O Douro é bem carregado e triste! A sua corrente rapida, como que angustiada pelos agudos e escarpados rochedos que a comprimem, volve aguas turvas e mal assombradas. Nas suas ribas fragosas raras vezes podeis saudar um sol puro ao romper da alvorada, porque o rio cobre-se durante a noite com o seu manto de nevoas, e através desse manto a atmosphera embaciada faz cahir sobre a vossa cabeça os raios do sol semi-mortos, quasi como um frio reflexo de lua, ou como a luz sem calor de uma tocha distante. É depois de alto dia que esse ambiente, semelhante ao que rodeava os guerreiros de Ossian, vos desopprime os pulmões, onde muitas vezes tem depositado já os germens da morte. Então, se, trepando a um pinaculo das ribas, espraiaes os olhos para a banda do sertão, lá vêdes como uma serpente immensa e alvacenta, que se enrosca por entre as montanhas, e cujo colo esta por baixo de vossos pés: é o nevoeiro que se acama e dissolve sobre as aguas que o geraram. O horisonte até ahi turvo, limitado, indistincto, expande-se ao longe, contornêa-se dos cimos franjados das montanhas engastadas na cortina azul do horisonte, e a terra, a perder de vista, parece-nos um mar de verdura violentamente agitado; porque em desenhar as paizagens do Douro a natureza empregou um pincel semelhante ao de Miguel Angelo: foi robusta, solemne e profunda.

Como sobre um circo convertido em naumachia, o Porto ergue-se em amphitheatro sobre o esteiro do Douro, e reclina-se no seu leito de granito. Guardador de tres provincias, e tendo nas mãos as chaves dos haveres dellas, o seu aspecto é severo e altivo, como o de mordomo de casa abastada. Mas não o julgueis antes de o tractar familiarmente. Não façaes cabedal de certo modo aspero e rude que lhe haveis de notar; trazei-o á prova, e achar-lhe-heis um coração bom, generoso e leal. Rudeza e virtude são muitas vezes companheiras; e entre nós, degenerados netos do velho Portugal, talvez seja elle quem guarde ainda maior porção da desbaratada herança do antigo caracter portuguez no que tinha bom, que era muito, e no que tinha mau, que não passava de algumas demasias de orgulho.

Nos fins do seculo decimo-quarto o Porto ía ainda longe da sorte que o aguardava. O fermento da sua futura grandeza estava no caracter dos seus filhos, na sua situação e nas mudanças politicas e industriaes que depois sobrevieram em Portugal. Posto que nobre, e lembrado como origem do nome desta linhagem portugueza, os seus destinos eram humildes comparados com os da theocratica Braga, com os da cavalleirosa Coimbra, com os de Santarem a cortezan, com os de Evora a romana e monumental, com os de Lisboa, a mercadora, guerreira e turbulenta. Quem o visse coroado da sua cathedral, semi-arabe, semi-gothica, em voz de alcacer ameiado; soltoposta, em vez de o ser á torre de menagem, aos dous campanarios lisos, quadrangulares e macissos, tão differentes dos campanarios dos outros povos christãos, talvez porque entre nós os architectos arabes quieram deixar as almadenas das mesquitas estampadas como um ferrete da antiga servidão na face do templo dos nazarenos; quem assim visse o burgo episcopal do Porto, pendurado á roda da igreja, e defendido antes por anathemas sacerdotaes, que por engenhos de guerra, mal pensaria que desse burgo submisso nasceria um emporio de commercio, onde dentro de cinco seculos, mais que em nenhuma outra povoação do reino, a classe então fraca e não definida, a que chamavam burguezia, teria a consciencia da sua força e dos seus direitos, e daria a Portugal exemplos de um amor tenaz d’independencia e de liberdade.

