Fria aparição da meia-noite, o Luar seja contigo!
Tu vens da neve, das algidezes cruas da neve; e eu não sei bem se é a neve que te faz frio ou se és tu que fazes fria a neve.
Há, contudo, em ti, algum calor, que não é inteiramente a vida, mas que suaviza os punhalantes regelos da neve; que não é o sol da tua carne, a chama do teu corpo, mas um quente raio destrela, a estrela de teu olhar aceso como velas místicas no recolhido e sagrado santuário de uma Capela.
O luar seja contigo, seja contigo o luar emoliente e lascivo, este luar equatorial que não é dia nem noite, mas uma doce penumbra velada do sol do teu sorriso - como se sobre o sol do teu sorriso, para dulcificar a intensidade do foco da sua luz, quando tu eras astro inflamado, que ardias, força latente, matéria animada e pulsante, se houvesse colocado um transparente abat-jour verde, branco, azulado e amarelado, conforme é, às vezes, a refração luminosa da Lua.
Mas tu deveras aparecer-me, fria Visão da meia-noite, dentro de uma redoma de cristal, por entre um resplendor de lágrimas, para eu então poder assim crer no teu encanto, no teu mistério de meia-noite.
No entanto, aqui me aparece, metida em pelas de Astrakan, melancólica, pálida, vaporosa, livorescida quase, como aquelas belezas apagadas e tristes que vêm dos frígidos ares desolados do Norte.
Porque tu acabas de vir da Rússia agora, das fulgurantes estepes, da ostentação militar do Tzar de ferro, ouvindo os clamores da dinamite.
Vens das hirtas margens do Neva para os coruscantes fogos tropicais das terras da América. E chegas ainda virginal e pubescente para a irradiação angélica do Véu, para o simbolismo cândido da Grinalda de flores de laranjeira, para a bênção serena e perfumada do Noivado.
Chegas a tempo...
E se queres um noivo, se andas em busca de um noivo, aí tens, pois, o Luar, frio como essa natureza fria, e alvo, lirialmente alvo, como tu.
Aí tens o Luar...
Envolve-se à sua clâmide de linho, mergulha-te nos seus flocos de prata, ó meiga Eslava triste, meu desmaiado amor e heliotrópio branco dos sonhos, que aqui vieste findar eternamente a vida nessa nostálgica doença nervosa de melancolia que trouxeste do teu país polar, muito longe nos gelos, e que até te dá já a névoa densa, a espessa nuvem dolorosa das ilusões que se transformam em nuvens.
Vens para sempre extinguir-se sob esses tórridos mormaços, nessa doença histérica de que ninguém na tua pátria pôde de certo determinar a pugentíssima origem, e que não é mais, nada mais é, talvez do que a doença do clima, do spleen das tardes, das exaustas paisagens sem seiva; as displicências amargas à hora dos longos ocasos taciturnos, quando adormecidamente as campinas e as planícies incultas nevam e o horizonte é uma trespassante angústia crepuscular que desola...
Aí tens o Luar...
Cobre-te nessa musselina fúlgida, veste essa finíssima gaze diáfana...
Abre os primorosos olhos de Madona, castíssimos, chorosos e macerados, e absorve pelos cílios todo esse nosso fluido e luxuoso azul; e fecha depois esses teus primorosos olhos também azues...
Sorri ainda uma vez, como num supremo frêmito final de ave ferida no peito;agita amorosamente, languescidamente, numa poeirada douro, como na última noite de beijos da remota paixão que se foi, a loira e divina cabeça astral, leonina e doirada; tem um derradeiro estremecimento convulsivo e sonoro de cordas dharpa em todo o níveo corpo; cerra à música celeste, eucarística da voz para sempre os lábios, e, assim, nesse láteo nimbo seráfico da Lua, fica em êxtase, na doce, na infinita quimera misteriosa da Morte, numa leve graça idealizante e alada de vôo etéreo de querubins, como quem está dormindo ou como o sol que emperdeniu e gelou...
Fria Aparição da meia-noite, o Luar seja contigo!