Artigo de Euclides da Cunha de 13 de agosto de 1897

Bahia, 13 de agosto.

Ontem, na cidade Baixa, ao atravessar em passeio uma rua, o general Savaget teve bruscamente tolhida a sua marcha cautelosa de convalescente.

Um cidadão qualquer reconheceu-o e pronunciou-lhe o nome, e, célere como um relâmpago, este nome imortal abrangeu num momento aquela zona comercial da cidade.

Estacaram, de súbito, negociantes que seguiam — passos estugados, azafamados, ruminando cifras, arquitetando transações — caminho dos bancos e da Bolsa; paralisou-se durante alguns minutos a movimentação complicadíssima de um mercado enorme e num dia comum, de trabalho, abriu-se repentinamente, como um parêntesis, vibrante e festivo, um quarto de hora de verdadeira festa nacional.

A linguagem seca dos telegramas transmitiu para aí o fato, mas não o pode definir.

O velho combatente, que reviveu em Cocorobó o heroísmo lendário de Leônidas, teve, talvez, a mais bela consagração da sua glória imperecível.

Compreende-se a majestade do triunfo dos heróis que chegam, longamente esperados, entrando nas cidades ornamentadas, sob arcos triunfais artisticamente constituídos, emergindo aureolados do seio de um povo que veio à praça pública com o propósito, a intenção preestabelecida de saudá-los ardentemente.

Forra-se, porém, à compreensão vulgar, a cena extraordinária dessa ovação planeada num segundo, sem bandas marciais, sem hinos vibrantes, sem estandartes multicores palpitando nos ares, sem chefes, sem a mise-en-scène banal de sarrafos pintados,— feita repentinamente, ao acaso, no ângulo de uma rua e fundindo as almas todas em um brado único de admiração, surgindo de chofre e surpreendendo mais aos manifestantes do que ao vitoriado.

E num bairro exclusivamente comercial, explodindo de dentro da frieza calculista e sistemática do egoísmo humano…

Como verdadeiro herói, vencido pela expansão afetiva dos corações, fragílimo ante as saudações carinhosas,

De verre pour gemir, d'airain pour resister,

o velho lidador que atravessava, sob um chuveiro de balas as gargantas das Termópilas do sertão, animando com um sorriso perene o soldado, — comoveu-se profundamente.

Este fato, altamente expressivo, deve ser memorado; o povo aquilata com instinto admirável o valor desses homens e não erra nunca.


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Eu conhecia de há muito, irradiando da história, definida em páginas notáveis, essa modéstia característica dos valentes e dos fortes.

Vi-a de perto, agora, ao visitar o general Savaget e o coronel Carlos Teles.

Encontrei este último no quartel da Palma.

Almoçava, rodeado de amigos, convalescente ainda de dois ferimentos, tendo sobre os ombros o pala riograndense, veste tradicional e inseparável do soldado do sul.

Afeito, de há muito, como testemunha das mais agitadas quadras da existência da República, a presenciar afogueadas expansões de bravura em que os valentes se revestem de uma feição teatral, que é como o — charlatanismo da coragem — assombrou-me a placidez modesta de um homem, cujo nome é, hoje, na boca do nosso soldado, a palavra sagrada da vitória.

Inquiriu-me, solícito, pelos parentes ausentes, e ao referir-se depois, respondendo a perguntas dos circunstantes, nos episódios capitais da guerra, observei a preocupação de ocultar os próprios feitos, anulando-se voluntariamente, pelo patentear exclusivo de alheios rasgos de bravura.

Por outro lado, quem visitasse o general Savaget, no forte da Jequitaia, procurando o chefe impávido da 2ª coluna e prefigurando uma feição expressiva e enérgica de lidador estrênuo, teria positivamente uma decepção, ante um homem de aspecto modesto e digno, conversando calmo, com uma dicção corretíssima e gestos comedidos, revestido de uma adorável placidez burguesa, de todo contrastando ao renome guerreiro que o circunde.

Ao despedir-me, em íntima evocação de antiquissima leitura, iluminou-me o pensamento a frase de French ao deixar John Stirling: senti-me de algum modo enobrecido e elevado a uma esfera superior àquela em que de ordinário nos deixamos voluntariamente ficar.

E depois disto sinto uma piedade estranha pelos bravos — e são tantos em toda a parte! — que fervilham em todos os lugares, de postura desempenada como se vestissem fardas sob espartilhos justos — de olhar dominador e gestos sacudidos — espantando a burguesia tímida com o relatar de estrepitosas façanhas, arrastando estridulamente, retinindo nas pedras das calçadas, os gladios cintilantes...