A populosa e vasta cidade do Porto, que hoje se estende por mais de uma legua desde o Seminario até além de Miragaia, ou antes até a Foz, pela margem direita do rio, entranhando-se amplamente para o sertão, mostrava ainda nos fins do seculo decimo-quarto os elementos distinctos de que se compoz. Ao oriente o burgo do bispo, edificado pelo pendor do monte da sé, vinha morrer nas hortas, que cobriam todo o valle onde hoje estão lançadas a praça de D. Pedro e as ruas das Flores e de S. João, e que o separavam dos mosteiros de S. Domingos e de S. Francisco. Do poente a povoação de Miragaia, assentada ao redor da ermida de S. Pedro, trepava já para o lado do Olival, e vinha entestar pelo norte com o couto de Cedofeita, e pelo oriente com a villa ou burgo episcopal. A igreja, o municipio, e a monarchia entre esses limites pelejaram por seculos suas batalhas de predominio, até que triumphou a corôa. Então a linha que dividia as tres povoações desappareceu rapidamente debaixo dos fundamentos dos templos e dos palacios. O Porto constituiu-se a exemplo da unidade monarchica.

Era neste burgo ecclesiastico, nesta cidade nascente, que por um formoso dia de janeiro da era de Cesar de 1410 (1372) se viam varridas e cobertas de espadanas e flores as estreitas e tortuosas ruas que pela encosta do monte guiavam ao burgo primitivo fundado ou restaurado pelos gascões, se não mentem memorias remotas. [1] Na rua do Souto, já assim chamada, talvez pela vizinhança de algum bosque de castanheiros, [2] como principal entrada da povoação, andavam as danças judengas e folias mouriscas com musicas e trebelhos ou jogos, por entre o povo vestido de festa, o que era indicio evidente de que se esperava elrei, cuja vinda a qualquer povoação era o unico motivo legal para fazer dançar e foliar judeus e mouros, que de certo não folgavam com estes forçados e dispendiosos signaes de contentamento publico.

Com effeito uma numerosa e esplendida cavalgada viha da banda do bailiado de Leça, Elrei D. Fernando ajunctára em Santarem os seus ricos-homens e conselheiros: amestrado por Leonor Telles na arte de dissimular, recebêra com todas as mostras de boa-vontade o infante D. Diniz e Diogo Lopes Pacheco, ao qual, para maior disfarce, não escaceára mercês. [3] Depois em folgares e caçadas vagueára pelo reino com D. Leonor, até que em Eixo fizera um como manifesto da resolução que tomára de a receber por mulher, o que neste dia cumpríra na antiga igreja daquella celebre commenda dos Hospitalarios. Era, pois, para celebrar este matrimonio adultero, agourado pelas maldicções populares, que o bispo D. Affonso, menos escrupuloso que o povo de Lisboa ácerca de adulterios, vestia de festa o seu mui canonico burgo. [4]

A cavalgada, que se víra descer ao longo do valle, já atravessava o rio da villa pela ponte do Souto [5] e encaminhava-se para uma antiga porta da povoação primitiva, porta conhecida ainda hoje, como então, pelo nome de Vandoma. Ao lado direito d’elrei ia D. Leonor, a rainha de Portugal: elle montado em um cavallo de guerra; ella em um palafrem branco, levado de redea desde a entrada da ponte pelo infante D. João, que familiarmente falava e ria com a formosa cavalleira. Da banda esquerda o bispo D. Affonso, curvado e enfraquecido pela velhice, oscillava e fazia cortezias involuntarias a cada passada da mansissima e veneranda mula episcopal. Juncto ao velho prelado o infante D. Diniz caminhava em silencio, e no aspecto melancholico do mancebo se divisava que uma profunda tristeza lhe consumia o coração, vendo-se como atado ao carro triumphal da mulher que pouco a pouco se convertêra em sua irreconciliavel inimiga. Após estas principaes personagens via-se uma grande multidão de cavalleiros, clerigos, cortezãos, conselheiros, juizes da côrte, companhia esplendida, por entre a qual brilhava o ouro, a prata, e as variadas côres dos trajos de festa, que sobresaiam no chão negro das vestiduras roçagantes dos magistrados e clerigos. Adiante d’elrei as danças dos mouros e judeus volteavam rapidas ao som da viola ou alaude arabe, das trombetas e das soalhas. Segundo o antigo uso seguiam-se ás danças córos de donzellas burguezas, que celebravam cora seus cantos o amor e a ventura dos noivos. [6]

