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editarA manhã era das mais puras, frescas e transparentes manhãs do nosso inverno. Não havia sequer um retalho de neblina; o céu estava azul e nu, o sol pacato, a temperatura deliciosa. O Passeio Público convidava a ir gozar ali um pouco de ar e meia hora de silêncio, por isso mesmo estava deserto. Deserto, não. Havia ali um passeador matinal, um só, mas justamente o único de que precisamos para este caso vulgaríssimo.
Chamava-se este passeador Germano Seixas, homem de quarenta e dois anos, mal trajado, pálido e abatido. A passo lento ia ele, cabisbaixo e triste, por uma das alamedas fora, desandando o caminho logo que chegava ao fim, parando a espaços, fitando uma coisa no ar, uma coisa invisível que podia ser um problema ou um consoante, e era nada menos que esse dilema nu e cru: comer ou morrer.
Sim, leitor amigo, Germano Seixas não come há vinte e quatro horas, e acha-se atualmente entre um almoço problemático e um suicídio certo. O estômago e a eternidade o solicitam com igual persistência. Ele cogita, indaga, esmerila a possibilidade de acudir às urgências do estômago; mas nada vê, nada sequer o ilude.
Numa das vezes que voltava a andar, viu surgir-lhe em frente um sujeito conhecido; quis esconder o rosto, mas não pôde. Era tarde.
— Oh! Germano! disse o novo passeante, que fazes aqui a esta hora?
— Eu?... eu...
— Eu quê?
— Ando tomando fresco...
— Pois está calor?
— Talvez... creio que sim...
— Ora essa! Eu ia agora passando pela rua, vi-te a filosofar e entrei. Há quantos meses não nos vemos?
— Uns oito, talvez...
— Upa! Há mais. Mas, enfim, oito ou dez, não importa.
O novo personagem era um sujeito cheio, trajado com limpeza ainda que sem gosto, corado, satisfeito, em paz com a natureza. Apesar de ser ainda muito cedo, trazia um palito na boca, sinal de que almoçara.
Seu nome era José Marques.
Germano olhava para o palito, com que José Marques brincava — olhar de inveja e desespero. Mas o dono do palito não dava por isso; extraía a boceta do bolso e tomava uma pitada.
— Queres?
Uma pitada a um que deseja um bife é certamente a mais pungente ironia do mundo. Germano nem teve ânimo de falar; recusou com um gesto.
— Que tens, homem? disse José Marques; acho-te assim um pouco...
Parou.
Seixas olhou para ele, para o chão, para as grades, para os bambus, e só depois destes círculos e retas murmurou a medo:
— Marques, eu estou... estou...
— Estás? Acaba.
— Adeus!
E deu alguns passos.
— Onde vais? clamou José Marques acompanhando-o.
— Para a eternidade!
José Marques alcançou o infeliz deitando-lhe a mão à aba da sobrecasaca. Germano não resistiu, mas não pôde encará-lo.
— Que é isso, homem? disse José Marques com ar de amigável repreensão. Morrer! Pois és tão fraco, tão covarde...
— Não é covardia, é miséria, é fome. Ouve-me. Desde ontem não como nada. Sou chegado a uma terrível situação, desesperada e morta. Minha vida tem sido uma luta impossível com a fatalidade; já não posso lutar; sucumbo. Você pode impedir que hoje me atire à morte, mas amanhã, mas depois, um dia há de vir em que o meu destino tem de cumprir-se.
José Marques ouviu enfiado a narrativa de Germano. Olhou para ele, e leu no rosto o comentário das palavras. A fome e o suicídio davam-se as mãos naqueles olhos encovados e desvairados. José Marques achou em si um bom sentimento, que exprimiu em tom rude:
— Ora vamos! Não sejas tolo! Um homem deve ser superior à fortuna, sem o que não pode ser homem. É preciso contar com a Providência...
— A Providência! interrompeu Germano.
— Sim, porque foi ela que me mandou aqui. Um almoço! Pois a gente mata-se por um almoço! Anda comigo; eu lutarei com a tua sorte, e vencê-la-emos.
Seixas sentiu-se enternecido ao ouvir aquelas palavras de José Marques. Aceitou a mão que este lhe estendeu e apertou-a entre as suas. Na pálpebra fatigada fulgiu uma lágrima de gratidão.
