escritas pela lei e observância dos Hebreus, senão também para lição e estudo de todas as outras nações; porque, sendo um só o Povo de Deus, e os autores que escreveram aqueles livros todos do mesmo Povo, a que outro fim se faz neles tão freqüente memória de todas as outras nações do Mundo e seus sucessos? Assim temos os Cananeus, os Amorreus, os Fereses, os Eveus, os Eteus, os Jebuseus, os Filisteus; assim os Ismaelitas, os Amonitas, os Moabitas, os Madianitas, os Gabaonitas, os Amalecitas; assim os Assírios, os Medos, os Caldeus, os Persas, Sírios, os Tírios, os Sidónios, os Egípcios, os Etíopes, os Gregos, os Macedônios, os Romanos. E não havia antes de Cristo província conhecida ou cidade de grande nome no Mundo, de cujos sucessos se não achasse alguma memória no Testamento Velho, assim dos passados nas histórias, como dos futuros nas profecias.

Não falo já de Daniel, que falou universalmente de todos os maiores impérios; mas só em nove capítulos de Isaías lemos sinaladamente as profecias de onze nações diferentes, chamadas cada urna por seu nome a ouvir a sentença e a saber da boca de Deus o que lhe estava por vir. E que nação destas haveria que não lesse com grande atenção e cuidado os oráculos daquele famoso profeta, onde estavam conhecendo seus nomes e lendo as fortunas? Bastava só para mover a curiosidade universal de todas as gentes à lição dos livros Sagrados, serem só eles os que revelaram e descobriram o Mundo o segredo de seu primeiro princípio, tão ignorado entre todos os sábios, a origem das línguas, o nascimento das nações, a divisão das terras, a ordem e cronologia dos tempos, do que tudo houvera perpétua ignorância nos homens, se não estivera revelado nas Escrituras.

Mas quando nenhum destes tesouros houvera depositado e encerrado nelas, falando somente do que pertence à história, que livros se escreveram jamais, não digo dos que professam verdade, mas dos fingidos e fabulosos, que igualem em grandeza e variedade de casos admiráveis a menor parte ou sombra do que se refere nas histórias sagradas?

Narraverunt mihi iniqui fabulationes, sed non ut lex tua, dizia Daniel, e mais ainda não tinha sido o que depois dele se escreveu. Que gigantes fabulosos filhos da terra se atreveram a edificar uma torre como a de Babel, nem arrimaram escadas ao céu, sem pôr monte sobre monte, como a de Jacob? Que metamorfoses ou transformações fingiram como a de Nabucodonosor, convertido em bruto, a da mulher de Lot em estátua, a da vara de Moisés em serpente, comendo serpentes, e depois de serpente convertida outra vez em vara?

Descreveram as fábulas o dilúvio, mas não tiveram fantasia para meter todo o Mundo em uma arca, nem confiança para o salvar nela. Qual poeta se impôs ou traçou jamais uma comédia como a de Job, uma tragédia como a de Aman, uma novela ou enredo como a de José? Em que teatro dos Gentios se representaram aparências de tanto artifício como um paraíso terreal sumido no meio do Mundo, um Enoc desaparecido ,de repente, um Datão e Abiron tragados da terra, e um Elias voando pelos ares em um carro de quatro cavalos, o carro, as rodas e os cavalos tudo de fogo? Que semelhança tiveram aquelas máquinas que se levantaram com nome de maravilhas do Mundo com a portentosa grandeza das que lemos nas Escrituras? Que estátua como a de Nabuco, que carroça como a de Ezequiel, que coluna como a do Deserto, que jardins como os de Assuero, que palácio encantado como o templo de Salomão, edificado de seus fundamentos sem nele se ouvir o golpe de martelo? Um pavilhão que de dia cobria do sol seiscentas mil famílias, uma tocha que de noite as alumiava, já dissemos que se chamava coluna.

Que disse a Gentilidade da cítara de Orfeu, que se iguale com a harpa de David, de que fugira o Inferno? Que disse das respostas duvidosas do seu Apolo, que se pareça com os oráculos sempre certos do propiciatório? Que disse das vozes de Eudimião, também ouvidas da Lua, que não exceda uma só voz de Josué, obedecida da Lua e do mesmo Sol? O caduceu tão celebrado do seu Mercúrio que comparação teve com os poderes da vara de Moisés, que dividia os mares, parava os rios, fazia caminhar os montes? Onde se lê tal agravo de onipotência como no tenente daquela vara em quem foi culpa tirar fontes de um penhasco com dois golpes, porque o podia fazer com uma palavra?

Não digo nada dos documentas da Escritura, porquanto trato do doce e não do útil, só do que leva o apetite e não do que move a razão. Que se podia inventar de maior pasmo aos ouvidos, que ouvir falar um jumento com Balaão e uma serpente com Eva? Que se podia fingir de maior lisonja e admiração ao gosto, que comer em uma iguaria todos os banquetes e gostar em um só maná todos os sabores? Que se podia imaginar de maior suspensão e assombro à vista, que ver o monstro marinho engolir a Jonas, ver levá-lo consigo ao fundo e desaparecer, e ver dali a três dias surgir a baleia, desembarcá-lo a fera vivo nas praias de Nínive?

Como estes são os prodígios que se encontram a cada página nos Livros Sagrados. Mas que direi das façanhas e cavalarias que, ainda conhecidas por falsas, deleitam e suspendem tanto a curiosidade dos homens? Que desafio como o de David, com uma funda e um cajado contra o gigante coberto de ferro? Que batalha como a de Gedeão, só com trombetas e luzes em cântaros de barro? Que bateria como a dos muros de Jericó, derrubados com os instrumentos dos músicos do templo! Que emboscada como a de Abimelec em que os bosques e as sombras caminhavam juntamente e os soldados com eles? Que vitória como a de Jónatas, em que um só capitão com um só soldado, pôs em fugida e desbarato o exército inumerável dos Filisteus? Que triunfo como o da galharda Judite, quando entrou pelas portas de Betúlia com a cabeça de Olofernes, em que degolou de um golpe todo aquele seu exército?

Mas passando nós a encontros de maiores forças em que pelejaram os braços e não a indústria, que Hércules Tebano como Sansão, aquele que, atado sete vezes, de uma só rompeu as cordas e nervos como se foram teias de aranha; aquele que, preso dentro da cidade de Gaza, quebrou com as mãos os ferrolhos e lançou às costas as portas; aquele que, levado ao templo dos Filistinos, lançou a mão direita e esquerda a duas colunas, dando com o templo em terra, sepultou debaixo dele todos os idólatras; aquele que, com uma queixada de um jumento, matou, em campo aberto, mil de seus inimigos e ainda matara mais, se não fugiram todos?

Teve sede Sansão, cansado de matar, e, arrancando um dente da mesma queixada, fez brotar dela uma fonte. Assim obedecem os elementos a quem assim triunfa dos homens. Todas estas forças tinha este bizarro mancebo em sete cabelos, porque dedicou todos a Deus, desde seu nascimento.

Segundo Sansão, foi Sangar capitão do mesmo povo depois de juiz, e juiz depois de lavrador, mas lavrador que, fazendo montante do arado, matou com ele em um dia seiscentos filisteus, e deixou semeando com seus corpos o campo que andava lavrando. Fique à trombeta da fama Josué, vencedor de trinta e um reis, e o fortíssimo Macabeu, restaurador vítima da sua pátria. Paremos no valente Eleásaro, que, metendo-se intrepidamente com a espada debaixo de um elefante armado, primeiro foi matador de sua sepultura, e depois ficou ali não sei se diga morto, se mortalmente oprimido do peso de tamanha vitória.

Mas deixando a guerra, o sangue e o estrondo das armas, que história tão admirável como a da casta Susana? Que sacrifício tão lastimoso como o da filha de Jepta, e tão venturoso como o de Isaac posto já sobre o altar, e de entre a lenha e a espada escapando vivo? Que caso tão bem tecido como o de Moisés infante, já entregue à fúria do Nilo na barquinha ou naufrágio de vimes, tomando posto nos braços da Princesa do Egito, encomendado com maior ventura à própria mãe para que o criassem a seus peitos? Que maravilha como a da sarça verde e sem arder no meio das chamas, a dos meninos de Babilônia tomando fresco na fornalha, a de Daniel comendo e não comido no lago dos leões, e a da serpente do Deserto dando vida aos mordidos só com olharem para ela? Que prudência como a de Salomão em mandar partir o menino para conhecer a mãe verdadeira? Que engenho como o de Jacob em meter as cores pelos olhos das mães, para pintar os cordeiros antes de nascerem? Que indústria como a de Daniel em semear de noite o templo de cinza, para mostrar de dia nas pegadas dos sacerdotes e seus filhos que eles e não o ídolo eram os que comiam as ofertas? Que subtilezas de Estado tão bem entendidas como as dos Livros dos Reis, que como as de David com Saul e as de Cusai com Aquitofel?