Mas esse canto tinha o que quer que era triste na toada. Triste era tambem o aspecto dos populares, que sem um só grito de regosijo se apinhava para vêr passar aquelle prestito real. Mil olhos se cravavam no infante D. Diniz, cujo rosto melanclholico revelava que os seus pensamentos eram accordes com os do povo, que por toda a parte não via neste consorcio senão um crime e uma fonte de desventuras. Os cortezãos, porém, fingiam não perceber o que passava á roda delles, e pareciam transbordar de alegria. Muitos eram daquelles que mais contrarios haviam sido aos amores d’elrei, mas que vendo emfim D. Leonor rainha, voltavam-se para o sol que nascia, e calculavam já quantas terras, e que somma de direitos reaes lhes poderia render da parte de um rei prodigo a sua mudança de opinião.

Entre elles não se via o tenaz e astuto Pacheco. Habituado ao tracto da côrte por largos annos, experimentado em todos os enredos dos paços, habil em traduzir sorrisos e gestos, palavras avulsas e discursos fingidos, não tardára em perceber que as mercês e agrados d’elrei e de D. Leonor encobriam intentos de irrevogavel vingança. Conhecendo que a sedição popular fôra inutil, e que, ainda renovada com mais furia, não poderia resistir ás armas de D. Fernando, havia-se affastado da côrte, e posto que só nos fins desse anno elle passasse a servir o seu antigo protector e amigo D. Henrique de Castella, buscára entretanto esquivar-se ao odio da nova rainha, conservando ao mesmo tempo a boa opinião entre o vulgo.

Abandonado assim do seu guia, o infante D. Diniz soffrêra resignado um successo que não podia embargar; mas, digno filho de D. Pedro, conservára intacta a sua má vontade a D. Leonor. Abandonado dos seus parciaes, vendo, se não trahida, ao menos quasi morta, e inactiva a alliança de Pacheco, e, para maior desalento, seu irmão mais velho o infante D. João ligado com essa mulher, da qual este principe mal pensava então lhe viria a ultima ruina; no meio de tanto desamparo, o infante, a principio timido e irresoluto, sentira crescer a ousadia com os perigos; sentíra girar-lhe nas veías o sangue paterno. Obrigado a seguir a corte, nunca D. Leonor achára um sorriso nos seus labios; nunca o víra conter diante della um só signal de despreso. Assim a colera d’elrei contra seu irmão havia chegado ao maior auge, e os calculos de fria e paciente vingança estavam resolvidos no animo de Leonor Telles.

A cavalgada tinha subido a encosta, atravessado a porta de Vandoma, que em parte ainda subsiste, e passado em frente da sé, juncto da qual se dilatavam os paços episcopaes. Ahi as danças e folias pararam e fizeram por um momento silencio: então o infante D. João, tomando nos braços a formosa rainha, apeou-a do palafrem: após ella elrei saltou ligeiro do seu fogoso e agigantado ginete. Dentro em pouco toda a comitiva tinha desapparecido no profundo portal dos paços, e os donzeís conduziam os elegantes cavallos, as mulas inquietas e os mansos palafrens para as vastas e bem providas cavallariças do mui devoto e poderoso prelado da antiga Festabole. [7]

O aposento principal dos paços, quadra vasta e grandiosa, estava de antemão ornado para receber os hospedes reaes do velho bispo D. Affonso. Um throno com dous assentos de espaldas indicava que a elle ia subir tambem uma rainha. D. Leonor entrou seguida das cuvilheiras e donzellas da sua camara; elrei de todos os principaes cavalleiros. Viam-se entre estes o alferes-mór Ayras Gomes da Silva, ancião veneravel, que fôra seu aio, o orgulhoso mordomo-mór D. João Affonso Tello, Gil Vasques de Resende, aio do infante D. Diniz, o prior do hospital Alvaro Gonçalves Pereira, e muitos outros fidalgos que ou seguiam a còrte, ou tinham vindo assistir ás bodas reaes.