— Marques! exclamou ele com a voz trêmula. Ainda tenho um amigo.
— Um amigo que vale por dez homens. Anda daí!
Marques puxou-o pelo braço e os dois saíram do Passeio Público. Em caminho, Germano referiu a José Marques todos os seus infortúnios daqueles dez ou doze meses. Era um fio interminável de desgraças e contratempos; tentara todos os meios de vida ao alcance de suas habilitações, havendo-se em todos com mais fervor que fortuna; ultimamente servira de guarda-livros em uma loja de São Cristóvão, que faliu quinze dias depois de lá entrar. Vivia afinal de empréstimos e fiados. Mas isso mesmo cessou; a ponto de achar-se entre a vida e a morte naquela funesta manhã.
José Marques ouviu a narração do amigo sinceramente comovido. Interrompia-o para lhe dar ânimo e confiança.
— Agora as coisas mudam, dizia ele; eu vou corrigir tudo isso.
Entraram num hotel, onde Germano almoçou razoavelmente, combinando quanto possível a discrição com as exigências do estômago. Os empregados notaram a intimidade de Marques com o maltrapilho, e acharam singular que se tuteassem dois homens, um dos quais parecia não ter o preconceito do lenço de assoar. Mas, ao cabo de tudo, como o almoço era farto e a paga certa, serviram a Germano com a mesma solicitude com que o fariam a outro freguês mais apurado.
No corredor do hotel, Germano disse a José Marques:
— Deste-me a vida; sinto agora que era uma loucura o que ia fazer. Com que expressões te agradecerei tamanho benefício?
— Ora, adeus, redargüiu José Marques. Vou daqui à praça. Aparece daqui a duas horas no armazém.
— Sim.
— Onde moras?
— No .
— Bem; vai ao armazém daqui a duas horas.
Duas horas depois Germano entrava no armazém de José Marques. A esperança iluminava os olhos, até pouco antes sombreados de suicídio. Não obstante, entrou constrangido e envergonhado.
José Marques manteve a palavra e desempenhou o papel que a Providência lhe confiara naquela manhã. Chamou Germano ao escritório, e aí lhe ofereceu um lugar de guarda-livros em casa de um seu amigo.
— Aceitas?
— Se aceito!
— Pois estás arranjado.
— Mas... como...
— Não digas nada! Não quero ouvir observações nem dar explicações. Achei-te hoje à beira da morte por falta de um almoço; dei-te o almoço. Mas como a situação pode repetir-se amanhã ou depois, ou em outro qualquer dia ofereço-te, dou-te agora uma coleção de almoços, que te hão de livrar da morte!
José Marques disse isto batendo-lhe com a mão no ombro, e rindo do ar acanhado de Germano, que não sabia se havia de olhar para ele, se para o chão.
— Sou amigo, não? perguntou Marques rindo.
— Imenso!
— Um bom amigo, não é?
— Excelente.
— Amigo para as ocasiões, porque isto de fazer obséquios em circunstâncias ordinárias não é grande mérito. O mérito é fazê-los nas ocasiões graves e solenes.
— Justamente.
— Por exemplo, esta. Vi-te de longe triste e cabisbaixo; entrei; soube que a causa da tua tristeza era não teres comido ontem. Imediatamente acudi às duas precisões que tinhas; comer logo alguma coisa, e obter um emprego...
— É verdade, meu bom Marques, disse Germano; vejo que ainda te lembras de mim, que apesar da minha miséria...
— Qual, miséria!
— Vejo que, embora maltrapilho...
— Maltrapilho! exclamou José Marques inspecionando a roupa do amigo. Não estás finamente vestido, mas... mas precisas de mudar isso... é verdade, precisas...
— Irei ganhar o meu primeiro mês.
— Oh! não te apresentes assim em casa do Madureira. Chama-se Madureira o dono da casa para ondes vais. Não te apresentes assim que não te há de acreditar.
— Entretanto...
— Arranjaremos roupa; não se há de perder a viagem por falta de uma vela latina...
