Aqui há meses, quando impugnávamos a reforma policial, demonstrando que ela contravinha à Constituição Republicana, para estabelecer em permanência um regímen de exceção, respondeu-nos um dos nossos ilustres colegas, adepto do expediente:
Sem dúvida que as medidas aí contidas são excepcionais quanto à zona em que devem ser aplicadas; mas não é preciso dizer, porque está na consciência de todos, que excepcional é também a situação, a que chegou esta cidade.
Não recordamos esta circunstância, senão para mostrar a facilidade, com que nos achamos sempre inclinados a figurar situações excepcionais, para justificar todos os arbítrios do poder. Tratava-se, na hipótese, de meras dificuldades policiais, aliás criadas unicamente pela incapacidade, cada vez mais notória, da polícia fluminense; e tanto bastou, para que se considerasse legitimado o mais violento salto por sobre o nosso Direito Constitucional. Bem se pode avaliar, pois, que não seria de nós, com essa queda pelas leis de exceção, se lidássemos com uma crise política, um conflito de estado, uma situação que pusesse à prova, em face de perigos sérios, a firmeza da legalidade.
Aqui está o por que nos empenhamos em discutir o escândalo moral, que gerou em França a lei de circunstância. Se o que se discute, fora a criminalidade, ou inocência do infeliz condenado da ilha do Diabo, o caso teria apenas o interesse humano da simpatia por uma desventura imerecida. Mas, desde o princípio, a questão da culpabilidade ou inculpabilidade do réu está no segundo plano. No proscênio o que avulta, deixando trás si a questão individual e a questão francesa, o erro judiciário e o espetáculo da crueldade política, é a questão universal da santidade das formas do processo, das regras essenciais da defesa, das garantias impreteríveis da liberdade, violadas em circunstâncias monstruosas, a princípio com uma sentença de inquisição militar, depois com a substituição da competência legal por uma competência ad hoc em meio do processo.
Daí a nossa insistência em contrastear as praxes demagógicas do governo francês com a crítica liberal da opinião inglesa. Há todo um abismo nesse contraste entre os dois países, que a Mancha parece dividir apenas, por aquela estreita faixa argentina, áspero engaste da gema de Skakespeare, this precious stone set in the silver sea. Os gloriosos princípios de 1879 são, ainda hoje, exóticos em França. Eles fizeram a grandeza da sua grande revolução nos seus dias de filosofia e esperança. Mas eram transmarinos, e ainda agora não deitaram raízes além da tona no espírito nacional. Da outra parte do canal é que tinham nascido, havia séculos, muitos séculos, medrando sempre, através das vicissitudes da tirania régia e a tirania parlamentar, até constituírem, camada a camada, por uma série de estratificações como as da crosta do globo, a própria natureza da nacionalidade.
Dali, do granito florescente daquelas tradições, de onde borbotam os mananciais de todas as constituições modernas, de todas as formas livres do governo do gênero humano, essas idéias, essas sementes morais, transpuseram o Atlântico, e, depois de terem feito a América, impregnaram dos germens do direito a aluvião francesa no seu primeiro movimento, enquanto Mirabeau reinava, e não se olvidara Montesquieu. A que ponto se vieram a esquecer, com a autoridade deste, com o temperamento jurídico e britânico do seu ensino, os elementos de educação política esparsos na sua obra, acaba de evidenciá-lo a confusão de poderes, o acesso de onipotência legislativa, a ressurreição das tradições convencionalistas, cujo golpe de estado assentou o predomínio dos partidos sobre a justiça.
Cento e dez anos de revoluções e ditaduras não ensinaram a França a amar a liberdade e a justiça. O por que ela sobre todas as coisas estremece, é pelas suas paixões religiosas e pelas suas paixões militares. Quando um interesse político tem a fortuna de boiar numa dessas correntes; ou ambas elas confluem, como agora, a bem do mesmo tresvario, o século dezesseis ressurge inopinadamente no século dezenove, e a alucinação napoleônica em pleno ensaio republicano. A grande nação, amável, brilhante, generosa, rompe então de improviso a tênue vestidura das suas instituições e volta aos sofismas democráticos, aos sofismas patrióticos, aos sofismas da glória e da força.
Feliz dela se, no eclipse das suas melhores qualidades, o poder das outras a não despenha num desses precipícios tão freqüentes no curso da sua sorte. No caso atual, porém, tão estrondosas formas assumiu o repúdio do direito, que ainda entre as nações menos liberais da Europa constitucional levantou enérgicos protestos.