Guiada por D. Fernando, Leonor Telles subiu com passo firme os degraus do throno. Como o navegante, que, affrontando temporaes desfeitos por mares incognitos e aparcellados, e chegando ao porto longinquo, quasi que não crê pisar a terra de seus desejos, assim esta mulher ambiciosa e audaz parecia duvidar da realidade da sua elevação. A alma sorria-lhe a míl esperanças; a vida trasbordava nella. A seu lado um rei, a seus pés um reino! Era mais que embriaguez; era delirio. Ella sentia um novo affecto, um como desejo de perdão aos seus inimigos! Tremeu de si mesma, e convocando todas as forças do coração, salvou a sua ferocidade hypocrita, que parecia querer abandona-la. Era severo o seu aspecto quando esses pensamentos estranhos lhe passaram pelo espirito; mas o sorriso tornou a espraiar-se-lhe no rosto, quando o instincto de tigre pôde faze-la triumphar desse momento em que a generosidade costuma accommetter com violencia as almas vingativas e ferozes, o momento em que se realisa a summa ventura por largo tempo sonhada.

Do alto do throno e em pé, D. Fernando estendeu a mão: o tropel de cortezâos e cavalleiros, de donas e donzellas formaram aos lados da espaçosa sala fileiras esplendidas, immoveis e silenciosas: elrei volveu olhos lentos para um e outro lado, e disse:

“Ricos-homens, infançôes, e cavalleiros de Portugal, um dos mais nobres sacramentos que Deus neste mundo ordenou foi o matrimonio: como para os outros homens, para os reis se instituiu elle; porque por elle as corôas se perpetuam na linhagem real. É por isso que eu desposei hoje a mui illustre D. Leonor, filha de D. Affonso Tello, descendente dos antigos reis, e ligada com os mais nobres d’entre vós pelo divido do sangue. Assim a rainha de Portugal será mais um laço que vos una a mim como parentes, que de hoje ávante sois meus. Leaes como tendes sido a vosso rei pelo preito que lhe fizestes, muito mais o sereis por este novo titulo. Em que pez a traidores, D. Leonor Telles é minha mulher! Fidalgos portuguezes, beijae a mão á vossa rainha.” [8]

O velho alferes-mór Ayras Gomes aproximou-se então do throno á voz do seu moço pupillo; ajoelhou e beijou a mão a D. Leonor; mas o olhar que lançou para elrei era como o de pedagogo que de mau humor se accommoda ao capricho infantil de um principe. Ao volver d’olhos do ancião, D. Fernando córou e voltou o rosto.

O infante D. João, porém, dobrando o joelho aos pés da formosa rainha, parecia trasbordar de alegria: contemplando-o Leonor Telles deixou assomar aos labios um daquelles ambiguos e quasi imperceptiveis sorrisos que, vindos della, sempre tinham uma significação profunda. Por ventura que no infante D. João ella já não via mais que o precursor da humilhação de D. Diniz, do seu capital inimigo.

Após o infante os fidalgos vieram successivamente curvar-se ante D. Leonor. Boa parte delles eram como os capitães vencidos seguindo ao capitolio um triumphador romano. Podia-se com effeito dizer que, mau-grado desses que se rojavam a seus pés, ella conquistára o throno.

Toda a comprida fileira de nobres e officiaes da corôa tinha passado e ajoelhado no estrado real. Faltava um; e era este, que, menosprezando tantas frontes illustres por valor ou sciencia, por fidalguia ou riqueza, inclinadas perante ella, a mulher orgulhosa e implacavel esperava, cogitando no momento em que o mancebo ainda impubere, sem renome, sem poderio, celebre só por seu berço e pelo desgraçado drama da morte de D. Ignez, viesse tributar homenagem á que representava um papel analogo ao daquella desventurada, salvo na sinceridade do amor e na innocencia da vida.