José Marques riu-se da graça que achou em si próprio, empregando aquela imagem náutica, e levou o amigo a uma casa de roupa, à ; mas o novo guarda-livros não ousou ir além de uma andaina de roupa, não só porque tinha vergonha de abusar dos obséquios de José Marques, como porque, examinando casualmente um segundo paletó, viu o dono da casa menos solícito do que quando ele escolheu o primeiro. Que importa? Um paletó bastava para trinta dias; rigorosamente sobrava.
Despedidos os dois, encaminhou-se Seixas para o Beco do Cotovelo, com a roupa debaixo do braço, e a alma nadando em gratidão.
— Oh! dizia ele consigo, há ainda almas generosas neste mundo! A caridade, a afeição, os bons sentimentos não fugiram dele. Nobre Marques! Não se envergonhou de apertar a mão e ajudar a um antigo companheiro de balcão, menos feliz que ele! Menos feliz, muito menos! Ele está bem, pode liquidar, se quiser, ao passo que eu não tenho para comer. O que são destinos! Deus queira que isto agora não seja simples aragem de fortuna. Farei o que puder, e é a última experiência; se falhar...
O pensamento não ousou concluir a frase.
No dia seguinte apresentou-se Seixas em casa de Madureira e tomou posse do cargo. O patrão simpatizou desde logo com o guarda-livros, ou foi talvez prevenido pela narração que José Marques lhe fizera de seus infortúnios. O certo é que o tratou com excepcional benevolência, correspondendo Seixas desde logo e estabelecendo-se entre ambos uma amizade, que devia aproveitar mais tarde ao ex-suicida do Passeio Público.
— Então, que tal parece o Seixas? Perguntava José Marques três dias depois a Madureira.
— Um excelente homem!
— Não é verdade?
— Excelente; ao menos por ora a impressão é esta.
— E continuará a sê-lo.
— Zeloso, cortês, inteligente...
— Verás; é uma pérola. Se não fosse eu, talvez a esta hora...
— Pobre rapaz!
— Já te contei que o salvei da morte?
— Já, já.
— Pois é verdade, se passo ali meia hora depois, era homem morto.
— Praticaste uma boa ação, Marques.
— Oh!... Não falemos nisso.
— E podes crer que ele te é grato. Ainda hoje, perguntando-lhe eu, à mesa do almoço, se te conhecia há muitos anos, falou de ti com um entusiasmo! um ardor!...
— Sim?
— Não imaginas.
José Marques não escondeu, nem procurou fazê-lo, a boa impressão que lhe causara a notícia de Madureira. Afagou as barbas, abotoou e desabotoou o paletó, enfim expectorou este aforismo:
— A verdadeira paga do benefício é a gratidão do beneficiado.
— Não há outra, opinou Madureira. Infelizmente, são raros os agradecidos.
— Raríssimos, confirmou José Marques. Eu, pela minha parte, tenho visto poucos. Mas não me engano com aquele. O Seixas nunca se há de esquecer de mim. Nem é fácil. Tu eras capaz de esquecer um homem que te desse a vida e o pão?
— Nunca.
— Pois!
No fim do mês Seixas foi ter com José Marques para lhe dizer que amortizara parte da dívida contraída na loja de roupa. Havendo algumas pessoas presentes, não quis ele dizer logo ao que vinha; José Marques apressou-se a chamá-lo de parte, onde lhe ouviu a boa notícia.
— Não havia pressa, observou ele.
— Convém pagar quanto antes. Todas as dívidas devem ser pagas; esta mais depressa que as outras, porque é preciso desempenhar a tua honrada palavra, e ao mesmo tempo mostrar que não lançaste a semente do benefício em terra estéril...
— Quem te diz isso, homem? Estás contente com o Madureira?
— Estou.
— Também ele contigo.
— Sim? Tanto melhor.
— Agora, é fazeres por ser bom cavalheiro. Eu digo de ti o que devo e mereces, porque não entendo que a prova de amizade consista somente em certos benefícios. Nem só de pão vive o homem. Vive de pão e de crédito. O Madureira sabe o que és e o que vales.
— Obrigado, Marques! disse Seixas estendendo-lhe a mão.
— Onde vais?
— Vou à casa.
— Espera um pouco...
— Se puderes dispensar-me era favor.
— Tens algum negócio urgente?
— Urgentíssimo.
Seixas saiu e dirigiu-se para o Beco do Cotovelo, entrou em casa e lá ficou até o dia seguinte. Era noite; ocupou-se em apurar um assunto de que trataremos no capítulo seguinte.
