Rio 10 de dezembro
Farewell! Farewell!... Adeus à corte, aos bailes, aos teatros! Adeus às belas noites do Rio de Janeiro; aos seus magníficos salões, aos seus brilhantes saraus!Até à volta! Chegou a época das viagens; é preciso partir.
A cidade vai ficando tão monótona e tão insípida, que já não há prazer em andar por aí a arruar, vendo sempre as mesmas ruas e as mesmas casas, algumas tristes e abandonadas, entregues ao gênio protetor dos lares domésticos.
A caminho, pois, meu amável leitor. Tomai o vosso bordão de tourista, o vosso saco de viagem, o vosso álbum de recordações; esquecei por alguns dias os negócios, esquecei as obrigações, esquecei tudo e segui-me. Viajaremos de companhia, iremos juntos procurar além novas impressões, outros cuidados.
Onde iremos? A Cantagalo, à Santa Cruz, à Nova Friburgo, ao Morro Queimado, a esses lugares onde o clima é doce e saudável, onde as águas são puras e cristalinas? Nada; vamos a Petrópolis, a terra das flores, a terra dos amores-perfeitos; vamos percorrer a Alemanha como sobre uma carta geográfica; vamos ver os nevoeiros da serra, os despenhadeiros das montanhas, e finalmente aquelas graciosas casinhas tão alvas e com suas janelinhas verdes, que se destacam aqui e ali pela beira do caminho, ou pela margem dos canais.
A barquinha de vapor corta ao largo resvalando docemente pela flor d'água, mas sem aquela excessiva velocidade que dá aos objetos um aspepainel magnífico iluminado pela esplêndida claridade dos raios do sol.
Aqui e ali aponta sobre todo aquele confuso e variado panorama da cidade a torre de alguma igreja ou a cruz singela de algum campanário, como para advertir ao viajante que do meio das saudades da pátria, da família, ou de algum ente que se idolatra, o pensamento deve erguer-se a Deus no momento da partida.
Ali, onde as vagas se desfazem em alvos flocos de espumas, estão as Feiticeiras, célebres na crônica do mundo elegante, pelo quase naufrágio do Guarani. Quantas feiticeiras não conheço eu mesmo em terra, que já produziram e são capazes de produzir ainda mais terríveis naufrágios! Há, porém, entre estas e aquelas, duas pequenas diferenças. A primeira é que em umas morre-se pela água, nas outras pelo fogo. A segunda diferença é muito mais curiosa. Nas feiticeiras do mar o Guarani salvou-se por ser um barco novo; nas feiticeiras de terra são justamente os barcos novos os que correm maior perigo.
Perdoai-me esta observação humorística, meu amável leitor e companheiro de viagem; prometo-vos que será a última. Abandonemos de uma vez, com os olhos e com o pensamento, esta cidade que já não tem encantos para nós. Quereis o belo sob outras formas, quereis a natureza da nossa terra em outros quadros? Lançai os olhos por este vasto estendal das ondas alisadas ao sopro acariciador da brisa; vede aqueles grupos de pequenas ilhas verdes e graciosas, que com a carreira da barca parecem que vão fugindo umas atrás das outras; vede as alvas praias de areia onde a vaga se espreguiça e murmura, ao longe os claros e escuros das encostas, e o vulto das montanhas que se debuxam no azul do céu.
Mas eis a ponte do desembarque que se alonga pela proa da barca; chegamos a Mauá. Saltemos, e, como o lugar não tem nada que ver, como as construções da Companhia ainda estão em princípio e não oferecem nada de curioso, tratemos já de tomar os nossos lugares no vagão, e preparemo-nos para a nova viagem, tendo o nosso bilhete em mão segundo o regulamento.
Deu o sinal. Lá vamos levados pelo monstro de fogo que se lança, rugindo como uma fera, vomitando fumo, devorando o espaço. Alexandre Dumas já o disse; o prazer da velocidade tem um gozo, uma voluptuosidade inexprimível. A primeira vez, porém, a novidade, o vago do desconhecido, destroem em parte aquele prazer, e produzem uma espécie de embriaguez de espírito, que de alguma maneira paralisa o pensamento. Não há idéia fixa, não há preocupação, por mais forte que seja, que resista a esse choque súbito de tantas emoções, a esse tumulto confuso das impressões que se sucedem rapidamente, que se aglomeram, se repelem e se destroem.