Tudo nas divinas Escrituras é divino, tudo raro, tudo maravilhoso, e fora matéria imensa de prosseguir e impossível de compreender querer levar por diante os princípios deste não intentado discurso.

Bastem estes poucos exemplos, mais aludidos que contados, para que deles possa entender o leitor (que é o que só lhe pretendemos persuadir) quão fraca seria a todas as nações dos Gentios a lição dos Livros Sagrados quando chegassem a suas mãos, e como este foi o altíssimo conselho da Providência Divina, no estilo e disposição das escrituras do Testamento Velho (tão diversas nesta parte das do Testamento Novo) temperando a alteza e majestade de seus mistérios com o sabor de tantas verdades gostosas e com a variedade de tantas maravilhas tão novas e tão notáveis, para que, convidados com o cevo da curiosidade os que ainda não deviam àqueles livros outros melhores respeitos, aprendessem por eles a Fé de Deus e juntamente as esperanças de Cristo.

E quão impossível cousa seja poderem ler os Gentios as Escrituras Sagradas, sem beberem daquelas fontes esta esperança, vê-se clara e naturalmente da matéria das mesmas Escrituras, que, como todas, foram ordenadas à vinda de Cristo, e de Cristo em quanto Rei e Senhor do Mundo, apenas se acha cláusula em muitas delas que não esteja anunciando esta vinda e este Reino.

Três partes da Escritura, disse Cristo aos discípulos que falavam mais particularmente na sua vinda ao Mundo: os Profetas, os Salmos e os livros de Moisés: Necesse est impleri omnia quae scripta sunt in lege Moysi et prophetis et psalmis de me. E deixando à parte os lugares mais escuros (que esses não os entendiam os Gentios sem intérprete) como se viu no eunuco da rainha Cândaces, de Etiópia (se bem havia muitos hebreus, como dissemos, entre os Gentios, a quem estes podiam perguntar a interpretação quando quisessem) o cap. 2, o 9, o II, o 35, o 52, o 53, o 54, o 65 e o 66 de Isaías, e muitos outros de todos os Profetas, que homem os podia ler com juízo e entendimento, ainda que fosse sem fé, que não visse e conhecesse que era prometido naquelas palavras um Rei futuro, e não Rei como os que costumava ver no Mundo, de uma só ou algumas nações, senão de todas as gentes e reinos do Universo? E quando todas as outras profecias tivessem alguma escuridade que eles não pudessem entender ou interpretar por si mesmos, os dois textos de Daniel, fundamentais desta nossa História, em que o Reino universal daquele futuro Monarca está expresso e declarado com palavras tão vulgares e tão significativas, e com termos que Não admitem outro sentido nem interpretação, que gentio havia de haver, por bárbaro e ignorante que fosse, que não fizesse conceito do que diziam?

Mas basta ao nosso intento que o fizessem os doutos e os entendidos. Nos Salmos de David, como ele era a quem tão de perto tocava aquela felicidade e a quem particularmente estava prometida, é cousa maravilhosa a freqüência com que está repetido, a clareza com que está apregoado e a pompa e majestade de palavras com que está engrandecido o Reino de Cristo. O Salmo II, o Salmo IX, o Salmo XLI, o Salmo XLV, XLVI e XLVII, o Salmo LVIII, LXVII e LXXXVIII, o Salmo XCII, XCV, XCVI, XCVII, o Salmo CII, todos estes catorze salmos têm por principal assunto o Império do Messias.

E porque não duvidassem os Gentios que eles, as suas terras e as suas coroas, eram as que haviam de ser sujeitas a este grande Império, vinte nove vezes lhes repete e inculca o mesmo Daniel esta gloriosa sujeição, falando com eles nomeadamente, e não por termos enigmáticos ou metafísicos, senão clara e distintamente pelo seu próprio nome de Gentios. Que gentio podia haver tão rude, tão alheio do lume da razão e tão gentio, que lendo no Salmo II: Dabo tibi gentes hæreditatem tuam et possessionem tuam ter minos terræ; e no Salmo XXI: Adorabunt in conspectu ejus universæ familiæ gentium, quoniam Domini est regnum; e no Salmo XCVIII: Dominus in Sion magnus, et excelsus super omnes populos; e no Salmo XCV: [Dicite] in gentibus quia Dominus regnavit, etenim correxit orbem terrae; e no Salmo LXXI: Adorabunt eum omes reges terræ, omnes gentes servient ei; que gentio, digo, podia ler estes textos ou ouvir estes pregões tão expressos e declarados do domínio daquele futuro Rei sobre todos os Reis e nações do Mundo, que, se não cresse aquela Fé, ao menos não conhecesse aquela esperança?

Deixo de ponderar mais lugares de David, porque o faremos muitas vezes, em toda esta História. Finalmente, os livros de Moisés (que era a 3.a alegação de Cristo), posto que sejam principalmente históricos e não proféticos, não só têm por ocasião da mesma história muitas profecias e promessas desta esperança, mas tão dirigidas e encaminhadas todas as nações, nomeadamente dos mesmos Gentios, que não podiam deixar de ser lidas deles com grande advertência e recebidos com grande aplauso. No capítulo XII, do Gênesis, a primeira vez que Deus apareceu a Abraão e o mandou sair da pátria, lhe prometeu que seriam abendiçoadas nele todas as nações da terra: In te benedicentur universæ cognationes terræ; e no capítulo XVIII torna a referir Deus esta mesma promessa: ...cum benedicendae sint in illo omnes nationes terræ; e no capítulo XXII, em prêmio da resolução e obediência com que Abraão não duvidou de sacrificar seu filho, lhe promete Deus terceira vez a mesma bênção, com declaração que não seria na sua pessoa, senão na de um seu descendente: Benedicentur in semine tuo omnes gentes terrae. A qual promessa tornou Deus a ratifica quarta e quinta vez em Isaac, filho, e em Jacob, neto do mesmo Abraão, sempre pelas mesmas palavras. Em Isaac no capítulo XXVI: Benedicertur in semsa tuo omnes gentes terræ; e em Jacob, no capítulo XXVIII: Benedicentur in semine tuo cuntae tribus terræ; finalmente, no capítulo XLIX do mesmo livro dos Gênesis está o famoso texto já referido um dos dois em que fundamos todo este discurso: Non auferetur sceptrum de Juda, donec veniat qui mittendus est, et ipse erit expectatio gentium.

De sorte que em um só livro de Moisés tinham os Gentios seis profecias claras e que claramente falavam com eles, nas quais se lhes prometia por boca de Deus que seriam abendiçoadas em um homem da descendência de Abraão, que era o esperado Rei e Messias do Mundo. Assim que, lendo os Gentios como liam as Escrituras, e particularmente os livros de Moisés, os dos Salmos e os dos Profetas, não podiam deixar de vir em conhecimento, e tal conhecimento de Cristo, que todos o desejassem e esperassem todos.

O quarto e último meio e mais imediato da Providência Divina, com que as nações gentílicas puderam conhecer, e com efeito conheceram, o prometido Messias, foram muitas revelações particulares daquele mistério com que Deus em diferentes tempos alumiou por si mesmo a vários homens e mulheres de toda a Gentilidade. Seja o primeiro exemplo desta luz aquele grande varão mais conhecido pelo testemunho da paciência que pelo lume da profecia, Job.

Era Job verdadeiramente gentio, idumeu de nação, natural da terra de Hus, e foi insigne profeta de Cristo, a quem conheceu por universal Redentor: Et scio quod Redemptor mous vivit; e em quem esperou ver a Deus vestido de carne: In carne mea videbo deum meum; e esta esperança, como ele diz, trazia sempre guardada no seio: Reposita est haec spes mea in sinu meo». Similiter et Job—diz Santo Agostinho— eximius prophetarum, et in carne mea videbo Deum meum, quod de illo tempore prophetavit quia Christi deitas habitum nostrae carnis induta est.

