Bordo do Espírito Santo, 7 de agosto de 1897.
Depois de quatro longos dias de verdadeira tortura subo pela última vez à tolda do vapor na entrada belíssima e arrebatadora da Bahia.
Não descreverei os incidentes da viagem, vistos todos através de inconcebível mal-estar, desde o momento emocionante da partida em que Bueno de Andrada e Teixeira de Souza — um temperamento feliz, enérgico e bom, e uma alma austera de filósofo — representaram em dois abraços todos os meus amigos de S.Paulo e do Rio, até o seu termo final, nas águas desta histórica paragem.
Escrevo rápidamente, direi mesmo vertiginosamente, acotovelado a todo o instante por passageiros que irradiam em todas as direções sobre o tombadilho, na azáfama ruidosa da chegada, através de um coro de interjeições festivas no qual meia dúzia de línguas se amoldam ao mesmo entusiasmo. É a admiração perene e intensa pela nossa natureza olímpica e fulgurante, prefigurando na estranha majestade a grandeza da nossa nacionalidade futura.
E, realmente, o quadro é surpreendedor.
Afeito ao aspecto imponente do litoral do Sul onde as serras altíssímas e denteadas de gnaisse recortam vivamente o espaço investindo de um modo soberano as alturas, é singular que o observador encontre aqui a mesma majestade e a mesma perspectiva sob aspectos mais brandos as serras arredondando-se em linhas que recordam, as voltas suavíssimas das volutas e afogando-se, perdendo-se no espaço, sem transições bruscas numa difusão longínqua de cores em que o verde-glauco das matas se esvai lentamente no azul puríssimo dos céus…
A ilha de Itaparica, à nossa esquerda e na frente, ridente e envolta na onda iluminada e tonificadora da manhã, desdobra-se pelo seio da Bahia, revestida de vegetação opulenta e indistinta pela distância.
O mar tranquillo como um lago banha, à direita, o áspero promontório sobre o qual se alevanta o farol da Barra, cingindo-o de um cendal de espumas. Em frente avulta a cidade, derramando-se, compacta sobre imensa colina, cujos pendores abrutos reveste, cobrindo a estreita cinta do litoral e desdobrando-se, imensa, do forte da Gamboa a Itapagipe, no fundo da enseada.
Vendo-a, deste ponto com as suas casas ousadamente aprumadas, arrimando-se na montanha em certos pontos, vingando-a em outros e erguendo-se a extraordinária altura, com as suas numerosas igrejas de torres esguias e altas ou amplos e pesados zimbórios, que recordam basílicas de Bisancio — vendo-a deste ponto, sob a irradiação claríssima do nascente que sobre ela se reflete dispersando-se em cintalações ofuscantes, tem-se a mais perfeita ilusão de vasta e opulentíssima cidade.
O Espírito Santo cinde vagarosamente as ondas e novos quadros aparecem. O forte do Mar — velha testemunha histórica de extraordinários feitos — surge à direita, bruscamente, das águas, imponente ainda mas inofensivo, desartilhado quase, mal recordando a quadra gloriosa em que rugiam nas suas canhoeiras, na repulsa ao holandês, as longas colubrinas de bronze.
Corro os olhos pelo vapor.
Na proa os soldados que trazemos acumulam-se, saudando, entusiastas, os companheiros de S.Paulo, vindos ontem, enchendo literalmente o Itupeva, já ancorado.
A um lado, alevanta-se, firmemente ligado ao reparo sólido, um sinistro companheiro de viagem — o morteiro Canet, um belo espécime da artilheria moderna. Destina-se a contraminar as minas traidoras que existem no solo de Canudos.
Embora sem a pólvora apropriada e levando apenas 69 projéteis (granadas de duplo efeito e shrapnels) o efeito dos seus tiros será eficacíssimo. Lança em alcance máximo útil 32 quilos de ferro, a seis quilômetros de distância. Acredito, entretanto, dificílimo o seu transporte pelas veredas quase impraticáveis dos sertões. São duas toneladas de aço que só atingirão as cercanias da Meca dos jagunços através de esforços inconcebíveis.
Maiores milagres, porém, tem realisado o exército nacional e a fé republicana.
A disposição entre os oficiais é a melhor possível.
A saudade, imensa e indefinivel saudade dos entes queridos ausentes, desce, às vezes, profunda, dolorosíssima e esmagadora sobre os corações: as frontes anuviam-se; cessam bruscamente as palestras em que se procura afugentar tristezas numa guerrilha adoidada de anedotas; um pesado silêncio paira repentinamente sobre os grupos esparsos; o coração batendo febrilmente nos peitos, perturba o rítimo isócrono da vida — e os olhares, velados de lágrimas, dirigem-se ansiosamente para o Sul… Ao mesmo tempo, porém, como um antidoto enérgico, um reagente infalível, alevanta-se, ao Norte, o nosso grande ideal — a República — profundamente consolador e forte, amparando vigorosamente os que cedem às mágoas, impelindo-os à linha reta nobilitadora do dever.
E reagem.
Eu nunca pensei que esta noção abstrata da Pátria fosse tão ampla que, traduzindo em síntese admirável todas as nossas afeições, pudesse animar e consolar tanto aos que se afastam dos lares tranquilos demandando a agitação das lutas e dos perigos. Compreendo-o, agora. Em breve pisaremos o solo onde a República vai dar com segurança o último embate aos que a perturbam. Além, para as bandas do Ocidente, em contraste com o dia brilhante que nos rodeia, erguem-se, agora, por uma coincidencia bizarra, cúmulos pesados, como que traduzindo fisicamente uma situação social tempestuosa. Surgem, erguem-se, precisamente neste momento, do lado do sertão, — pesados, lúgubres, ameaçadores…
Este fato ocasional e sugestivo prende a atenção de todos. E observando, como toda a gente, as grandes nuvens silenciosas que se desenrolam longínquas, os que se destinam àquelas paragens perigosas sentem com maior vigor o peso da saudade e com maior vigor a imposição austera do dever.
Nem uma fronte se perturba, porém.
Que a nossa Vendéia se embuce num largo manto tenebroso de nuvens, avultando além como a sombra de uma emboscada entre os deslumbramentos do grande dia tropical que nos alenta. Rompê-lo-á, breve, a fulguração da metralha, de envolta num cintilar vivíssimo de espadas…
A República é imortal!