Mas esse para quem D. Leonor mais de uma vez volvêra rapidamente os olhos, considerava com os braços cruzados aquelle espectáculo em perfeita immobilidade, de que unicamente saíra quando Gil Vasques de Resende, que estava a seu lado, se affastára, caminhando para os degraus do estrado. O mancebo apertára a mão do idoso aio, trémula da idade, com a mão ainda mais trémula de colera. Na conta de pae o tinha; venerava-o como filho, e a idéa de o vêr prostituir os seus cabellos brancos aos pés de uma adultera o levára a esse movimento involuntario; involuntario, porque elle, naquella postura e naquella hora, não fazia mais que colligir todas as forças da alma para salvar a honra do nome de seus avós, do nome dos reis portugueses, esquecida por um de seus irmãos, e talvez mercadejada por outro em troco de valimento infame. O velho entendeu o que significava este convulso apertar de mão: duas lagrymas lhe cahiram pelas faces; mas obedeceu a elrei.

Só faltava D. Diniz, que continuára a ficar immovel. Houve um momento de silencio sepulchral na vasta sala, e este silencio era para todos indefinido, mas terrivel.

D. Fernando poz-se a olhar fito para seu irmão, enleiado, ao que parecia, em scismar profundo.

Pouco a pouco todos os fidalgos que povoavam aquella immensa quadra se poderiam crer petrificados como as columnas gothicas, que sustinham as voltas ponteagudas do tecto, se não fosse o respirar anciado e rapido que lhes fazia ranger sobre os peitos e hombros os seus ricos briaes. [9]

Os labios d’elrei tremeram, como a superficie do mar encrespada pela leve e repentina aragem que precede immediatamente o tufão. Depois entreabrindo-os, com os dentes cerrados, murmurou:

“Infante D. Diniz, beijae a mão á vossa rainha!”

Foi um só o volver de todos os olhos para o moço infante: o sussurro das respirações cessára.

D. Diniz não respondeu; encaminhou-se para o meio do aposento: parou defronte do throno, e olhando em redor de si, perguntou com sorriso de amargo escarneo:

“Onde está aqui a rainha de Portugal?”

“Infante D. Diniz!—­disse elrei, cujo rosto o furor mal reprimido demudára.—­Soffredor e bom irmão tenho sido por largo tempo: não queiraes que seja hoje só juiz inflexível do filho querido daquelle que tambem me gerou! Infante D. Diniz! beijae a mão da mui nobre e virtuosa D. Leonor Telles, como fez vosso irmão mais velho, de quem devereis haver vergonha.” [10]

“Nunca um neto do D. Affonso do Salado—­replicou o infante com apparenle tranquillidade—­beijará a mão da que elrei seu irmào e senhor quer chamar rainha. Nunca D. Diniz de Portugal beijará a mão da mulher de João Lourenço da Cunha. Primeiro ella descera desse throno e virá ajoelhar a meus pés; que de reis venho eu, não ella.”

“De joelhos, dom traidor!—­gritou D. Fernando, pondo-se em pé e descendo dous degraus do estrado.—­De joelhos, vil parceiro de reveis sandeus! Se a taberna de Folco Taca vos ouviu fazer preito infame aos peões de Lisboa, quebra-lo-heis diante de vosso rei: quebra-lo-heis, que vo-lo digo eu!”

D. Diniz viu então que todos seus passos estavam descobertos: achava-se por isso â borda de um abysmo. Hesitou um momento; mas lembrou-se de que era neto do heroe do Salado, e precipitou-se na voragem.

“Vil é a mulher barregan e adultera, e essa é ambas as cousas. Traidor seria um rei de Portugal que assentasse o adulterio no throno, e vós o fizestes, rei deshonrado e maldicto de vosso Deus e do vosso povo! Quem neste logar é o vil e o traidor?”

O infante, acabando de proferir estas palavras, abaixou a cabeça e deixou descahir os braços. Elle bem sabia que se seguia o morrer.

Apenas elrei se alevantára, D. Leonor, cujas faces se haviam tingido da amarellidào da morte, tinha-se erguido tambem. Naquelle rosto, semelhante ao de uma estatua de sepulchro, apenas se conhecia o viver no profundar, cada vez maior, das duas rugas frontaes que se lhe vinham junctar entre os sobr’ olhos.