Depois de dezenove minutos desse vôo fantástico, desse sonho acordado, despertais repentinamente aos gritos do cocheiro e aos trancos de um dos incômodos carros da Companhia, que vos faz imediatamente lembrar dos passeios ao Catete. Resignai-vos como eu; e, se tendes alguma idéia favorita, alguma imagem suave, que vos ande a sorrir na mente, abri-lhe a vossa alma, e esquecei as misérias deste mundo. Quando mal pensardes, estareis no alto da serra.
Salve, louçã e faceira, Petrópolis! Salve, lindos chalés, casinhas campestres, montanhas, cascatas, canais! Como tudo isto é gracioso e simples; como a existência é doce e tranqüila nestes lugares aprazíveis e nesta convivência agradável da gente da terra! Que risonhas que são essas manhãs de cerração, que ao nascer do sol começam a desdobrar o seu véu branco, com toda a garridice e todo o disfarce de uma andaluza, quando entreabre a sua mantilha!
E contudo nunca Petrópolis esteve como agora entregue ao abandono e ao desleixo. O estado das ruas é péssimo; não se cuida da limpeza dos canais, e de outros melhoramentos urgentes. Ao passo, porém, que isto sucede, consome-se dinheiro em edificar uma capelinha no antigo hospital, que há muito se trata de remover. Compra-se um terreno para servir de matadouro público, e consente-se que um particular continue a cortar num açougue, infectando assim a principal rua da colônia - a Rua do Imperador.
Pelo menos, é isto o que dizem todos os habitantes de Petrópolis, cujo clamor é geral. Foi preciso que chegasse o tempo da viagem costumada de SS. MM. Para que se tratasse de melhorar os caminhos, e reparar algumas ruas que se acham em miserável estado e que oferecem pior trânsito do que a estrada da serra.
Enquanto o diretor da colônia não for obrigado a residir em Petrópolis, embora tenha boas intenções e grande atividade, não poderá prestar a devida atenção às necessidades do lugar, nem entregar-se completamente ao estudo dos objetos de sua competência. O governo devia tomar isto em consideração e regular melhor as obrigações da diretoria, ou então acabar com ela e substituí-la por outro qualquer meio de administração.
Entretanto, apesar do mau estado das ruas, meu leitor, se já não estais fatigado e não me abandonastes na viagem, vamos sair a passeio, e dar uma vista de olhos àquilo que nos parecer mais interessante e mais digno de atenção. Quereis ir ao Palacete, ver o jardim que se está concluindo? Quereis subir às colônias, e dar um giro a cavalo até a cascata de Itamarati? Ou preferis arruar sem destino, onde vos levar a fantasia?
Como quiserdes; mas, se estás disposto a seguir o meu conselho, não deixai de fazer uma visita aos dois colégios Kopke e Calógeras. O primeiro tem a grande vantagem de ser uma casa construída de propósito para o fim a que foi destinada, e reúne por conseguinte todas as condições econômicas e higiênicas. Assim, o que se nota logo neste estabelecimento é o asseio, a limpeza, a claridade dos aposentos, a facilidade com que o ar se renova nos dormitórios, e finalmente as cores sadias, o vigor, a boa disposição que mostram os colegiais. A par disto, a regularidade dos trabalhos, a acertada divisão das classes e a vigilância ativa do diretor, tornam este colégio muito útil para a educação não só dos meninos filhos da corte, como daqueles que vêm das províncias, e que por conseguinte ainda mais necessitam do clima saudável de Petrópolis.
No estudo das primeiras letras, o Sr.Kopke adotou o método do ensino repentino com algumas modificações, e tem tirado deles grandes vantagens. Nos outros ramos, os seus alunos apresentam igualmente muitos progressos; e quando observamos que, apesar do adiantamento geral dos alunos, eram justamente que, apesar do adiantamento geral dos alunos, eram justamente os meninos de menor idade os que respondiam com mais acerto e maior segurança, confirmamo-nos na idéia de que isto era devido ao sistema de estudo seguido pelo diretor.
O Colégio Calógeras é um estabelecimento montado em grande escala, mas cujo edifício não foi construído com a idéia de adapta-lo à instrução primária e secundária. Possui alguns professores muito hábeis, começando pelo seu diretor e proprietário. Sobre os seus trabalhos nada posso dizer, porque apenas corri o edifício, e em horas destinadas ao repouso dos alunos.