Os amigos de Job também eram gentios de outras províncias vizinhas, e também alumiados da mesma fé e confirmados na mesma esperança, como consta da mesma história e do que eles disseram nela; e como todos fossem reis e senhores de suas terras (assim lhes chama o Texto Sagrado no capítulo I de Tobias) com aquela suprema autoridade e com o conhecimento e sabedoria que tinham do Céu , já se vê quão ensinados teriam nela a todos seus vassalos, e quão pública seria entre eles a esperança de Cristo

Balaão (cujo espírito profético é tão vulgar que não tem necessidade de provas) não só foi gentio, senão mau gentio. Dele diz S. Máximo: Nemo [...] miretur netivitatem dominicam agnovise Chaldaeos quam utique, si revelante Deo praenuntiare potuit; potuit Gentilis agnoscere. Este Balaão, este gentio, (o qual não duvidou de se chamar a si mesmo auditor sermonum Dei, qui novit doctrinam Altissimi et visionem Omnipotentis vidit) profetizou claramente de Cristo e de seu império naquele texto,tão celebrado no capítulo XXIV dos Números: Videbo eum, sed non modo; intuebo, illum, sed non prope: orietur stella ex Jacob, et consurget virga de Israel, et percutiet duces Moab, vastabitque omnes filios Seth. Quer dizer: «Vê-lo-ei, mas não agora; olharei para ele, mas não de perto; nascerá a estrela de Jacob, e levantar-se-á o ceptro de Israel; vencerá todos os capitães dos Gentios e sujeitará todas as nações do Mundo.» As quais palavras foram sempre entendidas, assim pelos Hebreus, como pelos Gentios, de um Rei descendente da casa de Jacob, que em tempos futuros havia de imperar no Mundo e havia de sujeitar a seu domínio todas as nações dele.

E digo que não só os Hebreus entendiam assim este lugar, mas também os Gentios, por ser muito célebre entre eles a notícia deste oráculo, e muito famosa, ou difamada (como diz S. Leão Papa), a memória desta profecia, pela qual memória ou notícia (diz o mesmo santo) informados os Reis Magos, puderam argüir do aparecimento da nova estrela o nascimento do novo Rei: ...ad intelligendam miraculum signi potuerunt Magi etiam de antiquis Baluam praenuntiationibus commoveri scientes alim esse praedictum et celebri memoria diffamatam. Notem-se bem estas últimas palavras, de que se ve facilmente quão notória era no Mundo e quão pública entre os Gentios esta esperança.

Das Sibilas (profetizas também da Gentilidade) diz assim Xisto Betuleu, nas Anotações que fez sobre o original grego dos oráculos sibilinos: Sic prarsus sentio Deum totius universitatis opificem et administrum aeternum, suum votum et totam illam futuram seriem praesertim ad salatem mortalium spectantem, sicut Israeli per prophetas, ita gentibus per Sibyllas ostendere voluisse per idem numen fatidicum.

Quer dizer este autor (e o confirma com o que disseram das Sibilas Lactanio Firmiano e S. Agostinho) que comunicou Deus o espírito de profecia a estas famosas mulheres, porque, assim como os Hebreus tiveram os seus Profetas, tivessem também os Gentios os seus, por cujo meio a uns e outros fossem manifestos os conselhos divinos, principalmente aqueles que para a salvação universal do Mundo eram necessários, conforme a ordem e disposição eterna de sua providência.

E se alguém perguntar curiosamente a quem e por cu]a boca falou Deus mais claramente, se aos Hebreus pelos Profetas, ou aos Gentios pelas Sibilas, respondo que em muitas cousas particulares, principalmente das que pertencem a Cristo, falaram com termos de maior clareza as Sibilas do que os Profetas, como se pode ver facilmente de uns e outros livros. De muitos lugares e exemplos que pudera trazer desta diferença, porei somente aqui dois, para que se veja quão fácil era aos Gentios o conhecimento de Cristo pelos livros ou oráculos das Sibilas, antes quão impossível cousa era lerem eles, como liam, aqueles livros, e não terem notícia da Messias e da esperança e promessa de sua vinda, formando ao menos um conceito comum, e conceito de um Rei e de um Império futuro, debaixo do qual se havia de renovar e restaurar o Mundo. No fim do Livro II diz a Sibila Eritrea estes versos:

Sed postquam Roma AEgyptum reget imperioque Fraenabit, summi tum summa potentia regni Regis inextincti mortalibus exorietur. Rex etenim sanctus veniet, qui totius orbis Omnia sceculorum per tempora sceptra tenebit.

Não se podia descrever com maior clareza o tempo e circunstâncias do nascimento de Cristo, a soberania de seu supremo poder e a Monarquia Universal de seu Reino sobre todos os cetros e coroas do Mundo. Diz que nasceria este Rei e daria princípio a seu Império quando Roma dominasse e governasse o Egito; e assim foi, porque depois da vitória de Augusto César, em que venceu a Marco António e Cleópatra no Egito, e acabou de dominar o Império Romano, as últimas relíquias de poder em que se conservava o Grego não passaram mais que doze anos, até o nascimento de Cristo, como consta da... (lacuna do original)

No Livro VIII (que é o último) tem a mesma Sibila outros versos mais notáveis do gênero daqueles que os Gregos chamaram acrósticos, cujo artifício é lerem-se pelas primeiras letras, e formar-se com elas alguma sentença, nome ou inscrição particular. Os versos, pois, são trinta e cinco e a sentença é esta: Jesus Christus, Dei filius, servator Crux Jesus Cristo, Filho de Deus, Salvador cruz.

Estes versos estão em toda a sua propriedade no texto grego, e não se poderão traduzir na língua latina com o motivo daquelas letras sem alguma variedade. S. Agostinho, no Livro XVIII De Civitate Dei, cap. XXIII, diz que a primeira versão que chegou a suas mãos deste acróstico era em versos mal latinos, e que se não podiam ter em pé: Versibus male latinis et non stantibus; tão galante é a frase com que o Santo declara o mal falado e mal medido daqueles versos. Depois diz que o Procônsul Flaviano lhe mostrou outros mais conformes às leis da gramática e da poesia, os quais copia este naquele lugar, e nós deixamos de os pôr aqui, porque não guardam a ordem das letras iniciais, propriedade que falta em muitas outras versões latinas. A de João Bongro, traduzida por Xisto Betuleu, compreendeu e cumpriu felizmente com todas estas dificuldades, sem tomar outra licença mais que a de desatar a última letra em duas, e fazer de um X, C e S. É a seguinte:

Judicii metuet sudans presagia tellus
Et Rex ceternus magno descendet Olympo
Sublimis carnem mundumque ut judicet, omnem.
Unum suscipient numen pravique bonique
Summum, supremo cum Sanctis tempore mundi.
Carnifer ille homines judex inquiret in omnes,
Horrida terra vias caeli spinceque tenebunt.
Rejicient simulacta viri, gazamque retostam.
Ille domus caecas et Ditis claustra refringet.
Sanctior a mortis jam nexu libera lucem
Turba hominum cernet, scelerosos flamma piabit
Ultrix bertetuum: mala quae quicumque patravit
Sontica suppressitque diu, producent in auras
Deteget et turbis Deus obsita corda tenebris;
Erumnae et stridor dentis regnabit ubique;
Ipsum deficiet solis decus astra colore
Fusco obducentur, argentea luna peribit,
Insurgent valles, consident ardua montis,
Luxus sublimis mortales deseret oras.
Immensos colles aequabunt marmora campi.
Velivago nulli cernentur in aequore nautae.
Succendet terram fulmen, vaga lympha
Solis arescet ripis, fontesque dehiscent:
Et tuba de caelo tristis clangore sonabit
Raucisono mundi clades pereuntis acerbas;
Vastam terra chaos stygio monstrabit hiatu,
Atque Dei solio sistetur judicis omnis
Turba ducum regumque; pluet tum sulphure et igni
Omnibus extabunt ligni vexilla verendi
Robur et auxilium populo exoptata fidéli:
Certa pio generi vita, ast offensa malignis,
Rore bonos lustrans bisseni fontis ab unda:
Virgaque qua pecori dat ferrea jura magister
Carminis auspiciis qui crimina morte piabit
Servator Rex arternus Deus ipse patescit.

Destes mesmos versos faz menção Eusébio Cesariense na Vida de Constantino Magno, e Marco Túlio, que morreu cinquenta anos antes do nascimento de Cristo, no livro II De Divinatione. O sentido dos versos, em suma, é a vinda de Cristo a julgar o ,Mundo, com todas as circunstâncias de grandeza, majestade e horror que pertencem ao aparato e execução do juízo.