Ouvindo as derradeiras e fulminantes palavras de D. Diniz, elrei soltára um destes rugidos de desesperação e colera humana, que nem o rugido da mais brava fera póde igualar; grito de ventriloquo, que é como o estridor de todas os fibras do coração que se despedaçam a um tempo; gemido como o do rodado ao primeiro gyro do instrumento do supplicio; rugido, grito, gemido, conglobados n’um só hiato, fundidos n’um som unico pela raiva, pelo odio, pela angustia: brado que só terá eccho pleno no bramido que ha-de soltar o reprobo quando no derradeiro juízo o julgador dos mundos lhe disser:—­para ti as penas eternas.

O brado de D. Fernando fizera tremer os mais esforçados cavalleiros que se achavam presentes: o movimento que o seguiu fez gelar o sangue em todas as veias.

Como um relampago elle tinha arrancado da cincta o agudo bulhâo, e com os olhos desvairados encaminhava-se para o meio da sala, onde seu irmâo o esperara immovel, com a mâo sobre o peito, como se dissesse: aqui!

Mas D. Fernando nâo pôde offerecer nas aras do adulterio um fratricidio: uma barreira se tinha alevantado a seus pés. Era um velho de fronte calva, e de longas melenas brancas e desbastadas pelos annos: era aquelle que lhe fôra mais que pae, e que elle respeitava mais que a memória deste: era o seu alferes-mór, o venerável Ayras Gomes, que ajoelhado lhe clamava com vozes truncadas de soluços e lagrimas:

“Senhor! que é vosso irmão!”

“É um covarde traidor, que deve morrer! Irmão!? Mentes, velho! Elle já não o é!”

Á palavra—­mentes!—­um relampago de vermelhidão passou pelas faces cavadas do antigo cavalleiro: abaixou os olhos, e correu-os pela espada. Fôra esta a primeira vez que ella ficára na bainha depois de tão funda affronta. Mas aquelle era o momento dos grandes sacrificios. Ayras Gomes replicou, alimpando as lagrymas:

“Nunca vos menti, senhor, nem quando ereis na puericia, nem depois que sois meu rei. Sabei-lo. Criminoso ou innocente, D. Diniz é filho de meu bom senhor D. Pedro. A vosso pae servi com lealdade; por vós já me andou arriscada a vida. Hoje tendes por defensores todos os cavalleiros de Portugal: elle é que não tem um só. Senhor rei, ficae certo de que para assassinar vosso irmão vos é mister passar por cima do cadaver de vosso segundo pae.”

Atalhado assim o primeiro impeto, o caracter do moço monarcha revelou-se inteiro neste momento. Commoveu-o a postura do venerando ancião, que pela primeira vez via a seus pés; e com a irresolução pintada nos olhos fitou-os em Leonor Telles.

Por uma reflexão instantânea a hyena previra que o sangue derramado pelo fratricida não cahiria sómente sobre a cabeça deste, mas também sobre a della. Naquelle rosto, então semelhante ao de uma estatua, D. Fernando não pôde ler a sentença do infante, bem que lá no fundo do coração ella estivesse escripta com sangue.

Entretanto os cortezãos, que no furor rompente d’elrei haviam ficado estupefactos e quedos, vendo-o vacillar, rodearam o infante. O velho Gil Vasques de Resende, que ia interpor-se também entre D. Diniz e elrei, quando este arrancára o punhal, parára ao ver a heróica resolução do alferes-mór; mas ao hesitar de D. Fernando corrêra a abraçar-se com o seu pupillo, que, no meio de tantos animos agitados por paixões diversas, era quem unicamente parecia tranquillo e alheio ao terror que se pintava em todos os semblantes.

Finalmente elrei metteu vagarosamente o punhal no cincto, e com voz pausada, mas trémula e presa, disse:

“Que esse malaventurado sáia d’ante mim.”