Seixas não fora sempre combatido da fortuna. Tempo houve em que a cidade o viu brilhar entre os elegantes de calças cor de flor de alecrim. Dotado de aceitável figura, de uns olhos insinuantes e vivos, feriu alguns corações ingênuos, que em vão esperaram o bálsamo matrimonial. Muitos deles recorreram a outros; alguns ainda esperam boticário próprio. Um desses, em despeito das posturas canônicas e civis, aceitou os conselhos de Seixas, curandeiro de má morte, que transviou o irrefletido coração, de que tudo resultou uma menina gentil como os amores. A menina e a mãe viviam em casa de uma velha parenta, casa que Seixas freqüentou algum tempo, mas de onde o arredaram os lances da fortuna.
Na véspera do dia em que José Marques o encontrou no Passeio Público, Seixas fora ver a sua Elvirinha, criança de quinze anos, de quem se despediu com lágrimas, no meio de grande espanto da mais família, que não atinou logo com a causa daquela aflição. Era a despedida da morte. Arrancado a tempo do fatal abismo em que ia cair, Seixas lembrava-se agora da filha, e sonhava uma família e uma casa. O sonho não combinava muito com a realidade. Seixas compreendia perfeitamente que a sua sorte era ainda mais precária que os recursos. Mas ao mesmo tempo uma esperança vaga lhe falava no coração, voz consoladora ou pérfida, a última felicidade dos desamparados. Era esta voz que lhe contava antecipadamente as alegrias do futuro, dizendo-lhe à guisa das feiticeiras de Macbeth: — Tu serás sócio do Madureira!
A predição não era extravagante. Madureira tratava-o com tamanha benevolência e distinção, que a idéia de o fazer seu sócio podia nascer-lhe um dia de manhã, sem pasmo para ninguém.
Seixas não falou nisso a José Marques. Ia vê-lo todas as semanas, falavam de várias coisas, mas nunca daquela esperança acariciada no peito do guarda-livros.
As visitas de Seixas a José Marques, hebdomadárias durante os primeiros três meses, passaram a ser quinzenais, depois mensais, depois casuais. Seixas melhorara a olhos vistos, nas cores e no vestuário. Logo que pôde contraiu de novo o vício do charuto, deixado algum tempo antes do projeto do suicídio. José Marques folgava em contemplá-lo... Nunca houve joalheiro que olhasse com mais amor e desvanecimento para uma obra sua. Dir-se-ia que ele o inventara.
— Agora, sim! estás outro! exclamava ele. Olhem-me estas bochechas! Quem diria que são as mesmas faces encovadas e amarelas daquele pobre Seixas do ano passado? Não te vexes de ser gordo, homem!
— Pois eu havia de vexar-me? murmurava o guarda-livros.
— Parece! estás assim não sei como...
— São os teus olhos!
E logo que se separavam:
— É insuportável este Marques, dizia Seixas consigo; é um verdadeiro língua-de-trapo!
Um dia José Marques foi ter com Seixas, a pedir-lhe para entrar de irmão em uma ordem terceira.
— Não sei se posso agora fazê-lo, disse este; meus recursos...
— Não são muitos, mas espero que me não recuses isso; é um benefício para ti...
Seixas cedeu; José Marques contou mais um argumento para o caso das vantagens dadas pelo compromisso da ordem em favor dos que lá metessem certo número de irmãos. No mesmo dia em que Seixas foi proposto e admitido, José Marques procurou-o em casa, que já não era no Beco do Cotovelo, mas na .
— Com que então, tens pouco recursos? disse ele logo que entrou.
— Bem o sabes.
— Maganão!
— Que queres dizer com isso?
— Velhaco!
— Mas...
— Pelintra!
— Acaba!
— Ainda em cima dissimulado! Já não tens em mim um amigo na vida e na morte; esquivas-me; desprezas-me...
— Explica-te.
— Não sabes nada? Não sabes que o Madureira...
— Que tem?
— Vejo que ignoras tudo. Pois fica sabendo que ele quer dar-te interesse na casa...
— O Madureira?
— Disse-mo hoje. Escuso acrescentar que o aprovei em tudo e por tudo... Estás contente? Dá cá esses ossos.