O mistério da encarnação está com tanta e maior clareza no Livro I dos mesmos oráculos das Sibilas:

Tunc ad mortales veniet, mortalibus ipsis
In terris similis, natus Patris omnipotentis
Corpore vestitus.

Não falou com palavras mais claras S. Paulo, quando disse: In similitudinem hominum factus et habitu inventus ut homo. E mais abaixo se lê a pregação do Baptista, quase pelas mesmas palavras de S. Mateus:

Verum cum quaedam vox per deserta locorum
Nuncia mortales veniet, quae clamet ad omnes
Ut rectos faciant calles, animosque refurgent
A vitiis et aqua lustrentur corpora cuncta,
Ut nunquam doincets peccent in jura, renati...

A embaixada do Anjo à Virgem com o mesmo nome de Gabriel descreve a Sibila no Livro VIII por estas palavras:

E caelo veniens mortales induit artus.
Ac primum cortpus Gabriel ostendit honestum
Nuncius, hinc tali affatur sermone puellam:
Accipe, Virgo, Deum premio intemerata pudico.
Sic ait: est illam caelestis gratia mo11i
Leniit afiatu: tum virginitatis amatrix
Perpetuae magno subito correpta stupore
Atque metu trepida pressit formidine mentem.

E pelo mesmo estilo vai prosseguindo a história da encarnação, segundo as leis da história. E porque não faltasse com todas estas circunstâncias, até o presépio de Belém, alegria e pasmo dos pastores, aparecimento da estrela e adoração dos Reis. O nome da Virgem, assim como tinha declarado o do Anjo, diz no mesmo lugar:

Et brevis egressus Mariae de Virginis alvo
Exorta est nova lux.

Finalmente, resumindo todas as obras de Cristo, assim da vida santíssima, como da sua Paixão, até lhe pôr a coroa (como se esta fora o fim e assunto do seu poema) conclui com estes versos:

Ergo ad judicium veniet diciti memor hujus,
Persimilem formam portans in Virginis alvum,
Collustrans lympha manibus senioribus (?) omnes
Cuncta jubens faciet morboque medebitur omni.
Placabit ventos dicto sternetque profundum
Insanum, placidis pedibus calcando, fideque,
Ad virosa genas praedebit sputa prudentes
Verberibusque sacrum tradet proscindere tergum
[Viriginem enim castam tradet mortalibus ipse.]
Perque feret tacitus cotaphos ne forte sciatur
Quis sit, cujus, mortalibus unde locutum
Venerit, horrentemque feret de vepre coronam.

Até aqui a Sibila, compreendendo admiravelmente em tão poucas regras o nascimento virginal de Cristo, o sacramento do batismo, que instituiu e administrou, depois que teve (como ele diz) maiores as mãos, o império que exercitou sobre todas a criaturas, as enfermidades que curou milagrosamente, os mares que pisou andando placidamente, sobre as ondas, a sujeição com que lhe obedeceram os ventos, a paciência e humildade com que sofreu ser cuspido, açoitado e afrontado com mãos sacrílegas em seu próprio rosto, e coroado por escárnio com coroa de espinhos, dissimulando debaixo de tantas injúrias a grandeza, poder e majestade de quem era e de quem o mandara ao Mundo.

Tanta como esta é a clareza com que falaram de Cristo as Sibilas, qual se não acha maior nem ainda igual nos Profetas. Sendo a razão desta providência (como bem notou Castálio) a rudeza e ignorância das cousas divinas em que viviam os Gentios, aos quais era necessário se falasse com maior clareza do que aos Hebreus, nascidos e criados entre os resplandores da Fé e conhecimento de Deus, tendo também estes ali tantos mestres que os pudessem alumiar e ensinar, e carecendo aqueles de toda a luz e doutrina.

Se já não foi (como considera o mesmo autor e o prova com Isaías) que a escuridade dos Profetas, por permissão ou castigo, se acomodou à cegueira com que os Judeus haviam de negar a Cristo, e a claridade das Sibilas à fé com que os Gentios o haviam de crer. Nonne (são as palavras de Castálio) quae de Christo gentibus praedicta sunt ea clariora esse oportuit, quod Mose et cetera disciplina carebant, quae eis ad Christi lumen quasi proluceret: ut quod hic durat, id oraculorum perspicuitate compensaretur? Accedit eo quod (quemadmodum scitur ex Isaia) voluit Deus Judaeis obscuriorem esse Christi adventum, ut in eum obscurarent alque ita sua, pertinaciae poenas darent, quod idem de gentibus dicere non licet.

Por meio destes oráculos das Sibilas, que andavam nas mãos de todos, principalmente dos sábios, como se vê em Platão e Aristóteles, era tão vulgar e famosa entre os Gentios a esperança daquele novo Rei e da idade dourada que havia de trazer ao Mundo com seu felicíssimo Reino, quanto a lemos elegantemente profetizada na IV Égloga de Virgilio, que morreu treze dias antes do nascimento de Cristo, e cita nela os oráculos da Sibila Cumea: Ultima Cumaei venit jam carminis aetas, para que entendêssemos que as Sibilas foram as Musas Sicélides que exercitaram cousas maiores, e que destas fontes bebeu aqueles levantados espíritos, e não nas de Aganipe ou Hipocrene.

Eusébio Cesareense, no já citado livro da Vida de Constantino Magno, é de opinião que esta quarta Égloga de Virgílio é toda alegórica, e que debaixo da metáfora de Asínio, filho de Polion, foi verdadeiramente escrita e dedicada a Cristo, filho do Eterno Padre, encobrindo e envolvendo o vigilantíssimo Poeta a verdade desta sua fé e pensamento com as figuras e metáforas daquele seu Mecenas, para que o não condenasse a superstição romana como violador da divindade dos deuses. Intelligimus autem (diz Eusobio) dicta haec manifeste simul et obscure per allegorias prolata iis, qui carminum horum sensum altius sub conspectum divinitatis Dei scrutantur, innuere quomodo Poeta, ne quis eorum qui in regio orbe denominabantur, culpare posset quod contra patrias leges scriberet, et quae jam olim inde a majoribus de diis credita fuiissent, rejiceret, veritatem occuluerit.

Desta mesma opinião de Eusébio são outros muitos autores, os quais constantemente se persuadem que o sujeito da IV Égloga virgiliana não foi outro senão Cristo, conhecido pelos oráculos das Sibilas, e certo são tão extraordinariamente grandes as cousas que o príncipe dos poetas diz naquele poema bucólico, que nem ainda do mesmo César se puderam dizer sem nota de demasiada adulação e indigna de um tão eminente juízo como o de Virgílio, talhado verdadeiramente para poeta de Cristo.

Quem tiver curiosidade de ver a alegoria de toda a Égloga aplicada e explicada de Cristo, veja nos Antigos ao mesmo, e dos Modernos ao P.e Lacerda, e sobre todos (lacuna no original)..... que de versos de Virgílio teceu e compôs felizmente toda a vida de Cristo As razões mais fundamentais e sólidas com que se persuade e converte a verdade deste império temporal de Cristo são as que imediatamente se tiram dos mesmos títulos que acabamos de declarar. E assim a primeira e mais relevante de todas se funda na união hipostática com que a humanidade sagrada de Cristo está unida ao Divino Verbo, posto que esta mais se pode chamar natureza que razão; outra é o merecimento infinito de Cristo, inseparável a todas as suas ações, pelo qual lhe eram devidas todas as dignidades e grandezas humanas, sem exclusão de poder, autoridade e soberania alguma, em conseqüência do qual merecimento se ajuntou a ele a vontade eficaz divina, que foi o princípio efetivo donde manou e se derivou a Cristo a comunicação liberalíssima, e como investidora absoluta desta suprema e universal potestade; assim que as razões fundamentais do império temporal de Cristo são três: o ser quem é, o seu merecimento e a vontade divina, que é razão de si mesma.

Estas razões capitais se podem ajudar e revestir de várias congruências, que facilmente se consideram muito convenientes todas ao decoro e majestade de Cristo; o qual, como cabeça dos homens que são compostos de carne e espírito, não era justo que tivesse sobre eles o domínio partido, senão inteiro, assim sobre as cousas e ações concernentes ao espírito, como as que pertencem ao corpo; antes, por Cristo ser verdadeiro e inteiro homem, composto não só de espírito, se não de carne, foi muito conveniente que não só tivesse o Império espiritual que pertence às almas, se não também o temporal que é próprio das corpos: ...ut sicut ipse e corpore et spiritu compositus erat, ita eum (Pater) et regem spirituum et corporum etiam fecerit, ut tam late ipsius regnum et imperium pateret quam ipsius Dei, como doutamente disse Stuniga, comentando o capítulo IX, v. 9, do Profeta Zacarias.

