Lembrava frescura de úmidas rosas desabrochadas, eflorescência de magnólias e a candidez de alma de pastores aquela carnação opulentamente branca.
Existência singela, segetal, um tanto primitiva, de serranias alpestres, o espírito a imaginava surgindo dentre vergéis de lírios e açucenas, numa clara fulguração de brancuras, como se as constelações a houvessem fecundado.
Uma luz desconhecida parecia rodeá-la de auréolas arcangélicas, celestiais...
No entanto, a sua carne viva, virgem, radiantemente alva, da translucidez requintada da lua, determinava bem a sua terrestre descendência.
Pelos campos, pelos prados, ela surgia com o sol, ela noctivagava com as estrelas, branca e de fino ouro flavo nos cabelos.
Surgia com o sol, na lactescência imaculada do seu corpo de flexibilidades e delicadezas de linho; noctivagava com as estrelas, na chama doirada dos seus cariciosos, suaves cabelos.
Na alvorada púbere desse sangue majestoso de Virgem, inefável Infinidade de sereias de volúpia cantava.
Relâmpagos vagos de desejos quiméricos cruzavam, abriam claridades iriadas nesse sangue triunfal impoluto, tão puro e verde nas exuberâncias como as verdes e tropicais vegetações dos campos claros que a geraram.
A alma adormecia no azul doce, langue, balouçante, dos seus olhos radiantes, festivos, inundados de uma frescura silvestre de náiade onde, por vezes, a dolente melancolia de amargas águas de mar em repouso vagava.
Carne casta e branca, tenra e veludosa, epiderme de leve luz rosada, cujas transparências sutis extasiavam, tinha, no entanto, uma fascinação animal, um quebranto delicioso de pecado, uma provocante flexura nervosa nos quadris afelinados, qualquer cousa de inebriante segredo selvagem no extravagante conjunto das linhas dúcteis da alva e flavescente figura.
Certos caprichos que a dominavam, certos arrojos e aventuras, traziam-lhe mesmo afinidades selvagens: — em saltar aos vales, logo pela manhã, aos primeiros e luxuosos coloridos; em coroar-se de rosas agrestes, pelos prados, gárrula, trêfega, no aspecto bizarro, no movimento fugidio e arisco de pássaro airoso; na ousada graça montanhesa de subir a árvores frondejantes e dormir depois à sombra delas, livre, descuidadosa, na expansão vegetal dos campos, identificando-se larga e singularmente com todos os aromas e mistérios da Natureza.
E era surpreendente vê-la assim, transfiguradamente formosa, errando pelos vergéis, pelas campinas e vales, voando quase, na febre da luz e da paisagem verde que a impressionava, que a eletrizava, como se ocultas asas a levassem, a levassem, para sempre confundida e mergulhada nas eflorescências abundantes das louras, sazonadas searas.
E, por entre os giestais engrinaldados de flores amarelas, por entre a rubente coloração das papoulas, a espessura densa das folhagens glaucas, a gradação pinturesca da verdura e pela margem das lagoas e lagos prateados e sonolentos, à beira dos brejos e alagados, das fontes, cachoeiras e rios e ainda sob a tenda abrigadora dos tamarineiros e jambeiros perfumados, e ainda por entre as galhardas alacridades dos cravos, por entre os amargosos e acres rosmaninhos, era o encanto picante, o supremo êxtase ver como essa Ninfa branca das selvas corria, corria, toda resplandecida de sol, arrebatada através das seivas impetuosas, dos travorosos odores, dos bálsamos, das resinas, das cheirosas e vertiginosas emanações de todas as ervagens e plantas exuberadas, na fascinante volubilidade alígera de movimentos imprevistos de gamo, acusando ainda mais, fazendo ainda mais viver e cintilar, em luminosos relevos, no desalinho soberbo da corrida, a glória da carne branca, a pubescência maravilhosa das formas.