José Marques abriu os braços a Seixas, que o chegou ao peito com a mesma ternura com que abraçaria um jacaré. Mas, alegrando-o a notícia, havia em seu rosto uma expressão de bem-aventurança que o amigo saboreou deliciosamente.
— Quando eu dizia que havíamos de vencer a sorte! exclamou José Margues.
Seixas não se deu por achado, a primeira vez que esteve com Madureira; nem perdeu com isso. Daí a dias, Madureira comunicou-lhe o projeto, que o outro ouviu com o reconhecimento próprio da ocasião.
Afigurando-se-lhe mais propícia a estrela, Seixas resolveu definitivamente trazer para sua companhia a filha Elvira e sua mãe. Antes de o fazer, expôs todo o seu passado a Madureira, e comunicou a intenção que tinha de consagrar pelas bênçãos da Igreja as relações que o coração atara entre ele e a senhora D. Lúcia do Carmo. Aprovou-o o negociante. Assim se fez, e um mês depois recebiam-se os dois na igreja da Candelária, sendo padrinhos Marques e Madureira. A princípio Seixas só se lembrara do segundo; mas este fez-lhe ver que era conveniente convidar igualmente José Marques. O guarda-livros cedeu, e o casamento celebrou-se, não sabendo os convidados qual dos dois era o noivo, se Germano Seixas, se José Marques, tão alegre andava este naquela noite.
A noiva tinha um ar de sogra; mas a alegria não a podia haver mais juvenil. Após longos anos de desamparo e aflições, via-se enfim constituída em família. É certo que o devia menos ao próprio mérito do que ao amor que Seixas tinha à filha e ao desejo de lhe deixar um nome, e, se pudesse ser, algum pecúlio. Qualquer que fosse, porém, a causa eficiente, era feliz e isso lhe bastava.
Assim postas as coisas e as pessoas, vejamos agora os sucessos, que põem termo a esta curta, mas substancial narrativa.
Os meses correram com a velocidade que só se sente de certa idade em diante, quando a velhice nos acena de mais perto e as cãs começam a povoar a cabeça e a barba.
Correram os meses, e mais depressa correu Madureira para a sepultura, aonde baixou em certa manhã de setembro, depois de três dias de moléstias. Já então Seixas era seu sócio. Aberto o testamento, viu-se que o defunto, não tendo parente, dispunha alguns legados e instituía seu herdeiro universal o feliz pai de Elvira. Este e José Marques eram nomeados testamenteiros.
Seixas sentiu a morte do sócio e protetor; mas é força confessar que a herança lhe suavizou grandemente a mágoa. É esse um dos bons efeitos das heranças. Seixas conheceu pela última vez a grande alma de Madureira.
Vê o leitor que estamos longe do dia em que Seixas, cansado de esperar o almoço, resolvera ir comê-lo na eternidade. Agora era um comerciante apatacado e conceituado. Tinha família. Quando ele pensava nisso sentia um tremor nervoso como de quem recorda o terremoto de que escapou; mas ao mesmo tempo comprazia-se em recordar que de baixo subira tanto. Um só ponto negro havia: era José Marques, que (na opinião de Seixas) se constituíra seu eterno perseguidor. Seixas rememorava a cena do Passeio Público, até a chegada de José Marques; logo que José Marques entrava, ele desviava dali o pensamento como de um crime. Agora não podia vê-lo; padecia só com encará-lo.
José Marques, entretanto, era-lhe cada vez mais afeiçoado, e fazia-o sentir com franqueza. Nunca lhe pedia favores; exigia-os, e era justo, porque o salvara da morte. Nem por isso Seixas o convidara um dia de anos da filha. Quando José Marques soube disso ficou consternado. Não se deteve; foi dizer-lho. Seixas recorreu ao meio mais vulgar e usado entre todos.
— Não te convidei? disse ele. Admira-me que o digas, porque eu próprio escrevi uma carta... Não importa! Vai lá logo.
— Decerto que vou; mas sempre quis dizer-te...
— Fizeste bem.
— Sim, era realmente de espantar que tu me tratasses por esse modo. Podes ter defeitos; cada um de nós tem os seus; mas ingrato, não! tu não és ingrato.
— Pois!
— Não és. A que horas?