Se os Trajanos e outros imperadores e príncipes do Mundo deram seus impérios e reinos inteiros aos estranhos que adotaram por filhos, como havemos de crer nem imaginar que desse Deus só uma parte de seu império e domínio a Cristo, que não só em quanto Deus, se não ainda em quanto homem, e seu filho natural e verdadeiro e unigênito? Se quis e não pôde (como em semelhante caso argumentava Agostinho) foi fraqueza; se pôde e não quis, foi inveja, e um ou outro pensamento fora blasfêmia contra o onipotente amor de tão divino Pai.

A Adão deu Deus o império universal do Mundo com sujeição e otediência a todas as criaturas dele, só por ser feito a sua imagem e semelhança: Faciamus hominem ad imaginem et similitudinem nostram, ut praesit piscibus maris, et volatilibus caeli, et bestiis terrae,. Como negaria logo Deus este mesmo poder, não digo já àquele segundo Adão que veio restaurar as ruínas do primeiro, senão àquele que é imagem e retrato perfeitíssimo de sua sustância: Ipse est enim imago Patris et figura substantiae ejus? Haverá quem se atreva a dizer ou presumir que foi menor o poder de Cristo no Mundo que o de Adão ou que teve Adão poder que faltasse a Cristo? A carne de Adão que tomou Cristo não foi de Adão pecador, senão de Adão inocente, porque, como advertiu o Apóstolo, tomou a carne e não contraiu o pecado. E se Cristo não foi filho de Adão escravo, se não de Adão senhor, porque não reteria ao menos o que não perdeu em seu Pai?

A geração de Cristo escrita por S. Mateus começa em David, e por S. Lucas em Adão; e se, por filho de David, melhor que Salomão lhe foi devido o cetro de Israel, por filho de Adão, melhor que Caim e Abel, porque se lhe há-de negar o do Mundo?

Finalmente, é princípio geral e recebido de todos os teólogos, que se deve conceber e admitir na soberana pessoa de Cristo todos aqueles atributos de poder, grandeza e majestade, que sem implicação nem indecência se podem considerar nela, porque todos lhe são infinitamente devidos; e tão fora está deste perigo o império e domínio temporal que admitimos em Cristo, que antes da falta dele se podem arguir conhecidos inconvenientes, e ainda alguma conseqüência indigna e de menos decoro. Porque o império espiritual de Cristo, por supremo e universal que seja, só tem poder e jurdição indireta sobre as cousas e ações temporais, enquanto estas se ordenam ou subordinam ao fim e conservação das espirituais: e no caso ou suposição em que Cristo somente fosse Rei espiritual, segue-se (como doutamente infere o Padre Soares) que, se Cristo quisesse mandar a um homem ou a um anjo uma ação meramente temporal alheia (ainda que fosse para obrar um milagre), que o não poderia fazer livre e absolutamente a seu arbítrio e sem licença do dono dela (se comodamente o pudesse fazer de outra sorte): Indignum autem videtur (conclui o grande Doutor) haec et similia de Christi potestate sentire. Sendo logo este sentimento indigno do poder e majestade de Cristo e da soberania de sua pessoa, necessariamente havemos de dizer e confessar, em boa teologia, que não é somente espiritual o império e domínio que Cristo tem sobre o Mundo, se não também temporal, e que espiritual e temporalmente lhe são todos os homens e todas as cousas sujeitas.

E quanto ao reparo da pobreza e desprezo das cousas temporais que Cristo veio ensinar ao Mundo, nós nos contentaremos com que os autores deste escrúpulo, por santos e espirituais que sejam, se contentem com o que se contentou este Monarca temporal do Mundo: imitem a pobreza de Cristo, pobre no nascimento, pobre na vida, pobre na morte, e pobre sobretudo na eleição de pais pobres, e não queiram mais pobreza, nem mais exemplo em Cristo. Muitos há que querem parecer pobres; alguns que o querem ser; mas quem queira ser e parecer filho de pobres: Quis est hic et laudabimus eum? Só Cristo e quem tem muito de Cristo.

O domínio universal que Cristo tinha do Mundo era o que mais subiu de preço os quilates de sua pobreza. Não ter uso das cousas do Mundo quem não tem ou teve domínio delas, virtude pode ser, mas virtude que parece fortuna ou necessidade; porém senhor absoluto de tudo quanto há e pode haver no Mundo, e ter menos uso do mesmo Mundo do que os bichinhos da terra, e poder dizer com verdade: Vulpes foveas habent et volucres caeli nidos; filius autem hominis non habet ubi caput reclinet, oh! que pasmo, oh! que exemplo, oh! que confusão para os homens, ainda os mais desprezadores do Mundo!

Mas replicam a esta resposta os autores da contrária opinião, e dizem que a pobreza evangélica, de que Cristo professou ser mestre, não consiste só na mortificação ou temperança do uso das cousas temporais, se não principalmente na renunciação do domínio delas; logo, no desprezo e abdicação deste domínio é que devia Cristo dar-nos o exemplo da perfeita pobreza. E pois é certo que foi Cristo consumadíssimo exemplar de todas as virtudes, e muito particularmente desta , segue-se que não só não teve o uso das cousas temporais, se não que também careceu do domínio de todas.

Primeiramente digo que, para Cristo ser perfeitíssimo mestre e exemplar de todas as virtudes, não era necessário exercitar todos os atos particulares delas, ainda que os tivesse ensinado. Não era menos mestre nem menos exemplar Cristo da paciência do que o foi da pobreza, e sendo uma das mais altas proposições de sua doutrina na matéria do sofrimento, cum te percusserint in una maxilla, praebe illi et alleram sabemos contudo que, quando deram a Cristo a bofetada em presença do Pontífice Caifás, não ofereceu o Senhor a outra face, antes acudiu à calunia de que falsa e sacrilegamente o argüiam.

Mas deixada esta estrada geral, porque não é nosso intento divertir o argumento, senão desfazê-lo, digo outra vez que na pobreza de Cristo, quanto a renunciação do domínio, havia outra razão mais forçosa e necessária, que era ser este ato incompatível com a natureza e essência do mesmo Cristo. Porque aquele domínio supremo e universal de todas as cousas fundava-se imediatamente, como dissemos, na união hipostática, e era não só propriedade inseparável, senão parte intrínseca dela; e assim como Cristo não podia renunciar nem abdicar de si a própria natureza, assim (diz o Padre Vasquez) não podia renunciar nem demitir de si o direito soberano domínio. O que podia só fazer Cristo era privar-se do uso dele, e assim o fez tão perfeita e perfeitissimamente como sabemos. Quanto mais qnue ainda no caso em que fora possível na pessoa de Cristo a renunciação do domínio temporal de todas as cousas, porventura que era mais conveniente ao mesmo exemplo do Mundo conservar o domínio sem o uso, que renunciar o uso e mais o domínio; porque Cristo, como mestre e exemplar da perfeição evangélica, não só devia dar exemplo aos religiosos que professam renunciar o domínio dos bens temporais senão também aos prelados e bispos, e ao supremo bispo e supremo prelado, cujo estado, sendo de maior perfeição, conserva o domínio e administração dos bens e só periga ou pode perigar na imoderação ou excesso do uso deles. Foi logo convenientíssimo que em Cristo se ajuntasse o sumo domínio e o sumo desprezo e abstinência das cousas do Mundo, para que no mesmo exemplar aprendessem os religiosos a mortificação do uso e os prelados a moderação do domínio.

