Obras completas de Castro Alves (1921)/Segundo Volume/Os Escravos/Ao Romper d’Alva
Pagina feia, que ao futuro narra
Dos homens de hoje a lassidão, a historia
Com pranto escripta, com suor sellada
Dos pariás miserrimos do mundo!...
Pagina feia, que eu não posso altivo
Romper, pisar-te, recalcar, punir-te!...
Sigo só caminhando serra acima,
E meu cavallo a galopar se anima
Aos bafos da manhã.
A alvorada se eleva do levante,
E, ao mirar na lagôa seu semblante,
Julga ver sua irmã.
As estrellas fugindo — aos nenuphares
Mandam rutilas perolas dos ares
De um desfeito collar.
No horizonte desvendam-se as collinas,
Sacode o veu de sonhos de neblinas
A terra ao despertar.
Tudo é luz, tudo aroma e murmurio,
A barba branca da cascata o rio
Faz orando tremer.
No descampado o cedro curva a frente,
Folhas e prece aos pés do Omnipotente
Manda a lufada erguer.
Terra de Santa Cruz, sublime verso
Da epopéa gigante do universo,
Da immensa creação,
Com tuas mattas, cyclópes de verdura,
Onde o jaguar, que passa na espessura,
Roja as folhas no chão,
Como és bella, soberba, livre, ousada!
Em tuas cordilheiras assentada
A liberdade está.
A purpura da bruma a ventania
Rasga, espedaça o sceptro que s’erguia
Do rijo piquiá.
Livre o tropeiro toca o lote e canta
A languida cantiga com que espanta
A saudade, a afflicção.
Solto o ponche, o cigarro fumegando
Lembra a serrana bella, que chorando
Deixou lá no sertão.
Livre como o tufão corre o vaqueiro
Pelos morros e vargea e taboleiro
Do intrincado sipó.
Que importa’os dedos da jurema aduncos?
A anta, ao vel-os, occulta-se nos juncos,
Voa a nuvem de pó.
Dentre a flor amarella das encostas
Mostra a testa luzida, as largas costas
No rio o jacaré.
Catadupas sem freios, vastas, grandes,
Sois a palavra livre d’esses Andes
Que além surgem de pé.
Mas o que vejo? E’ um sonho!... A barbaria
Erguer-se n’este seculo, á luz do dia,
Sem pejo se ostentar.
E a escravidão — nojento crocodilo
Da onda turva expulso lá do Nilo —
Vir aqui se abrigar!.
Oh! Deus! não ouves d’entre a immensa orchesta
Que a natureza virgem manda em festa
Soberba, senhoril,
Um grito que soluça afflicto, vivo,
O retinir dos ferros do captivo,
Um som discorde e vil?
Senhor, não deixes que se manche a tela
Onde traçaste a creação mais bella
De tua inspiração.
O sol de tua gloria foi toldado...
Teu poema da América manchado,
Manchou-o a escravidão.
Prantos de sangue — vagas escarlates —
Toldam teus rios — lubricos Euphrates —
Dos servos de Sião.
E as palmeiras se torcem torturadas,
Quando escutam dos morros nas quebradas
O grito de afflicção.
Oh! ver não posso este labéo maldito!
Quando dos livres ouvirei o grito?
Sim.. talvez amanhã.
Galopa, meu cavallo, serra acima,
Arranca-me a este sólo. Eia! te anima
Aos bafos da manhã.
Recife, 18 de Julho de 1865.