Alvas ermidinhas sob azues maguados,
Vejo-vos de longe n'uma adoração,
Como ninhos brancos de Ideal pousados
Lá n'esses fragosos montes escalvados,
Onde não ha agoa, nem germina o pão.

Serranias ermas, solidões contritas...
Azinheiras como velhos Briareus...
Pedras calcinadas... gados parasitas...
Tristes montes ermos! ermos cenobitas,
Que em burel d'estevas amortalha Deos!...

Pelas torvas, fundas noites de invernada,
Quando os lobos uivam, quando a neve cae,
Que infinitos sustos n'uma tal morada,
Para debil virgem tão desamparada
Com um inocente nos seus braços... ai!

Como é que não treme pelo seu menino?
Como é que não chora seu piedoso olhar?
Como é que o seu labio, fresco e matutino,
Se abre n'um sorriso, precursor divino
Da estrellinha d'alva quando vae raiar?!

Não receia feras quem de rosto ledo
Sofre sete espadas sobre o coração!...
E ao filhinho a noite não lhe causa medo,
Deu-lhe Deos o mundo para seu brinquedo,
Como um fructo d'oiro tem-no ali na mão!...

Lá nos altos montes sem trigaes, nem vinhas,
Sem o bafo impuro que dos homens vem,
É que a mãe de Christo com as andorinhas,
E as estrellas d'oiro mesmo ali visinhas,
N'um casebre terreo se acomoda bem.

Bispos não precisa; servem-na pastores,
Capelães d'ovelhas, mais o seu zagal...
Lampada ás Trindades, chão varrido, flores,
Nada falta á Virgem, mãe dos pecadores,
N'uma egrejasinha que é como um pombal.

E nas brutas, rudes solidões tão calmas
Ai, muito se engana quem a julga só!
Entre o luar dos hinos e o verdor das palmas,
Para lá caminham romarias d'almas...
Todos nós lá fomos com a nossa avó!...

Oh, as invisiveis procissões piedosas,
Romarias fluidas, sobrenaturaes!
Por onde ellas marcham, brancas, vaporosas,
Fica nos espaços um alvor de rosas
E uma angelisante tremulina d'ais!...

Almas de velhinhas, do palor silente
D'uma estrella, quando desmaiando está...
Vão buscar alivios p'ro netinho doente,
Vão pedir noticias d'algum filho ausente,
Vão rogar a Gloria para os mortos já...

Almas de meninos, loiras como abelhas,
A sorrir ao colo d'almas a cantar...
Almas em noivados, roseas e vermelhas...
E almas de pastores ofertando ovelhas,
Chocalhinhos d'astros, velos de luar...

Almas d'assassinos dos montados ermos,
Com o seu remorso como um javali...
Almas de mendigos, d'aleijões, d'enfermos...
Almas vagabundas, de perdidos termos,
Que atravessam agoas p'ra chegar ali!...

Almas das corolas matinaes, dos ninhos,
Das aradas verdes, da campina em flor...
Almas de borregos, touros, passarinhos...
E almas, sim! das urzes e hervas dos caminhos,
Porque até nas fragas dorme o Sonho e a Dor!...

E essas almas todas ella apasigua
Com o dos seus olhos balsamo eficaz:
Verte sobre as penas sugestões de lua,
Mantos dá d'estrellas á miseria nua,
Lagrimas aos crimes e ao remorso paz...

Esconjura demos, bruxas, feiticeiras,
E dos sonhos loucos o torpor febril...
Dá verdura aos gados, chuva ás sementeiras,
Faz bailar as moças ao luar nas eiras,
Faz fugir os lobos vendo o seu candil.

Mas tambem ha almas, pobresinhas d'ellas!
Que á romagem d'oiro não acodem já!
Almas moribundas... Noites de procellas...
Olha nos casebres tremeluzem velas!...
É signal que a Morte anda a rondar por lá!...

Mas a sempre linda Virgem da Amargura
Baixa do altarzinho toda afadigada,
E atravez de serras, pela noite escura,
De menino ao colo, – santa creatura! –
Lá vae ella andando, não tem medo a nada!...

Lá vae ella andando... no caminho estreito
Deixa um rasto d'oiro pela escuridão...
Deixa um rasto d'oiro de divino efeito,
Porque as sete espadas, a fulgir no peito,
Põem-lhe um setestrello sobre o coração...

E de povo em povo, que é de serra em serra,
Almas na agonia visitando vae;
Quando chega, a Morte já as não aterra,
Ella lhes dá azas p'ra voar da terra,
Seu menino beijos p'ra levar ao Pae...

Virgem das Angustias, Virgem da Bonança,
Quantas noites, quantas! tremula de dor,
Não vae ser parteira da ovelhinha mansa
A parir, balando como uma creança,
Entre fragaredos de meter horror!

A deshoras mortas eil-a vigilante,
Prompta a dar socorros ao menor queixume:
Acender estrellas para o navegante,
Ir levar ás mães o cordeirinho errante,
Defender das cobras a ninhada implume...

Pois como não ha-de consolar as dores
Dos humildes, simples, engeitados, nus,
Se inda se recorda de só ver pastores,
Com cordeiros brancos, cantilenas, flores,
Na sagrada noite em que pariu Jesus!...

Sim! adora a rude gente da lavoira,
Sementeiras, gados, matagaes, lebreus,
Porque não se esquece da vaquinha loira,
Que se poz de joelhos ante a mangedoira,
Quando nas palhinhas dormitava Deos...

E por isso arreda pestes, ventanias,
Fomes e procellas, bruxas e trovão,
Lá para malditas, negras penedias,
Onde silvam cobras doudas e bravias,
E onde não existe nem christão, nem pão!...

E por isso ex-votos, que relembram dores,
Cobrem de ternura todo o seu altar:
Bustos de meninos, mãos de cavadores,
Tranças de donzellas, soluçando amores...
Corações e peitos, de fazer chorar!...

Alvas capelinhas, sempre milagrosas,
Sois n'essas alturas para os olhos meus,
Como ninhos virgens d'orações piedosas,
Miradoiros brancos de luar e rosas,
D'onde as almas simples entreveem Deos!...

90-91.