Finalmente, para que ponhamos o selo à confirmação desta nossa sentença e acabemos de desfazer as razões ou admirações, como dizíamos da parte contrária, provemos demonstrativamente a causa pelos efeitos, a potência pelos atos, a jurdição pelo exercício, e o direito (do modo que pode ser) pela posse. Temos neste ponto contra nós não só os inimigos, senão também os amigos. Resolvem os defensores da opinião contrária, e também muitos da nossa, que Cristo em toda a sua vida, não teve exercício algum do império temporal, nem em quanto Rei nem em quanto Senhor, porque nem fez ato que fosse próprio da dignidade real, nem se serviu de cousa alguma do Mundo, como quem teve só o domínio e senhorio dele. E daqui inferem, não todos mas só os que impugnam a nossa sentença, que vinha a ser totalmente ocioso este império temporal que consideramos em Cristo, e por conseguinte nulo, conforme aquele princípio vulgar da filosofia: Frustra est potentia quae non reducitur ad actum

Mas começando pela forma desta conseqüência, ou colhe demasiadamente ou nada. Porque tão boa conseqüência é esta: Cristo não teve exercício de rei, logo não teve poder real; como esta: Cristo não teve exercício de juiz, logo não teve poder judicial. E nesta segunda conseqüência, sendo de Fé a premissa, é contra a Fé a conclusão. A premissa é de Fé, porque lemos no capítulo XII, de S. Lucas, que, pedindo dois irmãos a Cristo que julgasse certa dúvida que tinham entre si, o Senhor lhes respondeu: Quis me constituit judicem super vos? E a conclusão é contra a Fé, porque neiga contraditòriamente o texto de S. Paulo: Pater non judicat quemquam, sed omne judicium dedit filio, quia filius hominis est. Antes daqui se forma novo argumento em confirmação da verdade da nossa sentença, porque a potestade judiciária em Cristo foi conseqüência da dignidade real, como expressamente ensina S. Tomás na Questão LIX, Art. IV, ad. I: Potestas judicis secuta est in Christo regiam dignitatem. E a razão desta ordem natural é, posto que o Santo Doutor a não exprima, porque o ofício de julgar é parte da dignidade de Rei, conforme o texto de David: Et nunc, Reges, intelligite: erudimini qui judicatis terram. Por isso o mesmo Cristo, descrevendo o supremo e último ato de juízo em que há-de sentenciar o Mundo, se chama nomeadamente Rei: Tunc dicet Rex his qui a dexteris ejus erunt etc. E se é certo e de Fé que Cristo tem esta parte da jurdição e dignidade real, porque havemos de ser tão estreitos de coração que lha não concedamos toda?

Os que admitem ou veneram conosco em Cristo o título e domínio de rei e concedem contudo que não teve exercício dele, dizem muito douta e conseqüentemente que, ainda que a dignidade e jurdição real em Cristo não tivesse ato ou exercício algum em sua vida, nem o haja de ter em outro tempo, nem por isso se deve julgar aquele poder por baldado e ocioso, porque serve, como falam os filósofos, de ornar e mais aperfeiçoar o sujeito. Bem assim como na humanidade do mesmo Cristo é certo que houve alguma potência, que nunca teve nem havia de ter ato (qual é a potência que há nos indivíduos para a conservação da espécie); e contudo ninguém a nega nem pode negar em Cristo, porque é perfeição natural da Humanidade.

Persistindo na mesma suposição, se pode também dizer, não indouta nem indiscretamente, que, ainda que o domínio temporal de Cristo não teve aqueles atos ou exercício positivo que costuma ter nos reis e príncipes da terra, teve porém um ato excelentíssimo e um exercício contínuo, nunca visto até então no Mundo, a que podemos chamar negativo, que foi o não querer usar Cristo do mesmo domínio. E ter o domínio para poder e não querer usar dele (que é um ato heróico de humanidade e modéstia, o qual necessariamente supõe o mesmo domínio) não é tê-lo ocioso, se não mui gloriosamente exercitado, de maneira que neste sentido (que nem é vulgar nem violento) podemos dizer que não careceu Cristo do uso do domínio temporal que nele consideramos, e que o uso que teve daquele domínio foi a privação do mesmo uso, ou não querer usar dele. E se não, perguntemos a S. Ambrósio para que quis e mandou Cristo aos Apóstolos que comprassem espadas, ainda que fosse a preço das mesmas túnicas com que andavam cobertos, se lhes havia de mandar que as deixassem estar na bainha? e responde o grande Doutor que foi para mostrar Cristo que se podia defender e vingar de seus inimigos, mas não queria. Para este uso ou desuso quis Cristo a procuração das espadas, porque muitas vezes o mais nobre e o mais generoso uso do poder é não querer usar dele. E se aquelas espadas só para este uso não foram ociosas, porque o seria o domínio de Cristo, ainda que não tivesse outro uso mais que não querer o poderosíssimo Senhor usá-lo, para maior exemplo e doutrina nossa? Onde mais bem empregado e aplicado o domínio, que para poder dizer, depois do maior ato de humildade: Si ergo ego dominus et magister?

Desta maneira respondem (e podem responder os que seguem que Cristo não teve exercício algum do império e domínio temporal; porém nós, ponderando devagar a história evangélica, temos por certo o contrário; pelo que respondemos negando a suposição, e por última confirmação da nossa opinião mostraremos, por atos próprios de jurdição e domínio, como foi Cristo Rei e Senhor temporal do Mundo, não só em ato primo (como diz a frase dos Teólogos) senão em ato segundo; e não só quanto a jurdicão e domínio, senão quanto ao uso e exercício dela; não porque pública e continuadamente o professasse Cristo, como fazem os reis da Terra, mas porque exercitou alguns atos particulares de império e domínio, que eram próprios só do legítimo Rei e verdadeiro Senhor do Mundo, como se vê claramente em muitos lugares e exemplos do Evangelho.

O primeiro seja mandar Cristo, tanto que entrou neste Mundo, chamar os Reis do Oriente pela estrela, para que o viessem reconhecer e adorar por Rei. como eles mesmos disseram: Ubi est qui natus est Rex Judaeorum? Vidimus enim stellam ejus in Oriente et venimus adorare eum.

Item em receber os tributos que lhe ofereceram os mesmos Reis em reconhecimento da soberania suprema de sua majestade, não só em quanto Deus, se não em quanto Rei. Nesta conformidade entendem todos os Padres o mistério das três espécies de ouro, incenso e mirra, que os Reis ofereceram: o incenso como a Deus, a mirra como a homem, e o ouro como a rei, e assim cantou Arato, poeta cristão da primeira Igreja, naquele verso que tão bem pareceu a S. Jerônimo:

Aurum, thus, myrrham regique hominique Deoque.
E a Igreja, no Hino da Epifania:
Thus, myrrham etaurum regium.

E muito antes David, no Salmo que começa: Deus, judicium tuum Regi da, et justitiam tuam filio Regis. Este Salmo se entende literalmente do Reino de Cristo, conforme a explicação de S. Jerónimo, S. Agostinho, S. Ambrósio, e o comum consenso de todos os Padres e da mesma Igreja; e não só do Reino de Cristo absolutamente, se não do Reino e Império temporal, como larga e eruditamente prova Alonço de Mendoça, na sua Relatio Theologica de universali Christi Regno. E em comprovação deste Reino de Cristo, alega David profeticamente no mesmo Salmo a adoração e tributos dos Reis do Oriente: Reges Tharsis et insulae numera offerent, Reges Arabum et Saba dona adducent, et adorabunt eum omnes Regeç terrae, omnes gentes servient ei.

Finalmente, a entrada dos mesmos reis em Jerusalém, perguntando publicamente: Ubi est qui natus est Rex? que outra cousa foi, se não um pregão público e um Real! Real! por Cristo Rei do Mundo, com que o mesmo Rei se mandou apregoar na praça mais universal de todo ele, que era Jerusalém, e no meio do mesmo Mundo, que era o lugar onde aquela cidade estava situada?

A mesma publicação fizeram os Anjos nos montes e campos de Judéia, quando anunciaram aos pastores: Quia natus est vobis hodie salvator qui est Christus dominus, in civitate David; respondendo·toda a milícia do Céu: Gloria in altissimis Deo ed in terra paz huminibus! Nas quais palavras todas não só apregoaram o nascimento e chegada ao Mundo do novo Rei, mas declararam também por to das as circunstancias de salvador, de ungido por Deus, de descendente de David, e da paz que trazia consigo, ser ele o Rei prometido aos Patriarcas e anunciado dos Profetas, que havia de salvar e dominar o Mundo; da qual publicação foram os mesmos pastores os terceiros pregoeiros, que divulgaram por toda a parte o que tinham visto, como se colhe claramente do texto de S. Lucas:Et omnes qui audierunt mirati sunt, et de his quae dicta erant a pastoribus ad ipsos. Que ato pois mais próprio e positivo de rei, que mandar-se publicar por tal, nas cortes e aldeias, nas cidades e nos campos, aos grandes e aos pequenos, com quatro pregões tão públicos e tão notáveis, de estrelas, de anjos, de reis, de pastores, e receber adorações e tributos dos mesmos reis, e ultimamente desobrigá-los da palavra que tinham dado a El-Rei Herodes, como senhor supremo de todos, e mandá-los como súbditos e novos embaixadores seus, assinalando-lhes o caminho por onde haviam de ir?