O tom com que estas poucas palavras foram proferidas fez vergar o animo de D. Diniz, cujo coração antes d’isso parecêra de bronze. Os olhos arrasaram-se-lhe de agua. Sentira que até então era uma cólera cega, repentina, insensata, que o ameaçava: agora, porém, no modo e na expressão de D. Fernando vira claramente que era um amor de irmão que expirára.

Com a cabeça pendida em cima do hombro de Gil Vasques de Resende saiu do aposento.

Era talvez o velho o unico amigo que lhe restava no mundo.

D. Leonor levou ambas as mãos ao rosto, e via-se-lhe arquejar o collo formoso por mal contido suspiro.

“Coração compadecido e generoso!—­pensou lá comsigo o alferes-mór, que havia pouco a tractára pela primeira vez.

“Hora maldicta e negra, em que perdi metade de minha tão esperada vingança!—­pensava Leonor Telles, e o chôro rebentou-lhe com violencia.

“Não te afllijas, Leonor:—­disse D. Fernando, apertando-a ao peito.—­Que nunca mais eu o veja, e viva, se podér, em paz!”

Mas as lagrymas correram ainda com mais abundancia e amargura.

O resto daquelle dia foi triste: triste o banquete e o sarau. A atmosphera em que respirava a nova rainha tinha o que quer que era pesado e mortal, que resfriava todos os corações.

Á meia noite, por um claro luar de ceo limpo de inverno, uma barca subia com difficuldade a corrente rapida do Douro: à pôpa viam-se reluzir, nas toucas e mantos negros de dous cavalleiros que ahi iam assentados, as orlas e bordaduras de ouro e prata: um dos remeiros cantava ama cantiga melancholica, a que respondia o companheiro, e dizia assim:


Mortos me sào padre e madre:
Eu tamanino fiquei.
Irmãos meus mal me quizeram:
Eu mal não lhes quererei.

Vou-me correr esse mundo:
Sabe Deus se o correrei!
A alma deixo-a cá presa;
O corpo só levarei.

De meus avós nos solares
Nasci: dous dias passei:
Meus irmãos, nada vos tenho,
Senão o nome que herdei.

Esta cantiga, cuja toada monotona repercutia nos rocbedos aprumados das margens, foi interrompida por um doloroso suspiro. Um dos cavalleiros o déra.

Os remeiros calaram-se: arrancaram da voga com mais ancia, e depois continuaram:


Se fui rico, ora sou pobre:
Choro hoje, se já folguei:
Villas troquei por desvios:
Muito fui: nada serei.

Sem padre, madre, ou irmãos,
A quem me soccorrerei?
A ti, meu Senhor Jesus:
Senhor Jesus me accorrei!

Um gemido mnis angustiado, que saíu involto em soluços, cortou de novo a cantiga: era do mesmo que já a interrompêra. O seu companheiro bradou aos barqueiros com a voz trémula e cansada de um ancião:

“Calae-vos ahi com vossas trovas maldictas!”

Os remeiros vogaram em silencio; mas pensaram lá comsigo que muito damnadas deviam ser as almas de cavalleiros que assim maldiziam tão devoto trovar.

Repararam, porém, que dos dous desconhecidos, o que suspirára e gemêra lançára os braços ao pescoço do que falára, e que este, affagando-o, lhe dizia:

“Quando todos, senhor, vos abandonarem não vos abandonarei eu; que o devo ao amor com que vos creei, e á esclarecida e sancta memoria de vosso virtuoso pae.”

Então os barqueiros, bem que rudes, desconfiaram de que podia muito bem ser que não fossem duas almas damnadas aquellas, mas sim malaventuradas.


