CANSANÇÃO — Aqui chegamos às 9 horas da manhã — esplêndida manhã! — caminhando duas léguas a partir do Tanquinho. Cansanção, felizmente, já merece o nome de povoado. Tem onze casas, algumas cobertas de telhas, e um armazém paupérrimo no qual entramos com a mesma satisfacção com que aí se penetra no Pregredior. Sentimo-nos deslumbrados ante as prateleiras toscas e desguarnecidas.
A povoação erige-se numa mancha de terreno argiloso — largo hiato no deserto de grez que a rodeia; e tem uma feição ridente erguida numa breve colina de onde se descortinam horizontes indefenidos. Nem uma elevação regular, porém, perturba a monotonia de um solo chato — sucessão ininterrupta de taboleiros imensos.
A população, membros de uma só familia, vivendo sob um regime patriarchal e primitivo, recebeu-nos numa quase ovação — capitaneada pelo chefe, o velho Gomes Buraqueira, que apesar dos oitenta esses bem contados alevantou, por três vezes, num amplexo formidável, a um metro de altura, o coronel Callado.
Dez frades franciscanos, alemães, ainda em moços, aqui estão com o intuito nobilíssimo de cuidar dos feridos que não possam vingar a distância do Monte Santo a Queimadas. Vieram convidar ao ministro e a todos para assistirem à missa. Assistimos.
Há quantos anos tenho eu passado indiferente, nas cidades ricas, pelas opulentas "catedrais da cruz"...
E assisti à missa numa saleta modesta, tendo aos cantos espingardas, cinturões e cantis e um selim suspenso no teto — servindo uma mesa tosca de altar e estando nove décimos dos crentes fora, na rua, ajoelhados. E ajoelhei-me quando todos se ajoelharam e bati, como todos, no peito, murmurando como os crentes o mea culpa consagrado.
Não me apedrejeis, companheiros de impiedade; poupai-me livres pensadores, iconoclastas ferozes! Violento e inamolgável na luta franca das idéias, firmemente abroquelado na única filosofia que merece tal nome, eu não menti às minhas crenças e não trai a nossa fé, transigindo com a rude sinceridade do filho do sertão...
Depois da ceremônia — passeiamos pelos arredores e saciamos largamente a sêde, agravada por um churrasco magnífico de novilho sadio, morto e assado em menos de uma hora.
Dentro de uma hora (são duas horas da tarde) reataremos a marcha devendo chegar hoje mesmo a Quirimquinquá.
Consulto o meu aneróide; altura sobre o nivel do mar 395 metros.
A subida do terreno na direção média que levamos, leste oeste, é como se vê, insensível mas contínua.
QUIRIMQUINQUÁ — Aqui chegamos às 7 horas e 38 minutos da noite, andando, a partir de Cansanção cinco léguas extensas, léguas tabaréu, que valem 8 kilometros cada uma.
O terreno vai-se pouco a pouco modificando, as catingas tornam-se mais altas numa passagem franca para cerrados e o terreno mais movimentado. Encontramos as primeiras rampas fortes da estrada. Do meio do caminho, perto da Lagoa de Cima começa-se a avistar, bellissima, fechando o horizonte para nordeste a serra de Monte Santo. Predominam na flora novos especimens; começam a aparecer em maior número os angicos de folhas miúdas e porte elegante, as baraienas altas, as caraíbas de folhas lanceoladas e cassuquingas de cheiro agreste e agradável. A três kilometros de Quirimquinquá o terreno granitico aflora dominando a constituição do solo. A rocha tem para mim um aspecto novo; está cavada em muitos pontos em caldeirões de grandeza variável, nos quais se acumulam as águas da chuva. São reservatórios providenciais. Estão todos toscamente cobertos: algumas pedras sobre páus dispostos paralelamente.
Quirimquinquá, incomparavelmente superior ao Tanquinho, tem um horizonte menos monótono que Cansanção.
A viagem segue sem incidentes notáveis. O acampamento, à noite, patentéa magnífico aspecto, diferenciado em grupos animados, conversando ruidosamente enquanto a soldadesca adestrada cuida de cavalhada extenuada.
Abrigado uns nas duas casas da fazenda graciosamente cedidas, dormindo outros ao relento em redes ou sobre os apetrechos da montaria, vamos atravessar mais uma noite, a última, felizmente, desta viagem.
Partiremos amanhã cedo para Monte Santo.