Mas passemos do nascimento de Cristo aos dias mais chegados à sua morte, para que vejamos como, entrando e saindo do Mundo, se mostrou e publicou Rei e senhor de todo ele

Conclui-se que o Reino de Cristo é espiritual e temporal juntamente.

Recolhendo tudo o que tão largamente temos disputado (que foi necessário ser tão largamente) e reduzindo a concórdia quanto pode ser as opiniões de todos os Doutores, posto que alguns pareçam entre si contrários, diremos por última conclusão que o Império de Cristo é juntamente espiritual e temporal, e que, segundo estas duas jurdições, ambas supremas, se compõem; a coroa de Cristo, Sacerdote Supremo, e outra coroa de universal Senhor e Legislador in temporalibus, segundo a qual se chama propriamente Supremo Rei.

Este é o Reino universal que Daniel veio dar ao Filho do Homem (que é Cristo), e este o Reino que Nabucodonosor também tinha visto encher o Mundo, posto que não viu nem lhe foi mostrado a quem se havia de dar. Este é o que viu mais distintamente que todos Zacarias na sua terceira visão; porque Nabucodonosor viu somente o Reino e sua grandeza, Daniel viu o Reino e a pessoa que o havia de dominar, e Zacarias viu o Reino e a pessoa, e o número e distinção das coroas. Torno a repetir o texto e suponho a história, pois fica contada no I Livro

Para maior inteligência desta matéria havemos de supor que, deste tempo da Lei da Natureza, andou sempre o morgado temporal unido com o sacerdócio, e um e outro vinculado aos primogênitos. Estas eram aquelas bênçãos tão celebradas e tão pleiteadas que os Patriarcas davam a seus filhos, como foi a que Abraão deu a seu primogênito Isaac, e a que Isaac quis também dar a seu primogênito Esaú, e por indústria de Rabeca foi dada a Jacob. Conforme a este direito de sucessão, havia de dar também Jacob a seu primogênito Ruben a mesma bênção, mas, em castigo da irreverência que tinha cometido contra o tálamo de seu pai, foi privado dela, como lhe disse o mesmo Jacob: Ruben, primogenitus meus, tu fortitudo mea et principum doloris mei, prior in donis major in imperio, effusus es sicut aqua; non crescas, quia ascendisti cubile patris tui et maculasti stratum ejus.

Desde este tempo se dividiram estas duas dignidades que haviam de estar juntas no morgado ou maioria de um só império (major in império) e o reino e o sacerdócio, que havia de andar encabeçado no primogênito de Ruben, se repartiu em dois filhos do mesmo Jacob, que foram Judá e Levi, ficando em Judá a benção do reino, e em Levi a do sacerdócio, como depois se cumpriu, porque na instituicão do Tabernáculo, que precedeu ao Templo, foi ungido por sumo sacerdote Arão, que era do tribo de Levi, e na instituição do reino, depois de o perder Saul, foi ungido por rei de Israel David, que era do tribo de Judá.

Nestas duas descendências de Arão do tribo de Levi e de David do tribo de Judá, se conservou sempre o reino e sacerdócio, até que a tiara e a coroa, ou estas duas coroas, se uniram outra vez em Cristo, Supremo Sacerdote e Supremo Rei, e de ambos se compõe o império (assim o natural como o figurativo) que Ruben tinha perdido, prior in donis, rnajor in imperio. Daqui se entende maravilhosamente o mistério da ascendência e primogenitores de Cristo, os quais, como consta do I capítulo de S. Mateus e do III de S. Lucas, foram reis e sacerdotes, unindo-se por verdadeira geração no sangue santíssimo de Cristo e sua mãe o tribo real de Judá e o sacerdotal de Levi, como gravemente notou e expressamente disse S. Agostinho no livro II de Consensu Evangelisarum, capítulo II. Cum autem evidenter dicat Apostolus Paulus: ex semine David secundum carnem Christum, ipsam quoque Mariam de stirpe David a liquam consanguinitatem duxisse dubitare utique non debemus. Cujus feminae quoniam nec sacerdotale genus tacotur, insinuante Luca, quod cognata ejus esset Elisabeth, quam dicit de filiabus Aaron. Firmissime tenendum est carnem Christi ex utroque genere propagatam, et regum et sacerdotum, in quibus personis apud illum populum Hebraeorum etiam mystica unctio figurabutur...

De maneira que ordenou a Providência Divina que na geração e ascendência de Cristo se tecesse o tribo sacerdotal de Levi com o tribo real de Judá, e que a tela de que se havia de vestir o Verbo, quando se desposou com a natureza humana, fosse lavada de coroas e de tiaras, para que visse o Mundo que, ainda a título de geração natural, era ele o herdeiro legítimo do reino e do sacerdócio, como direito descendente daqueles sacerdotes e daqueles reis que só eram feitos por Deus; o qual mistério (para maior propriedade e majestade dele) se observou até nos escritores da mesma genealogia de Cristo, porque dos quatro animais do carro de Ezequiel que significam os quatro evangelistas, a S. Mateus, que escreveu a geração real, pertence o homem, que é o rei dos animais; e a S. Lucas, que escreveu a geração sacerdotal, pertence o boi, que é o animal do sacrifício, como, depois de S. Jerônimo e S. Gregório Papa, notam comumente todos os Doutores.

O nome de Cristo e de Messias, com que o mesmo Senhor foi chamado e conhecido, antes e depois de vir ao Mundo, foram duas firmas ou assinados públicos de um e outro império sacerdotal e real, temporal e espiritual, entre si unidos. Porque Messias, que é nome hebreu, e Cristo, que é nome grego, ambos têm a mesma significação, como diz S. João no capítulo I; e referindo as palavras de S. André a S. Pedro: Invenimus Messiam (quod est interpretatum Christus) e esta foi uma das erudições em que a Samaritana se mostrou tão letrada: Scio quia Messias venit, qui dicitur Christus. Um e outro nome, assim o de Cristo como o de Messias, quer dizer ungido, e chama-se Cristo ungido, porque foi ungido por Rei e Sacerdote Supremo.

Três ofícios achamos na Escritura Sagrada, que se davam com a cerimônia da unção: o de rei, como ungido, e chama-se Cristo ungido, porque foi ungido Arão, e o de Profeta, como foi ungido Eliseu, e com todas estas unções foi ungido Cristo. Da unção de profeta já dissemos no capítulo VII do I Livro. A de Rei e a de Sacerdote Supremo, que eram as duas maiores, são aquelas por que Cristo principalmente se chama ungido, não porque fosse ungido com aquela cerimônia exterior com que os reis e sacerdotes eram ungidos por mãos dos homens, senão pela unção interior, com que o mesmo Deus o ungiu na união da divindade com a humanidade, como acima dizíamos.

E agora poremos aqui as autoridades dos Padres, que para este lugar reservamos: S. Agostinho no livro e capítulo pouco antes citado: Firmissime tenendum est carnem Christi ex utroque genere propagatam et regum et sacerdotum, in quibus personis illum populum Hebraeorum etiam mystica unctio figurabutur, id est. chrisma, und e Christi nomen elucet tanto ante etiam illa evidentissima significatione praenuntiatum

Resolve-se quando começou este Império de Cristo e propõe-se acerca dele uma grande dificuldade.


História do futuro; Esperança de Portugal, Quinto Império do Mundo

Livro Primeiro editar

Nome, verdade e fundamento deste Império

Questão 1.a editar

Se na Sagrada Escritura está revelado algum Império, que se deva chamar o V.? Resp. afirm.

Questão 2.a editar

Se o dito Império é diverso e totalmente distinto do IV Império do Mundo, que foi o Romano? Resp. afirm.

Questão 3.a editar

Se o Império Romano há-de durar até a vinda do Anticristo? Resp. afirm.

Questão 4.a editar

Se no Capitulo I de Daniel é significado o Império do Anticristo na figura do chamado_ Cornuparvulum? ou o do Anticristo, ou o do Turco? Resp. afirm

Questão 5.a editar

Se na suposição que o Império Romano há-de durar até o Anticristo, pode haver no Mundo outro Império que se chame o Quinto? Resp. afirm.