— Vai jantar.
— Vou, vou.
E foi.
Durante o jantar fez uma saúde única, ao dono da casa, felicitando-se pela parte que o seu coração tinha naquela festa de família. Não foi adiante, mas disse o suficiente para fazer empalidecer o pai de Elvira.
Logo que ele se despediu, à meia-noite, Seixas disse à mulher:
— É o homem mais aborrecido que tenho visto em minha vida!
— Por quê? Não me pareceu.
— Não o conheces.
— Parece até amável comigo e com Elvira.
— Isso pode ser; mas sempre te digo que nunca vi nada pior!
José Marques quase não convivia com outras pessoas, além da família Seixas. Era casado; mas só ia à casa jantar e dormir. Alguns meses depois do jantar de anos de Elvira adoeceu-lhe a mulher; Seixas não a foi visitar logo. Sabendo, porém, que a doente estava à morte, não teve remédio senão ir lá uma noite.
— Creio que está perdida, disse José Marques ao amigo.
— Pobre senhora!
— Obrigado, Seixas — disse José Marques com um suspiro. Vejo que és o mesmo amigo de outro tempo. Queria pedir-te uma coisa; tua senhora podia ficar estas últimas noites com minha mulher?
Seixas ficou gelado.
— Eu sei! Ela anda também tão achacada!
— Não parece.
— Anda.
— Mas, enfim, não está de cama. Vou pedir-lhe.
Seixas não teve tempo de exprimir a segunda objeção que já lhe dançava nos lábios. Sua mulher não pôde negar o que lhe pedia José Marques, alegando razoavelmente que não tinha mais pessoa da família.
Seixas foi obrigado a lá deixar a mulher e a filha, e a voltar só para casa.
— Os diabos o levem! exclamava ele descendo as escadas de José Marques. Isto é um suplício! Isto é... um inferno! E tudo porque me fez um dia... o que faria qualquer outro que ali passasse e soubesse da minha posição. O mundo não é um covil de tigres: a filantropia não veio só de encomenda para ele. Já não o posso tolerar.
A mulher de José Marques faleceu no fim de três dias. Como essa morte restituía a Seixas a mulher e a filha, pode-se dizer que o antigo sócio de Madureira gastou sem grande pena os doze mil-réis do carro em que foi acompanhar a defunta ao cemitério.
Entretanto, a morte da esposa de José Marques veio apertar mais os laços que uniam os dois amigos, porque José Marques, não tendo mais nenhum pretexto para estar em casa algumas vezes, habitava mais a de Seixas que a sua.
Um dia liquidou o negócio, despediu-se da praça, e foi o mais triste dia da vida de Seixas.
José Marques não vivia em outra parte: era sempre na loja ou em casa do pai de Elvira. Esta e a mãe achavam-no agradável, e ele fazia o mais que podia para não contrariar essa impressão. Seixas, porém, padecia (dizia ele) as dores cruciantes de um inferno. Não lhe falava horas e horas; às vezes nem olhava para ele. Se ria, e José Marques se aproximava, fechava logo o rosto, com o mesmo ar como se lhe dissesse: — Meu caro, não me rio para ti; tu aborreces-me; deves tê-lo compreendido; salvo, se és tolo, e o és na verdade.
Nada viu, porém, José Marques. Ele estava tão certo da amizade do outro, que o proclamava em toda a parte:
— O Seixas? é o meu maior amigo; conhecemo-nos há longos anos; sempre o mesmo. Verdade é que de certo tempo em diante deve-me tudo.
— Sim? perguntava o interlocutor, qualquer que fosse.
— Tudo...
— Protegeste-o?
— Mais do que isso!
— Mas... então?...
E se o interlocutor não insistia:
— Aqui em reserva; o Seixas esteve um dia para matar-se.
— Que me diz?
— A pura verdade. Fui eu que o salvei; dando-lhe algum dinheiro e o lugar em casa de Madureira.
— Estou pasmado!
— Mas, também honra lhe seja feita. Nunca se esqueceu de meus benefícios; nunca!
Às vezes acontecia, no meio deste diálogo, surgir ao longe a figura de Seixas, a qual, ou desaparecia na primeira esquina, quando era possível fazê-lo, ou apressava o passo ao acercar-se do grupo, de maneira que passasse por ele, sem outra interrupção mais que um cumprimento de chapéu.