  1. Conde D. Pedro, tit. dos Viegas. Cunha, Cat. dos Bispos do Porto, part. 1.ª pag. 15.
  2. E fezerom mui ápressa hua grande praça ante S. Domingos e a rua do Souto, que era entom todo ortas. F. Lopes, Chr. de D. João I, P. 2. c. 96.—­Isto era poucos annos depois da epocha de que vamos falando.
  3. A 25 de setembro de 1371, em Santarem, fez elrei mercê a Diogo Lopes Pacheco da terra de Trancoso para que a haja e tenha em pagamento da sua quantia. Chancell d’elrei D. Fernando L. l. f. 84.
  4. Este bispo D. Affonso era ainda o mesmo a quem elrei D. Pedro, dizem, quizera açoutar por sua própria mão em consequencia de elle haver commettido adulterio com a mulher de um honrado cidadão, historia miudamente narrada por Fernão Lopes chronica daquelle rei, e que nós não sabemos dizer até que ponto seja verdadeira. D. Rodrigo da Cunha, suppõe que o bispo, corrido desta aventura, escandalosa não pelo delicto, trivialissimo no clero daquelle tempo, mas pelo ameaçado castigo, cousa inaudita antes e depois de D. Pedro, saíra do bispado e nunca mais voltára ao Porto, posto que ainda vivesse pelo menos até maio de 1732, como se vê do catalogo chronologico dos bispos portuguezes, por J. P. Ribeiro. Esta opinião, que assenta n’um argumento negativo—­a falta de noticias desse prelado nos documentos consultados por D. Rodrigo da Cunha, posteriores aos eminentes açoutes—­é desmentida pelo testemunho de Fernão Lopes, no cap. 49 da chronica de D. Fernando, que fez presente D. Affonso á renovação das pazes d’Alcoutim, juradas no Porto em 1371. É por isso que, apesar de Cunha, nos pareceu natural fazer abençoar por um bispo, que se pinta como manchado de adulterio, um casamento adultero.
  5. Sobre esta antiga topographia vejam-se as inquirições dos annos de 1268 e 1348 nas Memorias das Inquirições pag. 45 nota 2, e Dissert. Chr. e Crit. tom. 5.º pag. 292 e segg.
  6. Ácerca de semelhante usança veja-se F. Lopes. Chr. de D. João I, P. 2ª c. 96.
  7. Na supposta divisão dos bispados, attribuida ao rei Godo Wamba, dá-se ao Porto o nome de Festabole.
  8. Em grande parte extrahido quasi textualmente da Carta d’Arrhas de Leonor Telles, datada de Eixo aos 5 de Janeiro de era de 1410 (1372).
  9. O brial era uma especie de camisola que os cavalleiros vestiam sobre as armas, e por cima da qual apertaram o cincto da espada. Tambem o vestiam sobre os pannos interiores quando andavam desarmados. O seu uso durou por toda a idade media, e era ainda lembrado nos fins do seculo decimo-sexto, em que o auctor, ou traductor, do Palmeirim d’Inglaterra tantas vezes o menciona. Nas leis sumptuarias de Alfonso IV não se tracta é verdade de tal vestido; mas a razão d’isso é obvia: o brial era trajo militar, e aquellas leis versam sobre o vestuario civil. Na ordenação affonsina L. 1.°, til. 63, § 21, se manda cingir a espada ao movel sobre o brial. O diccionario de Moraes affirma que o brial era o manto dos cavalleiros: é um dos bastos destemperos daquella babel da lingua portugueza. Eis o que diz o auctor do poema do Cid, escripto no meiado do seculo decimo-segundo, falando no brial. (Sanches Pocs. Cast. ant. al siglo 15.° t. 1.° pag. 347.)


     Vistió camisu de ranzal tan blanca como el sol
     . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
     . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
     Sobre ella un brial primo de ciclaton
     . . . . . . . . . . . . . .
     Sobre esto una piel bermeia . . . . . . .
     . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
     . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
     . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
     De suso cubrió un manto que es de grant valor.

  10. Dizendo elrei sanhudamente coulra elle: “Que non avia vergonça nenhuuma, beijarem a mão aa Rainha sua molher o Infante Dom Joham, que era moor que elle, e isso mesmo seu irmaão, e todollos outros lidallgos do reino, e el soomente dizer que lha nom beijaria, mas que lha beijasse ella a elle.” Fern. Lopes, Chr. d’elrei D. Fern cap. 62.