Livro Segundo editar

Definição do V Império, e declaração dele

Questão 1.a editar

Que Império seja este, a que chamamos o Quinto? Resp.: Até o de Cristo.

Questão 2.a editar

Se o Império de Cristo, que dizemos ser o Quinto, é o Império do Céu ou da Terra? Resp. que da Terra.

Questão 3.a editar

Se o Império de Cristo na Terra é espiritual ou temporal? Resp. que é espiritual e temporal juntamente.

Questão 4.a editar

Se no dito Império espiritual e temporal de Cristo se distingue o domínio, posse, exercício? Resp. afirm.

Questão 5.a editar

Qual seja o dito domínio do Império de Cristo, e quando começou? Resp., que é, que tem sobre todo o Mundo e sobre todos os homens, e começou desde o primeiro instante da sua encarnação.

Questão 6.a editar

Em que consiste a posse do dito Império? Resp. que consiste em ser conhecido por fé e obedecido.

Questão 7.a editar

Quando começou, e como se continuou a dita posse? Resp. que começou desde os primeiros que creram em Cri st o , e vai continuando em todos os que têm a mesma fé.

Questão 8.a editar

Se teve Cristo exercício do dito Império em quanto espiritual? Resp. afirm.

Questão 9.a editar

Se teve Cristo exercício do dito império em quanto temporal? Resp. problem.

Questão 10.a editar

Se tem Cristo hoje exercício do dito império temporal e espiritual, e qual seja? Resp. que tem o exercício, imediato não, mas o mediato.

Questão 11.a editar

Por que pessoa ou pessoas tem Cristo o exercício mediato do império espiritual? Resp. que pelo Sumo Pontífice e mais ministros da Igreja.

Questão 12.a editar

Por que pessoa ou pessoas tem Cristo o exercício mediato do império temporal? Resp. que pelos príncipes temporais cristãos.

Questão 13.a editar

Se há-de Cristo ainda ter alguma hora o exercício do dito império, assim espiritual como temporal, por sua própria pessoa , ou se é possível? Resp. que é possível, mas que nunca há-de ter o dito exercício pessoal.

Livro Terceiro editar

Grandeza e felicidades do dito Império

Questão 1.a editar

Se este Reino e Império de Cristo há-de continuar sempre no estado presente, ou há-de ter outro e mais perfeito? Resp. que há-de ter outro estado mais perfeito, completo e consumado.

Questão 2.a editar

Como se prova este estado mais perfeito e consumado do Império de Cristo? Resp. que pelas Escrituras, por autoridade e por razão.

Questão 3.a editar

Porque a opinião do dito estado não é comum de todos os Padres e Doutores? Resp. que por muitos fundamentos.

Questão 4.a editar

Quanta haja de ser a grandeza do Império de Cristo no dito estado? Resp. que universal, sobre todas as gentes e sobre todos os reinos.

Questão 5.a editar

Se a dita grandeza há-de ser simultanea e permanente ou sucessiva? Resp. que simultanea e permanente.

Questão 6.a editar

Se hão-de ser todos cristãos no dito estado? Resp. afirm.

Questão 7.a editar

Se hão-de ser todos pela maior parte justos no dito estado? Resp. afirm.

Questão 8.a editar

Se há-de haver no dito estado paz universal? E em todo o Mundo? Resp. afirm.

Livro Quarto editar

Causas, meios e instrumentos com que se há-de conseguir o estado consumado do dito Império.

Questão 1.a editar

Se o primeiro meio da consumação do dito estado seja a conversão universal de todos os homens à Fé de Cristo e a extirpacão de todas as heresias do Mundo? Resp. afirm.

Questão 2.a editar

Como se prova em especial a conversão de todos os gentios e a extinpação da idolatria? Resp. que pelas Escrituras e Doutores.

Questão 3.a editar

Como se prova em especial a conversão, a extinção do Turco, a extirpacão da seita de Mafona? Resp. que pelas Escrituras e Doutores.

Questão 4.a editar

Como se prova em especial a conversão de todos os hereges, e a extirpação de todas as heresias? Resp. que pelas Escrituras e Doutores.

Questão 5.a editar

Como se prova em especial a conversão dos Judeus e a extirpação do Judaísmo? Resp. que pelas Escrituras e Doutores.

Questão 6.a editar

Se nesta conversão dos Judeus hão-de entrar também os Dez Tribos perdidos? Resp. afirm.

Questão 7.a editar

Se convertidos universalmente os Judeus hão-de ser restituidos à sua Pátria? Resp. afirm.

Questão 8.a editar

Se podem os Judeus 1icitamente esperar esta restituição mediante a Fé de Cristo? Resp. afirm.

Questão 9.a editar

Se é conveniente ao bem da Igreja que a opinião da dita esperança se pratique? Resp. afirm.

Questão 10.a editar

Se por meio da dita conversão universal se há-de consumar a união dos dois povos, gentílico e o judaico? Resp. afirm.

Questão 11.a editar

Se então se cumprirá a profecia do texto—et erit unum ovile et pastor?—Resp. afirm.

Questão 12.a editar

Se a causa principal eficiente da dita conversão universal será o Eterno Padre? Resp. afirm.

Questão 13.a editar

Se concorrerá para a dita conversão o Espírito Santo com especial e nova uncão da divina graça? Resp. afirm.

Questão 14.a editar

Que parte terá nesta obra a autoridade e intercessão de Cristo e da Virgem Santíssima? Resp. que muito grande.

Questão 15.a editar

Se o instrumento principal humano da dita conversão será o sumo pontífice santo e muitos pregadores evangélicos? Resp. afirm.

Questão 16.a editar

Se concorrerá para a dita conversão algum príncipe temporal, com a sua autoridade, o seu poder e as suas armas? Resp. afirm.

Questão 17.a editar

Se este príncipe temporal será imperador e monarca universal do Mundo? Resp. afirm.

Questão 18.a editar

Se o dito imperador universal se poderá chamar Vigário de Cristo no temporal? Resp. afirm.

Livro Quinto editar

Tempo, duração e ordem do dito Império

Questão 1.a editar

Se o estado consumado do Quinto Império há-de ser antes ou depois do Anticristo? Resp. que antes.

Questão 2.a editar

Qual dos dois povos se há-de converter primeiro universalmente, para a consumação do dito I:npério, se o gentílico, se o judaico? Resp. que o gentílico.

Questão 3.a editar

Quanta seja a duração do dito Império, depois de consumado? Resp. que até o fim do Mundo.

Questão 4.a editar

Quando há-de começar a dita consumação do Império de Cristo? Resp. que na extinção do Império turco.

Questão 5.a editar

Se do tempo presente até o da vinda do Anticristo pode e há-de correr um grande número de séculos? Resp. afirm.

Livro Sexto editar

Terra em que se há-de fundar o dito Império em quanto temporal, e qual há-de ser a cabeça dele

Questão 1.a editar

Se o dito Império temporal há-de ser na Europa ou em alguma das outras quatro partes do Mundo? Resp. que há-de ser na Europa.

Questão 2.a editar

Em que província da Europa se há-de fundar o dito Império temporal de Cristo ? Resp. que em Espanha.

Questão 3.a editar

Em que reino de Espanha se há-de fundar o dito Império? Resp. que em Lisboa.

Livro Sétimo editar

Pessoa que será o primeiro Imperador instrumento temporal do dito Império

Questão 1.a editar

Se a dita pessoa que seja imperador será o imperador de Alemanha? Resp. negativ.

Questão 2.a editar

Se a dita pessoa há-de ser El-Rei Cristianíssimo de França? Resp. negativ.

Questão 3.a editar

Se a dita pessoa há-de ser El-Rei Católico de Espanha? Resp. negativ.

Questão 4.a editar

Se a dita pessoa há-de ser o Sereníssimo Rei de Portugal? Resp. afirm .

Questão 5.a editar

Se o Rei de Portugal há-de ser El-Rei D. Sebastião? Resp. negativ.

Questão 6.a editar

Se o dito Rei de Portugal há-de ser El-Rei D. João IV? Resp. problem.

Questão 7.a editar

Se o dito Rei de Portugal há-de ser El-Rei D. Afonso ou o Infante D. Pedro? Responde-se: Vejo subir um Infante

{{|

No alto de todo o lenho.
Bandarra
Estes são os livros e questões de que consta o livro intitulado Clavis Prophetarum

}}