— Vem cá, Seixas! dizia José Marques neste último caso.
— Vou com pressa; até logo!
José Marques ficava a olhar para ele, e dizia ao outro:
— Sempre na labutação! é um homem de truz.
— Oh! lá isso é!
— Bom pai de família... Não, senhor, não me arrependo do benefício que lhe fiz.
Seixas, entretanto, andava cogitando nos meios da fazer uma viagem à Europa. Não se pode dizer que José Marques fosse a causa disso; mas nas vantagens da viagem, entrava a da ausência deste. Uma só dificuldade havia; era o casamento de Elvira.
Elvira, a filha de Seixas, era na verdade uma herdeira graciosíssima, que ainda não sabia haver-se com as cassas e as sedas de que a vestiam, ela, que passara os primeiros anos envolvida em chita, algumas vezes rota. Mas era mulher, bonita e vaidosa; depressa se acostumou às exigências da nova posição. Tinha uns olhos e uns cabelos, negros como a noite escura, uns olhos que traziam desvairados outros da mesma e de outras cores. Mas só dois olhos eram felizes; eram os olhos do novo guarda-livros da casa do pai. Este empregado amava tanto a filha do patrão, como o leitor ama a rainha Pomaré; a faculdade mestra de sua organização era a do negócio. Viu em Elvira uma herdeira bonita, e atirou-se a ela; nada mais.
Seixas percebeu o namoro e aprovou-o mentalmente; esperava que o rapaz a pedisse para consentir logo; mas este hesitava ainda, ou receoso do resultado, ou desejoso de fortalecer mais a sua posição. Não foi ele, porém, o único ferido pela seta do amor. José Marques sentiu-se igualmente tocado da misteriosa arma. Velhote ainda fresco e bem disposto, não pôde nem quis resistir ao ferimento, nem levou a autora à polícia; rendeu-se-lhe aos pés. Elvira deu pela vítima antes mesmo que esta desse por si. É privilégio comum a todas as mulheres. Um homem, quando acontece ser amado por uma senhora, sem iniciativa dele, quase precisa que lhe vão levar a notícia à casa; a mulher é a primeira que vê incêndio na casa do vizinho.
Viu Elvira o incêndio e deixou-o arder. José Marques, porém, foi pedir à moça um pouco de aguada da sua benevolência para atalhar o mal. Vê a leitora que estamos em pleno pays du tendre. Não lhe pediu ele com a boca, mas com os olhos; Elvira entendeu e riu. Ele pensou que o riso era afirmação e levantou as mãos ao céu.
— Quem diria que aquela santa seria tão cedo substituída! exclamou José Marques dentro de si.
Depois cogitou. Cogitou e hesitou. Hesitou, mas venceu, isto é, dispôs-se a casar.
— Dirão muita coisa de mim, pensou ele; mas hão de levar em conta as verduras de uma mocidade prolongada.
Verduras!
Assim disposto, convencido e resoluto, foi José Marques ter com o Seixas.
— Tenho uma coisa para te pedir, disse ele.
— Fala.
— Uma coisa séria.
— Pois fala!
— Muito séria. Que pensas de mim?
— O que penso?
— Sim; que te parece a minha idade?
— Respeitável.
— Justamente: uma idade respeitável, isto é, não caio de maduro.
— Oh! nem eu!
— Nem tu. De maneira que se te dissessem que eu me ia casar, não te admiravas?
— Casar!
— Responde.
Seixas hesitou um instante.
— Não me parece, disse ele, que a coisa fosse de todo desarrazoada. Devo, contudo, dizer-te que não posso ser padrinho... Ando agora muito ocupado.
José Marques sorriu à socapa.
— Nem é para isso que te convido.
— Ah!
— Convido-te para coisa melhor; convido-te para pai.
— Pai!
— Pai da noiva.
— Pai da noiva!
José Marques abriu os braços.
— Dá cá esses ossos! exclamou. Eu restituí-te a vida um dia; tu vais restituir-me a felicidade doméstica.
Seixas começava a ter umas suspeitas da realidade.
— Explica-te! disse ele.
— Peço-te a Elvira.