Já temos viajado muito; portanto montemos a cavalo, e desçamos a serra com as primeiras claridades do dia, quando o sol mal desponta entre os cabeços da montanha. Correi os olhos por essas quebradas da serrania, por essa névoa da manhã docemente esclarecida pela frouxa luz da aurora, e não tenhais receio que, como Horácio, os cuidados montem na garupa para seguir-vos: Post equitem sedit atra cura.
Quatro horas de caminho - e eis-nos de novo no Ri palestrar, estudar a qu meios de evitar a escassez dos gêneros alimentícios.
Se bem me lembro, o Sr. Marquês de Abrantes iniciou a sessão passada no senado um projeto a respeito de pescarias, que era em minha opinião um dos grandes recursos a lançar mão para o futuro. Cumpre que o governo e as câmeras tomem a peito aquele projeto, que vem satisfazer uma grande necessidade e produzir um benefício que de há muito se devia ter realizado.
Com estas medidas e outras tendências a favorecer a criação de gados, isentando-a dos direitos de passagem e de barreiras, é de esperar que o governo consiga prevenir essas faltas de gêneros alimentícios, que não se deviam dar num país novo, de grandes recursos, e extraordinariamente produtivo, como é o nosso.
Estes fatos, porém, servem de despertar ainda mais a nossa atenção para a colonização, para a navegação de grandes rios, principalmente do Amazonas, cujas várzeas imensas estão aí incultas, e encerram nas suas matas virgens um manancial de riquezas, que convém quanto antes ser explorado.
Ultimamente, um moço destemido, sem recursos, sem meios, que penetrou por estes ínvios sertões, e desceu o grande rio desde o Chile até o Pará, escreveu um itinerário de sua viagem, que provavelmente há de conter observações novas e de muito interesse. Este moço é o Sr. Dutra. 2.º tenente da nossa armada, e que os leitores já devem conhecer pelo curioso artigo que publicou sexta-feira no Jornal do Comércio a respeito das origens da língua tupi.
É de crer que o Sr. Dutra publique oportunamente o relatório de sua viagem, e então o nosso governo não deixará sem remuneração os serviços prestados por ele, durante essa longa travessia cheia de tantos perigos e de tantos incômodos, que só um homem de gênio empreendedor se animaria a tenta-la com os mesquinhos recursos pecuniários que tinha à sua disposição. São serviços deste quilate, quase espontâneos, que é mister gratificar generosamente, para excitar em nossa mocidade esse espírito de louvável ambição, que é o móvel das grandes empresas.
Porém, quando ainda convém estimular os nossos oficiais a empreender coisas desta ordem, de tanta utilidade para o pais, visto que não temos, como têm a França e a Inglaterra no Oriente, um campo vasto onde se está ilustrando o seu exército e a sua marinha, batendo-se com toda a galhardia contra o colosso inabalável do Império Russo.
Apesar, porém, de todos os seus esforços, Sebastopol, a sentinela avançada da Rússia, continua a resistir com firmeza. Os franceses e ingleses, que a princípio olhavam com desdém para essas massas de granito, cuja bruta resistência contavam vencer pela perícia de suas armas, viram de repente surgir de dentro das muralhas soldados em vez de homens indisciplinados, e conheceram no momento preciso que a defesa era digna do ataque.
Com efeito, quando marinheiros franceses, ao ler a ordem do dia do Almirante Hamelin - A França vos contempla - se arrojaram às muralhas e recusaram deixando mais de seiscentos mortos e feridos, é que a coisa era impossível, e que a Rússia, embora houvesse perdido a alma, defendia o seu corpo a todo transe.
Todas estas notícias, e muitos outros detalhes importantes a respeito das operações dos dois exércitos inimigos, vieram-nos pelo Severn, entrando quinta-feira. O Sr. Conselheiro Paulo Barbosa, que era esperado neste paquete, chegou dois dias depois num navio procedente do Havre. Tendo ido à Europa incumbido de uma missão importante pelo nosso governo, demorou-se para restabelecer a sua saúde gravemente alterada.
Sempre que um cidadão como o Sr. Paulo Barbosa volta à sua pátria, não são unicamente os seus amigos que têm motivos de felicitar-se, mas sim todo o país, todos aqueles que conhecem a honradez do seu caráter e a distinção de seu trato e de suas maneiras.
Como deveis estar fatigado da viagem que fizemos, e por conseguinte com muito pouca disposição para conversar, faço-vos os meus cumprimentos, meu caro leitor, até o próximo domingo, em que voltarei a fazer-vos a minha visita habitual. Good bye.