E essas seduções prófugas, essa timidez e melindre gracioso, junto às audácias e vivacidades másculas, às surpresas e revelações do seu borboletismo irrequieto, faziam meditar, em silêncio e melancolia, nos sigilos assinaladores, nos recônditos, secretos pudores, na recatada e ingênita malícia de alguma curiosa filha de lendário e poderoso gigante, viçada branca, sob o inflamado e fecundativo pólen do sol, na luxúria animal e verde das florestas.
E ela corria, corria, galgava as ribanceiras, transpunha pomares em fruto, sebes de madressilvas e acácias, e perdia-se, perdia-se fantasiosamente pelos infinitos estrelados de flores e de brilhos de todas aquelas amplas, sonoras, e prodigiosas regiões de virgindades campestres.
Errava um primitivo e saudoso sentimento de Criação paradisíaca sempre que ela irrompia através da vaga esmeralda das vinhas, do purpurejamento palpitante das rosas, entre as aves que abriam e batiam asas cantando em torno à sua esvelta e fascinadora cabeça d'ouro virgem.
Na solenidade épica dos vales, dos bosques, das colinas e campos, onde bois resignados e majestosos tocante e melancolicamente mugiam com os grandes olhos de um sentimento bíblico, espiritualizados por um suavíssimo luar de lágrimas de evangélica bondade, esse corpo branco de brancura olímpica de deusa — ode das odes vivas, Cântico dos Cânticos, Via-Láctea transfundida em carne — parecia ter a influência misteriosa de um silfo alado, parecia derramar, por aqueles horizontes augustos, o luar de imensos e voluptuosos pesadelos dos fenômenos infinitos da Germinação...
Era a estranha Visão florestal que, quando aparecia, como que tornava brancos todos os aspectos, fazendo a retina sentir, por efeito dos deslumbramentos e ampliações visuais, vastas miragens brancas, vertigens de cores brancas, perspectivas brancas, nuances brancas, tudo nevadamente aceso em fulguramentos e cambiantes brancos.
Nem o sol, com a sua clarinante chama flava, conseguira jamais empalidecer, dar tons de razão a essa brancura intacta, da inviolabilidade de tabernáculos, que parecia sempre repurificada nas origens das extremas lactescências, das neves inacessíveis, dos indeléveis florescimentos.
E essa incomparável brancura magnetizava os sentidos como eflúvios de óleos exóticos e místicos vaporosamente queimados...
Mas, as curvas esquisitas do seu perfil ágil, lépido, tentadoramente assinalado por fugitivos meneios animais e curiosos; o coleante movimento dos braços de lânguidas nervosidades de áspide; a dilatação sedenta das narinas acendidas numa aspiração de sorver os cheiros vitais das terras fundamente revolvidas e das ervas sumarentas e quentes; a gula farta da boca úmida num viço rubro, exalando lilás e trevo; as mornas e magas magnólias embriagantes dos seios; as finas e elíseas claridades azuis dos olhos, e, enfim, a candidez e brancura suave das pompas da carne virgem, despertariam nos temperamentos violentos, selvagens, anseios intensos, acordariam o gozo idiossincrático, não de desvirginá-la, de violá-la, na brutalidade feroz dos instintos, mas de a morder, de fazer sangrar à faca, com volúpia, com febricitante paixão, carne tão odorante, tão balsâmica, tão lirial e nevada, engolfando saciadoramente nela o aço fúlgido e rijo, rasgando-a com a lâmina acerada e aguda em talhos veementes, vivos, gritantes de sangue fresco e fumegante, escorrendo, gotejando rubinosos vinhos de aurora, toda ela flagrantemente aberta numa esdrúxula floração boreal.
E, então, toda, toda essa sexual magnificência, toda essa casta beleza, fazia extravagantemente despertar a lembrança, dava a impressão sugestiva, ao mesmo tempo profana e sagrada, da unção angélica, da encarnação humanada e miraculosa do alvo, tenro e meigo cordeiro imaculado, do lhano, doce e delicioso Anho branco original dos Ermos, para a efusiva Páscoa nova das transcendentes luxúrias...