Seixas não caiu das nuvens, porque já vinha a meio caminho; mas ficou consternado. A consternação era uma prova de simpatia, a última que ele lhe podia dar. A idéia de José Marques parecia-lhe que frisava com a demência. Depois da consternação teve vontade de rir; mas conteve-se. Conteve-se, levantou os ombros, e não respondeu ao pretendente; nem o poderia fazer se quisesse, porque este entregara-se todo a uma descrição vivíssima do afeto que a moça lhe inspirava, e da ambição que tinha de a fazer feliz.
— Meu caro Marques, disse enfim o pai de Elvira, serei franco. Não te posso dar minha filha.
— Não?
— Não posso.
— Mas por quê?
— Tenho outras idéias.
— Será possível? Parece-me contudo que... Estás brincando, decerto.
— Não estou; destino-a a outro.
— Quem quer que seja, meus direitos são anteriores aos dele, porque esse com certeza não te deu nunca provas de amizade, pelo menos do quilate das que te dei.
Seixas, levantou os ombros segunda vez, com tal expressão, que não havia duvidar. José Marques ficou abatido. Murmurou um queixume, que o outro ouviu assobiando, e despediu-se.
— Um homem a quem dei o pão! dizia ele ao entrar em sua casa.
No dia seguinte recebeu uma carta atenciosa e quase amigável de Seixas, pedindo-lhe desculpa de não poder consentir no que ele pedida, pelo motivo já exposto, acrescendo que Elvira não aceitara o casamento com ele; protestavam, no entanto, a sua eterna amizade, esperando que o incidente não romperia as relações que entre ambos existiam. A carta era inspirada pela mulher de Seixas que não desejava magoar o pobre velho. José Marques leu-a e enterneceu-se. Escreveu logo uma resposta longa e amistosa; mas resolveu afastar-se da casa de Seixas durante algum tempo.
Sabendo, dois meses depois, que Elvira ia casar, sentiu-se picado de despeito, e abriu-se com alguns amigos censurando o casamento, e dizendo que alguém podia haver com direitos mais sólidos e antigos que os do guarda-livros.
Logo que Elvira casou, volveu ele a freqüentar a casa de Seixas, onde jantava freqüentemente e passava a maior parte do dia. Seixas já mal podia tolerá-lo. Os meses passaram, depois os anos; a velhice foi tornando José Marques pouco andarilho. A casa de Seixas era já a sua habitação usual. Ninguém o via comer em outra parte.
— Não tenho filhos nem mulher, dizia ele; vocês serão a minha família.
Seixas não respondia nada.
— Sabes que mais? disse José Marques um dia; estou com minhas cócegas de vir morar para aqui.
— A casa é pequena.
— Qual! Eu acomodo-me bem num canto. Podia ir morar com outro; mas, confesso, ninguém me merece tanto como tu, nem há amigo com quem eu possa falar com esta liberdade que uso contigo... Eu considero-te, por assim dizer, uma obra minha; e estou certo de que não és mais amigo de outro. Sei que és grato, que não te esqueces nunca um benefício.
Foi morar com a família de Seixas. O que este sentia não era já aborrecimento, era ódio. Deu-lhe um quarto escuro, em um recanto da casa, onde José Marques se acomodou. Seixas recebia em casa alguns amigos, que ali iam jogar o voltarete ou palestrar. Se faltava um parceiro, José Marques era convidado a supri-lo, mas nada mais. Nem por isso lhe dava o melhor lugar à mesa do chá, onde ninguém fazia caso dele. José Marques, entretanto, não se fartava de elogiá-lo como homem grato, a quem ele matara a fome e salvara da morte.
— É um benefício de que nunca me hei de esquecer, acrescentava ele.
Um dia adoeceu, mas tão infelizmente que já não tinha nada do que possuíra, em conseqüência do incêndio de duas casas, da morte de alguns escravos e da falência da companhia de que ele tinha duzentas ações. Acrescentou a esta desgraça, estar Seixas preparado para uma viagem à Europa. José Marques foi para o hospital de sua ordem, onde faleceu. Seixas, que ainda não havia embarcado, mandou dizer uma missa, não sei se pelo repouso do defunto, se em ação de graças. O coração não falou, mas pensou isto:
— Morreu um dos homens mais insuportáveis que tenho conhecido. A terra lhe seja leve!